CRIME, SOCIEDADE E DESLEGITIMAÇÃO DO SISTEMA PENAL: A DIFÍCIL VIDA DE JOÃO!

CRIME, SOCIETY AND DELEGITIMATION OF THE PENAL SYSTEM: JOHN’S DIFFICULT LIFE!  

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10632779


Péricles José Queiroz1


RESUMO  

O presente artigo visa abordar, numa perspectiva crítica, a deslegitimação do sistema penal  para prevenção e repressão do crime, quando ausente a autodeterminação do indivíduo na  prática do delito, por razões de marginalização sócio-econômica, decorrente de omissão e/ou  ineficiência estatal no amparo às classes sociais envolvidas. Nessa análise, pondera-se sobre a  responsabilidade penal do Estado ante a crescente criminalidade e quais as suas ações para  repressão e prevenção do crime. Isso porque a seletividade do sistema penal e o uso do poder  punitivo pelo Estado-Juiz não podem ignorar a vulnerabilidade do criminoso estereotipado,  sob pena de reverter-se a responsabilização penal ao agente judicial. Para o estudo dessa  problemática, adotou-se o método hipotético-dedutivo, com base em fontes doutrinárias,  legislativas, jurisprudenciais, bem dados empíricos com indicadores econômicos e sociais da  criminalidade. Como resultado da presente pesquisa, concluiu-se que tem o Estado detém  responsabilidade social, econômica e política no controle da criminalidade e da segurança  pública, devendo sua ação ser efetiva não apenas na repressão do delito, mas,  preventivamente, em especial no tocante ao amparo às classes marginalizadas, em todos os  aspectos de sua vida, como educação, saúde, moradia, saneamento básico, lazer, trabalho etc.,  na máxima expressão da dignidade da pessoa humana.  

Palavras-chave: Crime. Sociedade. Omissão. Estatal. Deslegitimação. 

ABSTRACT  

This article aims to address, from a critical perspective, the delegitimization of the criminal  system for the prevention and repression of crime, when the individual’s self-determination in  committing the crime is absent, for reasons of socioeconomic marginalization, resulting from  omission and/or state inefficiency in the support for the social classes involved. In this  analysis, the State’s criminal responsibility in the face of growing crime and its actions to  repress and prevent crime are considered. This is because the selectivity of the criminal  system and the use of punitive power by the State-Judge cannot ignore the vulnerability of the  stereotyped criminal, under penalty of reversing criminal liability to the judicial agent. To  study this problem, the hypothetical-deductive method was adopted, based on doctrinal,  legislative and jurisprudential sources, as well as empirical data with economic and social  indicators of crime. As a result of this research, it was concluded that the State has social,  economic and political responsibility in controlling crime and public security, and its action  must be effective not only in repressing crime, but preventively, especially with regard to  support for marginalized classes, in all aspects of their lives, such as education, health,  housing, basic sanitation, leisure, work, etc., in the maximum expression of the dignity of the  human person.  

Keywords: Crime. Society. Omission. State-owned. Delegitimization. 

INTRODUÇÃO  

Hodiernamente, a crise da segurança pública e do sistema penitenciário no Brasil  revelam-se através da falta de efetivo de pessoal, péssimas condições de estrutura física dos  ambientes prisionais, encarceramento em massa, rebeliões em presídios, greves de servidores,  entre outras situações.  

Nesse contexto, a sociedade, em especial as classes sociais dependentes  diretamente da assistência pública, vê-se obrigada a suportar o descaso do Estado, que não  tem conseguido atuar a contento no atendimento às necessidades básicas da população, gerando um crítico cenário econômico-social, consistente na educação insuficiente e  deficitária, ausência de moradia e de emprego, degradação moral humana, entre outros.  Tal circunstância, por conseguinte, acaba se tornando um ambiente propício para  o aumento da criminalidade, em especial entre os adolescentes e jovens, que crescem num  ambiente de desamparo e sem oportunidades, de forma que, para muitos deles, o caminho  inevitável é o do crime.  

A partir disso, exsurge a problemática da presente pesquisa: em que medida o  indivíduo, submetido a um degradante ambiente familiar, social e econômico de descaso  estatal, pode ser considerado inteiramente responsável pela sua conduta desviante?  

Adotou-se, para este artigo, o método hipotético-dedutivo, pautado em pesquisa  bibliográfica, legislativa, jurisprudencial, bem como dados empíricos com indicadores sociais  e econômicos da criminalidade, com vistas a analisar a responsabilidade do Estado nesse  quadro crescente de criminalidade que hoje se vive no Brasil e, via de consequência, a sua  legitimidade para o exercício do poder punitivo.  

Espera-se, com este trabalho, trazer à luz o cuidado e o zelo que se deve ter com a  pessoa humana, em sua dignidade, ainda que infratora. Afinal, para além do crime e do  estereótipo de delinquente, há uma ser humano tão vítima quanto a própria vítima do delito.  

1 CRIMINALIDADE: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE  

João é o nome do nosso personagem fictício. Ele tem 18 anos, negro, reside na  periferia da cidade Perdida, Estado do Abandono, filho de mãe separada, também negra e que  foi vítima de violência doméstica pelo ex-companheiro. João estudou em colégio público e,  desde a adolescência, para ajudar no sustento da casa – ele tem mais 4 irmãos, todos menores-,  precisou trabalhar na rua, vendendo doces no semáforo, limpando pára-brisas de carros,  atuando como flanelinha etc.  

Sem ter conseguido completar os estudos, João se via cada vez mais levado para o  trabalho na rua. Nesse contexto, conheceu as drogas, o álcool, fez amizades com diversos  perfis de homens e mulheres envolvidos na criminalidade, e, aos 16 anos, cometeu seu  primeiro ato infracional: conduta análoga ao furto. Daí em diante não parou: furto, roubo,  latrocínio, foram fazendo parte da ficha corrida de João. Hoje, aos 18 anos, João está preso,  recolhido no presídio da cidade Perdida, sob a acusação da prática dos crimes de roubo e  tráfico de drogas. E sua família? Bem, continua na periferia. Sua mãe, quando pode, visita-o  no presídio, trazendo-lhe algumas comidas que consegue adquirir com a ajuda de vizinhos. 

A vida de João retrata a realidade de muitas crianças, adolescentes e jovens hoje  no Brasil. Pobre, negro, filho de mãe separada, com um lar conturbado pela violência  doméstica. A pergunta é: havia outro caminho para João? Será que João poderia hoje, aos 18  anos, estar numa faculdade, estudando e trabalhando, para ajudar no sustento da casa? Até que  isso não seria impossível. Há muitos exemplos de jovens brasileiros, advindos de famílias de  baixa renda, que conseguem, com muita dedicação e esforço, vencer na vida. Mas a verdade é  que esse nem sempre é o caminho trilhado. A regra, infelizmente, é o percurso seguido por  João, como numa trajetória quase que inevitável.  

Em determinada matéria jornalística, numa demonstração de crise da segurança  pública brasileira, PAGNAN (2018) relata a atuação da facção Primeiro Comando da Capital  – PCC, em vários Estados nacionais, para captação de novos membros para o grupo, numa  campanha denominada “adote um irmão”. Segundo apurado pela Polícia Civil do Estado de  São Paulo, na referida campanha, cada membro do grupo precisava convidar um novo  bandido para a facção criminosa. Como incentivo, os chefes do grupo suspendiam a cobrança  da matrícula e a mensalidade que cada integrante do grupo deveria pagar.  

Por sua vez, em outra matéria jornalística, (2018) destaca a decisão do Des. Siro  Darlan, presidente da 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que, em  análise de um caso concreto envolvendo um adolescente representado pelo órgão ministerial,  concluiu que não se devia punir adolescentes por ato infracional análogo ao tráfico de drogas,  por considerar que “a culpa por esses casos é do Estado, que não tem combatido eficazmente  o aliciamento de jovens para a prática criminosa.” (RODAS, 2018)  

Para justificar seu posicionamento, DARLAN (BRASIL, 2018), nos fundamentos  de sua decisão, destaca a omissão do poder público na implementação de políticas públicas de  caráter preventivo destinadas aos adolescentes, especialmente àqueles já envolvidos em atos  infracionais, bem como a falência do modelo das medidas socioeducativas e a própria  exclusão social sofrida por esses menores, como fatores para maior vulnerabilidade deles à  cooptação pelas facções criminosas, especificamente nos locais onde há um predomínio  dessas organizações criminosas.  

Em contrapartida a essa realidade política, econômica e social, salienta DARLAN  (BRASIL, 2018) que o Brasil, além da vinculação a normativos pátrios, como a Carta Magna  de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, também é signatário de documentos  internacionais, nos quais se obriga à proteção da criança e do adolescente, assegurando-lhe,  entre outros, o direito à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura e à dignidade. 

Nesse aspecto, inclui-se, na responsabilidade do Estado, o combate ao trabalho  infantil, especialmente para atividades ilícitas, como o tráfico de entorpecentes, consoante  disposto no art. 3, alínea “c”, da Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho,  promulgada no Brasil através do Decreto n. 3.597, de 12.09.2000 (DARLAN, BRASIL,  2018). No mesmo sentido, destaca DARLAN (BRASIL, 2018), além de outras referências  citadas em seu voto, a Convenção de Genebra, do qual o Brasil também é signatário, que, no  seu art. 14, estabelece a proteção deferida aos menores de 15 anos contra os efeitos das  hostilizações advindas de uma guerra – fazendo, nessa hipótese, referência à intervenção  federal na cidade do Rio de Janeiro/RJ. 

Em vista dessas ponderações, numa abordagem legal, inclusive de normas  internacionais, bem como criminológica acerca do tema, DARLAN (BRASIL, 2018) verifica,  no caso em concreto ora em análise, a corresponsabilidade do Estado no cometimento do  delito pelo adolescente, em virtude da omissão estatal ante a imposição constitucional e  supralegal de proteção integral dos direitos das crianças e dos adolescentes. Por esse exposto,  decidiu pelo provimento do apelo defensivo e pela improcedência da representação, com a  consequente ordem de concessão de liberdade ao menor.  

Sem esgotar outras tantas matérias e estudos existentes para atestar o quadro  gravoso da criminalidade no Estado brasileiro, o fato é que, entre o nosso fictício personagem  João e a realidade da violência hoje imperante, há uma grande proximidade. O meio social  influencia o crime, reforçando-se a ideia de que um ambiente familiar, social, econômico e  político onde não haja oportunidades – de trabalho, saúde, educação, lazer – torna-se propício  para o surgimento e ascensão da violência.  

O jurista DELGADO (2018), refutando a tese lombrosiana de que a criminalidade  seria de ordem genética, transmitida de pai para filho, salienta que “a sociedade não é  composta, em sua maioria, de criminosos inatos, mas de pessoas que, vivendo em  determinados ambientes degradados e degenerados, acabam sofrendo a influência dos fatores  exógenos que a circundam.”  

Nesse sentido, discorre DELGADO (2018), a separação que se vive hoje no meio  urbano, entre o centro e a periferia, enseja o processo de segregação socioeconômica,  apartando as classes sociais. Com isso, de um lado, no centro, em enclaves fortificados2,  verifica-se a classe daqueles que detêm o poder econômico e que irá exercer sobre a outra classe periférica o poder de mando, em especial no ambiente de trabalho; de outro lado, na  periferia, os miseráveis, marginalizados, residindo em cortiços, que sobrevivem a cada dia sob  pressão da dominação da classe abastada e que está sujeita à omissão estatal no tocante aos  seus direitos fundamentais de moradia digna, saúde, trabalho e lazer.  

No mesmo raciocínio, ZAFFARONI e PIERANGELI (2018, tópico 2, n. p.)  ressaltam que “toda sociedade apresenta uma estrutura de poder, com grupos que dominam e  grupos que são dominados, com setores mais próximos ou mais afastados dos centros de  decisão.” Daí decorrerem os graus de centralização e de marginalização nas sociedades, umas  com extrema diferença, outras mais atenuada. (ZAFFARONI E PIERANGELI , 2018, n. p.)  

E, diante desse quadro crítico que encerra numa degradação humana, a  criminalidade ganha espaço, pois, no dizer de DELGADO (2018), torna-se “uma forma de  adaptação ao meio no qual se vive. Se uma pessoa desempregada não tem como sobreviver  dignamente, (…), evidente que irá furtar ou roubar, porque esse procedimento é uma forma de  se adaptar ao meio ambiente do qual faz parte.”  

De se ver, pois, que a criminalidade urbana que hoje se verifica no Brasil é fruto  do próprio meio em que inserida. Não há outra origem. E quanto mais isso é ignorado pelo  Estado e pela própria sociedade, ao buscarem soluções para o crime em elementos exteriores  ao próprio meio social – a exemplo de leis penais elaboradas pelo Poder Legislativo pátrio  sem prévio estudo sociocriminológico -, mais esse problema social cresce e se desenvolve,  vitimizando, a cada dia, pessoas inocentes.  

1.1 UMA REALIDADE CHAMADA “DIREITO PENAL DO ESTADO”: QUANDO O  ESTADO SE TORNA RESPONSÁVEL PELO CRIME  

Diante dessa infeliz realidade, a pergunta que remanesce é: dentro de um contexto  socioeconômico de divisão de classes sociais, a quem, de fato, se pode atribuir a  responsabilidade pela criminalidade, em especial entre os adolescentes e jovens?  

É possível perquirir acerca do papel e da responsabilidade do Estado no combate  preventivo à criminalidade? Em outras palavras, é possível exigir desse Estado ações prévias  que evitem a criminalidade, impondo-se-lhe a devida responsabilização em caso de inércia ou  ineficiência? Ou sua atuação é somente a posterior, para punir o infrator?  

Antes de se propor uma resposta a essa indagação, relevante abordar dois pontos  da dogmática jurídico penal: poder punitivo estatal e finalidades da pena e a classificação  doutrinária acerca das espécies de direito penal. 

1.1.1 Poder punitivo estatal e finalidades da pena  

ROXIN et al. (2007, p. 5) considera que a incidência do poder punitivo estatal  sobre comportamentos desviantes se dá quando tais comportamentos tornam inconciliáveis às  condições de uma convivência pacífica, livre e materialmente segura para os cidadãos. Em  outra hipótese, também justifica (ROXIN et al., 2007, p. 7) o emprego de meios penais  quando outros ramos do direito não forem suficientes para a correção da conduta nociva,  invocando, assim, o princípio da subsidiariedade do direito penal.  

É, nesse contexto, conclui ROXIN et al. (2007, pp. 7-8), que se justifica o poder  punitivo estatal, como um poder emanado do povo e que se exerce para a proteção de bens  jurídicos do indivíduo contra abusos de outrem, a fim de lhe assegurar uma vida com maior  liberdade e assistência possíveis.  

Via de consequência, na abordagem acerca das finalidades da pena imposta pela  Estado ao infrator, ROXIN et al. (2007, p. 9) faz essa análise a partir da seguinte indagação:  em que residem a finalidade e a justificação da imposição penal concreta no caso real? Para a  resposta, elenca o autor as três concepções fundamentais da pena, a saber, teoria da  retribuição, teoria da prevenção especial e teoria da prevenção geral.  

Na teoria da retribuição, a finalidade da pena reside na compensação da culpa  imposta ao agente em virtude do fato criminoso por ele praticado. Nessa atuação, a pena é  necessária para que haja justiça, devendo ser imposta na proporção correspondente à culpa do  infrator. Já na teoria da prevenção especial, ou prevenção do caso concreto, a finalidade da  pena, a partir do encarceramento, da intimidação e da reabilitação (identificada pela  ressocialização ou socialização), consiste em impedir que o indivíduo cometa novos delitos.  Assim, na sua aplicação, a pena atenderia à sua função social, impedindo qualquer punição  desnecessária ao combate à criminalidade. (ROXIN et al., 2007, pp. 9-11)  

Por sua vez, na teoria da prevenção geral, a finalidade da pena está em estimular,  na sociedade, um comportamento de obediência à norma jurídico-penal, através da dissuasão  à prática de fatos criminosos ou formando, nos cidadãos, a consciência jurídica de condutas  sociais proibidas. Finalmente, há também a teoria da união, que resulta da junção das três  teorias anteriores e, nessa forma, apresentar-se-ia mais viável de eficácia prática – adotada no  âmbito do direito penal brasileiro.(ROXIN et al., 2007, pp. 11-12)  

Esse estudo trazido por ROXIN destaca um poder punitivo estatal que, na teoria,  resvala-se de coerência e viabilizador de uma justiça, seja para a sociedade quanto para o agente infrator. No entanto, na realidade do sistema penal brasileiro, nem sempre essas  finalidades da pena se efetivam.  

Sobre isso, em abordagem crítica sobre a aplicação da pena, BARATTA (2017, p.  177) assinala um aspecto relevante: os juízes, diante do insuficiente conhecimento e da  dificuldade de penetração no mundo do acusado, tendem a proferir um juízo desfavorável aos  réus de camadas sociais inferiores, em evidente diferenciação social em relação às classes  sociais de maior potencial econômico. Isso se dá “não só pela ação exercida por estereótipos e  por preconceitos, mas também pela (ação) exercida por uma série das chamadas “teorias de  todos os dias”, que o juiz tende a aplicar na reconstrução da verdade judicial.” (BARATTA,  2017, p. 177)  

Explica BARATTA (2017, pp. 177-178) que “Em geral, pode-se afirmar que  existe uma tendência por parte dos juízes de esperar um comportamento conforme à lei dos  indivíduos pertencentes aos estratos médios e superiores; o inverso ocorre com os indivíduos  provenientes dos estratos inferiores.”  

Na verdade, para CASTRO e CODINO (2017, p. 133), essa percepção judicial  acerca do estereótipo do delinquente é verificada, não só entre os operadores do direito, mas  em todos os grupos sociais e etários e meios de comunicação, inclusive na literatura. Ao  abordar sobre esse perfil do criminoso, CASTRO e CODINO (2017, p.133), citando  Chapman3, descrevem-no da seguinte maneira:  

O delinquente não é branco, casado, profissional, religioso, nem de classe média ou alta. É anormal, violento, feio, pobre e mal vestido. Pertence às camadas mais baixas da sociedade. Tem problemas mentais ou, pelo menos, psicológicos. Seu lar é um lar desunido. Não tem educação. São suas perversões hereditárias, seus hormônios, sua personalidade, seus genes, junto ao alcoolismo, à sífilis ou à tuberculose, o que o  induz a cometer atos proibidos.  

Esclarecem CASTRO e CODINO (2017, pp. 134-135), ainda citando as teses de  Chapman, que a prática do crime é geral na sociedade, mas a incidência das condenações se  deve, em parte ao azar – aqui se incluem as classes pobres e subalternas -, e em parte aos  processos sociais que dividem a sociedade em classes criminosas e classes não criminosas.  Isso porque, o criminoso estereotipado viria, geralmente, do proletariado ou do  subproletariado, cujo ambiente histórico de vida pressupõe condições econômicas e afetivas  precárias que o determinaram a ser um adulto vulnerável ao desequilíbrio e à agressividade.  

Note-se que não se pretende aqui indicar que o crime é prática exclusiva da classe  social economicamente mais baixa da sociedade, até porque, como citado por CASTRO e  CODINO, a criminalidade tem incidência geral. O que se está a pontuar é o estereótipo  estabelecido para o criminoso e de como isso pode influir no tratamento penal e processual  penal dado ao agente. CASTRO e CODINO (2017, p. 135) indicam, até, que “a maior parte  das investigações sobre o crime parte desse estereótipo e o aceitam como um pressuposto  incontestável da investigação.” Nessa condição, o delinquente estereotipado funcionaria como  “bode expiatório” da sociedade, a quem é dirigida toda a carga agressiva da punibilidade.  (CASTRO e CODINO, 2017, p. 135)  

Nesse processo, onde estariam os criminosos de classe média e alta? A esse  respeito, CASTRO e CODINO (2017, pp. 135-136), mais vez uma citando Chapman,  ressaltam que esse grupo social tem sua imunidade frente ao aparato repressivo e judicial  garantido pela privacidade que envolve suas vidas e atividades, onde os atos delitivos se  ajustam no âmbito privado, através de dinheiros, influências e intervenções familiares. Nesse  contexto, tal grupo social goza de respeito das autoridades, o que consolida essa imunidade.  

É perceptível, assim, que a análise da pena e do poder punitivo estatal, a partir de  uma perspectiva jurisdicional prática, revela uma distorção entre o ideal assinalado por  ROXIN – no estudo das teorias da pena -, e a atuação concreta dos juízes tratada por  BARATTA e explicitada por CASTRO e CODINO. Esse desvio entre a teoria e a prática,  consoante registrado, passa por uma pré-concepção do perfil criminoso do indivíduo, bem  como pelo não conhecimento da realidade socioeconômica a que submetido o cidadão e até  que ponto tal cidadão é, de fato, responsável pelo desfecho da sua conduta delituosa.  

1.1.2 Classificação doutrinária do direito penal  

No tocante à classificação do direito penal, a doutrina elenca o direito penal do  fato, para o qual as leis penais somente devem punir os fatos praticado pelo agente; o direito  penal do autor, caracterizado pela punição de pessoas tão somente pelo seu modo de ser, pela  sua característica ou condição pessoal, independente de ter praticado fato criminoso ou não; e  o direito penal do fato que considera o autor – estipulada pelo jurista Francisco de Assis  Toledo -, para o qual há predominância do direito penal do fato, mas levando em consideração  também o seu autor. (AZEVEDO, SALIM, 2016, p. 35)  

Por sua vez, na doutrina de ZAFFARONI E PIERANGELI (2018, tópico 32, n.  p.), há o direito penal da culpabilidade e o direito penal da periculosidade. No primeiro, numa perspectiva retributiva da pena pela reprovabilidade da conduta, a pessoa só responderá pelo  fato se ela teve oportunidade de escolher, isto é, de autodeterminar-se. Trata-se de uma  concepção antropológica, que concebe o homem como um ser com autonomia ética e, por  isso, pode escolher entre o bem e o mal. Assim, se, por ventura, o agente escolhe pelo mal, a  pena viria em retribuição, com caráter punitivo.  

Já no segundo, direito penal da periculosidade, considera-se o grau de  determinação do homem para o delito – a sua inclinação pessoal -, identificada como a  periculosidade. Nessa concepção, considera-se que o homem não goza da possibilidade de  escolha, pois é um sujeito determinado, isto é, um sujeito que apresenta um grau de  determinação para a criminalidade. Na hipótese, a pena é vista com aspecto ressocializador  para neutralizar a periculosidade. (ZAFFARONI E PIERANGELI , 2018, tópico 32, n. p.)  

ZAFFARONI E PIERANGELI (2018, tópico 32, n. p.) criticam o direito penal da  periculosidade, entendendo que não se é concebível negar ao homem a possibilidade de  escolha, pois isso seria negar qualquer forma de responsabilidade ao agente. Assim, defendem  os autores um direito penal da culpabilidade, que vise não só à finalidade retributiva da pena  (teoria da retribuição), mas também à finalidade preventiva especial, dado o caráter  ressocializador e reeducador da pena. Isso, sem negar ao homem sua autonomia e capacidade  de autodeterminação.  

Nessa esteira, ZAFFARONI E PIERANGELI (2018, tópico 33, n. p.) também  distinguem entre direito penal de autor e direito penal de ato. Neste, o que se proíbe é o ato em  si praticado pelo agente no contexto de autodeterminação – aplicável no direito penal  brasileiro. Naquele, o ato seria um sintoma de uma personalidade, de forma que o proibido e o  reprovável é a personalidade (ladrão, ex.) e não o ato (furto, ex.). Tem correlação com o  direito penal da periculosidade, que considera o homem incapaz de autodeterminação, mas  que apresenta um sintoma de periculosidade perigosa. Mas ZAFFARONI E PIERANGELI  (2018, tópico 33, n. p.) também verificam a possibilidade do direito penal de autor na  perspectiva do direito penal de culpabilidade, na hipótese de reiteração de condutas. No caso,  as condutas foram, no começo, livremente escolhidas, mas a sua reiteração indica um perfil de  personalidade voltado ao crime – daí se falar em culpabilidade de autor.  

Pois bem. Da interação entre esses dois pontos – poder punitivo estatal e  finalidades da pena e classificação do direito penal -, pode-se propor, neste artigo, de forma  objetiva, uma outra modalidade de direito penal, que se mostra coerente com a realidade da  aplicação da pena hoje no Estado brasileiro. Trata-se do “direito penal do Estado”, isto é, o  direito penal que considera a inércia ou ineficiência da atuação estatal no combate preventivo à criminalidade, de forma que a responsabilização pelo crime não decorre, por si só, do autor  nem do fato por ele praticado, mas dessa inércia ou ineficiência estatal.  Tal concepção – direito penal do Estado – se relaciona com o fracasso da  finalidade preventiva da pena (geral ou especial) e com a ideia de direito penal da  culpabilidade proposta por ZAFFARONI E PIERANGELI, que pondera o grau de  culpabilidade do agente na prática do crime, isto é, a possibilidade de escolha humana na  incidência do delito, considerando-se que, ausente essa liberdade, nega-se qualquer forma de  responsabilização penal ao indivíduo.  

E, assim sendo, cogitando-se duma eventual possibilidade de não  responsabilização penal do agente, diante da falta de possibilidade de escolha (a exemplo do  nosso personagem fictício João), passa-se a entender que a culpa pelo crime, nesses casos, é  do Estado e não da pessoa, que não agiu num contexto de autodeterminação. Por conseguinte,  a responsabilidade estatal está em assumir o problema da criminalidade, compreendendo que  ele é a causa para essa violência marginalizada, e não devolver a responsabilidade para o  indivíduo, que apenas foi vítima e alvo de um Estado incapaz de assegurar os direitos  fundamentais mínimos estatuídos na Carta Magna.  

Desse modo, em resposta à indagação acima, é possível se concluir sobre a  possibilidade de se exigir do Estado ações prévias que visem à redução da criminalidade. E,  caso isso não ocorra, há de se analisar eventual responsabilidade penal estatal, mediante a  aplicação do Direito Penal do Estado, cuja principal repercussão, consoante abordado, seja a  não responsabilização do agente em situação de não autodeterminação, aspecto devidamente  apurado, em âmbito jurisdicional, no contexto social do crime praticado.  

1.2 ANÁLISE DA ATUAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO PARA A REDUÇÃO DA  CRIMINALIDADE  

Para se cogitar dessa responsabilização penal do Estado, necessário ponderar a  atuação do Estado visando à redução da criminalidade. Nesse sentido, para a realidade  brasileira, num primeiro momento, essa análise será feita a partir dos dados estatísticos e  econômicos disponibilizados, em junho/2018, pela Presidência da República, através da  Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos. Na sequência, será abordado sobre a atuação do  Estado no aspecto legislativo penal.  

Conforme o relatório de conjuntura da Presidência da República (BRASIL, 2018,  p. 9), da apuração dos dados concluiu-se que o Brasil está entre os 10% de países com maiores taxas de homicídio do mundo, semelhantes até às de Ruanda, República Dominicana,  África do Sul e República Democrática do Congo.  

No âmbito interno, a evolução nas taxas de homicídios na última década também  foi significativamente heterogênea, com uma tendência de queda nas taxas de  homicídio no Sudeste e aumento no Norte-Nordeste. (BRASIL, 2018, p. 9)  

Em termos de investimento econômico, apurou-se (BRASIL, 2018, pp. 9-10) que  “os custos econômicos da criminalidade cresceram de forma substancial entre 1996 e 2015, de  cerca de 113 bilhões de reais para 285 bilhões de reais. Isso equivale a um incremento real  médio de cerca de 4,5% ao ano.” Regionalmente, porém, o relatório (BRASIL, 2018, p. 10)  apontou que os custos econômicos da criminalidade recaíram sobre as unidades da federação  de nível de renda mais baixo.  

Todavia, também se concluiu (BRASIL, 2018, p. 10) que, “a despeito desses  substantivos aumentos reais dos gastos públicos em segurança pública, o retorno social de tal  aumento foi limitado. No mesmo período, o número total de homicídios no país subiu de 35  mil a 54 mil por ano.”  

Ou seja, em que pese o aumento do investimento econômico do Estado, isso não  redundou em eficiência no combate preventivo à criminalidade, denotando que, na verdade,  houve alocação de “recursos sociais para atividades improdutivas sem a garantia de um  retorno tangível na redução da violência.” (BRASIL, 2018, p.10)  

A par desses dados socioeconômicos, o relatório (BRASIL, 2018, p. 11) abordou  que o modelo tradicional de combate preventivo ao crime, nas experiências internacionais e  domésticas, padece de resultados práticos positivos, especificamente no tocante à redução dos  níveis de criminalidade. Nesse modelo tradicional, são exemplos citados as práticas do  patrulhamento semi-aleatório, as investigações posteriores pela força policial e os esforços de  cumprimento da lei sem foco.  

Por conseguinte, para fins de se garantir o aumento da eficiência das políticas de  segurança pública, propõe o relatório (BRASIL, 2018, p. 11) que se estabeleça uma “política  de segurança baseada em evidências, isto é, do desenho de políticas públicas baseadas no  estado-da-arte da evidência empírica sobre quais tipos de intervenção funcionam.” Nesse  processo, também pontua que se faça o monitoramento e acompanhamento das políticas  públicas implementadas, adaptando-as ou encerrando-as quando não atinjam os objetivos  propostos de eficácia. (BRASIL, 2018, p. 11)  

Com relação ao âmbito legislativo, o que se tem verificado, já há algum tempo,  são apenas leis penais criando novos tipos penais ou agravando as penas dos crimes já existentes, estimulando o encarceramento. É exemplo a Lei n. 13.654, de 23.04.2018  (BRASIL), que alterou o Código Penal, para incluir novas qualificadoras para os crimes de  furto e roubo. No mesmo sentido, a Lei n. 13.641, de 03.04.2018 (BRASIL), que incluiu uma  modalidade criminosa na Lei de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, na hipótese  de descumprimento judicial, pelo requerido, das medidas protetivas deferidas pelo juízo.  

Em termos logísticos, verifica-se a edição da Lei n. 13.690, de 10.07.2018  (BRASIL), que criou o Ministério da Segurança Pública, com competência, entre outras, para  coordenar e promover a integração da segurança pública em todo o território nacional, em  cooperação com os demais entes federativos. Trata-se de um importante ato normativo, com  um ideal de propor uma segurança pública mais integrada e com vistas à capacitação dos  órgãos e agentes de segurança. A questão que se suscita, no entanto, é como o Estado irá  transformar os objetivos e competências estatuídos para esse Ministério em ações práticas  que, definitivamente, reduzam o quadro da criminalidade no Brasil. Eis a expectativa agora!  

Acerca disso, em reflexão crítica sobre essa situação da criminalidade no Brasil, o  professor Daniel VARGAS (2018) parte da própria dinâmica do federalismo brasileiro, para  compreender a ineficiência estatal diante da violência imperante. Nesse aspecto, abordando  sobre a atual crise do sistema de segurança pública brasileira e a consequente alta da  criminalidade, salienta:  

As polícias Civil e Militar não falam entre si dentro de um mesmo estado. Em  conjunto, nenhuma delas tampouco se comunica com fluidez com o Ministério Público. O Ministério Público, por sua vez, limita-se à troca de informações apenas  formal com a Justiça. A Justiça não fala com o Sistema Prisional. Nem o Sistema Prisional conversa com a comunidade. Multiplique esse problema por, pelo menos,  27 unidades da federação – sem contar órgãos federais e municipais – e é possível  apreender a escala do problema federativo nacional. (VARGAS, 2018)  

Desse cenário delicado, VARGAS (2018) salienta que a organização da segurança  pública, dentro da recente proposta legislativa – Lei n. 13.690/2018 -, passa por arranjos na  interação entre os entes federados, especialmente através da recapacitação e reequipamento  das instituições, bem assim da coordenação entre os setores que atuam na segurança pública,  como polícias, procuradores, juízes e agentes penitenciários, sem esquecer a própria  comunidade, que é onde tudo acontece – desde a violência até a reinserção social do apenado.  

Ainda enfocando o retrato do crime no Brasil, VARGAS (2018) pontua que a  busca por soluções para a melhoria da segurança pública, no âmbito do federalismo brasileiro,  deve também considerar o que ele denomina de “viés racial do regime”, isto é, a “cor da  violência”. Para o Professor (2018), “No país, quem mata, quem morre e quem é preso, em  sua vasta maioria, é negro. (…). Em muitas periferias brasileiras, o negro aprendeu a conviver com o medo. Esse medo, intuitivamente, é cada vez mais identificado com a cultura e a  “justiça dos brancos”.”  

Nesse aspecto, VARGAS (2018) pondera que o Estado poderá não vencer o  combate à criminalidade nas periferias se não “mudar de cor”, exortando para essa  necessidade e concluindo que o principal adversário da democracia brasileira é a  criminalidade, pois ela tem afetado a credibilidade das instituições de segurança pública e de  justiça.  

De se ver, assim, que a redução da criminalidade ainda não tem sido uma  realidade brasileira. Isso, num contexto, não de pura omissão estatal, mas, ao contrário, da  existência de ações estatais pautadas no investimento econômico em medidas de segurança  pública e de proposições legislativas. No entanto, essas ações estatais não têm sido eficazes  em se alcançar o resultado pretendido. E, mais uma vez, no atual cenário brasileiro da  sociedade e do crime, o que se pondera é: nosso personagem fictício João deve mesmo  responder penalmente pelos seus crimes?  

2 CULPABILIDADE, COCULPABILIDADE E CULPABILIDADE PELA  VULNERABILIDADE  

Conceitualmente, culpabilidade é identificada, na doutrina penal, como o juízo de  reprovabilidade atribuído ao agente pela prática do delito. Nesse aspecto, apresenta como  elementos a imputabilidade – capacidade penal geral do autor em saber o que faz, excluindo se os inimputáveis e semi-imputáveis; consciência da antijuridicidade – conhecimento real ou  possível do injusto concreto do fato, que permite ao autor saber, realmente, o que faz,  excluído ou reduzido em casos de erro de proibição; e exigibilidade de conduta diversa –  possibilidade de não fazer o que fez, pela normalidade das circunstâncias do fato, excluída ou  reduzida nas situações de exculpação. (Cirino dos SANTOS, 2004, pp. 199-200)  

Esse conceito normativo da culpabilidade funciona como limitação ao poder de  punir do Estado, porque, ausente a culpabilidade, não há pena e, assim, é garantida a liberdade  ao cidadão. (SANTOS, 2004, p. 205)  

Disso se conclui, então, que, no estudo da culpabilidade, enquanto um juízo de  reprovabilidade, o que interessa, de fato, é identificar quando o agente é reprovado. Nesse  aspecto, pontua ZAFFARONI E PIERANGELI (2018, tópico 348, n. p.) que:  

(…) para reprovar uma conduta ao seu autor (isto é, para que haja culpabilidade), requer-se que este tenha tido a possibilidade exigível de compreender a antijuridicidade de sua conduta, e que tenha atuado dentro de um certo âmbito de autodeterminação mais ou menos amplo, ou seja, que não tenha estado em uma pura escolha.  

Nesse sentido, SANTOS (2004, pp. 247-248) esclarece, conforme os elementos  integrantes da culpabilidade – citados alhures -, que o juízo de reprovabilidade se realiza em  três estágios pelo juízo: análise da capacidade da culpabilidade dirigida a um sujeito normal,  com maturidade e sanidade psíquica (1º estágio) e capaz de conhecer ou com possibilidade de  conhecer concretamente o injusto do fato (2º estágio), dentro de um contexto de normalidade  das circunstâncias da ação (3º estágio). Nessa última hipótese, a análise consiste em verificar  se era possível exigir do agente capaz e com conhecimento do fato delituoso um  comportamento conforme o direito – identificada como exigibilidade jurídica. Assim, em  sentido contrário, entende-se que, em circunstâncias anormais, não há espaço para se exigir do  agente uma conduta diversa da delituosa, de forma a constituir situações de exculpação,  tendentes a excluir ou reduzir a culpabilidade.  

Na linha de raciocínio ora exposta, compreende-se, ainda, que o que irá definir a  culpabilidade (diga-se, reprovabilidade) ou não do agente, num caso concreto, é a  exigibilidade de conduta diversa no contexto de uma circunstância normal. Isso porque os  critérios da capacidade da culpabilidade e da consciência da antijuridicidade, por serem de  caráter subjetivo – pessoal do agente -, são inerentes a qualquer cidadão com maturidade e  sanidade psíquica. No entanto, a exigibilidade jurídica, por envolver, via de regra,  circunstâncias exteriores ao agente, acaba sendo a causa determinante para justificar o  comportamento do agente.  

Para melhor compreensão, citem-se duas situações hipotéticas distintas: a  primeira, pode-se ter como agente nosso personagem fictício João, que, para suprir seu vício  de drogas, precisou roubar uma vítima; a segunda, pode ser o personagem “X”, homem  trabalhador e pai de família, que, um dia, praticou o crime de homicídio para salvar sua  própria vida.  

Na análise desses dois casos, a solução que se verifica para o personagem “X”  encontra guarida no próprio texto legal, especificamente no art. 25 do Código Penal, segundo  o qual não há crime quando o agente pratica o fato para repelir injusta agressão a direito seu,  atual ou iminente. Assim, a circunstância vivida, momentaneamente, pelo personagem “X”,  foi anormal, de forma que não havia outra conduta a exigir dele que não a prática da conduta  desviante. Já para o nosso personagem João, que solução é possível apresentar?  

A esse respeito, ZAFFARONI E PIERANGELI (2018, tópico 351, n. p.)  salientam que “O homem é responsabilizado por sua conduta de vida, porque considera-se que o delito é o resultado do modo com que o sujeito conduziu a sua vida, e, na realidade, a  culpabilidade é a reprovação ao indivíduo por esta conduta de vida.”  

Ora, como se julga a conduta de vida de João? Será possível se considerar que  João vive em um contexto de circunstância normal de exigibilidade jurídica? Foi ele, João, o  único responsável pela forma como sua vida foi conduzida até aquele instante?  

Os próprios juristas ZAFFARONI E PIERANGELI (2018, tópico 353, n. p.) nos  apresentam uma resposta através da coculpabilidade, verificada numa sociedade sem  igualdade de oportunidade entre as classes sociais, de forma que o indivíduo-delinquente age  em um menor âmbito de autodeterminação, por estar condicionado a causas sociais de  marginalização. Assim, não se pode atribuir ao agente – marginalizado -tais causas sociais e  também sobrecarregá-lo com essas mesmas causas no momento da reprovação da conduta.  Trata-se de uma realidade no Estado Social de Direito, pautado em direitos e garantias  fundamentais de cunho social e econômico.  

No âmbito do Código Penal (BRASIL), ZAFFARONI E PIERANGELI (2018,  tópico 353, n. p.) encontram respaldo para a coculpabilidade no art. 66, segundo o qual “A  pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao  crime, embora não prevista expressamente em lei.” Trata-se das circunstâncias inominadas,  que o Juiz pode verificar, no caso concreto, para justificar a atenuação da pena ao infrator.  

AZEVEDO e SALIM (2016, p. 326) explicitam que a teoria da coculpabilidade  não é aceita no judiciário brasileiro como causa de exclusão de culpabilidade, mas já foi  reconhecida como circunstância atenuante genérica, nos termos do referido art. 66 do CP.  

Por sua vez, no estudo evolutivo da teoria da coculpabilidade, ZAFFARONI E  PIERANGELI (2018, tópico 30, n. p.) apresentam os conceitos de seletividade e  vulnerabilidade. Explicam, nesse sentido, que a criminalização alcança o cidadão  particularmente vulnerável à seletividade do sistema penal, em virtude de características  apresentadas antecipadamente ou geradas do controle social. Assim, p. ex., a “criança  desadaptada na escola, a que abandona os estudos, a que é forçada ao trabalho nas ruas, à  desocupação, ao abandono ou à internação em instituições para menores, (…) são todas “pré candidatas” à criminalização (…).” (ZAFFARONI E PIERANGELI , 2018, tópico 30, n. p.)  Dessa compreensão, resulta a culpabilidade pela vulnerabilidade, que apresenta  uma análise mais abrangente que a coculpabilidade. No caso, na ocasião da aplicação da pena,  o juiz deverá verificar o estado de vulnerabilidade do agente (aferido pelo estereótipo) e a  situação de vulnerabilidade (posição concreta criminalizante), concluindo que se o cidadão se  encontra num contexto de marginalização socioeconômica torna-se vulnerável à prática do crime e, por conseguinte, à incidência do direito penal. Em casos tais, a solução do caso  requer uma menor reprovabilidade da conduta do agente no momento da aplicação da pena.  (AZEVEDO, SALIM, 2016, p. 329)  

Explica, no mesmo sentido, ZAFFARONI (2017, pp. 245/246) que o poder  seletivo do sistema penal elege tais candidatos à criminalização, a partir do estereótipo,  submetendo-os ao agente judicial, que poderá autorizar o prosseguimento dessa  criminalização ou decidir pela suspensão dela. Mas essa decisão judicial deverá se pautar,  racionalmente, em critério objetivo próprio e diverso do que aquele que rege a seletividade do  sistema penal para o restante da sociedade, sob pena de não se justificar a sua intervenção ou  mesmo a sua existência.  

A par desse exposto, e considerações tais ponderações, talvez haja uma esperança  para o nosso personagem João!  

3 A DESLEGITIMIDADE DO SISTEMA PENAL – POR EUGÊNIO RAÚL  ZAFFARONI  

Na verdade, numa análise mais a fundo acerca do assunto ora tratado,  ZAFFARONI (2017, p. 12) enxerga o cenário da criminalidade e do sistema penal como uma  “situação crítica que se manifesta em uma progressiva “perda” das “penas”, isto é, as penas  como inflição de dor sem sentido (“perdido” no sentido de carentes de racionalidade).”  

Esclarece o jurista (2017, p. 12) que a norma penal se baseia numa realidade  factual que não existe e os órgãos responsáveis pela aplicação dessa norma atuam de forma  completamente diferente do estatuído, produzindo um discurso jurídico-penal baseado em  “seu antiquado arsenal de racionalizações reiterativas” e “que se desarma ao mais leve toque  com a realidade.”  

E qual a consequência disso? A dor e a morte em massa. Que perigo corre João!  Trazendo para o cenário brasileiro, essa percepção de ZAFFARONI permite  compreender que a atuação estatal pautada, por exemplo, em mera criação de novos tipos  penais ou agravamento dos delitos já existentes não condiz com uma realidade social e  econômica de desamparo e miséria, justamente porque destituída de prévio estudo social e  criminológico. A norma penal, assim, como posta na sociedade, é exigida para um contexto  de circunstância normal, capaz de se exigir do cidadão médio um comportamento conforme o  direito. Todavia, quando incidente sobre o caso concreto – cujo contexto socioeconômico é de crise -, a norma não encontra espaço e sua aplicação resulta numa pena que gera dor e morte  ao cidadão.  

Nesse aspecto, segundo ZAFFARONI (2017, pp. 13-14),a existência de um  direito penal garantista revela-se, então, um discurso falso, utilizado para tentativa de defesa  daqueles submetidos ao sistema penal na condição de processados, criminalizados ou  vitimizados, e que é “sustentado, em boa parte, pela incapacidade de ser substituído por outro  discurso em razão da necessidade de se defenderem os direitos de algumas pessoas.”  

Isso porque o mesmo direito penal que visa proteger o cidadão, com garantais de  liberdade, integridade, igualdade, segurança, é o mesmo que seleciona, dentro de um processo  seletivo de vulnerabilidade, aquele candidato à criminalização, impondo-lhe a respectiva  sanção. E age dessa forma com viés político e simbólico de uma resposta à sociedade, à  mídia, ao sistema prisional. No dizer de ZAFFARONI (2017, p. 230), a agência judicial “tem  como função confirmar, por meio de um ritual estabelecido, que é assim mesmo, porque quem  “é” ladrão “deve roubar”, e realmente “rouba”.”  

Ora, a culpabilidade é o juízo de reprovabilidade imposto ao agente pela prática  de um delito. Assim, quando o Estado seleciona o infrator penal, submete-o a um processo de  responsabilização penal pela prática do ato criminoso por ele praticado. No entanto, há de se  verificar qual o contexto socioeconômico em que praticado o delito, isto é, em que medida o  agente agiu dentro de uma circunstância normal, em que se lhe era possível exigir um  comportamento ético diverso do delituoso. Em caso positivo, a aplicação da pena é legítima e  adequada. No entanto, em caso negativo, há de se questionar a legitimidade penal do Estado  em punir o infrator.  

Isso porque, na linha de raciocínio exposta por ZAFFARONI, em especial quanto  à seletividade pela vulnerabilidade do criminoso estereotipado, a ideia de reprovabilidade da  conduta do agente perde legitimidade, porque as razões éticas que a fundamentam esvaem-se  em critério de mera racionalização. Explica-se: ausente a circunstância normal de  exigibilidade jurídica de conduta diversa, a ética que norteia um comportamento positivo  também perde a razão de ser. (ZAFFARONI, 2017, pp. 262-263)  

Em assim sendo, a atuação dos agentes judiciais de prender e punir carece de  legitimidade, os quais passam a atuar com poder deslegitimado. Encerra ZAFFARONI (2017,  p. 264):  

A deslegitimação do exercício de poder seletivo e arbitrário do sistema penal  “passa” a responsabilidade do processado à agência judicial. O processado não é mais “o” responsável, pois não tem por que responder legitimamente. A  responsabilidade é da agência judicial, que deve responder perante o processado e a comunidade, dando conta da forma com que exerce ou administra a sua reduzida quota de poder limitador.  

Desse modo, na hipótese em que a autonomia do cidadão que realizou a conduta é  ínfima, nula ou duvidosa, a responsabilização pela criminalização (ou a sua continuidade) é da  agência judicial, que perde a legitimidade para exercer seu poder punitivo. (ZAFFARONI,  2017, p. 266)  

Nesse aspecto, segundo ZAFFARONI (2017, p. 202), “ao poder político – o  legislador –“compete até certo ponto decidir quais condutas devem ou não ser submetidas à  pena, pois isso integra seu exercício no marco do fato de poder do sistema penal.”. No  entanto, ressalta também o autor que a agência política tem poder para muitas coisas, mas não  tem poder para dizer que “o doloroso não dói” (2017, p. 202).  

A limitação ao agente político, para definir o que pode ou não ser submetido a  essa pena, por via de consequência, também se repercute sobre o agente judicial, que, por  razões de direitos humanos e para reduzir a sua violência, “deve agir de conformidade a um  discurso que estabelece os limites máximos de irracionalidade tolerável na seleção  incriminadora do sistema penal.” (ZAFFARONI, 2017, p. 233)  

Ainda salienta ZAFFARONI (2017, p. 263) que:  

“A seletividade operativa do sistema penal e o uso da pena como instrumento reprodutor da violência e legitimador de um exercício de poder mostram hoje,  claramente, que as razões éticas – essência da reprovação de culpabilidade – não são mais que meras racionalizações, com o que a reprovação mesma resulta  deslegitimada.”  

Reconhecer essa deslegitimação apontada por ZAFFARONI denota um  comportamento ético em relação ao exercício do poder punitivo. No caso, a agência judicial  passaria a atuar dentro do que ZAFFARONI identifica como “realismo marginal”, isto é, uma  atuação baseada “em uma decisão ético-política que priorizasse a vida humana como valor e a  morte como desvalor.” (2017, p. 172)  

É que, pelo realismo marginal, a busca pela redução da violência aproxima a  criminologia do direito penal ao levar em consideração o contexto social da realidade. Isso,  em consequência, pautaria ações de política criminal que redundariam em redução do  exercício do poder punitivo do sistema penal – intervenção mínima -, o qual seria substituído  por formas efetivas de solução de conflitos. (ZAFFARONI, 2017, pp. 173-175)  

Conclui ZAFFARONI (2017, p. 268) que a agência judicial, por suas próprias  limitações constitucionais, não tem condições de promover “a grande mudança social que a  consecução do objetivo mediato ou utópico de sua estratégia exigiria (a abolição do sistema penal) e, consequentemente, a única coisa que deve fazer é o que está ao seu alcance, ou seja,  reduzir progressivamente sua própria violência seletiva e arbitrária.”.  

Nesse aspecto, na perspectiva de ZAFFARONI, nosso personagem João não seria  condenado, mas a ele poderiam ser impostas medidas alternativas à prisão-pena, voltadas à  sua ressocialização.  

CONSIDERAÇÕES FINAIS  

De início, cabe asseverar que não se defende aqui uma impunidade ao criminoso,  por sua mera condição socioeconômica, mas o que se pretende é trazer à tona, criticamente,  que o meio social do qual resulta o crime não é construção exclusiva do indivíduo delinquente, mas também fruto de um Estado omisso e ineficiente na sua responsabilidade,  inclusive constitucional, de garantir direitos fundamentais básicos à sociedade.  

Nesse aspecto, a presente pesquisa se revela importante, pois se deve entender a  segurança pública não apenas na perspectiva de proteção da classe social mais favorecida  economicamente. Antes, deve o Estado, em sua atuação, e visando a uma inclusão social,  estender essa proteção e amparo às classes marginalizadas, em todos os aspectos de sua vida,  como educação, saúde, moradia, saneamento básico, lazer, trabalho etc.  

Consoante se depreendeu do presente artigo, a proposta trazida por ZAFFARONI,  quanto à deslegitimação do sistema penal imperante, pauta a análise do crime não apenas sob  a perspectiva do infrator, mas também por uma visão social. E isso, por sua vez, permite  extrair a compreensão de que a pena só é justa quando postos à mesa todos os fatores da  criminalidade. Via de conseqüência, o Estado não pode se eximir da responsabilidade pela  criminalidade existente, enquanto o agente criminoso, vítima da negligência estatal, recebe as  duras penas pela sua conduta de vida.  

Pelo exposto, entender que o Estado é também responsável pelo delito leva à  conclusão de que a posição de vulnerabilidade do infrator faz dele merecedor de amparo e  respeito, na máxima expressão do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. 


2Teresa Pires, citada por DELGADO (2018), na sua obra Cidade de Muros, esclarece que os enclaves  fortificados são “espaços privatizados, fechados e monitorados para residência, consumo, lazer e trabalho. A sua  principal justificação é o medo do crime violento. Esses novos espaços atraem aqueles que estão abandonando a  esfera pública tradicional das ruas para os pobres, os “marginalizados” e os sem-teto.” 
3 Dennis Chapman, de origem britânica (1911-2003), foi um psicólogo social, cuja pesquisa se concentrava,  principalmente, em dois aspectos principais da sociedade: habitação e provisão doméstica e sociologia do crime.  Disponível em: https://translate.google.com.br/translate?hl=pt BR&sl=en&u=https://en.wikipedia.org/wiki/Dennis_Chapman&prev=search. 


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1Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público de Brasília/DF; Especialista em  Ciências Penais pela Universidade do Sul de Santa Catarina; Especialista em Direito Eleitoral e Processo  Eleitoral pela Faculdade de Ciências Humanas, Exatas e Letras de Rondônia; Graduado em Direito pela  Universidade Federal de Rondônia – Campus Porto Velho/RO; Habilitado no Exame de Ordem (OAB); Oficial  de Justiça Avaliador e Conciliador do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia; Ex-servidor do Tribunal  Regional Eleitoral de Rondônia; Professor do Magistério Superior e de Pós-Graduação; Professor de Oratória.