CORPO, MEMÓRIA E EXPERIÊNCIA COMO REPRESENTAÇÃO FEMININA NO ROMANCE COMO ÁGUA PARA CHOCOLATE

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th10247281823


Nataly Lemes Valdez[1]


Resumo: O corpo ocupa importância ímpar na construção do enredo e no espaço que as personagens têm em um romance. Levando-se isso em consideração, o romance hispano-americano Como Água para Chocolate, de autoria de Laura Esquivel, apresenta o corpo como um dos fatores primordiais na produção das experiências e das memórias das mulheres da família De la Garza. Tais experiências e memórias são constituídas por meio da cozinha e é por meio desse cômodo da casa que os corpos das mulheres se insubordinam e rebelam-se contra os valores patriarcais que são reforçados pela matriarca da família. Como suporte teórico para a análise deste artigo, revisão de literatura e análise introspectiva da obra. Ao final deste trabalho, pode-se concluir que o corpo é personagem central da obra.

Palavras-chave: Insubordinação; Corpo; Mulher.

Introdução:

O corpo, ao longo da história, sempre foi (e continuará a ser) refletido como elemento central na promoção das experiências e das subjetividades dos indivíduos. É por meio do corpo que mulheres e homens coexistem no mundo e produzem suas alteridades, experiências individuais e coletivas e expressam suas identidades. O corpo, portanto, está circunscrito na dualidade entre razão e emoção, entre “corpo que sou e corpo que tenho” (Cardim, 2009, p. 31). É por meio desta dualidade que a experiência e a memória do corpo são plenamente vivenciadas por cada indivíduo. Por essa perspectiva inicial, o presente artigo toma por objeto de análise o corpo como personagem central das experiências e das memórias das personagens femininas da obra Como Água para Chocolate, de Laura Esquivel.

Em uma primeira aproximação aos aspectos subjacentes à narrativa do romance, a composição estética da obra é indispensável para o processo de análise do corpo enquanto eixo narrativo. Deste modo, ao estabelecermos os nexos entre criação literária, linguagem e leitor, é possível definir o papel das memórias para cada personagem. Por essa perspectiva, o ato de criar corresponde ao modo como o autor transpõe para universo literário as representações simbólicas das emoções e das percepções do mundo real para o mundo ficcional.

Nesse sentido, a criação literária perpassa necessariamente pelo crivo da linguagem, isto é, a linguagem é modo pelo qual o autor materializará o real no universo ficcional, transpondo para este universo desejos, emoções e identidades. Todorov (2011, p. 52), define a literatura como uma espécie de “extensão e de aplicação de certas propriedades da linguagem”, ou seja, é por meio da linguagem que o autor representa no plano simbólico as similitudes da vida cotidiana, tornando possível a identificação do leitor com o texto ficcional em um constante processo de significação e ressignificação de questões subjetivas aos indivíduos e ao plano de cada cultura/sociedade e em cada momento histórico.

Nosso entendimento sobre o que é a literatura nos permite ancorar uma definição sociológica sobre a cultura contemporânea como a “mudança do status quo, e não de sua preservação” (BAUMAN, 2013, p. 8). Em outras palavras, a cultura no mundo contemporâneo não pode ser apartada da sociabilidade promovida pelo individualismo que promove a instabilidade das relações tornando-as solúveis a cada instante de interação. Embora a presente definição de cultura tenha um viés pessimista, é indispensável compreendê-la como possibilidade de representação do papel do corpo no processo de produção das identidades e das memórias sociais na atualidade.

Nesse viés, o texto literário, materializa na linguagem um saber (antes inconsciente no imaginário) consciente de sua passagem no presente. A ficção seria, então, este olhar especulativo que a partir de sua natureza imagética recolhe em meio aos resíduos do real o ponto desencadeador de um saber. A ficção não só conceitua empiricamente o objeto, mas o torna presente. Por isso, o saber contido no texto literário correlaciona-se às outras áreas e ciências da cognição (MAIO, 2008, p. 3).

Para tanto, à medida em que a ficção representa similaridades do cotidiano o leitor é conduzido a um conforto desconfortante: isto é, por ser uma expressão da linguagem que permite aos indivíduos a reflexão sobre o mundo sobretudo sobre a natureza humana, a literatura ficcional concretiza-se como objeto das experiências empíricas do cotidiano, promovendo, desta forma, a catarse no leitor.

Efetivamente, a capacidade de interpretar textos pode aumentar indefinidamente quando se deixa de considerá-la do ponto de vista da simples decodificação e se passa incluir o progresso do leitor na adaptação da leitura a seus propósitos, no grau de envolvimento afetivo, na ativação mental para relação da nova informação com seus conhecimentos anteriores, na capacidade de desfrutar esteticamente, de distanciar-se do texto para adotar uma perspectiva crítica etc. (COLOMER; CAMPS, 2002, p. 62).

Ou seja, o processo de ler está na origem da linguagem, e essa “constitui a manifestação mais cabal da capacidade humana de se comunicar” (ZILBERMAN, 2001, p. 16). A linguagem em leitura é capaz de promover os mais diversos espetáculos no cenário da mente humana, já que se trata de interação, diálogos entre os possíveis ditos numa busca constante na produção e reprodução de sentidos, pois “(…) a linguagem não é apenas comunicação do comunicável, mas, simultaneamente, símbolo do não comunicável” (BENJAMIN, 1992, p. 196 apud MAIO, 2008, p. 7).

Assim, a relação do corpo feminino na obra Como Água para Chocolate é produzida por duas estéticas importantes: Realismo Mágico e estrutura narrativa da Cozinha-ficção. O Realismo Mágico compreende-se por ser um estilo literário que ganhou grande popularidade na literatura mundial. Segundo Donald Shaw (2003), desde 1955 críticos literários têm usado o termo com mais frequência para descrever a literatura hispano-americana.

Em uma tentativa de definição do Realismo Mágico ou Fantástico Maravilhoso, Todorov (2011) recorreu à narrativa de O Diabo Apaixonado[2] para demonstrar por meio da personagem o que é a representação do mundo e da realidade tal qual conhecemos, mas com feitos que só podem ocorrer por meio da imaginação e em outras realidades que não em nosso universo real. Nas palavras do autor:

Somos assim conduzidos ao âmago do fantástico. Num mundo que é bem o nosso, tal qual o conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mundo familiar. Aquele que vive o acontecimento deve optar por uma das soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, um produto da imaginação, e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são. Ou então esse acontecimento se verificou realmente, é parte integrante da realidade; mas nesse caso ela é regida por leis desconhecidas para nós. Ou o diabo é um ser imaginário, uma ilusão, ou então existe realmente, como os outros seres vivos, só que o encontramos raramente, O fantástico ocupa o tempo dessa incerteza (TODOROV, 2011, p. 148).

Portanto, pela definição de Todorov podemos compreender que o Realismo Mágico surge não como uma fuga do real, mas sim, como um meio de revelar a realidade, ou seja, a partir da ficção é que se revela a realidade e não o contrário. Ou seja, a fantasia produzida no universo da narrativa ajuda a revelar no universo tangível do real a dimensão ontológica da vida humana. É sobre a ontologia do corpo, das experiências e memórias das mulheres da narrativa que temos interesse em desvelar nas próximas seções.

Obra e Corpo: um ensaio sobre a produção da memória nas personagens femininas na obra

O romance Como água para Chocolate de autoria de Laura Esquivel foi publicado pela primeira vez em 1989. A narrativa da obra é centrada nos dramas vivenciados pelas mulheres da família De la Garza, no contexto da Revolução Mexicana, início do séc. XX[3]. O enredo da obra se passa, quase todo, no rancho da família, tendo como paisagem literária a cultura interiorana do México em seus aspectos de costumes e culinária típica, sendo as receitas preparadas pela personagem Tita. Em relação às personagens, destacamos que boa parte do núcleo narrativo é de mulheres, sendo: mamãe Elena, a matriarca da família; Rosaura, a primogênita; Gertrudis, filha do meio e Tita, a mais nova das filhas de Mamãe Elena. Além dessas personagens femininas, o romance apresenta também a voz de mulheres indígenas: Nacha (cozinheira) e Chencha (responsável pelos afazeres domésticos) ambas são empregadas do rancho de Mamãe Elena; além da índia Kikapú Mary, avó de John Brown.

O título da obra é uma expressão típica da região, onde o chocolate é derretido com água, assim, similarmente, quando uma pessoa está como água para (fazer) chocolate, está fervendo de raiva ou de excitação. Isso já remete de antemão ao caráter intenso que as personagens femininas da obra apresentam, muitas de impondo como sujeitos, expressando suas vivências, seus sentimentos e incorporando seu ponto de vista na obra (ZUCCHI et. al., 2010, p. 223).

As representações da mulher na obra produzem o protagonismo em cada uma das personagens (mesmo que de modo tímido), pois, em virtude do poder dominante a que estão submetidas não lhes restam muitas opções a não ser o inconformismo e rebeldia diante dos processos repressivos a que estão submetidas. Isso ocorre especialmente com a personagem Tita, que entre uma receita e outra usa o espaço da cozinha para refletir, chorar e tomar suas decisões, como se pode observar no trecho a seguir:

Mamãe Elena lançou-lhe um olhar perfurante dizendo: “o que está acontecendo contigo? Por que tremes, vais começar com os problemas?” Tita levantou a vista e a olhou. Tinha ganas de gritar que sim, que tinha problemas, que tinha escolhido mal a pessoa para capar as aves, a adequada era ela, desta maneira teria ao menos uma justificativa real para que lhe tivesse sido negado o casamento e Rosaura tomasse seu lugar ao lado do homem que amava (ESQUIVEL, 2015, p. 29).

Em relação à personagem Tita, é possível estabelecer que pelo fato dela ter nascido em uma cozinha, o amor e dedicação pela culinária é intrínseco à sua formação e personalidade, isto é, ao preparar os alimentos que serão servidos aos membros de sua família, Tita, adiciona não apenas ingredientes às receitas, mas, adiciona experiências e memórias que serão digeridas e compreendidas por cada por cada membro da família. É importante destacar também que o apreço de Tita pelo ambiente da cozinha surge desde o momento de seu nascimento e devido ao fato de sua mãe não ter podido amamentá-la, pois não tinha leite, Nacha, a cozinheira da casa, toma para si a educação e a tarefa de educar emocionalmente e alimentar Tita. É por esta razão que Tita cresce na cozinha e aprende com Nacha os segredos da transmissão de sabores e sentimentos em cada receita, como se pode perceber pelo trecho a seguir:

Uma imensa nostalgia se apossava de todos os presentes enquanto serviam o primeiro pedaço de bolo e inclusive Pedro, sempre tão seguro fazia um esforço tremendo para conter as lágrimas. E Mamãe Elena, que nem quando seu marido morreu tinha derramado uma lágrima sequer, chorava silenciosamente. E isso não foi tudo. O pranto foi o primeiro sintoma de uma intoxicação estranha que tinha algo a ver com uma grande melancolia e frustração que, apoderando-se de todos os convidados, fez com que eles terminassem no pátio, nos currais e nos banheiros, cada um com saudade do amor de sua vida (ESQUIVEL, 2015, p. 39-40).

O trecho destacado na citação demonstra o poder de Tita em transmitir através dos alimentos sentimentos e sensações. A nostalgia descrita refere-se ao fato de Mamãe Elena ter obrigado Tita a ter preparado o banquete de casamento de Rosaura e Pedro. Dito isso, durante o preparo do bolo dos noivos, as lágrimas derramadas por Tita alteram quimicamente a cobertura provocando nostalgia e náuseas nos convidados da festa. Após o casamento, Pedro vai morar no rancho, ele e Tita estabelecem um código de comunicação amorosa através da comida. O amor dos personagens é revelado a cada refeição preparada por Tita, sendo este o único contato que possuem em boa parte da narrativa.

[…] Quando se sentaram à mesa havia um ambiente ligeiramente tenso, mas não aconteceu nada de mais até que foram servidas as primeiras codornas. Pedro não contente em ter provocado ciúme da esposa, sem poder se conter, ao saborear o primeiro bocado do prato exclamou, cerrando os olhos em verdadeira luxúria:
– Este é um prazer dos deuses (ESQUIVEL, 2015, p. 48-49).

A cena descrita, na referida citação, é resultante da receita de codornas ao molho de rosas preparada por Tita. Todavia, é importante salientar que não é somente Pedro quem ingere as sensações/emoções deste prato. Gertrudes, a irmã do meio, foi atingida pela paixão de Tita e Pedro de tal maneira que começa a arder em chamas. “Pareciam que tinham descoberto um novo tipo de comunicação em que Tita era a emissora, Pedro o receptor e Gertrudis a sortuda em quem se resultava esta relação sexual através da comida” (ESQUIVEL, 2015, p. 50).

A personagem Gertrudis, acometida pelo fogo da paixão de Tita e Pedro, é incapaz de controlar as sensações que sente. E na tentativa de extravasar tais sensações, busca se banhar no chuveiro localizado no quintal do rancho, entretanto, o calor que toma seu corpo é tanto que ela acaba por correr nua pelas terras da família até ser encontrada por Juan, revolucionário que é atraído pelo odor que emana do corpo de Gertrudes. A alegoria da cena de Gertrudes representa a libertação de toda a opressão causada pela mãe:

As práticas culinárias presentes no romance não só influenciam a vida de Tita, como também abrem possibilidades para transgressão de outras personagens, como Gertrudis, ao provar as codornas preparadas pela irmã. Nesse episódio do romance, Tita ganha flores de Pedro pela primeira vez, e resolve usá-las em uma receita. Toda excitação e paixão que a personagem sentiu ao prepará-la transferiram-se para o corpo de Gertrudes assim que provou o prato fazendo-a sentir um calor incontrolável e, como conta a narradora, para “apagar seu fogo interno”, fugir com um soldado que acabara de conhecer (ZUCCHI et. al., 2010, p. 227).

Entre uma receita e outra, entre os desejos e repressões da matriarca da família De la Garza, a produção das memórias da família está centrada na voz das mulheres e no espaço social de produção da sociabilidade do lar, isto é, a cozinha. É justamente neste cômodo e em meio aos temperos e ingredientes que os dramas e transgressões, experiências e memórias de cada uma das personagens são constituídos na obra, porque do preparo do alimento à sua ingestão as memórias individuais e coletivas são experienciadas, ressignificadas e transmitidas a outras gerações da família.

Representações do corpo feminino na obra:

Ao nascermos, o corpo que habitamos passa a estabelecer relações não apenas com outros corpos, mas também, com o mundo por meio dos sentidos. Isto é, é por meio das relações estabelecidas entre subjetividade, cultura e território que os indivíduos apreendem seu próprio corpo em um processo ininterrupto de troca de experiências e sentidos. Portanto, ao tocarmos em algo sentiremos este algo imediatamente. Por essa perspectiva, Cardim (2009) argumenta que o corpo está imerso em um constante processo fenomenológico de percepções e sensações em que se torna possível compreender o mundo a partir da experiência integradora entre matéria e espírito. Em sua análise sobre a fenomenologia proposta pelo filósofo francês Merleau-Ponty, Cardim afirma que

É o corpo que percebe, “o corpo é um eu natural e como que o sujeito da percepção” (FP, 278). Esse corpo não é um sujeito puro e transparente que pratica um sobrevoo, assim como o mundo que lhe é correlato não é um objeto cujas partes são independentes ou exteriores umas às outras. Na verdade, o sujeito está situado em um corpo, ele está engajado ou em contato com um mundo que não lhe é estranho (CARDIM, 2009, p. 98).

Pela análise do autor, pode-se inferir que a experiência individual (sentir/devir) e coletiva (tradições) do corpo só podem ser interpretadas diante do próprio corpo. Nesse contexto, pode-se ainda dizer que o indivíduo tem o “olhar” sobre seu corpo (de)marcado pelo imaginário cultural, pelas crenças e instrumentos científicos que fazem do corpo objeto de discursividades. Em outras palavras, nesse viés o sujeito não é nem ao menos um observador privilegiado de seu próprio corpo, pois as interpretações externas a que está submetido são, muitas vezes, consideradas melhores interpretações do que as produzidas pelos próprios “donos” dos corpos.

É justamente sobre essa relação paradigmática – corpo/sujeito, cultura/tradições e imaginário/discursividades que produz efeito sobre os indivíduos ao adequarem o comportamento do seu corpo às normas estabelecidas, mesmo contra sua vontade. É ainda nessa perspectiva de interpretações sobre o corpo que percebemos os discursos sobre os corpos das personagens no romance.

Em um primeiro momento, pode-se perceber esta relação por meio da representação escrita da obra. Isto é, ao materializar a representação do corpo em palavras, a autora produz efeitos de sentido (discursividades) sobre os corpos femininos, e isso conduz o leitor a interpretar imageticamente tais corpos para além do óbvio: “o significante flutuante é assim como uma superabundância de significância, um excesso de sentido das coisas. Se o corpo é percorrido por energia”, o significado flutuante é o que permite o transbordamento de vida, do imprevisível, múltiplo e espontâneo da vida (SILVA, 2007, p. 48).

O segundo elemento que nos conduz à tal percepção é a reprodução de conceitos patriarcais pela mãe, Elena, sobre suas filhas, especialmente, em relação à Tita. Por ser uma mulher autoritária que prima pelas tradições, Mamãe Elena determina que Tita, a filha caçula, sacrifique sua vida e desejos para que possa assisti-la durante a velhice. Percebemos que a relação estabelecida por Mamãe Elena em relação ao corpo de Tita é de domínio e de docilização.

De modo geral, as práticas punitivas se tornaram pudicas. Não tocar mais no corpo, ou o mínimo possível, e para atingir nele algo que não é o corpo propriamente. Dir-se-á: a prisão, a reclusão, os trabalhos forçados, a servidão de forçados, a interdição de domicílio, a deportação — que parte tão importante tiveram nos sistemas penais modernos — são penas “físicas”: com exceção da multa, se referem diretamente ao corpo. […] O corpo encontra-se aí em posição de instrumento ou de intermediário; qualquer intervenção sobre ele pelo enclausuramento, pelo trabalho obrigatório visa privar o indivíduo de sua liberdade considerada ao mesmo tempo como um direito e como um bem. Segundo essa penalidade, o corpo é colocado num sistema de coação e de privação, de obrigações e de interdições (FOCAULT, 1987, p. 15).

Em uma leitura mais atenta observa-se que a própria estrutura do romance -que é em formato de livro de receitas e que traz as receitas correspondentes às memórias de Tita – produz o fenômeno de controle/discursividade sobre os corpos das personagens às normas vigentes da família De la Garza e da sociedade mexicana do início do século XX. Nesse sentido, a confluência da linguagem (discurso) e dos olhares produzidos sobre o corpo imprime mecanismos de poder sobre o corpo. Ou seja, tais discursos são ricos em significados (formas de ser ou de não ser), e esses significados produzem saberes que se constituem enquanto disciplina moral sobre o corpo exercendo, desta forma, o seu total controle.

Quando o leitor observa que Mamãe Elena impõe à Tita uma longa jornada de trabalho na cozinha, ela, na verdade, impõe ao corpo da filha as restrições morais e religiosas da fé cristã, especialmente as ligadas à sexualidade. Ou seja, nessa perspectiva que apresentamos, o leitor pode chegar a essa conclusão devido ao fato de que o corpo de Tita representa a transgressão, a liberdade e o desejo sexual que leva à degradação da imagem de sua família.

Como se pôde evidenciar até este ponto, o protagonismo das personagens femininas tem importância ímpar ao revelar o outro lado da história. Neste romance, em particular, a autora, conduz o leitor a prestar atenção na construção dessas personagens, possibilitando, desta forma, identificar diferentes posturas de mulheres que se contrapõem a valores sociais que insistem em colocar a mulher em uma condição de subalternidade.

Nesse viés, ao iniciar os capítulos por receitas, exatamente como em um livro de receitas, a autora permite que se estabeleça uma forte vinculação entre as personagens e os leitores, em particular se este leitor for mulher. Por esta estrutura de narrativa, as relações entre Tita e a cozinha tornam-se cada vez mais fortes, uma vez que passava a maior parte do tempo nesse local, junto a Nacha, que exercia o papel afetivo de mãe.

É através dela que Tita recebe o alimento não só para o físico, mas também para a mente e que não havia proibição para o amor e para a felicidade. Dessa forma, Nacha, mesmo sendo analfabeta, transmite todo seu conhecimento culinário à Tita, ressaltando a importância da tradição oral. Desde pequena, Tita se diferenciava de suas irmãs, por não aceitar a subordinação imposta pela Mãe. Mesmo destinada ao espaço da cozinha, Tita apresenta atitudes transgressoras que representam o desejo de ampliar seu espaço e transitar por qualquer outro ambiente. Suas características fundamentais são sua atitude, coragem e instinto de luta que causa admiração até mesmo dos homens.

Outro fator importante na construção da personagem Tita é seu anseio por descumprir regras. Um exemplo disso é quando ela, ao costurar um vestido, tenta mudar os procedimentos e é repreendida por Mamãe Elena. “Vamos começar outra vez com a rebeldia? Já não foi o bastante tentar costurar rompendo as regras.” (ESQUIVEL, 2015, p.18). A rebeldia da personagem Tita revela uma característica psicológica importante da personagem: a intransigência referente a tradição familiar, o que pode ser confirmado no seguinte fragmento “o fato de Pedro ter aceitado casar-se com Rosaura, mesmo sendo para ficar perto de sua amada, causa a Tita uma grande frustração. No entanto, a narradora afirma: O papel de perdedora não fora escrito para ela” (ESQUIVEL, 1993, p.38). Essa afirmação, dita em meio ao sofrimento de Tita, prevê o final da história, em que Tita, enfim, consegue romper com a tradição familiar.

No dia do casamento de sua irmã com Pedro também acontecem fatos importantes para a construção da personagem. Quando Tita, muito triste, derrama lágrimas na massa do bolo, que fora obrigada a fazer e ao comerem o bolo, todos os convidados compartilham a mesma sensação de Tita, fica marcado o poder transformador que Tita tem sobre a comida. Através dos alimentos, Tita não só expressava seus sentimentos, mas fazia com que quem os ingerisse sentisse o mesmo que ela. Isso acontece em várias partes do romance, o que atribui a sua comida um meio de comunicação ou expressão de sua voz, calada pelo autoritarismo da mãe.

Logo após o casamento, Nacha morre, e há um consenso de que Tita é a mais preparada para assumir seu lugar. Assim, sem perceber, Tita é lançada no espaço da cozinha, que, apesar de ser considerado um espaço de submissão, para ela é um lugar de comunicação livre. Dessa forma, a cozinha se transforma em um lugar de insubordinação, e tem seu papel reforçado na trajetória da personagem.

No que diz respeito à significação da cozinha na obra, é possível pensar que, naquela época, era um espaço reservado às mulheres e proibido para os homens. Assim, pode-se dizer que, este espaço, estava fora do alcance de Mamãe Elena, representante patriarcal no romance. Neste espaço desconhecido pela mãe, Tita tem total poder de atuação e é nele que prepara os pratos que servem como meio de comunicação de seus sentimentos.

Essas e outras realizações de Tita marcam a vitória sobre a tradição familiar e que serão usufruídos pelas mulheres das gerações seguintes da família De la Garza. Através da personagem Tita, de Como água para chocolate, Esquivel mostra o caminho percorrido por esta personagem e por tantas outras mulheres para sair de trás do fogão e transportar-se para a sala de visitas, ou para o lugar que elas queiram ocupar, transformando a cozinha em um espaço de comunicação que domina os cômodos ao redor, através da expressão de sentimentos e ideias.

Seguindo uma tradição culinária, que acontece através de memórias (Sacramento, 2013), percebe-se como uma escrita que se apresenta individual vai tomando forma social. Partindo do preceito que a memória é social e que de uma instancia privada chega-se ao coletivo pode-se afirmar que as receitas de Como água para chocolate vêm de informações que se revelam através de performances não somente de um indivíduo, mas também de um grupo social, ou seja, a história não se trata de uma mulher, mas sim da mulher.

Fica explícito, no romance, que a autora, referindo-se a ela, passa a falar do seu grupo. Esse romance, trata de tradições que foram se incorporando, através de relatos culinários, à memória da narradora. Sua memória culinária vai se incorporando dentro do ambiente familiar, pelas mulheres, como herança cultural vinda de experiências vividas. São receitas que estabelecem certas comunicações que ressignificam a memória.

Tita, e outras tantas heroínas desconhecidas, restritas ao mundo da cozinha, continuarão vivas se lembrarmos delas, se buscarmos na memória mulheres que, mesmo sendo limitadas às panelas, ousam fazer como água para chocolate: incendiar o mundo com suas receitas e experiências.

Considerações finais

Ao organizar os fatos do romance a partir dos meses do ano e, especialmente, ao introduzir no enredo da narrativa receitas culinárias, a autora da obra, Laura Esquivel, revela ao leitor sua percepção sobre as angústias existenciais que afligem os corpos das personagens femininas do romance, sobretudo, o sufrágio do corpo de Tita. Ao mesmo tempo em que esses dramas são revelados, pode-se constatar que ao optar pela cozinha como eixo narrativo do romance, a autora revela não apenas as memórias que são constituídas/construídas sobre os corpos de cada mulher, mas, também, evidencia as memórias individuais e coletivas da sociedade local por meio da transmissão das histórias orais que são passadas a cada geração.

A memória social de um povo é um importante instrumento de preservação das experiências com vistas à constituição da identidade individual e coletiva. Um dos elementos mais relevantes no processo de constituição da identidade cultural, consequentemente, da história de um povo está diretamente ligado à cozinha. E é neste cenário que o romance Como Água para Chocolate conduz as experiências individuais e coletivas dos membros da família De la Garza.

Nessa perspectiva, e tendo em vista que as experiências gastronômicas existentes no romance conduzem e elevam a memória a um caráter primordial para cada uma das personagens, a todo momento esses sujeitos são “atravessados” pelas manifestações culturais de grupos indígenas, afrodescendentes, bem como pela cultura estadunidense. A respeito desse “caldeirão” cultural Canclini afirma que “a América Latina é resultante da sedimentação, justaposição e entrecruzamento de tradições indígenas (sobretudo nas áreas mesoamericanas e andina), do hispanismo colonial católico e das ações políticas educativas e comunicacionais modernas.” (CANCLINI, 2015, p. 73).

A partir da afirmação do autor, pode-se inferir que a noção de memória cultural é uma construção que surge do âmago do pertencimento a um lugar. Diante disso, ao pensarmos sobre a memória individual evidenciamos o princípio da etnicidade que incide sobre a noção de identidade que o indivíduo tem sobre si. Para tanto, destacamos como elementos primordiais para a construção da memória individual a língua, o território e a experiência que atravessa os sentidos do corpo a partir da experiência que o alimento proporciona a este corpo. Nesse sentido,

É importante ressaltar que nossos hábitos alimentares são o resultado de um processo que chamamos de antropofagia cultural, no qual as várias etnias entraram com seu tempero, sabor e capital simbólico específico. O resgate da memória culinária se pretende como forma de evocar as lembranças gustativas que, segundo Halbwachs (1990), engendram o sujeito social poliforme para com ele elaborar um primeiro quadro social que serve como ponto de referência nesta construção que chamamos de memória. É importante ressaltar que a memória acontece no âmbito das práticas cotidianas. Ela emerge da atividade encenada e por meio das micro experiências narradas (SACRAMENTO, 2009, p. 28).

Isto é, o ato de alimentar-se gera no indivíduo uma primeira experiência de memória. Primeiramente, porque o corpo necessita do alimento para manter-se vivo, e aí reside a experiência antropofágica. E, segundo, porque, a escolha de temperos, o consumo de determinadas proteínas de origem animal, vegetais, legumes entre outros, conduz o sujeito para construção da memória individual por meio da memória coletiva.

A recente publicação de textos de escritoras que relacionam Literatura e Culinária levou-me a fazer uma reflexão sobre Memória Social dentro de um espaço específico, a cozinha, cozinha entendida como um lugar de rito que transfigura corpos. Quero reconstituir – por meio do recorte desse ritual e da memória da narrativa que vai emergindo de sensações experienciadas individualmente e em grupo – determinados sentidos que se engendram a partir da relação com a culinária. Isso porque os hábitos alimentares se apresentam como textos culturais que podem ser lidos [e que] falam, entre outras coisas, da família, do pai, e da mulher (SACRAMENTO, 2009, p. 27).

Conforme já exposto, o texto literário de cozinha-ficção possibilita ao corpo transitar pelos espaços de construção de memória individual e coletiva, a partir das experiências afetivas ou de rejeição que lhes são próprias. A construção da memória da personagem Tita, ocorre no transcurso do romance por meio de violência simbólica e física por parte de sua mãe. Isto é, o espaço do corpo como experiência e memória é constituído a partir do sofrimento, da angústia e, muitas vezes, de “ausência de si” por parte da personagem. Sobre essa questão, levanta-se a seguinte hipótese: a rigidez e moralidade que mamãe Elena destila sobre o corpo de Tita é, na verdade, resultado de abnegação de sua sexualidade. Sobre essa questão, Michel Foucault assevera que:

Um dos traços característicos da experiência cristã da “carne”, e posteriormente da “sexualidade”, será a de que o sujeito é levado nessas experiências a desconfiar frequentemente, e a reconhecer de longe, as manifestações de um poder surdo, ágil e temível que é tanto mais necessário decifrar quanto é capaz de se emboscar sob outras formas que não a dos atos sexuais (FOUCAULT, 2017, p. 40).

Por essa razão, ao percebermos no romance a constante vigilância de mamãe Elena sobre Tita, mesmo no ambiente da cozinha, vê-se, que, na verdade, a preocupação não está amparada na relação de construção de memórias afetivas, mas, é uma forma de fazer com que a personagem Tita reprima em si toda e qualquer manifestação de experiências amorosas seja com Pedro, seja com o sobrinho Roberto, seja com suas irmãs Gertrudis e Rosaura. Para tanto, Foucault (1984, p. 179) nos diz que “A problematização na forma de reflexão sobre a própria relação: teórica sobre o amor e prescritiva sobre a maneira de amar” é o cerne para compreensão das relações que se estabelecem a partir do corpo e da memória culinária, elementos estes que são imprescindíveis à consolidação do eu no mundo.

Por fim, percebe-se pela leitura do romance que a memória, diferentemente do corpo, não pode ser reprimida conforme os interesses morais ou religiosos de alguém ou de um grupo. A memória é livre porque atua em cada sujeito sem interferências externas. Nela emergem as lembranças do que cada criança, mulher, homem, jovem e idoso já viveu. Por esta razão, a memória individual pode ser perfeitamente construída de modo consciente ou inconsciente, pois seu mecanismo primordial é selecionar, excluir, relembrar e fazer com que o corpo sinta tudo o que lhe for resultante das experiências coletivas com outros indivíduos ou grupos.

Referências:

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ZUCCHI, Vanessa (et. al.). Do calor do fogo ao calor dos corpos: representações de mulher em Como Água para Chocolate. In: ZINANI, Cecil Jeanine Albert; SANTOS, Salete Rosa Pezzi dos (orgs.). Mulher e literatura: história, gênero, sexualidade. Caxias do Sul, RS: Educs, 2010.


[1] Mestranda do Programa de Pós-graduação em Sociedade, Cultura e Fronteiras – Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), campus de Foz do Iguaçu. pedagogia.fronteira@gmail.com 

[2] Personagem que convive com uma mulher há vários meses, mas que acredita ser ela uma entidade maligna de outra dimensão), entretanto, com o passar do tempo, o comportamento e atitudes dela são tão humanos que Alvare já não sabe mais se a experiência que vivencia pertence a este universo ou a uma realidade paralela à sua existência.

[3] Embora o romance esteja centrado em eventos históricos do início do século XX, as temáticas presentes na obra representam problemas contemporâneos ao século XXI.