CONTROLE E TRANSBORDO:UMA ANÁLISE DO PROJETO, DO URBANISMO E DA PSICANÁLISE

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10204830


Gabriela Souza Bastos Martins
Aidil Souza Bastos


INTRODUÇÃO

Notoriamente há um histórico de projetos e decisões equivocadas em relação aos recursos naturais nas áreas urbanas das principais cidades e centros urbanos brasileiros, resultado de escolhas passadas, que em parte são atuais. Esse controle também se dá em relação aos seres humanos, uma vez que interesses econômicos e a classe social dominante definem um molde do que esperam para a cidade e quem terá acesso à quais aparatos, quais comportamentos são considerados adequados, a partir da sua ótica e benefício. Uma relação extrativista e exploratória dos recursos naturais, mas da própria população. E uma ideia de projeto inclusiva, e multi participativa, com visões e demandas, com pontos de vistas diferentes se mostra oportuno e a partir do paradigma ecológico.

Para compreendermos e abrirmos campos para pensar, esse artigo traz uma abordagem histórica conceitual multidisciplinar sobre projeto e controle da natureza e social a partir de um breve histórico da evolução do pensamento científico e do urbanismo, tendo como base o livro Cidade para todos da paisagista Cecilia Herzog, e Breve historia de la Arquitectura  da arquiteta Terese Vintimilla, incluindo a ótica de projeto do psicanalista Sigmund Freud e uma oposição de Jacques Lacan em relação a possibilidade de satisfação com a sublimação, relacionando com escolhas e incoerências do ser humano em relação ao tema com seus impulsos e complexidade.

DO INÍCIO DAS CIDADES À REVOLUÇÃO CIENTÍFICA

O projeto, seu gerenciamento e planejamento, são inerentes da civilização humana desde o seu início, quando não havia as ferramentas, metodologias e técnicas estruturadas como hoje em dia, já era necessário controlar prazos, custos, materiais, recursos e avaliar riscos. As pirâmides egípcias podem ter sido os primeiros projetos em larga escala. Posteriormente as civilizações gregas e romanas executaram inúmeros projetos de larga extensão, como sistema de água e esgoto, pavimentação, campanhas militares, rede comercial pela Europa, Palestina e norte da África (Martins, 2012).

A bacia hidrográfica dos rios Tigre e Eufrates, na Mesopotâmia, possibilitou o surgimento das civilizações que nasceram ao seu redor. Os sumérios desenvolveram um sistema para controlar enchentes, irrigar as terras para produção de alimentos, e iniciaram o desenvolvimento da agricultura, permitindo o surgimento das primeiras cidades, a primeira remonta a 3.500 a.C. (Vintimilla, 2016), O território é o “produto histórico de longos processos de co-evolução entre a população humana e o ambiente, a natureza e cultura e, portanto, como o sucesso da transformação do meio ambiente através de sucessivos ciclos de civilização estratificada” (Magnaghi, 2011, p.54). 

O domínio do ferro e os desenvolvimentos tecnológicos subsequentes permitiram aumentar a produtividade de plantações e criação de animais, buscando favorecer áreas urbanas, intensificando intervenções nos processos naturais. Com isto, ocorreu alteração nos cursos dos rios, eliminação de ecossistemas, e em algumas áreas desertificação em longo prazo, consequência de exploração e urbanismo predatório, insustentável, contribuindo com o declínio e colapso de civilizações ao longo da história em diversas localidades, tanto ocidentais (Império Romano), maias, na península de Yucatán, e no Oriente Médio, com exceções, como o povo de Israel (Herzog, 2013).

Figura 1: Aqueduto do Império Romano na cidade de Segóvia, exemplo de infraestruturas realizadas por essa civilização em territórios que dominou. Aproximadamente do século 1 d.C. Fonte: acervo pessoal.

No final da Idade Média e início do Renascimento ocorreu a Revolução Científica, o método racionalista de Descartes, o conceito de urbanização ortogonal, com regularidade cartesiana, originado na Grécia Antiga como uma forma de ocupar áreas de “maneira rápida e eficiente, sem considerar as consequências sociais e ambientais”. Os ingleses e franceses replicaram este conceito nos territórios colonizados nas Américas, ignorando traçados de povos anteriores (Herzog, 2013, p. 38). 

O Renascimento europeu baseou-se no Humanismo, movimento de intelectuais e artistas que influenciou até o mundo moderno, caracterizado pelo antropocentrismo, individualismo e, de forma antagônica, o universalismo, ou seja, pautas universais que acreditavam reger a vida social e espiritual da humanidade (Vintimilla, 2016). Nesse contexto, o Liberalismo Econômico ganhou força, pautado em pensamento linear, certezas, crença no controle da natureza, foco no indivíduo e no individualismo, na propriedade privada e na máquina (Herzog, 2013).   

Herzog (2013) contextualiza que o Iluminismo, com a valoração do uso da razão, o impulsionamento da especialização dos campos do saber, o aprimorando dos meios de produção, formatou os fundamentos filosóficos da apropriação e ‘espoliação’ da natureza através de exploração ‘metódica’ e ‘científica’, intensa e eficiente dos recursos naturais, benéficos para a melhoria da qualidade de vida e acesso a privilégios da nova classe dominante: a burguesia.

A ‘eficiência’ e a forma ‘científica’ apontadas por Herzog aparentam viés tecnocrata, patriarcal, mecanicista, ao ponderar por quantidade, técnica, retorno econômico e velocidade; excludente, beneficiando apenas a classe dominante, sem benefício comum ou social; predatória, não englobando sustentabilidade.

Francis Bacon (1561-1626), um dos precursores do Iluminismo, inaugurou o método de conhecimento indutivo, o qual busca uniformizar processos de pesquisa científica. Ele compara a natureza a “uma mulher pública”, afirma que “devemos matar (a natureza), penetrar seus segredos e aprisionar seus desejos” (Herzog, 2013, p.38).

É possível fazer uma analogia entre a agressividade que o homem transborda ao querer dominar a natureza, com a agressividade em que se buscou dominar as mulheres e os povos considerados inferiores, tanto em relação à vida concreta que eles representam, como em termos simbólicos, poético, etc, Bacon expressa que em relação à mulher, e a natureza feminina não são vistas como cabendo ao homem respeitar, bem como aos seus segredos e desejos viscerais. Com a domesticação da mulher, de seu comportamento, seu desejo também irá transbordar, assim como ocorre em diversas áreas urbanas com seus rios canalizados. 

Nesse sentido do controle, quando se olha o histórico de gestão, tanto de empresas, como gestão de projetos, se observa que gestão tem uma caráter relacional intrínseco que evoluiu ao longo do tempo, mas que originou-se também com a ideia de controle. Raymond Willians (2007) esclarece que gestão implica em uma versão específica de relacionamento, por meio de negociação. E João Bilhim (2014, p. 19) também acredita que a gestão tem que ver com aspécto relacional do ser humano, precisando de ao menos mais uma pessoa que visam produzir em conjunto, e dessa forma considera esteriotipada a imagem de que gestão como “um conjunto de processos racionais que visam atingir objetivos instrumentais, através da mobilização de tecnologias organizacionais eficientes”.

Williams (2007) elucida que a palavra inglesa manage vem do italiano maneggiare, designada para manusear, manipular ou treinar cavalos. No Séc. XVIII ela designava atividades de negócio e os responsáveis em dirigir uma instituição pública, que atuavam tendo como referência a monarquia, sendo burocratas.

Em relação à origem semântica da palavra, se ressalta que para treinar um cavalo é necessário primeiro fazer uma doma equina, onde o domador a partir de sua posição hierárquica superior cria um laço de confiança que torna o animal apto a responder comando, e era esse o relacionamento inicial atrelado à gestão. Esse histórico contextualiza a fala de Ludwig von Bertalanffy (2006), que em 1928 criou a teoria geral dos sistemas, que a gestão mecanicista das engenharias trata as pessoas como ratos e que ao se adotar o princípio da progressiva mecanização, procedimento analítico, sistema fechado, em esquema estímulo-resposta, e uma abordagem cognitivo-comportamental para o desenvolvimento das teorias e práticas de gestão, desconsiderando a complexidade humanista.

Dessa forma, o animal domesticado, colonizado, poderia ser um cavalo, uma sociedade que se considerasse inferior, as mulheres, ou um funcionário. De forma agressiva é por vezes a vida concreta, ou a vida simbólica e poética que se deseja domesticar, o comportamento e os desejos. É a natureza humana que se buscava colonizar, para viabilizar um modelo social, econômico e político.

DO HIGIENISMO AO MODERNO FUNCIONALISTA

Desde o século XVIII a economia industrial, atuando no sistema liberal, ocasionou mudanças mais rápidas nas cidades. Artistas contribuíram nos projetos de parques com uma natureza cosmética, evocando a natureza extinta, e no tecido urbano, para um embelezamento que atendesse a valorização do mercado imobiliário (Herzog, 2013). 

Os governos adotaram a doutrina do higienismo, com drásticas transformações na paisagem urbana, grandes aberturas no tecido urbano, demolições de imóveis e alargamento de ruas. Buscavam melhorar a salubridade das cidades, a ventilação das residências, com obras que suprimiram as áreas úmida e alagáveis, canalizando (de forma subterrânea ou não) rios e demais corpos hídricos, invisibilizados na paisagem urbana. Esse manejo hídrico conhecido como drenagem higienista aterrou áreas de acomodação natural das águas das chuvas para permitir o uso de incorporações imobiliárias, com escoamento da drenagem urbana subterrânea à jusante, onde as águas correm com maior velocidade, constituindo um cenário propício para enchentes e transbordamentos, sendo que no Rio de Janeiro grandes intervenções aos moldes barroco ocorreram entre 1902 e 1906 (Herzog, 2013).

Figura 2: Cidade de Paris, com o Rio Sena canalizado e grandes eixos monumentais. Fonte: acervo pessoal.

Frederick Olmsted (1822-1903) incluiu uma visão multidisciplinar, ecológica, compreensão sistêmica das complexas funções e processos naturais que ocorrem na paisagem, e “considerava que a saúde física e mental das pessoas estava relacionada com a possibilidade de desfrutar a natureza diretamente”. Ele desenvolveu projetos pioneiros como o Central Park, buscando mimetizar e recuperar a natureza, re-introduzindo áreas alagáveis, que purificam de forma natural águas poluídas por esgotos e indústrias (Herzog, 2013, p.43)

Figura 3 e 4: Vistas do lago do Central Park, projeto de Frederick Law Olmsted em Nova York.  Fonte: acervo pessoal.

As cidades pós-liberais eram desagradáveis, poluídas, insalubres, com baixa qualidade de vida. No início do século XX surge a Arte Moderna, “que influenciou a busca de novas formas para as cidades. Ela visou conciliar métodos objetivos (científicos) e subjetivos (artísticos), de modo que a arte (o estético) se tornasse autônoma em relação às instituições dominantes”. Adotou-se o urbanismo moderno funcionalista a partir das definições das funções urbanas e zoneamento (moradia, residência, lazer, circulação, industrial, etc.). O ponto de partida passou da escala urbana para a unidade residencial, e projetos autorais surgem como chamariz para promover crescimento econômico, como museus, estádios, salas de concerto, entre outros (Herzog, 2013, p. 50-51).

Essas cidades são convenientes para a economia baseada em indivíduos e no consumo, com grandes áreas impermeáveis, jardins cosméticos sem relação com o ambiente geobiofísico, implicando em perdas: da escala humana, ao adotar a escala do automóvel em alta velocidade, dos espaços de convivência e da diversidade social e cultural, com torres residenciais, condomínios fechados e shoppings centers. Como exemplo, a cidade de São Paulo teve cursos d’água alterados, “escondidos em galerias subterrâneas, com várzeas e áreas úmidas e aterradas para fins residenciais, industriais e para prover vias de circulação de veículos” nas Marginais do Rio Tietê e do Rio Pinheiros, e a cidade convive desde 1920 com enchentes (Herzog, 2013, p. 55). 

Os europeus, e posteriormente os americanos e asiáticos usaram a América Latina como laboratório da política capitalista colonial. No Brasil e nas cidades do sul global a modernização das cidades é caracterizada pelas cidades informais (favelas, assentamentos,etc) juntamente com arranha-céus de aço, cimento e vidro, sobrepondo e destruindo a cidade tradicional. Esta estrutura urbana não tem limites de crescimento, desvaloriza as qualidades individuais dos lugares, é fortemente hierárquica e reducionista em termos de modelo de vida (Magnaghi, 2011).

Figura 5: Vista aérea das Marginais do Rio Pinheiros, em São Paulo.  Fonte: acervo pessoal.

No Brasil, a partir de 1950, com investimentos e tecnologia estrangeiros, a indústria da construção e de bens duráveis, incluindo a automobilística, passaram a ser importantes no crescimento econômico do país e contavam com incentivo do governo.

Esse processo acarretou crescimento da burguesia industrial, substituição de transportes coletivos sobre trilhos, de cargas e pessoas. Foram necessárias grandes obras de infraestrutura para adoção prioritária de transportes rodoviários e movidos à diesel (poluentes). Em outros países, arquitetos criticavam o modelo funcionalista por implicar a morte da criatividade e tecnocracia que desconsiderava o ser humano, seus aspectos sociais e atividades. O possível para as populações economicamente carentes é habitar regiões distantes, ou áreas de alto risco, com transportes de massa precários, em terrenos onde o mercado imobiliário formal não pode atuar: encostas, bordas dos sistemas hídricos (beira de rio, córregos, lagos, represas), e fragmentos de ecossistemas protegidos (Herzog, 2013).

Desde o século XIX a ótica desenvolvimentista também influenciou a agricultura, que após a Segunda Guerra Mundial aumentou exponencialmente o uso de fertilizantes sintéticos e pesticidas para recuperar a fertilidade dos solos e inseticidas. Por outro lado, parte da população iniciou um processo de consciência ambiental, impulsionando a participação da sociedade no planejamento do espaço público, o embasamento científico social e ambiental, e democratização das informações (Herzog, 2013).

Figura 6: Acessos à Favela de Paraisópolis em São Paulo, pela Avenida Hebe Camargo onde o canteiro central é formado por um córrego canalizado e pela Rua Itamotinga.  Fonte: acervo pessoal.

A intensa mecanização e monoculturas expandiram para o Sul e Centro-Oeste (biomassa da Mata Atlântica e Cerrado), depois para a Amazônia, levando à intensa migração para centros urbanos. E impulsionam o desmatamento e extrações focados no mercado globalizado. Continuam a tradição iniciada no Brasil Colônia de extrativismo e exploração intensos de recursos naturais e energéticos, que, quando em decadência são abandonados e devastam um território (pau-brasil, cana, ouro, café etc.) (Herzog, 2013). Inúmeras críticas a esse modelo apontam o quão ultrapassado e frágil é o desenvolvimento insustentável e eco-catastrófico (Magnaghi, 2011). 

No processo de colonização as relações são frágeis, desiguais, uns existem em detrimento de outros, de forma utilitária. No dicionário o verbete colonizar aparece como verbo de: “Promover a colonização de; estabelecer colônia (s); migrar para outro território e nele se estabelecer, especialmente como seus primeiros ou principais habitantes; habitar como colono; Dispersar-se e desenvolver; propagar-se, alastrar-se, invadir” (Michaelis), da etimologia do francês “colon: cultivador, habitante de uma colônia, habitante” (Houaiss, p.763). A raiz da palavra colonizar é habitar e cultivar.

Na visão dos colonizadores europeus era isso que faziam nas colônias, não identificavam os povos originários como humanos, acreditavam promover a civilização. À luz dos conhecimentos e valores atuais o que se viu foi uma invasão devastadora se alastrar.

No começo do Século XX, a incerteza como objeto foi colocada no centro do conhecimento científico, assim como a consciência da relatividade dos métodos (Boutnet, 2002).  Em relação à gestão de projetos, Bilhim (2014, p.19) reconhece que uma parte dos autores percebem “como um conjunto de ferramentas analíticas ou como conjunto de técnicas e truques, a gestão define regras que permitem conexões de causa e efeito, a partir de uma sucessão de casos anteriores”, enquanto outros autores defendem que a gestão estaria na esfera das artes, um vez que “tem que ver com seres humanos, com motivações e projetos variados e interativos, que não se enquadram em regras fixas que permitam prever consequências inevitáveis dos respectivos pressupostos”. Por isso aqui se abre uma análise dos assuntos abordados a a partir da psicanálise.

Essa dualidade de percepção de projeto como processos determinados ou interativos se torna coerente ao relacionarmos com os paradigmas igualmente divergentes vigentes na primeira metade do século XX como o pragmatismo e mecanicismo e o desenvolvimento de diferentes linhas teóricas da psicologia, como a psicologia behaviorista, a psicologia gestaltista, a psicologia humanista, a cibernética, teorias mecanicista e a psicanálise, que contribuíram para a psicologia do projeto. E a psicanálise teorizou que o homem não é tão racional como pensou-se por séculos. Agindo de forma inconsciente em grande parte do tempo.

O avanço técnico e o aprofundamento nas diversas áreas do saber possibilitaram a construção de cidades, intensa urbanização em um segundo momento, onde milhares de pessoas habitam. Porém, o ser humano é complexo e não utiliza toda sua capacidade para uma construção positiva e sustentável, por vezes escolhe o que coloca em risco sua própria existência como indivíduo e como sociedade. Sigmund Freud, criador da Psicanálise, acrescenta compreensão da natureza humana.

Há mais de um século as teorias de Sigmund Freud (1856-1936), um neurologista e psiquiatra austríaco, se fazem importantes para compreender o humano e suas complexidade em termos coletivos e individuais, inclusive a partir do conceito de inconsciente e como ele se apresenta em relação a sintomas, conflitos, adoecimento, criação e sublimação. Mas, suas contribuições foram analisadas criticamente e considerando seu contexto.

O psicanalista considera ser uma ilusão, que deve ser desfeita, pensar que os seres humanos têm um instinto para a perfeição, para alto nível de realização intelectual, sublimação ética, e desenvolvimento em super-homens. Os fenômenos atribuídos a um “instinto para a perfeição” acontecem em raros casos, resultando da repressão instintual. As concepções freudianas são dualistas, o instinto reprimido (instinto de morte e o instinto de vida) sempre se esforça por surgir na consciência (Freud, 1998, p. 54).

Freud (2011) espera que o instinto de vida, manifesto na evolução cultural, possa controlar os instintos humanos de agressão e autodestruição, que lhe causam infelicidade por ameaçar exterminar a humanidade. Porém, ele não sabe se o homem será capaz disto, e em que medida ele seria capaz disto.

CONTROLE E TRANSBORDO: UMA APROXIMAÇÃO PSICANALÍTICA DOS INSTINTOS HUMANOS [1]

Está em jogo a vida do indivíduo predador, que tudo explora, devasta, dando vazão ao instinto de morte. A agressividade não tem sido contida pelo instinto de vida, transbordando e aniquilando a vida em comum e a do planeta. 

No início do desenvolvimento psíquico o Eu abrange tudo, em íntima ligação com o mundo ao redor, sem limites entre o Eu e o todo. O Eu amadurece e separa de si o mundo externo, podendo conservar os estágios primitivos ao lado da configuração definitiva. Enquanto para ele o alto nível cultural de um país ocorre quando nele se providencia tudo o que serve para o homem explorar a terra e protegê-lo das forças da natureza, regulando cursos dos rios que ameaçam inundar as terras, conduzindo suas águas por canais até onde delas necessitem, e exterminando animais selvagens e perigosos (Freud, 2011).

O sentimento de ligação íntima com o mundo externo é considerado por Freud como fazendo parte de uma etapa inicial do desenvolvimento psíquico. Freud, como ateu, considera, no livro “O futuro de uma ilusão” (1927), que a religião é uma ilusão, e defende que ela é um sistema falso de crenças, de estágios iniciais do desenvolvimento humano. Ele considera que em sociedades mais ‘evoluídas’ o deus teria uma imagem cada vez mais próxima do homem, até o homem assumir a imagem do divino. Freud desconstrói, também, a noção sistêmica e de interdependência do homem em relação ao meio natural. Em uma conceituação tecnocrata e antropocêntrico, ele desconsidera a vida feminina, a dos povos originários, e a do planeta.  

Ele reflete que a cultura procura, sem sucesso, limitar a sexualidade e a agressividade do homem e entre os homens, e o instinto de morte ameaça desintegrar a sociedade. O instinto de morte, “na mais cega fúria destruidora”, realiza desejos narcísicos de onipotência. Quando domado e moderado, ele proporciona ao Eu a satisfação das necessidades vitais e domínio sobre a natureza (Freud, 2011, p. 67). Se Freud estiver certo, as relações do ser humano com as águas e entre seres humanos será destrutiva quando a agressividade transbordar, e, na melhor das hipóteses, serão relações de dominação, quando a agressividade puder ser contida. 

Considerando que um projeto é uma antecipação, um plano para se chegar a um produto ou serviço, é possível nos aproximarmos da perspectiva da psicanálise.Freud foi o criador da psicanálise[2]. O tema do projeto é pouco abordado por Freud, mas é aprofundado por sucessores de sua teoria, focando na ótica do sujeito. Nessa abordagem a personalidade é retroativa, focada na história pessoal, na experiência vivida e suas disfunções, e na reatualização momentânea. Dois mecanismos psíquicos da teoria freudiana contribuem para a psicologia do projeto: o de projeção e o de sublimação do ideal do EU, onde a pulsão se dirige para um objeto (Boutnet, 2002).

O autor (op. Cit) esclarece que a projeção é um mecanismo de defesa onde o sujeito tem um conflito interno em relação ao objeto exterior. Projetar é interpretado tanto como “se” projetar como “fazer” um projeto, materializando um objeto exterior em relação ao sujeito. Dessa forma a projeção pode variar entre mecanismo de defesa e sublimação, o que legitima o projeto visto sob a ótica do sujeito e a consideração de seus efeitos e consequências.

O projeto pode ser visto a partir de um objeto externo pelo conceito do “Ideal do Eu” (como meio da criança se tornar adulto) ou do Eu-Ideal (na busca de uma perfeição narcísica), nos dois casos a partir de um objeto externo. A trilogia freudiana Eu-Ideal, Ideal do Eu e Sublimação podem ser instrumentos para a análise dos projetos (Boutnet, 2002).

O filósofo, químico e poeta francês Gaston Bachelar (1884-1962), contemporâneo de Freaud, ao filosofar sobre as imagens poéticas, utiliza o conceito de sublimação (“sublimação pura”) liberada das paixões e dos desejos, o que pode ser analogamente ligada à satisfação e inexistência das pulsões, mas dessa vez não ligada a um objeto, mas a uma imagem:

[…] Talvez a situação fenomenológica venha a ser definida com a relação às indagações psicanalíticas se pudermos destacar, a propósito das imagens poéticas, uma esfera de sublimação pura, de uma sublimação que nada sublima, que é aliviada da carga das paixões, liberada do ímpeto dos desejos (Bachelard, 2000, p. 13).

Lacan retoma o conceito de sublimação a partir de quatro parâmetros que definem o conceito de pulsão: sua fonte, seu impulso, seu alvo e seu objeto. O desejo é realizado a partir da materialização do objeto idealizado pelo projeto (seja nas nas diferentes formas de artes, na religião, na ciência etc), representa a realização e por consequência a destruição da figura do projeto. Neste ponto Lacan diverge de Freud ao descartar a satisfação a partir da sublimação ao se concretizar o objetivo idealizado pelo projeto, pois acredita que as pulsões não se esgotam, são apenas inibidas em relação ao objeto, e as pulsões (e insatisfações) confrontam o homem real (Boutnet, 2002).  

Freud estudou e tratou mulheres histéricas (histeria, significa útero, em grego), desvendou seus desejos sexuais reprimidos, contidos, que transbordavam de forma adoecida, única forma que lhe restava na sociedade repressora. Acontece que o desejo visa à satisfação, nem que ela seja transformada em algo aceitável para sua época. Freud desvenda o sofrimento histérico em homens. Também os desejos masculinos não cabiam na estreiteza da cultura, e transbordavam como sintomas (Breuer e Freud, 2016).

A histeria se faz presente nos dias atuais (Silva e Ambra, 2021), onde o controle dos corpos, sem questionar quem impede o transbordamento, muitas vezes se dá através do uso de medicamentos para controle das emoções. Sexualidade pode ser vida e vivida, agressividade pode ser transformada em energia a favor da vida. É preciso ter espaço para transbordamento do rio, das emoções, pensamentos, desejos, em uma sociedade que contemple a manifestação da natureza, e a ela se adeque.

NOVOS PARADIGMAS

Diante das complexas problemáticas urbanas, diversos autores indicam a necessidade de mudança nos paradigmas que regem os projetos de infraestrutura e urbano, e na relação com a natureza, modelos e relações sociais e de poder.

Herzog observa que “O novo paradigma do século XXI é reparar e reconstruir os sistemas naturais, de modo a criar vibrantes sistemas antropogênicos”, um “paradigma ecológico” pautado por “uma visão sistêmica integrada de longo prazo, com planejamento urbano com base no suporte biogeofísico (paisagem) e no contexto social” (Herzog, 2013, p. 17, 261).

“Temos o momentum para mudar. Possuímos uma enorme oportunidade de aproveitar o conhecimento adquirido por séculos de avanços tecnológicos para adotar o novo paradigma da incerteza, vivendo em harmonia com a natureza e com as forças naturais. Mudar para melhor: entrar na era do bem-estar, da colaboração. […] a compreensão de que fazemos parte de um sistema com infinitos subsistemas. Assim nasceu o pensamento sistêmico, uma visão biológica da vida no planeta Terra, sujeita a mudanças permanentes de forma incerta e com repercussões imprevisíveis” (Herzog, 2013, p. 74).

Marques e Alvim (2021, tradução nossa) explanam que “o conceito de desenvolvimento sustentável a partir de uma abordagem sistêmica tem como premissa entender que a degradação ambiental não é um problema setorial. A insustentabilidade é produto de um processo sistemático de distanciamento do homem de seu território e do extrativismo que gera injustiças socioambientais”.

Apontam como caminho a dimensão socioeconômica, economia de baixo carbono, distribuição de renda justa, participação e equilíbrio nas forças de ‘diversos atores na sociedade’, fortalecendo o vínculo entre o Estado, sociedade civil e o mercado. 

Para Magnaghi (2011) é necessário superar os modelos contemporâneos de urbanização e a redução da pobreza é questão central. Como caminho ele aponta a busca de novos modelos sociais pautados em igualdade social, autogoverno, justiça e bem-estar social.

No mesmo sentido, o filósofo Vladimir Safatle e o psicanlista Christian Dunker (2023) apontam a necessidade de gerar mecanismos para os coletivos interagirem, sendo necessário participarem da visão e das definições nos quais estão envolvidos na movimentação social do território, se mostra necessário. Não por um sistema onde poucos definem ideias coletivas e intervencionais com discursos convincentes sustentados por argumentos coerentes que não correspondem à visão e ao dinamismo necessário das demandas sociais como um todo; mas sim, com a ideia de Gestão do território.

Os autores esclarecem a importância da participação e do controle e validação da sua própria narrativa e percepções pelos sujeitos, como forma de inclusão e pertencimento que se distancia da percepção inicial de gestão como dominação e dos projetos sociais e políticas públicas que excluem.

Em outras palavras, a forma como uma cultura escolhe nomear e narrativizar o sofrimento psíquico, a maneira com ele é incluído ou excluído por determinados discursos, o modo como ele reconhece sujeitos para certas demandas e estados informulados de mal-estar possuem valor etiológico, tanto quanto as terminações orgânicas. A maneira como interpretamos o sofrimento, atribuindo-lhe causalidade interna ou eterna, imputando-lhes razões naturais ou artificiais, agregando-lhe motivos dotados ou desprovidos de sentido, muda literalmente a experiência de sofrimento.

[…] Controlar a gramática do sofrimento é um dos eixos fundamentais do poder (Safatle e Dunker, 2023, p. 12-13).

Bilhim (p.23) completa que a “gestão não é apenas gestão de negócios (business). É a parte integrante de todas as iniciativas humanas que reúnam numa organização pessoas com diversos conhecimentos e competências” e essa característica acarretou que “Por todo o mundo a gestão tornou-se numa função social”.

Em metodologias de gestão a visão sistêmica e inclusiva já aparecem, como no Design Thinking de Tim Brown:

Uma visão puramente tecnocêntrica da inovação é menos sustentável hoje do que nunca e uma filosofia de gestão baseada apenas na seleção de uma entre várias estratégias existentes provavelmente será superada por novos avanços domésticos ou no exterior. Precisamos de novas escolhas – novos produtos que equilibrem as necessidades de indivíduos as necessidades de indivíduos e da sociedade como um todo; novas ideias que lidem com os desafios globais de saúde, pobreza e educação; novas estratégias que resultem em diferenças que importam e um senso de propósito que inclua todas as pessoas envolvidas (Brown, 2020, p.3).

CONCLUSÕES

A evolução das cidades, dos conceitos de métodos científicos, e da noção de gestão de projetos nos mostra que o caráter relacional, e a forma de se perceber o outro, de vislumbrar o social muda ao longo do tempo. E se atualmente um paradigma ecológico e sistêmico é apontado por autores como desejável para as novas construções de cidade e de saberes, a psicanálise apresenta conceituação para compreensão os projetos possíveis e os propostos a partir de um viés humano, englobando inclusive as incoerências e contradições próprias do ser humano.

REFERÊNCIAS

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FREUD, S. 1856 – 1939. Além do princípio de prazer / Sigmund Freud; tradução Christiano Monteiro Oiticica.  – Rio de Janeiro: Imago Ed., 1998.

FREUD, S. O mal-estar na civilização / Sigmund Freud; tradução Paulo César de Souza. – 1a ed.- São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.

FREUD, S.; Breuer, J. Obras completas, volume 2: estudos sobre a histeria (1893 – 1895); tradução Laura Barreto; revisão da tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. 5ª tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

HERZOG, C. Cidade para todos: (re) aprendendo a conviver com a natureza. Rio de Janeiro: Mauad X : Iverde, 2013.

MAGNAGHI, A. The Urban Village: A Charter for Democracy and Local Self-Sustainable Development. Blomsbury Publishing PLC, NEW York: 2011.

MARQUES, A.; ALVIM, A.  Construction of sustainable territories and the multiple dimensions of sustainability. Mai, 2021. DOI: 10.3389/frsc.2021.670985

MARTINS, Gabriela S. B. Incorporação imobiliária: diretrizes para a inserção da análise qualitativa de riscos na aquisição do terreno na etapa inicial de um projeto.

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SILVA Jr., Nelson da e AMBRA, Eduardo Silva. Histeria e Gênero: Sexo como desencontro. São Paulo: Editora Verso, 2021.

VINTIMILLA, T. Breve historia de la Arquitectura. Madrid: Nowtilus, 2016.

WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave. [trad.] Sandra Guardini Vasconcelos. 1ª Edição. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.


[1] O conceito ‘instinto’ de vida e ‘instinto’ de morte dependendo da tradução aparece como ‘pulsão’. 

[2] A partir da obra de Freud Psicanálise e teoria da libido, Japiassú e Marcondes (1996, p.224) interpretam que “a psicanálise é, antes de tudo, uma investigação dos processos inconscientes. Correlativamente, constitui um tipo de terapêutica centrada nas neuroses. Finalmente, constitui um tipo de saber reinvindicando o estatuto de uma teoria científica da psique”.