PUBLIC CONTRACTING AND SUSTAINABILITY: THE REGULATORY FUNCTION OF BIDDING IN LIGHT OF LAW Nº 14.133/21
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10065297
Raíssa Falcão Spencer Hartmann1
RESUMO
O presente trabalho tem como escopo perquirir os objetivos extraeconômicos do processo licitatório diante do regramento previsto na Lei nº 14.133/21. Por um lado, as contratações realizadas pela Administração devem observar critérios econômico-financeiros, tendo em vista a necessidade de se promover a racionalidade econômica e a otimização de recursos orçamentários à luz do princípio constitucional da eficiência administrativa. Por outro ângulo, especialmente diante dos valores consagrados pela Constituição Federal, as licitações a cargo do Poder Público devem levar em consideração a efetivação de objetivos outros, como a preservação ecológica, o fomento à acessibilidade, a conservação do patrimônio histórico-cultural e a promoção da ciência, da inovação e da tecnologia. Nessa esteira, este estudo busca cotejar os objetivos primordiais perseguidos pelo legislador constituinte com as escolhas feitas pelo legislador ordinário na disciplina normativa do instituto da licitação, que sinalizam a adoção de um papel de fomento, indução e regulação, para além dos critérios tradicionais de custo-benefício em termos econômicos. Ao final, busca-se harmonizar a observância inarredável do princípio da eficiência administrativa com a necessidade de se conferir sustentabilidade multifatorial às contratações públicas. Para tanto, utilizou-se o método hipotético-dedutivo, com esteio em revisões bibliográficas.
Palavras-chave: Princípio da eficiência. Lei nº 14.133/21. Valores constitucionais. Função regulatória da licitação. Sustentabilidade.
ABSTRACT
The scope of this work is to investigate the extra-economic objectives of the bidding process in light of the rules provided for in Law nº 14.133/21. On the one hand, contracts carried out by the Administration must comply with economic financial criteria, bearing in mind the need to promote economic rationality and the optimization of budgetary resources in light of the constitutional principle of administrative efficiency. From another angle, especially in view of the values enshrined in the Federal Constitution, public tenders must take into account the achievement of other objectives, such as ecological preservation, promotion of accessibility, conservation of historical-cultural heritage and promotion of science, innovation and technology. In this sense, this study seeks to compare the primary objectives pursued by the constituent legislator with the choices made by the ordinary legislator in the normative discipline of the bidding institute, which signal the adoption of a role of promotion, induction and regulation, in addition to the traditional cost criteria -benefit in economic terms. In the end, the aim is to harmonize the unwavering observance of the principle of administrative efficiency with the need to provide multifactorial sustainability to public contracts. To this end, the hypothetical-deductive method was used, based on bibliographical reviews.
Keywords: Principle of efficiency. Law nº. 14.133/21. Constitutional values. Regulatory function of bidding. Sustainability.
1. INTRODUÇÃO
O dever constitucional de licitar é informado notadamente pelos princípios da igualdade, da moralidade e da impessoalidade. Por conseguinte, a Administração Pública, quando pretender contratar obras e serviços, e realizar compras e alienações, deve observar um procedimento que assegure a isonomia entre os licitantes e a justa competitividade entre eles, com o objetivo de selecionar a proposta mais favorável ao interesse público.
Ocorre que a proposta mais vantajosa não é necessariamente a mais barata. Naturalmente, a seleção da oferta, em regra, perpassa pelo exame de fatores econômico-financeiros, na medida em que os recursos estatais são escassos e os gastos devem ser racionais e justificados, vedado o desperdício e o mau uso do dinheiro público. Trata-se da concretização do princípio constitucional da eficiência, que congrega racionalização, otimização, qualidade e rendimento.
Sob a óptica constitucional, entretanto, as licitações públicas instrumentalizam fins outros que não se exaure na simples adjudicação do objeto com a correspondente execução do contrato. É dizer, não se trata, apenas, de utilizar a licitação como forma de escolher o licitante vencedor e de entregar de um bem ou serviço ao ente contratante. Para além disso, o processo licitatório tem o condão de induzir comportamentos, regular situações jurídicas e promover valores com um objetivo extraeconômico, interferindo diretamente nas dimensões social, cultural, ambiental e institucional.
Destarte, se, por um lado, a Constituição Federal determina a proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o legislador ordinário, de outro, intermedia e regulamenta o dispositivo, elegendo critérios de fomento às chamadas “licitações verdes”, como a observância de disposição final ambientalmente adequada dos resíduos sólidos gerados pelas obras contratadas.
Na mesma linha de raciocínio, quando o Texto Maior elenca como objetivo da assistência social, entre outros, a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária, o legislador infraconstitucional confere aplicabilidade a esse mandamento no âmbito das licitações, ao fixar a observância, pelos licitantes de obras e serviços de engenharia, de normas relativas à acessibilidade para pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida.
Nessa conjuntura se insere o conceito de sustentabilidade, parte indissociável do desenvolvimento nacional e baliza vinculante da atuação estatal, de sorte que a licitação não é um fim em si mesma, mas sim um mecanismo idôneo a alcançar finalidades públicas relevantes, especialmente o bem-estar das presentes e futuras gerações.
2. Licitações e desenvolvimento nacional sustentável
A licitação consiste no procedimento administrativo utilizado pela Administração Pública para realizar obras, serviços, compras e alienações. Trata-se de um mecanismo que promove a isonomia e a impessoalidade, uma vez que franqueou, em regra, ao maior número de interessados possível, em igualdade de condições, a sua participação, com a apresentação de propostas e lances perante o Poder Público.
De igual modo, o processo licitatório relaciona-se ao princípio da eficiência, na medida em que permite à Administração selecionar a proposta mais vantajosa e que melhor se adeque ao interesse público.
Por fim, a licitação tem como finalidade a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, conforme se depreende expressamente da redação da nova lei de licitações.
Nessa esteira, confirma-se a definição trazida por Rafael Oliveira (2019, p. 395):
Licitação é o processo administrativo utilizado pela Administração Pública e pelas demais pessoas indicadas pela lei, com o objetivo de garantir a isonomia, selecionar a melhor proposta e promover o desenvolvimento nacional sustentável, por meio de critérios objetivos e impessoais, para celebração de contratos.
O dever de licitar é mandamento constitucional e constitui a regra no ordenamento jurídico, de sorte que, apenas nas hipóteses previstas em lei, é possível a contratação direta, mediante dispensa ou inexigibilidade. Nesse contexto, assim dispõe a Constituição Federal de 1988:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
Em sede infraconstitucional, o procedimento licitatório tem regramento na Lei nº 14.133/21. A referida legislação veicula expressamente alguns princípios aplicáveis à licitação, o que denota a preocupação do legislador ordinário em trazer balizas vinculantes para nortear e conformar a atuação do administrador.
Além do planejamento, da segregação de funções, da competitividade e, entre outros, da proporcionalidade, a norma elencou o desenvolvimento nacional sustentável como princípio de observância obrigatória. Veja-se:
Art. 5º Na aplicação desta Lei, serão observados os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da eficiência, do interesse público, da probidade administrativa, da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da segregação de funções, da motivação, da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável, assim como as disposições do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).
Na mesma linha, a lei em apreço trouxe como objetivo fundamental da licitação o incentivo à inovação e ao desenvolvimento nacional sustentável, conforme se depreende a seguir:
Art. 11. O processo licitatório tem por objetivos:
I – assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto;
II – assegurar tratamento isonômico entre os licitantes, bem como a justa competição;
III – evitar contratações com sobrepreço ou com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento na execução dos contratos;
IV – incentivar a inovação e o desenvolvimento nacional sustentável.
Parágrafo único. A alta administração do órgão ou entidade é responsável pela governança das contratações e deve implementar processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos, com o intuito de alcançar os objetivos estabelecidos no caput deste artigo, promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações.
A origem e a expansão do conceito de desenvolvimento sustentável remontam ao ano de 1987, quando o Relatório Brundtland – Nosso Futuro Comum propôs um modelo de desenvolvimento que congregasse três aspectos fundamentais: o crescimento econômico, a conservação do meio ambiente e a justiça social.
Nesse panorama, o conceito de sustentabilidade estaria intimamente ligado à solidariedade ou equidade intergeracional, entendida como o desenvolvimento multifacetário que busca satisfazer as necessidades das gerações atuais, sem prejuízo do atendimento das necessidades das gerações futuras.
Sobre o tema, discorre Carlos Eduardo Lustosa da Costa (2011):
O conceito de desenvolvimento sustentável foi disseminado em 1987, por meio do documento intitulado ―Nosso Futuro Comum‖, também conhecido como Relatório Brundtland, que visava discutir um novo modelo de desenvolvimento que conciliasse o crescimento econômico com a justiça social e a preservação do meio ambiente. Esse documento foi elaborado pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas – ONU, e difunde uma nova visão da relação homem – meio ambiente, na qual o desenvolvimento sustentável foi definido como: O desenvolvimento que procura satisfazer as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades, significa possibilitar que as pessoas, agora e no futuro, atinjam um nível satisfatório de desenvolvimento social e econômico e de realização humana e cultural, fazendo, ao mesmo tempo, um uso razoável dos recursos da terra e preservando as espécies e os habitats naturais. (ONU, 1987)
É precisamente no presente contexto que se insere a função regulatória da licitação, que será objeto de análise no próximo tópico.
3. Função regulatória e sustentabilidade
Com efeito, a finalidade precípua da licitação é selecionar, dentre as propostas apresentadas pelos licitantes, aquela que ofereça maior vantajosidade para a Administração, considerando o princípio constitucional da eficiência e, em última análise, o interesse público.
Ocorre que a análise da proposta mais vantajosa não percorre, apenas, critérios econômicos. Ao revés, outros fatores também devem ser levados em consideração. Assim, a licitação não tem uma função meramente instrumental, não se exaurindo na contratação de certo bem ou serviço.
Para além disso, o processo licitatório possui um papel de fomento e incentivo a múltiplos valores consagrados constitucionalmente, resguardando e promovendo vários bens jurídicos relevantes, como o meio ambiente, a cultura e a isonomia material.
A função regulatória da licitação significa, dessa forma, o papel extraeconômico da licitação. Cuida-se do reconhecimento de que o procedimento licitatório é capaz de traçar critérios de escolha do vencedor pautados não apenas no menor preço e na maior qualidade do objeto licitado, mas que interfira positivamente, dentro de uma relação de custo benefício, nos segmentos social, cultural, institucional, ecológico, entre outros.
Acerca da temática em apreço, discorre Oliveira (2019, p. 402):
Trata-se da denominada “função regulatória da licitação”. Por esta teoria, o instituto da licitação não se presta, tão somente, para que a Administração realize a contratação de bens e serviços a um menor custo; o referido instituto tem espectro mais abrangente, servindo como instrumento para o atendimento de finalidades públicas, consagradas constitucionalmente.
Por conseguinte, verifica-se que o papel regulatório da licitação possui íntima relação com o conceito de sustentabilidade, na medida em que viabiliza o atingimento de objetivos constitucionais distribuídos em múltiplas facetas, à luz da ideia de equidade intergeracional.
Nessa toada, a doutrina pontifica que o conceito de desenvolvimento sustentável já não contempla apenas os pilares social, econômico e ambiental. Com efeito, as dimensões ética, jurídico-política, espacial e cultural também merecem ser incorporadas ao espectro de sustentabilidade.
A esse respeito, discorre Carlos Eduardo Lustosa da Costa (2011):
Importante destacar que, aos três pilares do desenvolvimento sustentável, alguns doutrinadores já adicionam sabiamente outros aspectos igualmente relevantes. Nessa linha, cita-se Freitas (2011) que sugere a inclusão da dimensão ética e da dimensão jurídico-política da sustentabilidade. Por sua vez, Sachs (2000) inclui a dimensão espacial e a dimensão cultural.
Na mesma esteira de entendimento é a lição de Freitas (2014), ao ponderar acerca do caráter multifacetário da sustentabilidade que norteia a intervenção humana:
As dimensões ética e jurídico-política reforçam a multidimensionalidade e transversalidade da sustentabilidade. Pela dimensão ética, o agir humano não é predatório, esvaindo-se a contraposição rígida entre sujeito e natureza e “o outro, em seu devido apreço, jamais pode ser coisificável, convertido em commodity”. (FREITAS, 2014, p. 64).
Especificamente no tocante à seara estatal, a sustentabilidade deve permear a atuação dos órgãos e entidades administrativas de forma a observar o uso consciente e responsável dos recursos públicos, a fim de que as necessidades da coletividade sejam satisfeitas tanto nas presentes gerações como nas futuras. Trata-se de conferir, em uma relação de custo-benefício, o máximo de bem-estar à sociedade, com sustentabilidade entre a proporção de suas demandas e a utilização dos recursos tendentes a atendê-las.
Nesse sentido, ainda sob a égide da Lei nº 8.666/93, foi introduzido expressamente o conceito de desenvolvimento nacional sustentável, prática que passou a ser de observância obrigatória pela Administração Pública por força de lei:
Em 2010, houve a inserção definitiva do conceito ―desenvolvimento nacional sustentável na administração pública, especificamente, na lei de licitações e contratos, obrigando a reformulação do processo licitatório a fim de que se atenda às leis e normas ambientais sem prejuízo dos demais normativos. Desse modo, a introdução de critérios de sustentabilidade nas compras públicas traz uma nova forma de planejar, executar e controlar as licitações, tornando-as ainda mais complexas. (LUSTOSA, 2011)
Nesse diapasão, vale assinalar que a Lei nº 14.133/21 apresenta uma série de dispositivos que sinalizam a escolha do legislador ordinário por um procedimento licitatório com finalidade ampla, indutor de comportamentos e resultados aptos a impactar de forma significativa o panorama econômico-social.
Um exemplo prático é a promoção das chamadas “licitações verdes”, cujo objetivo precípuo é a preservação do meio ambiente.
Essa intenção fica evidente quando a Nova Lei de Licitações fixa a obrigatoriedade de descrição, no estudo técnico preliminar, dos possíveis impactos ambientais e das medidas mitigadoras, além dos requisitos de baixo consumo de energia e de outros recursos, bem como logística reversa para desfazimento e reciclagem de bens e refugos. Veja-se:
Art. 18. A fase preparatória do processo licitatório é caracterizada pelo planejamento e deve compatibilizar-se com o plano de contratações anual de que trata o inciso VII do caput do art. 12 desta Lei, sempre que elaborado, e com as leis orçamentárias, bem como abordar todas as considerações técnicas, mercadológicas e de gestão que podem interferir na contratação, compreendidos:
I – a descrição da necessidade da contratação fundamentada em estudo técnico preliminar que caracterize o interesse público envolvido;
§ 1º O estudo técnico preliminar a que se refere o inciso I do caput deste artigo deverá evidenciar o problema a ser resolvido e a sua melhor solução, de modo a permitir a avaliação da viabilidade técnica e econômica da contratação, e conterá os seguintes elementos:
XII – descrição de possíveis impactos ambientais e respectivas medidas mitigadoras, incluídos requisitos de baixo consumo de energia e de outros recursos, bem como logística reversa para desfazimento e reciclagem de bens e refugos, quando aplicável; (grifamos)
Outra interessante previsão da norma em apreço consiste na possibilidade de o edital prever as responsabilidades do contratado pela obtenção de licenciamento ambiental, conforme se depreende do art. 25, § 5º, I.
Outrossim, destaca-se a prioridade de tramitação dos licenciamentos ambientais de obras e serviços de engenharia licitados e contratados nos termos da Lei nº 14.133/21, norteados pelos princípios da celeridade, da cooperação, da economicidade e da eficiência – art. 25, § 6º, como prevê o art. 25, § 6º.
Ainda no tocante à promoção da defesa do meio ambiente, vale ressaltar a disposição contida no art. 45 do referido diploma normativo. De acordo com o artigo, as licitações de obras e serviços de engenharia devem respeitar as normas especialmente relativas a: i) disposição final ambientalmente adequada dos resíduos sólidos gerados pelas obras contratadas; ii) mitigação por condicionantes e compensação ambiental, que serão definidas no procedimento de licenciamento ambiental; e iii) utilização de produtos, de equipamentos e de serviços que, comprovadamente, favoreçam a redução do consumo de energia e de recursos naturais.
Por fim, cumpre registrar a possibilidade de estabelecimento de margem de preferência para bens reciclados, recicláveis ou biodegradáveis, conforme regulamento, de acordo com a previsão do art. 26, I e II.
É interessante notar que o papel regulatório da licitação também alcança o fomento à participação dos interessados por meio de audiências e consultas públicas, o que evidencia a abertura dialógica da Administração às sugestões e informações porventura apresentadas:
Art. 21. A Administração poderá convocar, com antecedência mínima de 8 (oito) dias úteis, audiência pública, presencial ou a distância, na forma eletrônica, sobre licitação que pretenda realizar, com disponibilização prévia de informações pertinentes, inclusive de estudo técnico preliminar e elementos do edital de licitação, e com possibilidade de manifestação de todos os interessados.
Parágrafo único. A Administração também poderá submeter a licitação a prévia consulta pública, mediante a disponibilização de seus elementos a todos os interessados, que poderão formular sugestões no prazo fixado.
Sob o enfoque da inclusão social, existe a possibilidade de o edital exigir, na forma prevista em regulamento, que percentual da mão de obra responsável pela execução do objeto seja constituído por mulheres vítimas de violência doméstica e oriundos ou egressos do sistema prisional (art. 25, § 9º).
Na mesma linha, à luz dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, o legislador demonstrou preocupação com a inclusão social das pessoas com deficiência. Assim, elencou como motivo para a extinção do contrato o não cumprimento das obrigações relativas à reserva de cargos prevista em lei, bem como em outras normas específicas, para pessoa com deficiência, para reabilitado da Previdência Social ou para aprendiz (art. 137, IX).
Já no tocante à promoção do patrimônio cultural, vale trazer à baila o tratamento conferido pela Constituição, ao resguardar bens materiais e imateriais que contenham referências históricas, artísticas, arqueológicas e paisagísticas:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
Em consonância com o objetivo constitucional, a Nova Lei de Licitações dispõe, em seu art. 45, V, que as licitações de obras e serviços de engenharia devem respeitar, especialmente, as normas relativas à proteção do patrimônio histórico, cultural, arqueológico e imaterial, inclusive por meio da avaliação do impacto direto ou indireto causado pelas obras contratadas.
A função regulatória da licitação também se relaciona com o fomento ao desenvolvimento e à inovação tecnológica. Nesse sentido, existe a possibilidade de adoção de um procedimento auxiliar denominado procedimento de manifestação de interesse. Por meio desse mecanismo, o Poder Público publica edital de chamamento público a fim de colher soluções tecnológicas inovadoras, com a apresentação, pelos interessados, de projetos, estudos e investigações, visando ao atendimento de questões de relevância pública.
Interessante previsão é a que faculta a restrição de participação às startups, com o nítido intuito de estimular o crescimento de microempresas e empresas de pequeno porte com grande potencial de apresentação e desenvolvimento de propostas inovadoras de alto impacto, in verbis:
Art. 81. A Administração poderá solicitar à iniciativa privada, mediante procedimento aberto de manifestação de interesse a ser iniciado com a publicação de edital de chamamento público, a propositura e a realização de estudos, investigações, levantamentos e projetos de soluções inovadoras que contribuam com questões de relevância pública, na forma de regulamento.
(…)
§ 4º O procedimento previsto no caput deste artigo poderá ser restrito a startups, assim considerados os microempreendedores individuais, as microempresas e as empresas de pequeno porte, de natureza emergente e com grande potencial, que se dediquem à pesquisa, ao desenvolvimento e à implementação de novos produtos ou serviços baseados em soluções tecnológicas inovadoras que possam causar alto impacto, exigida, na seleção definitiva da inovação, validação prévia fundamentada em métricas objetivas, de modo a demonstrar o atendimento das necessidades da Administração.
Nessa esteira, a lei em comento atende ao mandamento constitucional de que os entes federados devem conferir tratamento diferenciado às microempresas e às empresas de pequeno porte, enquanto princípio norteador da ordem econômica, conforme se depreende do art. 179 da Constituição Federal:
Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.
Outra disposição normativa que denota compatibilidade com o objetivo perseguido pela Constituição é o art. 4º da Lei nº 14.133/21, especificamente a previsão de que as normas gerais relativas ao tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte aplicam-se às licitações e contratos por ela regulados.
Art. 4º Aplicam-se às licitações e contratos disciplinados por esta Lei as disposições constantes dos arts. 42 a 49 da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006.
§ 1º As disposições a que se refere o caput deste artigo não são aplicadas:
I – no caso de licitação para aquisição de bens ou contratação de serviços em geral, ao item cujo valor estimado for superior à receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte;
II – no caso de contratação de obras e serviços de engenharia, às licitações cujo valor estimado for superior à receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte.
§ 2º A obtenção de benefícios a que se refere o caput deste artigo fica limitada às microempresas e às empresas de pequeno porte que, no ano-calendário de realização da licitação, ainda não tenham celebrado contratos com a Administração Pública cujos valores somados extrapolam a receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte, devendo o órgão ou entidade exigir do licitante declaração de observância desse limite na licitação.
§ 3º Nas contratações com prazo de vigência superior a 1 (um) ano, será considerado o valor anual do contrato na aplicação dos limites previstos nos §§ 1º e 2º deste artigo.
Um ato normativo infralegal que bem elucida a obrigatoriedade adoção de práticas sustentáveis no âmbito da Administração é o Decreto 7.746/2012, editado com o fim de regulamentar o art. 3º da Lei nº 8.666/93.
Cuida-se de relevante instrumento legal que norteia a atuação das entidades administrativas na realização de licitações e celebração de contratos administrativos:
Art. 1º Este Decreto regulamenta o art. 3º da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, para estabelecer critérios e práticas para a promoção do desenvolvimento nacional sustentável por meio das contratações realizadas pela administração pública federal direta, autárquica e fundacional e pelas empresas estatais dependentes, e institui a Comissão Interministerial de Sustentabilidade na Administração Pública – CISAP. (Redação dada pelo Decreto nº 9.178, de 2017)
Art. 2º Na aquisição de bens e na contratação de serviços e obras, a administração pública federal direta, autárquica e fundacional e as empresas estatais dependentes adotarão critérios e práticas sustentáveis nos instrumentos convocatórios, observado o disposto neste Decreto.
Art. 3º Os critérios e as práticas de sustentabilidade de que trata o art. 2º serão publicados como especificação técnica do objeto, obrigação da contratada ou requisito previsto em lei especial, de acordo com o disposto no inciso IV do caput do art. 30 da Lei nº 8.666, de 1993.
Vale observar que o decreto em apreço promove valores constitucionais importantes, como a proteção de recursos naturais, o uso de tecnologia produzida no Brasil e a busca do pleno emprego.
Art. 4º Para os fins do disposto no art. 2º, são considerados critérios e práticas sustentáveis, entre outras: (Redação dada pelo Decreto nº 9.178, de 2017)
I – baixo impacto sobre recursos naturais como flora, fauna, ar, solo e água; (Redação dada pelo Decreto nº 9.178, de 2017)
II – preferência para materiais, tecnologias e matérias-primas de origem local; III – maior eficiência na utilização de recursos naturais como água e energia;
IV – maior geração de empregos, preferencialmente com mão de obra local; V – maior vida útil e menor custo de manutenção do bem e da obra;
VI – uso de inovações que reduzam a pressão sobre recursos naturais; (Redação dada pelo Decreto nº 9.178, de 2017)
VII – origem sustentável dos recursos naturais utilizados nos bens, nos serviços e nas obras; e (Redação dada pelo Decreto nº 9.178, de 2017)
VIII – utilização de produtos florestais madeireiros e não madeireiros originários de manejo florestal sustentável ou de reflorestamento. (Incluído pelo Decreto nº 9.178, de 2017)
Art. 5º A administração pública federal direta, autárquica e fundacional e as empresas estatais dependentes poderão exigir no 23 instrumento convocatório para a aquisição de bens que estes sejam constituídos por material renovável, reciclado, atóxico ou biodegradável, entre outros critérios de sustentabilidade.
Vê-se que o ordenamento jurídico brasileiro tem acolhido os apontamentos da doutrina e albergado, mesmo antes do advento da Nova Lei de Licitações, critérios e tendências aptas a efetivar o papel regulatório das contratações públicas, considerando a análise inarredável do seu potencial de modificação social, ecológica, política, ética e cultural, bem como a ideia de sustentabilidade nas suas múltiplas dimensões.
Diante do exposto, tem-se que as licitações sustentáveis são “aquelas que, com isonomia, visam a seleção de proposta mais vantajosa para Administração Pública, ponderados com a máxima objetividade possível, os custos e benefícios, diretos e indiretos, sociais, econômicos e ambientais” (FREITAS, 2016, p. 268-269).
Portanto, é de se observar que a finalidade da licitação vai além da seleção da melhor proposta baseada em critérios econômico-financeiros. Mais do que a vantajosidade em termos de preço e especificações técnicas do objeto contratado, a licitação tem como objetivo o fomento e a promoção de valores constitucionalmente consagrados, como o meio ambiente, a inclusão social, o patrimônio histórico-cultural, a redução das desigualdades sociais e regionais, e desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os avanços da sociedade contemporânea e a complexidade a ela inerente têm exigido do homem a reunião de esforços em prol do bem comum. Em vez de soluções herméticas e pontuais, a preocupação com a estabilidade e a perenidade dos recursos – como projeção para o futuro – tem demandado a adoção de providências que considerem a sustentabilidade em seus mais diversos níveis, no intuito maior de assegurar qualidade de vida, também, para as gerações que estão por vir.
Como não poderia ser diferente, a mesma celeuma foi instaurada no setor público, o que exige dos agentes estatais o planejamento e a execução de medidas consentâneas com a nova realidade. Tais providências devem buscar solucionar ou atenuar, no desempenho da função pública, problemas como o mau uso dos recursos naturais, a disposição imprópria de resíduos sólidos, a exclusão de grupos minoritários, a falta de acessibilidade em prédios públicos e a assimetria social e regional.
A necessidade de resguardar a solidariedade intergeracional, e a consciência coletiva em prol do bem-estar comum, incutiu no administrador público a especial preocupação em promover, sempre que possível, o desenvolvimento sustentável no exercício de suas funções.
Nessa esteira, as licitações públicas, instrumento corriqueiramente utilizado pelos órgãos e entidades administrativas por imposição constitucional, têm sido concebidas não mais como um simples meio de obter bens e serviços para o Poder Público, mas como um instituto dotado de função regulatória com potencial efeito modificador da realidade fática.
Assim é que as licitações sustentáveis – em seu mais amplo espectro – têm ganhado espaço não só na literatura jurídica, como também no direito positivo, notadamente a lei geral sobre licitações e contratos.
Sem descuidar da análise minuciosa dos critérios tradicionais das propostas dos licitantes – em atenção ao princípio da eficiência –, como a regularidade fiscal, o preço orçado e a quantidade contratada, as licitações sustentáveis não exoneram o gestor de observar os requisitos legais de habilitação e de julgamento das propostas.
Pelo contrário, a atribuição da função regulatória da licitação, além de conviver harmonicamente com a legalidade e a racionalidade econômica, servem de reforço à adoção de práticas que tragam o maior custo-benefício possível para toda a coletividade, por meio de adoção de práticas que fomentem e promovam valores constitucionalmente tutelados, atendendo à sustentabilidade em seus mais variados níveis.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2021.
BRASIL. Decreto nº 7.746, de 5 de junho de 2012. Regulamenta o art. 3º da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, para estabelecer critérios e práticas para a promoção do desenvolvimento nacional sustentável nas contratações realizadas pela administração pública federal direta, autárquica e fundacional e pelas empresas estatais dependentes, e institui a Comissão Interministerial de Sustentabilidade na Administração Pública – CISAP. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2012.
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FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
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