CONSTITUCIONALISMO E NEOCONSTITUCIONALISMO: EFEITOS DESTE E TEORIA DA SEPARAÇÃO DOS PODERES

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7709367


Allysson Cristiano Rodrigues da Silva1


Resumo

Este artigo versa sobre o Constitucionalismo e o Neoconstitucionalismo, explicitando suas características. O Constitucionalismo caracteriza-se, sobretudo, pela manifestação do poder pelo Estado, embora limitada quanto aos direitos fundamentais, considerados de forma absoluta. Já o denominado Neoconstitucionalismo, ao defender a interpretação jurídica da Constituição em todas as situações, interfere na separação tripartite do poder, pois prega a difusão da esfera de atuação do Judiciário, atribuindo-lhe a função atípica de examinar o controle de constitucionalidade dos órgãos do Legislativo e do Executivo. O problema é definir se a mudança de atuação do Judiciário brasileiro prejudica a consecução da Teoria da Tripartição dos Poderes e, se o faz, em que medida.

Palavras-chave: Constitucionalismo; Neoconstitucionalismo; características; efeitos; Teoria da Separação dos Poderes.

Abstract

This article focuses on the Constitutionalism and the new Constitutionalism, explaining their characteristics. The Constitutionalism is characterized mainly by the demonstration of power by the State, although limited with regard to fundamental rights, considered absolutely. The so called new Constitutionalism, to defend the legal interpretation of the Constitution in all situations, interfers with the tripartite separation of power, because it preaches the expansion of the sphere of action of the judiciary, with the atypical function to examine the constitutionality control of legislative and executive bodies. The problem is to define if the change of role of the Brazilian Judiciary undermines the achievement of the Theory of Separation of Powers and, if it does, to what extent.

Key words: Constitutionalism; Newconstitucionalism; features; effects; Theory of Separation of Powers.

INTRODUÇÃO

“Há em todo governo três partes nas quais o legislador sábio deve consultar o interesse e a conveniência particulares. Quando elas são bem constituídas, o governo é forçosamente bom, e as diferenças existentes entre essas partes constituem os vários governos.” Aristóteles, A Política.

A Teoria da Separação dos Poderes, um dos constituintes do Estado de Direito, representa mecanismo fundamental, para facultar o exercício moderado do poder, bem como impedir posturas totalitárias.

Cada Poder engloba funções a ele conferidas constitucionalmente, visando assegurar o melhor desempenho das instituições governamentais. Compete à função legislativa construir o Direito, mediante a elaboração e a promulgação de leis, ao passo que à executiva cabe executá-las e à judicial zelar, para que as leis sejam cumpridas e respeitadas.

Nessa linha de pensamento, para se falar em Constitucionalismo e Neoconstitucionalismo, é necessário esclarecer o que significa o Estado Democrático de Direito, fundado, sobretudo, na separação harmoniosa dos Poderes.

O termo Estado Democrático de Direito conduz à ampla observância a diversos padrões de comportamento, sejam omissivos, sejam comissivos. Então, referir-se a esse Estado significa pregar a participação popular na manifestação do poder político e a respectiva obediência às normas dela provenientes. O Estado Democrático de Direito possibilita integrar os órgãos do poder, almejando propiciar progresso social e asseverar existência digna, focada no bem-comum.

Esse Estado expande o sentido do Estado de Direito, pois corresponde a uma noção de Estado baseada no princípio da dignidade humana, que pretende assegurar tanto as garantias fundamentais, como outros direitos tais qual o de propriedade. Nesse sistema, estão expostos os preceitos de atuação do moderno Estado ocidental. O Estado Democrático de Direito pressupõe a fixação de regras que embasarão as eleições; os indivíduos eleitos exercem funções indelegáveis e inerentes ao Estado.

Nesse tipo de Estado, existe respeito às liberdades civis, instituição de proteção jurídica, acatamento aos direitos humanos e às garantias fundamentais. Nele, as autoridades políticas também se subordinam às regras de Direito.

Nos regimes democráticos, a sociedade elege seus representantes, que devem defender as demandas e as necessidades daquela. A delegação do poder não é, entretanto, absoluta, pois está sujeita à submissão aos preceitos constitucionais, que determinam, dentre outros temas, quais são os direitos humanos basilares. Nesse sentido, o Direito Constitucional e as Constituições consistem no âmbito no qual se edifica a convivência da coletividade, se reconhecem os princípios fundamentais e os valores comuns a determinado povo e o Estado Democrático de Direito se concretiza.

Em tal perspectiva, ganharam força as teses constitucionalistas e em seguida, com a evolução das sociedades e dos Estados democráticos, as teorias neoconstitucionalistas.

A questão que se coloca neste trabalho é indagar se as alterações provindas da tese neoconstitucionalistas afetam os dogmas da Teoria da Separação dos Poderes, em que medida. O objetivo principal é definir quais os efeitos na Teoria. Os objetivos secundários são caracterizar o Constitucionalismo e o Neoconstitucionalismo, conceituar ambos os termos e estabelecer os efeitos e a Teoria de Montesquieu.

O tema é relevante, pois as mudanças existentes no modelo atual de separação de poderes são objeto de estudo e polêmicas no ambiente jurídico. O Poder Judiciário tem desempenhado papel cada vez mais expressivo, recorrendo ao ativismo judicial, o que contraria o preceito da independência entre os Poderes.

1 Constitucionalismo

O Constitucionalismo não é tema novo, pois remonta a séculos passados. Caracteriza-se notadamente pela manifestação de poder pelo Estado, mesmo limitada, quanto aos direitos fundamentais, entendidos de modo absoluto. Em tal perspectiva, os chamados direitos fundamentais possuem mais destaque e mais importância que o próprio poder em qualquer de suas manifestações.

Pode-se asseverar que o desenvolvimento do Constitucionalismo envolve duas etapas: o antigo (governo dos homens) e o moderno (governo das leis).

O Constitucionalismo expressa-se em ocasiões diversas: na primeira, há reconhecimento dos alicerces do Direito Constitucional e do movimento político-social; na segunda, a relação do Direito Constitucional com a produção das Constituições escritas.

Canotilho conceitua Constitucionalismo como “[…] a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos e dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade. […] É, no fundo, uma teoria normativa da política, tal como a teoria da democracia ou a teoria do liberalismo” (CANOTILHO, 1999, p. 47). Ele prossegue, asseverando que o Constitucionalismo é similar ao Liberalismo, na medida em que se relaciona a um governo de normas e não de homens.

O jurista acrescenta que o Constitucionalismo moderno limita o poder com propósitos (CANOTILHO, 1999).

O mesmo autor (CANOTILHO, 1999, p. 51) afirma que

[…] em termos rigorosos, não há um único constitucionalismo, mas vários constitucionalismos, como o americano, francês, brasileiro, português etc. Cada um desses países teve seus movimentos constitucionais próprios, diacrônicos, em espaços geográficos distintos e sob a influência de diferentes culturas. Os diversos constitucionalismos podem ser mais bem denominados de movimentos constitucionais. Isso não quer dizer que não haja um intercâmbio cultural entre os países, que concepções consagradas em um não venham a influenciar outro; de fato, apesar de cada movimento constitucional ser próprio e autônomo, ao mesmo tempo sofre a injunção das forças políticas nacionais e internacionais, conquanto a nação preserve a sua soberania.

Dessa maneira, constata-se que a manifestação dos preceitos constitucionalistas acontece de modo diferenciado em cada país, visto que o momento histórico, as necessidades e os ideais da população tornam peculiar a forma como as leis são elaboradas, as condutas definidas. Exemplo disso é a Inglaterra, que não possui Constituição escrita; o entendimento era que o sistema vigente não precisava ser modificado.

Consoante as ideias de Celso Ribeiro Bastos, o Constitucionalismo é “[…] o movimento de valorização da judicialização do poder, com a finalidade de dividi-lo, organizá-lo e discipliná-lo, bem como da elevação de tal norma a condição de legislação suprema do Estado” (BASTOS, 1999, p. 49).

Na percepção de Dworkin (1989-1990), por sua vez, a noção constitucional de democracia inclui o respeito do governo majoritário aos condicionantes democráticos, com igualdade de condições para todos os cidadãos.

É viável deduzir dessas linhas de raciocínio que tal sistema se refere aos variados temas sociais, como a política e a economia. Nesse sentido, a ideologia não pode ser julgada somente como mecanismo que permite a limitação do poder e a proteção efetiva aos direitos individuais. O propósito consiste em definir normas que regulem o comportamento social, visando alcançar o bem comum, sem distinções, respeitando a diversidade e as necessidades individuais e coletivas.

Conclui-se que o termo possibilita diversas interpretações, deduções, sobretudo porque se manifesta em cada país de modo distinto, diferenciado; está sempre, porém, atrelado à garantia dos direitos fundamentais do ser humano e à elaboração das Constituições, sobretudo das escritas. A produção e a aprovação dessas Cartas Magnas almejam fixar limites para o exercício do poder político pelos governantes, fortalecendo os direitos subjetivos do homem e incluindo-os em regras objetivas, com força política e redução da possível arbitrariedade do legislador ordinário. Assim, constitui evolução histórica e constitucional dos Estados, que elegeram a Constituição a norma máxima da sociedade, principal e essencial regra jurídica.

Os direitos fundamentais se mesclam, inicialmente, com as prerrogativas liberais advindas de ideais ingleses, franceses e americanos. A delineação desses direitos ocorre por intermédio da proteção ao indivíduo; por isso, as primeiras Constituições escritas focavam no individualismo. Apenas as Cartas Magnas que versam sobre o Estado de Bem-Estar Social introduziram a o conceito de proteção a direitos socioeconômicos e político-culturais como necessária para os cidadãos que não têm assegurados nem direitos básicos.

Embora os preceitos constitucionais delineassem a proteção aos direitos fundamentais e garantissem o bem comum, o aprimoramento dos textos constitucionais e a evolução do homem estimularam a expansão desses; para tanto, foram estabelecidas gerações de direitos fundamentais, divididos em cinco dimensões, elaborados por Karel Cazak em 1979 e propagados por Norberto Bobbio (1992).

Na primeira dimensão, estão inclusos os civis e os políticos – direito à vida, à liberdade, à participação política, à liberdade de expressão, à propriedade. São entendidos como Direitos Negativos ou de Liberdade, uma vez que restringem a atuação estatal na liberdade individual. Foram os primeiros a constarem das Constituições. Com a industrialização, o surgimento de teorias socialistas e as dificuldades socioeconômicas que conviveram com esse evento, houve a necessidade de se estabelecerem novas garantias para os indivíduos. Estavam sedimentados os direitos de segunda geração: econômicos, sociais e culturais. Diferentemente dos de primeira dimensão, os de segunda são positivos, ou seja, o Estado é compelido a atuar, para assegurar a concretização de tais prerrogativas, bem como a justiça social. Neles estão incorporados os direitos à saúde, à educação, ao trabalho, à moradia, ao lazer (BOBBIO, 1992).

No século XX, foram firmados os direitos denominados de terceira dimensão, ou geração. O intuito dessas prerrogativas é amparar todo homem e toda sociedade. Os direitos de fraternidade ou solidariedade são comuns e difusos e extrapolam a titularidade coletiva. Nesse rol de garantias se incluem o direito à qualidade de vida, à comunicação, à paz, ao meio ambiente, à conservação dos patrimônios cultural e histórico de cada nação, à autodeterminação dos povos. Essas prerrogativas focam no bem-estar da coletividade, dos países, dos agrupamentos sociais, embora em alguns Estados não estejam incluídos no texto constitucional. Ocorre desse modo a internalização dos direitos, ultrapassando a fronteira das nações (BOBBIO, 1992).

Atualmente se fala igualmente em direitos de quarta e quinta dimensões, embora não haja consenso acerca de como classificá-los ou se realmente existem. Uma corrente defende que o avanço tecnológico pode de alguma forma ameaçar a dignidade do ser humano. Por isso, é necessário criar novas garantias para o indivíduo. Para essa doutrina, a clonagem, o uso de transgênicos, a manipulação genética exigem a delimitação de direitos, a fim de assegurar o bem-estar do homem, o que representaria a produção dos direitos de quarta dimensão. Ainda não são reconhecidos, já que a tese não foi encampada por muitos doutrinadores.

Outra corrente relaciona tais prerrogativas ao pluralismo e à democracia, sobretudo com relação às minorias, as quais muitas vezes não conseguem acessar os outros direitos, ainda que tenham elegido seus representantes com a missão de defender os interesses e as necessidades desse grupo. Para os defensores da ideia, sem a proteção aos direitos fundamentais para todos, existiria a democracia formal, mas não a material.

O pluralismo, ou político, artístico, religioso, cultural, ou ideológico, também está contemplado nos direitos de quarta dimensão e provém principalmente da globalização. Essa garantia concerne ao direito à diversidade, ao direito das minorias, seja em que matéria for. O respeito a toda e qualquer forma de manifestação e distinção precisa ser protegido, assegurado.

Como o consenso acerca dos direitos de quarta geração está longe de ser alcançado, não há por que se cogitar em definir direitos de quinta. Mas já existem ponderações sobre essa nova dimensão de garantias, identificadas como transnacionais. O direito à paz mundial seria então de quinta dimensão e se concretizaria por meio da cooperação entre Estados. Com a globalização, os Estados continuariam a manter sua soberania, diminuída, porém, em razão da nova ordem internacional. Nesse contexto, o Direito Internacional afetaria o Direito Interno, justamente pela internacionalização do Direito. Em outras palavras, sucederia a cosmopolitização, a constitucionalização do Direito Internacional. O tema é polêmico e demanda ainda muitos debates pelos teóricos, pelos organismos internacionais e pelos governantes.

Ainda que tais prerrogativas fossem defendidas pelos constitucionalistas e estivessem inseridas na maioria das Constituições, as quais igualavam deveres e direitos dos cidadãos e dos governantes, a tão apregoada igualdade inexistia na prática, materialmente, porque os cidadãos eram desiguais e tratados distintamente, caso se considerassem questões de gênero, classe econômico-social, dentre outras diferenças. Mesmo assim, as Constituições mantêm força como ideal e são julgadas como o melhor meio de assegurar e manter o bem-estar social.

Em tal conjuntura, as Constituições elaboradas por um Estado Constitucional devem dispor sobre quais meios materiais são essenciais, para se obter a total concretização dos direitos fundamentais. Com esse propósito, as garantias políticas se tornam protagonistas nesse Estado, porque conferem instrumentos que facilitam o exercício da cidadania plena e capacitam os cidadãos, a fim de que sejam os agentes da realização do Direito, marcadamente pela participação na escolha dos representantes os quais responderão pela execução das leis, pela elaboração delas e pela fiscalização de seu adequado cumprimento.

Em sentido moderno, a Constituição pode ser julgada como a conformação de um pacto firmado pelos cidadãos na qual estão fixadas ideias concernentes ao delineamento de uma estrutura social que, mediante a divisão dos Poderes, possa afiançar a realização dos direitos fundamentais da pessoa.

Constata-se então que todas as teses voltadas ao Constitucionalismo se apoiam na elaboração de Constituições com o intuito de limitar o poder estatal e garantir o bem-estar social, protegendo tanto os direitos individuais como os coletivos.

Nem todos, contudo, entendem ser o Constitucionalismo um sistema somente com virtudes e qualidades. De acordo com Elster (1993), as Constituições regulam a vida política e se autorregulam também, por meio de estatutos, declarações que regem a máquina pública, como também fixam normas que os suspendam temporariamente.

Tais mecanismos operam mediante dois níveis de pré-compromisso – no primeiro, as Cartas Magnas determinam o funcionamento da estrutura governamental, aspirando promover a eficiência, sobrepujar a fragilidade temporal e equilibrar a subjetividade, a paixão; no segundo, as emendas atuam nos próprios problemas, embora lentas e complexas, a fim de assegurar o primeiro nível, ainda que as alterações na Constituição indiquem ausência de pré-compromisso, já que podem ocorrer a qualquer tempo (ELSTER, 1993).

A partir de tal linha de pensamento, questiona-se o atributo da eficiência, que está conectada tanto à democracia quanto ao Constitucionalismo. A eficácia e a eficiência só podem estar presentes se houver equilíbrio entre a participação popular nos rumos da nação e os limites impostos pelo texto constitucional. Houve, entretanto, modificações a respeito do entendimento das funções do Estado, da efetividade das normas, do papel de cada Poder. Em muitos sentidos, o texto constitucional era inoperante e falhava na missão de propiciar a igualdade e condições dignas de vida a todos; com isso, os direitos fundamentais passaram a ser entendidos e vistos como promessas estatais, letras mortas, utopias.

Estava sedimentado o caminho rumo ao desenvolvimento do Neoconstitucionalismo.

2 Neoconstitucionalismo

O denominado Neoconstitucionalismo, ou Constitucionalismo Pós-Moderno, eclodiu na Europa, após a Segunda Guerra Mundial, quando se verificou que, embora com falhas, problemas e em crise, o robustecimento da Democracia, da Constituição e dos ideais constitucionalistas, mediante o Constitucionalismo democrático, ainda simbolizava o melhor meio de proteger os direitos fundamentais do homem.

O Neoconstitucionalismo pode ser caracterizado como nova interpretação constitucional – a exegese do texto constitucional recorre a componentes normativos, como preceitos e cláusulas gerais, e utiliza métodos para apreciar direitos e interesses; afastamento da teoria de que o sistema jurídico é composto por normas concretas; aumento da jurisdição constitucional – com a Segunda Guerra Mundial, cortes constitucionais foram criadas em diversos países europeus; aceitação da força normativa da Constituiçãodepois do pós-Guerra, o documento passou a ser entendido como documento essencialmente político, sem vigor jurídico. Em tal conjuntura, o Judiciário não atuava apenas como guardião da Constituição.

No Neoconstitucionalismo a dignidade do ser humano orienta a intepretação das premissas constitucionais. A honradez humana se torna a protagonista de todo o arcabouço jurídico. Desse modo, pelo Neoconstitucionalismo, a dignidade do homem é a inspiração, a origem do ordenamento jurídico; as leis são concebidas por meio de normas e princípios e a Constituição é elevada à condição de orientadora dos preceitos infraconstitucionais, os quais têm de àquela estar subordinados.

Pode-se afirmar então que o Neoconstitucionalismo representa outra forma de interpretar os direitos infraconstitucionais, os quais precisam ser examinados e utilizados com base na previsão constitucional:

Sob tal prisma, a atuação do Judiciário extrapola a função de proteger os preceitos constitucionais e julgar atos que os firam. Há liames entre Direito e política, para elucidar o novo papel do Poder Judiciário:

Direito é política, proclamava ceticamente a teoria crítica do Direito, denunciando a superestrutura jurídica como uma instância de poder e dominação. Apesar do refluxo das concepções marxistas na quadra atual, é fora de dúvida que já não subsiste no mundo contemporâneo a crença na idéia liberal positivista de objetividade plena do ordenamento e de neutralidade absoluta do intérprete. Direito não é política. Somente uma visão distorcida do mundo e das instituições faria uma equiparação dessa natureza, submetendo a noção do que é correto e justo à vontade de quem detém o poder. Em uma cultura pós-positivista, o Direito se aproxima da Ética, tornando-se instrumento da legitimidade, da justiça e da realização da dignidade da pessoa humana. Poucas críticas são mais desqualificantes para uma decisão judicial do que a acusação de que é política e não jurídica. Não é possível ignorar, porém, que a linha divisória entre Direito e Política, que existe inegavelmente, nem sempre é nítida e certamente não é fixa. (BARROSO)

O Constitucionalismo Pós-Moderno (ou Neoconstitucionalismo), com a nova forma de perceber a conexão entre a Constituição e o Direito, inaugurou outra fase na elaboração das Cartas Magnas e outra esfera de atuação do Judiciário. Além das Constituições contemporâneas delegarem funções típicas e atípicas aos Poderes constituídos, o Executivo e o Judiciário vêm congregando cada vez mais atribuições às competências originais.

O Judiciário passou a conviver com a constitucionalização do Direito, com transformações sentidas em diversas áreas jurídicas. Controle judicial das políticas públicas, influência na soberania constitucional, atuação no âmbito penal, controle da eficiência dos atos administrativos, solução de demandas referentes ao Direito Civil-Constitucional são alguns dos exemplos de novas práticas realizadas sob o manto dos preceitos neoconstitucionais. O fato demonstra que as teses de Direito mais conservadoras não conseguem lidar com a complexidade jurídica decorrente da evolução jurídico-política da sociedade.

Estas são algumas mudanças oriundas das teorias neoconstitucionais: a sociedade passa a ser considerada homogênea e plural; a moral, entendida como construtivista, com padrões racionais e práticos, orientadores do discurso jurídico, o que rompe a ordem já firmada; a política se transforma do Estado de Direito para o Estado Constitucional (ênfase na atuação do Tribunal Constitucional). Além disso, as fontes do Direito estão atreladas à Constituição e à jurisprudência originada do Tribunal Constitucional; a Teoria da Norma confere excelência aos preceitos emanados das regras políticas e aos conceitos jurídico-processuais; a Teoria da Interpretação considera a metodologia constitucional apurada, definindo valores e conceitos e constitucional a interpretação jurídica; a Teoria do Direito reflete o Neoconstitucionalismo.

A alteração na constitucionalização do Direito ocorre mediante o entendimento de que todo preceito constitucional, independentemente do conteúdo e da conformação, é regra genuína, vinculante e suscetível de causar efeitos jurídicos (SANTOS, 2003). Desse modo, desponta um padrão que considera as Constituições textos abertos, indeterminados. Logo, toda Carta Magna, em função de suas peculiaridades, está submetida a dois moldes de interpretação: um literal ou restrito e outro extensivo. Por um lado, caso o padrão restrito seja o escolhido, a Constituição normatiza somente limitada fração da vida político-social, com espaço sem regras, vazio, a fim de que o legislador possa completá-lo com liberdade. Não existe interferência judicial atinente à arbitrariedade política do legislador.

Por outro, na hipótese de se decidir pela interpretação extensiva, o método interpretativo propiciará incontáveis regras tácitas aptas a regulamentar todas as circunstâncias afetas à vida sociopolítica. Em tal vertente, inexistem espaços vazios – todas as leis estão sujeitas a outro preceito de Direito Constitucional, sem discricionariedade legislativa. A legalidade constitucional deixa de ser exclusivamente política e se inscreve na seara jurídica.

O Neoconstitucionalismo defende que a função da Constituição é regular as relações sociais. Para tanto, abarca metodologia segundo a qual princípios gerais e normas programáticas podem ser aplicados por qualquer juiz diante de polêmicas. A teoria presume que as normas facultam mais de um sentido, já que há uma conceituação prévia à interpretação. Todo documento legislativo pode suscitar mais de uma regra, possibilitando também mais de uma interpretação – concreta (considera a situação fática) e abstrata (prende-se apenas ao texto normativo).

Outra premissa é que as normas constitucionais devem ser aplicadas entre particulares no mínimo quando a legislação infraconstitucional for inapta para elucidar o litígio. A teoria que impõe a interpretação conforme as leis é outra manifestação do novo modelo de Constitucionalismo.

Então, se julgado como filosofia política, o Neoconstitucionalismo redesenha os constituintes de um Estado com contornos cosmopolitas, identificando a influência das determinações constitucionais na sociedade, marcadamente no que respeita à representatividade, à participação social, ao patriotismo.

Já se compreendido como teoria do Direito, pode ser identificado como modelo o qual revê a teoria da norma, a da interpretação, a das fontes; cobre as mudanças práticas e teóricas das diferentes domínios jurídicos, sobrepujando o Positivismo. “A teoria de interpretação constitucional e as técnicas de controle de constitucionalidade misturam-se no exercício da jurisdição constitucional, sobretudo, na tarefa de julgar a constitucionalidade de uma lei, e na tarefa interpretativa acerca dos direitos fundamentais” (PRIETO, 1999, p. 37).

Dessa forma, esse dogma alarga a jurisdição constitucional, impelindo à necessidade de se rever o entendimento das repercussões sobre a hegemonia da Constituição, a premissa da separação dos Poderes, como também o alcance do Direito fundamental na tutela jurisdicional.

A tripartição dos Poderes só tem razão de ser, desde que aja como mecanismo de garantia dos direitos fundamentais e não possa ser utilizada na condição de se opor a tal proteção. Com as novas dimensões dos direitos fundamentais, expandido seu sentido, foi imprescindível haver cooperação entre os Poderes do Estado, principalmente quanto à objetividade do texto constitucional. Em tal processo, o Judiciário não pode se furtar à atribuição de proporcionar a concretização dessas prerrogativas, mesmo que possam surgir conflitos e divergência de opiniões.

O Estado Liberal visava reduzir a força do Judiciário em relação aos demais Poderes, recorrendo, sobretudo, às ideias da separação dos Poderes. Assim, o Legislativo protagonizava a atuação política, intentando afastar a Política do Direito, apoiado no princípio da legalidade.

No Constitucionalismo Pós-Moderno, alterou-se o papel político do Judiciário. Seu desempenho ganha novos perfis, mais relevância social; as decisões do Tribunal são centro de debates e divergências públicas e políticas. Esse Poder se encontra constitucionalmente atrelado à concretização dos direitos fundamentais bem como à política do Estado.

A sociedade, sempre que exerce no máximo sua soberania, produz a lei fundamental e regula dado universo de direitos fundamentais, imputa aos Poderes o dever de efetivá-los; ela os converte em ferramentas que possibilitam concretizá-los. Nesse sentido, o Judiciário também contaria com eficiência limitada, pois estaria sempre restrito, preso, aos princípios constitucionais, embora possa recorrer à interpretação concreta da legislação.

A teoria neoconstitucional define três possíveis utilizações interpretativas: a primeira é interpretar as leis à luz da Constituição; ou seja, qualquer norma deve ser analisada, julgada sob o prisma da constitucionalidade. Pelo segundo uso, o tribunal competente deve julgar qual hipótese de dedução se encontra em mais conformidade com o texto constitucional, se ocorrer mais de uma. Nesse contexto, não se recorrem a interpretações diversas e a lei é preservada; não haverá inconstitucionalidade.

O terceiro significado da interpretação segundo a Constituição ocorre em casos concretos, sempre que os efeitos da lei são removidos, não alcançam sua finalidade, em função de circunstância imprevista ou inexistência de lei que regule o fato. Após constatar essa situação, a norma deve se eliminada, afastada do caso examinado e não gerar jurisprudência. A eliminação de tal tipo de regra pode ser considerada uma das principais características e avanços do Neoconstitucionalismo. Remove as exceções e conserva o correto funcionamento do sistema neoconstitucional.

Na contemporaneidade, convive-se com um tipo de crise da teoria constitucional moderna. A inaptidão das premissas tradicionais do Constitucionalismo de conviver com as regras das Constituições sociais; a crescente complexidade da vida nas sociedades atuais aliada à ineficiência do Estado de satisfazer às diferentes demandas sociais; a crítica que questiona as meta-narrativas universalizantes próprias do pensamento social moderno; a ruína dos pilares de regulamentação em âmbito interno oriunda da Globalização facilitaram o surgimento de problemas com os dogmas do Constitucionalismo nos moldes tradicionais.

Esses eventos possibilitaram o desenvolvimento de nova tese constitucionalista – o Neoconstitucionalismo, o qual se apoia em uma teoria do Direito, fundada precipuamente na obediência estrita aos preceitos constitucionais e na hermenêutica. As novas e possíveis interpretações assumidas por esse movimento conferem novo papel aos intérpretes das normas constitucionais, pois procuram respostas externas ao sistema e possibilidade de corrigir falhas e imperfeições.

O Neoconstitucionalismo, ao defender a interpretação jurídica da Constituição em todas as situações, interfere na separação tripartite do poder, uma vez que expande a esfera de atuação do Judiciário, atribuindo-lhe a função atípica de examinar o controle de constitucionalidade dos órgãos do Legislativo e do Executivo.

Isso inaugura outra maneira de analisar e perceber as mudanças na separação de poderes, com o robustecimento do Judiciário e dos direitos fundamentais, na busca pela consecução do bem comum e pela dignidade do homem.

O Neoconstitucionalismo instituiu alterações dos padrões vigentes à época em que a teoria foi desenvolvida. A constitucionalização do Direito, as novas formas de interpretação da Constituição e a propagação da jurisdição constitucional resultaram desse processo, fortalecendo os preceitos e as normas da Constituição e difundindo-os pela ordem jurídica. A aplicação direta dos princípios constitucionais e a interpretação das leis infraconstitucionais segundo os ditames da Constituição redesenharam a significação e a amplitude da Carta Magna e acarretaram a mudança de atuação do Judiciário, conferindo-lhe mais relevância e poder.

Por isso, os debates sobre o Neoconstitucionalismo estão presentes e são necessários nas sociedades democráticas, pois se questiona se há o enfraquecimento da separação dos Poderes – um está sobressaindo a outro, afetando o princípio de pesos e contrapesos. Destaca-se a necessidade de haver equilíbrio entre processo político, primazia constitucional e interpretação judicial da Constituição. Só assim se poderá garantir o bem-estar social.

3. Efeitos do Neoconstitucionalismo e a Teoria da Separação dos Poderes

No Brasil, a Separação dos Poderes é um dos princípios essenciais da Constituição democrática de 1988, art. 2º (CF/1988), denominada Constituição Cidadã, porém com viés neoconstitucional.

A partir das premissas neoconstitucionais, as funções atinentes a cada Poder se flexibilizaram, com a ascensão e o fortalecimento do Judiciário como garantidor da obediência aos preceitos constitucionais, mas também como ator legislativo e executivo, com a formulação de súmulas que determinam procedimentos ao Legislativo e ao Executivo, diante da passividade, da omissão destes na formulação de leis e na efetivação de políticas públicas. Tal postura afeta a atuação dos Poderes e a Teoria da Separação dos Poderes, com efeitos tanto positivos quanto negativos.

Questiona-se, então, se tais transformações vão de encontro aos preceitos da tripartição harmônica e independente dos Poderes.

Segundo a teoria clássica, a separação dos Poderes aspira restringir a atuação estatal, para haver equilíbrio político; existirem freios e contrapesos; assegurar liberdades individuais; aprimorar o poder do Estado, mediante o controle de sua postura, suas ações. Atualmente, entretanto, verifica-se a predominância do Judiciário sobre os demais, afetando a independência pregada pela teoria e instaurando o controle judicial.

Com essa releitura da tripartição dos Poderes, um dos efeitos é a flexibilização dos limites de ação do Judiciário, com posturas mais propícias ao ativismo judicial, na defesa dos princípios constitucionais. Teorias democráticas abandonam percepções essencialmente majoritárias dos valores da democracia, para acatar dogmas os quais limitam os poderes do legislador e dos governantes, com apoio na proteção às minorias e na efetivação das prerrogativas fundamentais. Tal fato atribui a juízes, não eleitos pelo povo, fiscalizar e até intervir nas ações dos legisladores e dos governantes, fortalecendo o papel da jurisprudência e reforçando a jurisdição constitucional.

Outra consequência reside no enfraquecimento do Legislativo. O Judiciário pode exercer a função de permitir ao magistrado atuar contra os ditames legais, uma vez que a Constituição é hegemônica e é essencial concretizar as vantagens individuais nela determinadas. Em tal cenário, o Legislativo vê seu poder limitado, pois normas por ele aprovadas podem ser contestadas e desconsideradas pelo Judiciário, em nome da garantia dos preceitos constitucionais.

[…] a validade das leis, que no paradigma do Estado Legislativo de Direito estava dissociada da justiça, se dissocia agora também da validez, sendo possível que uma lei formalmente válida seja substancialmente inválida pelo contraste de seu significado com os valores prestigiados pela Constituição. Isso porque, conclui o autor italiano, no paradigma do Estado Constitucional de Direito, a Constituição não apenas disciplina a forma de produção legislativa como também impõe proibições e obrigações de conteúdo, correlativas umas aos direitos de liberdade e outras aos direitos sociais, cuja violação gera antinomias ou lacunas que a ciência jurídica tem o dever de constatar para que sejam eliminadas ou corrigidas. (CARBONELLL, 2003, p. 16)

A constitucionalização do Direito é outro resultado do pós-positivismo (ou neoconstitucionalismo). As determinações constitucionais se efetivam, passam a ter força normativa vinculante, independentemente da relação, sem qualquer tipo de impedimento e em qualquer área do Direito. “A principal manifestação da preeminência normativa da Constituição consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida à luz dela e passada pelo seu crivo.” (CANOTILHO, 1991, p. 45)

Barroso (2007, p. 20-21) leciona que

Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si – com sua ordem, unidade e harmonia – mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito. Este fenômeno, identificado por alguns autores como filtragem constitucional, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados. […] a constitucionalização do direito infraconstitucional não tem como sua principal marca a inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional. À luz de tais premissas, toda interpretação jurídica é também interpretação constitucional. Qualquer operação do direito envolve a aplicação direta ou indireta da Lei Maior.

Tais efeitos ferem premissas da teoria da separação dos poderes nos paradigmas tradicionais, uma vez que há visível ingerência de um poder sobre os outros, influenciando a independência entre eles no que tange às atribuições típicas e à liberdade de ação. O essencial então é equilibrar os preceitos da teoria com os do Neoconstitucionalismo, para que ambos contribuam para o bem-estar social, sem antinomias.

Na conjuntura atual, não é viável afirmar que o princípio da separação de poderes prejudica a atuação do Judiciário na atribuição de garantir a plena e célere efetivação dos direitos sociais, determinando ao Estado executar políticas sociais das quais depende a efetivação desses direitos. A teoria da separação de poderes harmoniza-se com vários preceitos constitucionais, como os da dignidade da pessoa humana, da aplicabilidade direta das regras que firmam os direitos fundamentais, da presença do controle judicial, da conformação das ações estatais com a Constituição. Estes são efeitos positivos, pois mantêm vivos ideais da teoria e ao mesmo tempo ajustam-na às novas demandas trazidas pela complexidade dos grupamentos sociais.

Quanto à Constituição do Brasil, pode-se deduzir ser necessária novo entendimento sobre o princípio da separação, pois o Estado Social do Bem-Estar causou expressivas mudanças sociais. Os direitos fundamentais, principalmente os sociais, atuam hoje como modelos de interpretação dos eventos jurídico-constitucionais. Diante do recente Estado Constitucional de Direito, a releitura a respeito dos ideais pregados pela teoria separação de poderes deve considerar os interesses dessa nova sociedade, para que não satisfaça aos anseios sociais, com a inércia, a omissão, a passividade. Somente assim pode haver harmonia entre a Teoria da Separação dos Poderes e o Neoconstitucionalismo.

REFERÊNCIAS

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1Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito e Políticas Públicas do Centro Universitário de Brasília – UniCeub. Artigo baseado no Capítulo 1 da Dissertação para conclusão de Mestrado sobre o tema Análise do Ativismo Judicial como Instrumento de Efetivação do Direito à Saúde, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito.