ACHIEVEMENTS AND CHALLENGES OF THE GROUP OF WOMEN BEEKEEPERS FROM THE SÃO MANOEL SETTLEMENT PROJECT, APODI, RN.
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202502230213
Adiza Cristiane Avelino Bezerra; Nildo da Silva Dias; Raniere Barbosa de Lira; Márcia Regina Farias da Silva; Carla Natanieli de Oliveira Batista; Ana Beatriz Alves de Araújo; Vania Christina Nascimento Porto; Olga Nogueira de Sousa Moura; Jucirema Ferreira da Silva; Rosemary Feitoza Brasil.
Resumo
Este trabalho teve como objetivo analisar as mudanças ocorridas no modo de vida de um grupo de mulheres apicultoras do Projeto de Assentamento São Manoel (Apodi – RN), a partir do processo de organização política e produtiva, bem como buscando entender de que forma esta situação tem sido refletida pelos moradores do assentamento no que diz respeito às relações de força e de poder que constituem a questão de gênero. Procurou-se destacar as conquistas e os desafios de um grupo de mulheres, dentro do assentamento, fortalecido por meio do processo de auto-organização e formação política, com uma organização produtiva da apicultura de forma coletiva e uma comercialização numa perspectiva de Economia Solidária. Como procedimento metodológico foi realizada uma pesquisa participante, em que se procurou envolver as apicultoras, de modo que elas narraram suas trajetórias antes e depois da formação do grupo. Os dados foram coletados por meios de oficinas e conversas informais, ademais, foi realizada uma pesquisa bibliográfica e documental e observações livres. Essas mudanças são expressadas não somente pelo retorno financeiro, mas principalmente pela percepção das trabalhadoras de sua condição e da contribuição para sua autoestima, a partir das conquistas ocorridas nas suas vidas.
Palavras-chave: Gênero. Organização. apicultura.
ABSTRACT
This work aimed to analyze the changes that occurred in the way of life of a group of women beekeepers from the São Manoel Settlement Project (Apodi – RN), based on the process of political and productive organization, as well as seeking to understand how this situation has been reflected by the residents of the settlement with regard to the relations of force and power that constitute the gender issue. We sought to highlight the achievements and challenges of a group of women, within the settlement, strengthened through the process of self-organization and political formation, with a productive organization of beekeeping in a collective way and commercialization from a Solidarity Economy perspective. As a methodological procedure, participant research was carried out, in which we sought to involve beekeepers, so that they could narrate their trajectories before and after the formation of the group. Data were collected through workshops and informal conversations, in addition, bibliographical and documentary research and free observations were carried out. These changes are expressed not only by the financial return, but mainly by the workers’ perception of their condition and the contribution to their self-esteem, based on the achievements that have occurred in their lives.
Keywords: Gender. Organization. Apiculture.
1 INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, no que diz respeito à participação das mulheres no contexto da produção familiar, algumas experiências têm se destacado por sua importância ao aliar a organização social das mulheres com a sua inserção em atividades produtivas, englobando os aspectos econômico e social. Cada vez mais é perceptível que as mulheres demonstram características de lideranças no meio que convivem como: visão do ambiente e do negócio, comprometimento, comunicação, integridade, intuição e conhecimento da realidade (EMATER, 2010).
Diversas Organizações não Governamentais – ONG, têm norteado ações para as questões de gênero, principalmente nas questões de gênero no desenvolvimento rural que reporta desigualdades mais fortes, onde os papéis sociais do homem e da mulher são pouco contestados: o roçado/produção, o dinheiro e a organização são do domínio masculino. A própria sociedade legitima a hierarquia e até a violência, para controlar a “ transgressora”, aquela que não cumpre à risca o seu papel de mulher. Além disso, afirmaram que existe violência doméstica contra a mulher nas comunidades/assentamentos, contra a qual é difícil a vítima reagir por diversas razões. Trabalhar na busca de uma maior igualdade de género, neste contexto, questionando os papéis sociais do homem e da mulher, é mal visto, já que isto abala a ordem social, pelo menos neste âmbito. E é justamente este papel que essas ONGs querem ter para ‘ abalar’, criar uma ‘ tensão construtiva’, e assim, gerar mudanças (PDHC, 2010).
Para Dantas (2005), a participação das mulheres na produção, na comercialização e ocupação de espaços externos na articulação política representa avanços. Nessa direção, a referida autora cita o depoimento de uma trabalhadora, que afirma: “Aos poucos, conscientizamos os nossos maridos das vantagens que a organização de mulheres traria para toda a família. Como associadas, somaremos os nossos benefícios e direitos aos deles, mas só conseguiríamos através da organização”.
Além dos ganhos relativos à autodeterminação das mulheres no mundo público e privado, é possível destacar o despertar para o conhecimento, construindo novas tecnologias, tanto no processo de produção quanto na gestão de seus projetos. No Projeto de Assentamento São Manoel, município de Apodi-RN, unidade empírica de referência desta pesquisa, destacamos a experiência de um grupo organizado de nove mulheres inseridas na atividade produtiva da apicultura. O processo de definição e execução do projeto foi marcado por momentos de incertezas, angústias e, principalmente, receio por parte das mulheres de estarem se inserindo na atividade apícola. No entanto, têm sido observadas mudanças na vida das apicultoras por estarem conseguindo sua autonomia a partir da sua organização, no enfrentamento às adversidades.
No que se refere à formação política e de gênero, o grupo de mulheres é acompanhado pelo Centro Feminista 8 de Março (CF 8), e para a produção apícola coletiva este é assessorado tecnicamente pela Associação de Apoio às Comunidades do Campo (AACC). A experiência de comercialização do grupo tem sido realizada na perspectiva da Economia Solidária, por meio da Rede de Comercialização Solidária Xique-Xique, espaço cujo objetivo é o comércio justo e solidário.
É importante ressaltar que, o grupo vem sendo fortalecido por esse processo de auto-organização e formação política, com uma organização produtiva de forma coletiva e tendo os produtos comercializados de forma solidária, pretendemos analisar juntamente com as apicultoras os impactos que tal processo tem causado na sua vida, suas conquistas e desafios, bem como os principais fatores que influenciaram essas mudanças.
Para tanto objetivamos observar a realidade das mulheres antes e depois da sua inserção no processo organizativo-produtivo, analisando a mudança ocorrida e a maneira como elas percebem essa transformação. Além disso, se faz necessário compreender como o contexto sócio político em que está inserido o município de Apodi influenciou o grupo, tomando por base a atuação e articulação política dos movimentos sociais e sindical.
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA OU REVISÃO DA LITERATURA
A apicultura é uma atividade ideal para a agricultura familiar em função de suas características e do seu potencial, enquanto produção sustentável econômica, social e ambiental. Como fica evidenciado na afirmação de Cardoso (2007), ao ressaltar que a agricultura familiar hoje, mais organizada e com uma produção mais diversificada, procura eficácia em suas atividades para garantir a qualidade de vida e bem-estar-social do pessoal envolvido. Dentro do universo de diversificação das atividades como estratégia de sobrevivência de unidades da agricultura familiar, encontra-se a apicultura, que consegue determinar e/ou complementar a renda básica de várias unidades de produção familiares dos países integrados no Mercosul, com maior ênfase no Brasil.
Freitas et al. (2004) acrescentam que a atividade desperta interesse por se tratar de uma atividade que não exige muito tempo, nem requer sofisticação em termos tecnológicos. Apesar de existirem inovações de equipamentos e técnicas que ajudam na melhoria da atividade, a sua produtividade está relacionada, principalmente, ao manejo adequado e às condições da flora apícola que, aliadas às novas técnicas e à eficiência na comercialização, fazem-na destacar-se dentre as atividades agropecuárias. Dessa forma, seguindo-se a tecnologia recomendada na produção e comercializando o mel de maneira adequada, espera-se alta rentabilidade na atividade, sobretudo, se comparada aos demais negócios agropecuários. De acordo com Silva (2000), o Brasil tem um potencial não explorado de pelo menos 200.000 toneladas de mel, além dos demais produtos que acompanham a produção. Este potencial não explorado é constatado em algumas regiões onde, apesar de existir a flora apícola, não existe apicultura.
Essa realidade pode ser evidenciada no caso de um trabalho sobre o uso da apicultura como fonte alternativa de renda para pequenos e médios produtores no estado de Mato Grosso do Sul realizado por Vieira et al (2004). Segundo os autores, grande parte dos apicultores da área do estudo conta com o auxílio da família na execução das tarefas, sendo que normalmente os homens tornam-se responsáveis pela realização de tarefas mais pesadas, tais como captura de enxames, transporte e instalação de colméias e centrifugação do mel, enquanto as mulheres se encarregam do beneficiamento e comercialização do produto.
No que se refere à participação das mulheres na atividade apícola, pode ser citado um estudo de caso sobre os processos de institucionalização de gênero em duas ONG`s no Equador, em que Arroyo e Poats (2002), relatam que em um projeto de apicultura, as ações iniciais fizeram-se com as mulheres e os homens da comunidade. Mas, com a evolução do projeto, as mulheres se mostraram evidentemente as mais aptas para manejar a colméia e coletar o mel.
Outra experiência envolvendo mulheres e apicultura, cujo objetivo era trabalhar a conservação em base comunitária e enfoque de gênero em vários países da América Latina, Rojas (2000) afirma que inicialmente várias razões foram levantadas para justificar porque as mulheres não participariam mais das atividades do projeto, e que essas barreiras mencionadas incluíram uma mistura de fatores culturais e institucionais, como “as mulheres devem ficar em casa”, “as mulheres não participam de reuniões públicas”, “as mulheres casam-se jovens e desistem da escola mais cedo que os homens”, refletindo uma idéia de que as mulheres não querem participar em atividades de capacitação e treinamento, sendo vistas somente como donas de casa. Segundo a autora, existem idéias pré-concebidas sobre quais atividades as mulheres podem executar ou não, tanto que quando a apicultura foi adotada, pensava-se que as mulheres não deveriam cuidar das colméias, pois as abelhas eram muito agressivas. No entanto, no decorrer do projeto, ficou evidenciado que os homens abandonam as atividades de apicultura em detrimento a outras atividades produtivas, enquanto as mulheres permaneceram na produção apícola.
3 METODOLOGIA
O recorte do estudo foi no Assentamento São Manuel, localizado no município de Apodi, no estado do Rio Grande do Norte. O município possui uma população é de 36.323 habitantes e área territorial de 1 602,477 km², IBGE, 2017. Na abordagem da investigação procurou-se envolver as apicultoras do Assentamento São Manoel, de modo que elas narrassem sua trajetória antes e depois da formação do grupo, por meio de oficinas, conversas informais e observações livres, complementando com levantamentos bibliográficos.
Adotou-se como procedimento metodológico a pesquisa-participante, na qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos do modo cooperativo ou participativo no processo. É uma pesquisa que responde especialmente às necessidades das classes mais carentes nas estruturas sociais contemporâneas levando em conta suas aspirações e potencialidades de conhecer e agir.
O início do percurso para realização desta pesquisa se deu a partir do primeiro contato com o assentamento para tratar do Programa Residência Agrária e do trabalho de pesquisa. Apesar da recepção e hospitalidade com a equipe do projeto, foi possível perceber nos assentados uma certa apatia com relação à pesquisa, comportamento não observado nas mulheres do grupo de apicultura, pois estas se mostraram interessadas em participar do Programa, embora conhecessem pouco a proposta.
Vale salientar que, enquanto assessora técnica do assentamento, o contato se dava mais com a sua associação, visto que a atuação na área foi iniciada em outubro de 2002, oportunidade em que foi elaborado o Plano de Desenvolvimento do Assentamento – PDA, tendo sido iniciada o acompanhamento referente à Assessoria Técnica Social e Ambiental – ATES, a partir de 2003.
Dessa forma o contato mais aproximado com o grupo de apicultoras se deu a partir do desenvolvimento da pesquisa. Entretanto, não havia como dissociar as atividades de técnica e de pesquisadora, visto que durante a realização de atividades referentes ao trabalho de Assessoria Técnica Social e Ambiental – ATES, o olhar de pesquisadora buscava perceber a presença ou não das mulheres, e sua participação. A partir das percepções realizadas, não foi possível fugir de uma constatação do crescimento da participação e proposição das mulheres nos espaços do assentamento.
A partir da validação do objetivo da pesquisa com as apicultoras, discutiu-se com elas como seria realizada a pesquisa, momento em que acordamos o acompanhamento às atividades do grupo, como participação em reuniões, capacitações, encontros e ainda as tarefas de campo. Também foi feito o contato com as assessorias do grupo, entidades parceiras, sobre a realização da pesquisa com as mulheres, os quais se mostraram abertos a apoiar e contribuir com a pesquisa.
O trabalho foi iniciado com a participação no planejamento do grupo, momento em que foi repassado o calendário das suas atividades, oportunidade em que as mulheres manifestaram sua insatisfação com a limitação de apenas uma atividade produtiva acompanhada pelas assessorias. A partir da divulgação do calendário buscou-se participar destas atividades, interagindo com as apicultoras, de modo que fossem anotadas desde as observações feitas até as impressões subjetivas em relação aos fatos ocorridos com o grupo e suas atividades.
Com relação às observações da rotina do grupo, presenciaram-se as atividades das apicultoras, tanto no que se refere à questão organizacional quanto à questão produtiva. Dessa forma, foram acompanhadas as reuniões sistemáticas com as assessorias específicas para a formação de gênero e para a exploração apícola. Estas reuniões deveriam ocorrer quinzenalmente, contudo por diversas vezes não se conseguiu cumprir o calendário planejado em virtude de fatores externos.
As reuniões eram realizadas na residência das apicultoras ou no Centro Comunitário Orlando Ferreira e, em geral, contava com a participação de todo o grupo. Além do repasse de informes sobre eventos, eram discutidas questões relevantes à formação das mulheres. Também foi possível participar juntamente com o grupo de mulheres de vários espaços como oficinas, capacitações e planejamentos, eventos que ocorreram esporadicamente durante a realização da pesquisa, mas que nos propiciaram momentos muito ricos de construção de idéias junto às mulheres.
No que diz respeito oficinas, vale destacar duas delas, a primeira em que se discutiu a questão produtiva, ocasião em que as mulheres discorreram sobre as atividades nas quais estão inseridas, citando a produção que constava em seus quintais, tais como hortas, pomares e criação de pequenos animais; bem como quais atividades participavam no lote, incluindo plantio, tratos culturais, colheita. Já a segunda, teve como objetivo resgatar a história do grupo, por meio de relato oral, juntamente com a utilização de tarjetas para construção e interligação de idéias, construindo-se um painel. Assim, as mulheres contaram de forma coletiva a história do grupo desde o início, cada uma adicionando um trecho. Em seguida, usaram tarjetas com palavras que elas identificaram ter relação com a sua história, seja como causa ou conseqüência. Ao final foi construída a conclusão coletiva da importância da organização social e produtiva para mudança em suas vidas.
Acompanhou-se também as tarefas relacionadas à atividade apícola do grupo, tais como colheita, revisão do apiário, beneficiamento da cera, seguindo o calendário de tarefas planejado pelo grupo, inicialmente construído com a assessoria produtiva. A participação nestas atividades possibilitou visualizar e discutir com as apicultoras aspectos como a dificuldade de disponibilização para atividades, a múltipla jornada de trabalho e problemas produtivos. Esta estratégia metodológica contribuiu para a construção conjunta de conclusões sobre os limites enfrentados, as conquistas alcançadas, bem como os caminhos que podem ser trilhados para a superação dessas dificuldades e consolidação do grupo.
Para complementar as informações da investigação foi realizado um levantamento bibliográfico e documental relativo ao Plano de Desenvolvimento do Assentamento – PDA, e ao Plano de Recuperação do Assentamento – PRA. Ademais, foram vistos também os documentos produzidos como resultado da organização dos trabalhadores da Região Oeste e do município de Apodi, que tem gerado uma considerável bibliografia a respeito dessa luta, permitindo uma base de comparação aproximada à realidade das apicultoras.
Os relatos não seguiram uma ordem cronológica, mas foram realizados conforme as mulheres se sentiam à vontade para fazê-los, assim a coleta de dados não ocorreu em etapas, mas de forma sistemática durante a investigação, procurando acompanhar a rotina do grupo. A idéia inicial de realizar entrevistas com roteiros semiestruturados foi adaptada, visto que o levantamento de informações com o acompanhamento do calendário do planejamento do grupo se mostrou mais produtivo quando realizado em forma de conversas informais, seja individual ou coletivamente. Essas conversas eram registradas com o prévio consentimento das apicultoras, tanto na forma de registros escritos como em registros fonográficos. O material gravado foi transcrito de forma a ser analisado juntamente com o material escrito.
4 RESULTADOS E DISCUSSÕES OU ANÁLISE DOS DADOS
– Apicultura, agricultura familiar e o trabalho das mulheres
A exclusão das mulheres do processo de produção se dá por meio tanto da invisibilidade do seu trabalho, bem como da falta de acesso a capacitações e recursos para a implantação de uma atividade considerada da esfera masculina, como é o caso da apicultura. Apesar de ser considerada como uma atividade apropriada para a unidade familiar, inclusive na região onde se localiza o assentamento, a gestão da exploração apícola é vista como responsabilidade do homem.
Essa realidade pode ser evidenciada no caso de um trabalho sobre o uso da apicultura como fonte alternativa de renda para pequenos e médios produtores no estado de Mato Grosso do Sul realizado por Vieira et al (2004). Segundo os autores, grande parte dos apicultores da área do estudo conta com o auxílio da família na execução das tarefas, sendo que normalmente os homens tornam-se responsáveis pela realização de tarefas mais pesadas, tais como captura de enxames, transporte e instalação de colméias e centrifugação do mel, enquanto as mulheres se encarregam do beneficiamento e comercialização do produto.
No que se refere à participação das mulheres na atividade apícola, pode ser citado um estudo de caso sobre os processos de institucionalização de gênero em duas ONG`s no Equador, em que Arroyo e Poats (2002), relatam que em um projeto de apicultura, as ações iniciais fizeram-se com as mulheres e os homens da comunidade. Mas, com a evolução do projeto, as mulheres se mostraram evidentemente as mais aptas para manejar a colméia e coletar o mel.
Outra experiência envolvendo mulheres e apicultura, cujo objetivo era trabalhar a conservação em base comunitária e enfoque de gênero em vários países da América Latina, Rojas (2000) afirma que inicialmente várias razões foram levantadas para justificar porque as mulheres não participariam mais das atividades do projeto, e que essas barreiras mencionadas incluíram uma mistura de fatores culturais e institucionais, como “as mulheres devem ficar em casa”, “as mulheres não participam de reuniões publicas”, “as mulheres casam-se jovens e desistem da escola mais cedo que os homens”, refletindo uma idéia de que as mulheres não querem participar em atividades de capacitação e treinamento, sendo vistas somente como donas de casa. Segundo a autora, existem idéias pré-concebidas sobre quais atividades as mulheres podem executar ou não, tanto que quando a apicultura foi adotada, pensava-se que as mulheres não deveriam cuidar das colméias, pois as abelhas eram muito agressivas. No entanto, no decorrer do projeto, ficou evidenciado que os homens abandonam as atividades de apicultura em detrimento a outras atividades produtivas, enquanto as mulheres permaneceram na produção apícola.
– As mudanças ocorridas nas vidas das mulheres
No decorrer da investigação foi possível observar alguns aspectos relevantes no tocante às conquistas e os desafios do grupo de apicultoras “Construindo a Liberdade” do Projeto de Assentamento São Manoel. Algumas questões foram visualizadas nas visitas e observações e/ou reveladas pelas mulheres nas conversas e nas entrevistas, podemos destacar a múltipla jornada de trabalho, a dificuldade de produção de mel.
A questão da dupla, ou mesmo tripla jornada de trabalho é evidente, pois as mulheres precisam conciliar trabalho doméstico, atividade produtiva e, ainda participar de espaços de representação, na associação, e/ou em ambientes externos, como seminários, feiras, marchas, etc. Com relação à ampla jornada de trabalho foi possível perceber descontentamentos por parte de membros do grupo, visto que a atividade de representação não é igualmente dividida, isto é, parte das apicultoras não se dispõem a participar desses espaços, principalmente quando são externos ao município. As justificativas sempre apresentadas, como “falta de tempo”, “necessidade de tomar conta de filhos pequenos”, apesar de compreensível, não são bem aceitas pelo restante do grupo, por que é uma realidade compartilhada por todas. Dessa forma, as demais contra-argumentam de que sua situação é a mesma, porém conseguem tempo para participar destes espaços.
Diante desse contexto, o provável descrédito com a atividade apícola devido à problemas de produção, justificaria em parte a dificuldade para realizar as tarefas da atividade produtiva e a ausência nos espaços de representação política do grupo, segundo afirmação das próprias apicultoras. Este fato delega a centralização das responsabilidades do grupo apenas a algumas das mulheres, conforme fica evidenciado na fala a seguir, que reflete a insatisfação com a indisponibilidade para as atividades do grupo.
“… elas ficam sempre esperando que alguém faça a atividade, se eu não tomar a iniciativa e fizer, a tarefa não é cumprida…” (F.C.L.S.)
Essa questão nos levou a procurar compreender o contexto em que está inserida a atividade apícola e a relação do grupo com esta atividade. Além destas dificuldades, não poderíamos deixar de ressaltar o contexto de desigualdade em que estão inseridas as mulheres do grupo, assim como as demais trabalhadoras rurais, responsáveis pelo trabalho reprodutivo da família, o qual não é valorizado, e ainda presente no trabalho produtivo, que não é visibilizado.
A múltipla jornada de trabalho das mulheres pôde ser constatada tanto em seus depoimentos quanto na observação das suas atividades. Além do trabalho reprodutivo, no ambiente privado, as trabalhadoras têm que cumprir as tarefas ligadas à atividade apícola, embora essas demandem menos tempo e estejam concentradas em determinados períodos do ano. Além disso, elas também participam das atividades de colheita e beneficiamento da produção agrícola. Vale salientar que parte dessas mulheres participam também de atividades da associação, inclusive da diretoria, bem como representam o grupo em espaços externos.
“… no lote eu vou pra(sic) o plantio e pra apanha(sic) de feijão, quando tem apanha(sic) eu vou todo dia com ele (esposo), quando chego é que faço o almoço… ”(F.U.S)
Esse relato foi feito durante uma oficina que tratou da questão produtiva, e pode-se perceber a participação efetiva da mulher na produção familiar, e nas tarefas reprodutivas (no caso, o almoço) que é responsabilidade exclusiva da mulher, tida como responsável pelas tarefas reprodutivas.
No caso dos assentamentos de Reforma Agrária, Moura (2002) ressalta que, mesmo considerando que existe uma divisão geográfica entre a casa e o lote (roçado), não há uma separação de desenvolvimento de ações das mulheres, elas transitam pelos dois espaços, chegando a fazer todas as atividades agrícolas, desde que necessário, a partir do ciclo da produção e da ausência da figura masculina.
Aspectos semelhantes foram observados por Dordelly et al. (2002) nos P.A.’s Guarani Bom-Lugar – CE, e Campo Bonito – PR.; estes constataram iniciativas femininas de organização produtiva; embora haja diferenças regionais entre os dois espaços, as tarefas produtivas eram realizadas por todos, cabendo, porém, às mulheres, um maior número de atividades. Essa constatação também é observada entre as mulheres do grupo de apicultoras do assentamento São Manoel, no que tange à responsabilidade das tarefas reprodutivas, ou seja, aquelas relativas aos cuidados necessários à sobrevivência dos seres humanos (alimentação, higiene, vestuário, orientação educacional, saúde e apoio emocional), esse é um campo exclusivamente feminino.
A partir dos dados coletados no Diagnóstico de Gênero do Território do Apodi (2003), foi possível perceber que a partir da formação de grupos autônomos nas comunidades, começaram a ser questionadas as relações desiguais existentes entre homens e mulheres, levando as mulheres a assumir posições de liderança e exercer o poder conjuntamente com os homens, mesmo que na maioria das vezes, sintam-se excluídas nas tomadas de decisões.
A existência dos grupos de mulheres e o crescimento acentuado de suas ações possibilitam que estas tenham uma maior participação na vida organizativa do assentamento. Além disso, os grupos de mulheres cumprem um papel importante nos assentamentos e representam uma de suas maiores conquistas na região nos últimos dez anos, foi com a presença deles em vários momentos decisivos que a comunidade obteve conquistas importantes sobre questões individuais ou coletivas.
A experiência de organização do grupo de apicultoras do assentamento São Manoel pode ser comparada com a experiência de dois grupos de mulheres no município de Baraúna/RN. O Centro de Mulheres de Poço Novo e o Grupo de Mulheres do Assentamento Tiradentes vivenciaram uma longa trajetória a fim de conquistar esse direito, segundo relato de Silva (2002). Nas duas experiências, foram necessárias várias reuniões no assentamento, para amadurecer a idéia de modo a clarear como se daria essa intervenção e fortalecer a fala das mulheres. A consolidação de um grupo é um momento significativo de luta e conquista, que mostra a garra e a força das mulheres através da oportunidade de poder trabalhar em um projeto reconhecido pela sua comunidade.
A Figura 1 evidencia a facilidade do grupo com relação às técnicas de revisão do apiário e, as apicultoras hoje têm orgulho em ressaltar sua persistência quanto à exploração apícola, conforme fica evidenciado na fala:
“… nós ainda estamos na apicultura, enquanto muitos homens desistiram …” (V.M.M.)
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Essa afirmação nos leva a refletir sobre a visão da atividade pelos assentados e assentadas, que rever a desigualdade de gênero. No momento da implantação da apicultura, considerada uma atividade majoritariamente masculina, se afirmava que as mulheres não iriam conseguir. Contudo, foi a maioria dos homens que não conseguiu desenvolver a exploração apícola, esta desistência geralmente é justificada por questões como falta de identificação com a atividade, a suposta inviabilidade do assentamento para a apicultura. Porém, o esforço das mulheres em persistir, mesmo diante das dificuldades, não é reconhecido pela maioria.
Fato semelhante também ocorreu na experiência das mulheres cisterneiras, contraditoriamente, ultrapassado o estranhamento inicial e vencido o forte descrédito na força de trabalho das mulheres, houve um segundo movimento de destituição daquela conquista. A partir do instante em que as cisternas foram erguidas e já se mostravam em funcionamento, a função de pedreiras de cisternas passou a ser subjugada e diferenciada pela comunidade, vista então como “serviço leve”, mais ameno e, portanto, menos valoroso, unicamente porque elas foram capazes de realizá-lo: “se elas puderam, qualquer um consegue”.
De acordo com Nobre (1999), esta questão acontece porque no reconhecimento do esforço físico como vantagem inata do trabalhador homem elaborou-se a ideia de que as mulheres estariam “naturalmente” desfavorecidas para os trabalhos que demandassem força, sendo que a habilidade, inteligência e rapidez na execução das tarefas são preteridas em razão da consideração hierárquica ao sexo de quem as executa.
Nesse contexto, Silva (2002) acrescenta que esse mesmo esforço físico é apontado como definidor para a supervalorização do homem na agricultura. Sobre esse fator, a realidade dos assentamentos de reforma agrária do sertão nordestino é exemplar para se perceber que as mulheres estão nas diferentes etapas do ciclo de produção da agricultura: é comum vê-las brocando, arando a terra com capinadeira e fazendo compostos, tarefas vistas como leves e como ajuda, nunca como algo pesado que pode ser realizado independentemente do sexo.
Em uma reunião com a assessoria, em que foi realizada uma discussão sobre o Dia 7 de Setembro, alusivo à independência do país, foi realizada uma discussão sobre o significado da palavra, oportunidade em que uma das apicultoras fez a seguinte definição:
“… independência é liberdade, caminhar com as próprias pernas, é igualdade…” (J.C.A.B.)
Ainda durante essa discussão, as mulheres expressaram sua opinião a respeito da situação do país quanto à independência:
“… para o Brasil não há independência, pois não há igualdade social, há exclusão, conflito de classes, e independência seria uma vida digna para todas as pessoas…” (C.A.C)
Já em outra atividade, ao comentar sobre as mudanças que a inserção no grupo trouxe para suas vidas, uma delas fez a seguinte fala:
“… com o grupo a gente viu que pode ir conquistando a liberdade…” (V.M.M)
Um momento em que essa mudança foi perceptível ocorreu na oportunidade em que a comunidade recebeu a visita de uma representante canadense da Marcha Mundial de Mulheres, que permaneceu no assentamento durante uma semana com o objetivo de pesquisar a realidade local do grupo de mulheres, ficando inclusive hospedada na casa de várias delas. Como uma forma de preparação para iniciar esse trabalho de pesquisa, foi realizada uma oficina sobre a história do grupo pelo Centro Feminista 08 de Março, um momento importante porque foi feito um resgate da sua trajetória, incluindo as dificuldades para conquistar o seu espaço. Ainda nessa atividade se percebia nas colocações das mulheres o seu reconhecimento como apicultoras, apropriadas da sua condição de trabalhadoras rurais, levando à crer de que elas já não se enxergam como “donas de casa”, “do lar”, como fica explicitado na seguinte fala:
“… hoje a gente tem orgulho de dizer que é trabalhadora, que é apicultora, é muito lindo o nosso trabalho…” (F.C.L.S)
A importância desse reconhecimento é constatada quando se leva em consideração que a falta de identificação dessa mulher como produtora agrícola, resulta não somente na desvalorização da sua capacidade produtiva, como na sua real integração nos programas de desenvolvimento rural, cujo público meta são os produtores da agricultura familiar (entenda-se de ambos os sexos), conforme ressalta Melo (2002). Desconsiderar o trabalho da mulher na agricultura familiar é deixá-lo invisível, é ignorar a sua contribuição econômica na produção agrícola, e isto não é justo. É preciso dar visibilização ao trabalho da mulher, não somente na agricultura familiar, mas em todos os campos de trabalho.
Outro momento ocorrido nesta citada Oficina foi quando as mulheres relacionaram palavras-chave que estavam ligadas à sua história, seja como fator presente na formação do grupo, seja como consequência da sua organização, entre as quais: Conquistas, Lutas, Marcha Mundial de Mulheres, Produção, Políticas Públicas, Mudanças na vida, Mudanças no P.A. Esse fato ilustra a influência do contexto externo na consolidação do grupo; além disso, a participação em eventos, seminários, capacitações, encontros, e outras atividades permite a troca de experiências e uma maior apropriação dos conceitos, conforme citado pelas apicultoras em vários relatos. Entre as conseqüências da organização das mulheres citadas e discutidas por elas, salientamos o aumento da sua participação nos espaços do assentamento, inclusive com a presença de duas mulheres do grupo na associação à época da oficina (Figura 2).
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Apesar dessas dificuldades, o processo de organização das mulheres tem crescido no Território, e o assentamento São Manoel reflete essa realidade. No Diagnóstico sobre Gênero realizado no Território do Sertão do Apodi (2003), ao observar o grau de participação das mulheres em múltiplos espaços de organizações existentes no território, os números mostram que a maioria delas (63%) participa de algum grupo no assentamento ou comunidade. A maior participação das mulheres está nas associações, provavelmente isso ocorre pelo fato dessa organização estar mais ligada á comunidade e de a sua filiação ser um requisito para que as famílias possam usufruir dos projetos produtivos ou de outro tipo de melhoria comunitária. Essa situação não é diferente no assentamento São Manoel, todas as mulheres do grupo são associadas, no entanto apenas uma pequena parte está em dia com suas obrigações sociais, que incluem pagamento da mensalidade e participação nas assembléias.
No entanto, segundo a opinião das organizadoras do Diagnóstico, este crescimento e consolidação dos grupos é resultado de um processo pensado coletivamente, bem como é conseqüência do conhecimento adquirido ao longo do desenvolvimento das ações do movimento de mulheres rurais. Para tanto, citam que a participação em grupos de mulheres corresponde a quase 50 % do número total das que afirmaram participar de algum coletivo.
Ainda com referência aos dados levantados nesse Diagnóstico de Gênero do Território do Apodi, ficou claro, embora tenha crescido a participação das mulheres nas organizações políticas, isso não se dá nos cargos de direção, já que pelas respostas das entrevistadas apenas 8% dessas mulheres ocupam cargo nessas organizações e, destas, a maioria se encontra em funções que exercem pouco poder de intervenção e decisão, como os de secretária (34%) ou responsável pelo Conselho Fiscal (13%). Sob o ponto de vista da hierarquia, pode-se perceber o quanto é reduzido o número de mulheres presidentes de sindicatos, associações, conselhos gestores, e daí por diante. Segundo a pesquisa, das mulheres que ocupam cargos nas organizações apenas 11% são presidentes de associação, 13% vice-presidentes e novamente 11% como tesoureiras.
No território do Sertão Sergipano (2003) essa situação não é diferente, foi verificado que a maior parte das mulheres entrevistadas (55,84%) afirmou participar das organizações. Porem verificou-se que a atuação dessas mulheres é maior nas associações comunitárias (52,49%). Quanto à presença das mulheres em cargos de direção das organizações, pode-se considerar insignificante, apenas 17,65% afirmaram já ter ocupado cargo. Observando os cargos já ocupados, constatou-se uma maior concentração de mulheres em cargos que exercem pouco poder de intervenção e decisão, 7,4% na presidência; 14,9% na tesouraria; 33,3% na secretaria; e esse mesmo percentual (33,3%) nos conselhos.
Pelo que afirma Silva (2002), a conquista das mulheres em ter 30% dos cargos nas associações tem sido importante para fomentar a sua participação, visto que antes as mulheres nem sequer eram sócias, e hoje já é possível vê-las em cargos de direção, propondo e intervindo de forma qualificada. No entanto, a autora ressalta casos em que mesmo sendo uma mulher que assuma o cargo de presidente de uma organização, não tem sido ela que assume o seu verdadeiro papel, ficando por vezes a responsabilidade de representação pública com um dos diretores, pois a participação das mulheres não tem sido reconhecida pelos dirigentes de associações ou sindicatos haja vista que sua prática é de inibir a fala ou ação mais propositiva das mulheres.
Essa situação também pode ser relacionada com aquela encontrada por Dordelly et al. (2002), quando afirmam que o estudo permitiu também perceber diferenças acentuadas na estrutura das organizações que dirigem os assentamentos e nas organizações produtivas. Nas primeiras, as do Nordeste (Ceará) são constituídas apenas por homens, e as do Sul (Paraná) são formadas pelo casal (mulher e homem). No entanto, as duas regiões são semelhantes quanto ao poder de decisão, que é sempre dos homens.
Outro fato apontado pelas mulheres apicultoras de São Manoel como conseqüência da sua organização foi o crescimento da participação no sindicato, tanto que atualmente apenas uma delas não é sindicalizada. No diagnóstico realizado no Território (2003), verificou-se que 19% das mulheres que participam de associações atuam em sindicatos, e segundo as organizadoras do documento, a atuação dos grupos de mulheres desencadeou o avanço de parte da estrutura sindical e das associações de comunidade. Com a inclusão das mulheres como associadas concretizou-se a organização das Comissões de Mulheres nos Sindicatos. Além disso, esse fato evidencia a busca das mulheres por participação, levando-se em conta que até o momento ainda é tímido o programa de ações afirmativas no meio sindical, sendo recente a discussão em torno do processo de feminização deste campo, ou seja, a respeito de como os sindicatos têm respondido a uma maior presença das mulheres em suas estruturas diretivas e representativas.
Andrade (2004), ao avaliar a organização de mulheres no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Apodi acrescenta que para as mulheres a participação nas atividades dos grupos e da Comissão possibilita a construção de espaços coletivos, nos quais se organiza a luta, contribuindo para a melhoria na vida do campo e, ao mesmo tempo, para a inclusão das demandas de igualdade entre homens e mulheres como conquistas gerais.Segundo a autora, os grupos de mulheres nas comunidades e assentamentos, em conjunto com outras atividades mais amplas de reivindicação, foram fundamentais para que as mulheres valorizassem e enfrentassem os desafios de ocupação do espaço público e de sua própria auto-organização, no sentido de sua constituição como sujeito coletivo, com interesses comuns e ações políticas programáticas.
Já Silva (2002) ressalta que essa participação das mulheres nos espaços de decisão, como associações, sindicatos e cooperativas costuma ser tímida e pouco propositiva, apesar de que em alguns municípios onde foi possível acompanhar essa trajetória, percebe-se algumas mudanças e um impacto positivo em relação à intervenção das mulheres nesses espaços.
As apicultoras do assentamento São Manoel ressaltaram sua participação em espaços como a Comissão de Mulheres do STR, a Rede Xique-Xique, o Grupo de Trabalho (GT) de Gênero e Crédito e o Conselho Gestor do Projeto de Desenvolvimento de Área (PDA) Santa Cruz, organização não-governamental ligada à Visão Mundial e que atua na comunidade.
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Essa auto-organização vem se consolidando no estado do Rio Grande do Norte, conforme afirma Dantas (2005), apresentando que a mulher trabalhadora rural trilha há algumas décadas uma trajetória de lutas. Como resultado podemos observar um intenso movimento de mulheres, sobretudo no Oeste, onde se somam conquistas pioneiras e o fortalecimento das organizações. As mulheres do Oeste Potiguar, além de participarem dos sindicatos e figurarem de forma expressiva como lideranças comunitárias, são protagonistas de projetos que são modelo de organização, agroecologia e economia solidária no RN. Como exemplo as agricultoras organizadas no Grupo de Mulheres Decididas a Vencer que produzem hortaliças orgânicas no assentamento de Mulunguzinho em Mossoró, a primeira experiência deste gênero a associar agroecologia, economia solidária e feminismo no estado. Esse exemplo foi seguido pelas apicultoras de Apodi, como o grupo pioneiro no estado “Amigas das Abelhas”, no assentamento Milagre, bem como o grupo “Aromas do Paraíso” do assentamento Paraíso, e o grupo “Construindo a Liberdade” do assentamento São Manoel.
A participação nesses eventos, além das discussões conceituais, incentiva sempre a troca de produtos entre os grupos produtivos, valorizando o trabalho de cada um. O orgulho em “… saber que eu já negociei com esse produto…”, comentário feito por uma delas, reflete a importância de apresentar o fruto do seu trabalho, bem como a autonomia sobre a negociação do mesmo.
Atualmente, as mulheres vêm colocando em prática a Economia Solidária através da participação na Rede Xique-Xique de Comercialização Solidária, que tem sede na cidade de Mossoró (RN). Essa iniciativa é fruto de um amplo processo de construção coletiva dos grupos produtivos, com a contribuição de um conjunto de organizações da sociedade civil que, atuando em diferentes áreas, lutam pela autonomia e melhoria de vida dos trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade. Em 2003, foi criado o Espaço de Comercialização Solidária Xique-Xique, a partir de vários grupos com experiência de produção coletiva que buscavam um espaço de comercialização que atendesse às necessidades de seus projetos produtivos.
O Espaço tornou-se Rede quando reuniu 50 grupos participantes de oito municípios. Atualmente, a Rede tem três núcleos funcionando, em Mossoró, Baraúna e Apodi, e envolve em suas instâncias deliberativas uma presença majoritária de mulheres. Segundo Dantas (2005), a ideia é que o objetivo final não expresse apenas uma troca mercadológica de produtos, mas se situe na continuidade do processo de conscientização feito de forma participativa entre produtoras e produtores, consumidoras e consumidores, guiados pela premissa da autogestão. E promover a articulação dessas três etapas significa acreditar na construção de um instrumento concreto que garanta que os princípios e valores presentes na organização permaneçam também nos momentos da produção e comercialização. Quem se organiza também quer produzir, quem produz quer se organizar e comercializar. E produzir com organização exige uma comercialização justa e solidária.
Essa iniciativa de comercialização envolvendo diretamente as mulheres se confronta com a realidade da comercialização observada no Diagnóstico de Gênero do Território do Apodi (2003), em que 92% dessa atividade contínua exclusivamente sob o controle dos homens, enquanto que aquelas realizadas de forma compartilhada pelos dois correspondem a 2%, as feitas exclusivamente pelas mulheres, 5%, e aos filhos 1%.
Mesmo destacando os avanços, Dantas (2005) cita Nobre (2003) para ressaltar que é importante refletir sobre algumas questões: como provocar e efetivar nesse processo de economia solidária questões referentes à socialização do trabalho em todos os espaços? A participação em experiências solidárias não assegura a justa divisão de tarefas domésticas no cotidiano das mulheres, pois o custo da reprodução da força de trabalho no capitalismo têm sido pago apenas pelas mulheres em suas famílias, Figura 6.
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Quando foi discutida a atividade da apicultura para o grupo de apicultoras de São Manoel, foram levados em consideração vários fatores como: a potencialidade da região, o pioneirismo de outros grupos de mulheres no município que já vinham desenvolvendo a atividade com êxito, bem como o fato dessa exploração gerar uma receita satisfatória para complementar a renda familiar. Além disso, pelos investimentos realizados no assentamento através do PRONAF, as famílias já estavam iniciando a apicultura, com atividade complementar à agricultura de sequeiro e ovinocaprinocultura, já praticadas pelos trabalhadores e trabalhadoras.
A essa realidade podemos relacionar o exemplo de uma pesquisa realizada por Cardoso (2007) no município de Cruz das Almas/Bahia, com apicultores familiares, em que se constatou que cada agricultor tem uma média de 7 colméias ou caixas de abelhas. Nenhum tem a apicultura como atividade principal geradora de renda da propriedade; são policultores, que dividem em média 15 ha (em média) com, além das abelhas, pomar, área para pastagens, área para culturas temporárias (feijão milho, amendoim, fumo e mandioca), culturas permanentes (laranja), construções (casa, galpão, piquete, galinheiro, etc.) e horta, em alguns casos açudes e reservatórios e áreas de matas ou vegetação nativa.
Ao tomar por base os dados apresentados no Diagnóstico da apicultura no Sertão do Apodi contido no Programa Territorial de Fortalecimento da Apicultura em Unidades Familiares de Produção, lançado pelo Projeto Dom Helder Câmara em fevereiro de 2007, bem como as experiências de sucesso que vêm tendo outros assentamentos do município de Apodi na atividade apícola, pode-se concluir que a atividade tem potencial para a agricultura familiar.
Contudo, durante o desenvolvimento da pesquisa foi possível perceber que a questão da produção se confirmava como dificuldade sentida pelo grupo. Essa dificuldade já era sentida pelos homens, tendo levado a maioria destes a desistir da atividade.
O que estaria levando a essa dificuldade de produção apícola, para alguns (as) trabalhadores e trabalhadoras seria o local onde está localizado o assentamento, que não é propício à atividade. Contudo esse argumento fica comprometido, quando se constata que apicultores de assentamentos vizinhos têm conseguido uma boa produção apícola. Dessa forma, o problema deveria estar relacionado às práticas de manejo, Figura 7.
Essa hipótese fica mais consolidada quando em alguns momentos de conversa ou em oportunidade em que acompanhamos o grupo são explicitadas (ou mesmo percebidas) dificuldades como a arborização do apiário (problemas técnicos quanto à implantação das árvores de leucena e cajarana), dificuldade quanto à disponibilidade de água, bem como dificuldades para realização das tarefas planejadas devido a não disponibilização de algumas das mulheres. Para confirmar essa questão, podemos nos referir à fala de uma das apicultoras:
“… o que tá faltando mesmo é o nosso manejo do apiário: colocar plantas, água, zelar no verão. Porque você sabe que tudo depende do zelo, se você zela por uma coisa ela prospera…” (F.C.L.S.)
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A atividade produtiva do grupo era assessorada tecnicamente pela Associação de Apoio às Comunidades do Campo (AACC), havendo um agrônomo responsável pelo acompanhamento à apicultura. Contudo ainda assim persistia a dificuldade. Acrescente-se a essa situação o fato da saída da AACC da área ao final do ano de 2006 devido à finalização do projeto.
Pouco antes da saída da entidade da área, havia sido promovida uma capacitação específica em apicultura que possibilitaria aos técnicos uma melhor assessoria através da implantação de adequações ao manejo da apicultura no semi-árido, consequentemente levariam a uma melhora na produção. Essa situação foi, em parte, remediada, com a permanência de uma técnica agrícola da entidade em caráter voluntário para continuar o acompanhamento, embora com visitas mais pontuais.
As dificuldades sentidas não são exclusividade do grupo de apicultoras do assentamento São Manoel. De acordo com Dantas (2005), apesar da constante busca pela autodeterminação, o número expressivo de grupos produtivos de mulheres enfrentam os mais corriqueiros limites, como, por exemplo, a não permissão pelo marido para participar de atividades externas à região. Uma outra manifestação dessas restrições é a desvalorização do trabalho das mulheres na família. Há ainda as barreiras da distância física, quando as mulheres produzem, mas não conseguem comercializar.
No entanto, os frutos da organização social e produtiva das apicultoras, apesar de todas as limitações, se expressam não somente pelo retorno financeiro, mas também pelas vitórias conquistadas devido às mudanças ocorridas nas suas vidas, Figura 8. Essa conclusão pode ser ilustrada por uma frase construída pelas apicultoras ao resgatar parte da sua história:
“A nossa vida mudou completamente, onde nos sentíamos uma pessoa sem conhecimento dos nossos direitos e deveres, hoje faz parte do grupo, participa dos movimentos, participamos de várias capacitações, conquistamos nosso apiário, conquista da Pedagogia da Terra, participamos de várias feiras, expondo nossos produtos, passamos a conviver com pessoas de pensamentos diferentes, hoje aprendemos a viver no coletivo, respeitando o outro”. (Grupo de Mulheres “Construindo a Liberdade”, 31/08/2006)
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5 CONCLUSÃO/CONSIDERAÇÕES FINAIS
É possível afirmar que, com a realização do trabalho, pôde-se perceber que as apicultoras do grupo “Construindo a Liberdade” têm clareza das mudanças ocorridas em suas vidas a partir da sua inserção no grupo de apicultoras, bem como foi possível favorecer a elas a oportunidade de discutir tais mudanças. Dessa forma, acredita-se que o grupo está no caminho da construção da liberdade a que se propõe em seu nome.
Vale ressaltar que a organização social e produtiva do grupo baseada na discussão da questão de gênero proporcionou a reflexão da sua condição de mulher e o seu papel na família, no assentamento e na sociedade. É possível visualizar essa percepção das mulheres quando estas se reconhecem como trabalhadoras rurais, agricultoras, apicultoras.
Apesar do contexto de desigualdades em que as apicultoras estão inseridas, realidade que se assemelha à demais agricultoras familiares, ficou claro que houve mudanças na correlação de forças no interior da família, embora sutis.
A mudança também pôde ser percebida por elas com relação à sua participação propositiva nos espaços público e privado. Ainda foi possível constatar juntamente com elas a influência do contexto social e político externo para consolidação do grupo, favorecendo para que as trabalhadoras conhecessem e utilizassem seu poder de mobilização, reivindicação e proposição, caminhando para serem protagonistas de suas histórias.
Contudo, há desafios que se colocam para as apicultoras no que diz respeito à sua dificuldade de produção, que tem levado a um desestímulo, bem como à disponibilidade para realização das atividades. Na busca da superação desses desafios, pode-se afirmar que o fato das mulheres se sentirem protagonistas de um trabalho trouxe motivação ao grupo.
Portanto, levando em consideração que o modelo de assessoria técnica proposto atualmente para áreas de agricultura familiar tem na questão de gênero um viés fundamental, pode-se afirmar que o trabalho tem uma contribuição para a discussão nesse aspecto.
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