CONCEPÇÕES DE ORDEM PÚBLICA E SUAS CONEXÕES COM O DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO À LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

CONCEPTIONS OF PUBLIC ORDER AND ITS CONNECTIONS WITH PRIVATE INTERNATIONAL LAW ACCORDING TO THE BRAZILIAN LEGAL ORDER

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8146040


Virna de Barros Nunes Figueiredo1
Auricelia do Nascimento Melo2


RESUMO: 

A definição do conceito de ordem pública está longe de ser ponto pacífico na doutrina pátria. Diante de múltiplas possibilidades de interpretação, o termo oriundo da subjetividade de dois importantes vocábulos aceita uma abstração quase que completa, que impede uma definição precisa de seu conteúdo. Em que pese as tentativas de se chegar a uma definição, se verifica a ausência de unidade e segurança para apresentar o significado mais apropriado para a expressão ordem pública. Diante de tal celeuma, o objetivo do estudo foi buscar apresentar noções de ordem pública diretamente associadas à distinção metodológica, oferecendo um panorama de três possíveis conotações. A problemática envolvida residiu justamente em fazer uma análise contemplando as diversas sistemáticas para que ao final pudesse delinear a existência de uma complementaridade diante das controvérsias. Para alcançar tal premissa, o texto ora apresentado se utilizou da metodologia analítica através da apreciação da legislação e doutrina referentes ao tema, que se mostrem capazes de revelar a gênese, características e principais acepções do instituto da ordem pública. Como resultado verificou-se que é possível traços de complementaridade entre as noções de ordem pública formal e material, ao tempo em que se verifica um antagonismo entre as vertentes jurídica e metajurídica.

PALAVRAS-CHAVE: Ordem pública; Ordem jurídica; Soberania nacional; Conflitos de leis no espaço; Direito Internacional Privado.

ABSTRACT: 

The definition of the concept of public order is far from being a settled point in the national doctrine. Faced with multiple possibilities of interpretation, the term derived from the subjectivity of two important words accepts an almost complete abstraction, which prevents a precise definition of its content. Despite the attempts to arrive at a definition, there is a lack of unity and security to present the most appropriate meaning for the expression public order. Faced with such a stir, the objective of the study was to seek to present notions of public order directly associated with the methodological distinction, offering an overview of three possible connotations. The problem involved resided precisely in carrying out an analysis contemplating the different systematics so that, in the end, it could delineate the existence of a complementarity in the face of controversies. To achieve this premise, the text presented here used the analytical methodology through the appreciation of the legislation and doctrine related to the subject, which prove capable of revealing the genesis, characteristics and main meanings of the institute of public order. As a result, it was verified that it is possible to complement the notions of formal and material public order, at the same time that there is an antagonism between the legal and meta-legal aspects.

KEYWORDS: Public order; Legal order; National sovereignty; Conflicts of laws in space; Private International Law.

INTRODUÇÃO

A Ordem Pública é essencial para a vida em sociedade, visto que abrange as manifestações sociais de maior relevância, perpassa pelos bons costumes, pela prosperidade e organização da comunidade e alcança a ideia da soberania nacional. Na pretensão de discorrer sobre a expressão ordem pública se faz primeiramente necessário revisitar o vocábulo “ordem” em algumas de suas acepções. 

Originária da expressão latina ordo ou ordĭnis, a palavra ordem em sua etimologia significa organização, arranjo, regularidade, disciplina boa disposição e equilíbrio entre partes. (GUIMARÃES, 2020. p. 415). E mais profundamente, retrata as regras, leis, estruturas que constituem uma sociedade, ao tempo que também denota a visão de método e sistema.

Nos dicionários de língua portuguesa, a palavra ordem se desdobra em vista de seu caráter polissêmico indicando desde a organização sistemática de vários elementos que seguem princípios predeterminados, o ato de indicar com autoridade de que modo se devem fazer ou dispor as coisas, subdivisão de classes, classe de pessoas que exercem determinada profissão, entre outros. Da mesma maneira, ao se analisar o verbo ordenar, percebe-se tratar de vetor do núcleo de diversos outros termos como ordinário, coordenar, subordinar, extraordinário, entre outros, o que conduz a múltiplas possibilidades de interpretação. Portanto, tem-se que a expressão “ordem” implica em diferentes sentidos que irão se aclarar conforme o contexto no qual se encontre inserida, mas de algum modo sempre conservará como conotação primordial a idéia de se evitar o caos.

Para o presente estudo, a expressão será inicialmente apresentada a partir do contexto social, no qual significa um estado amplo de segurança imperativo para a coexistência pacífica em sociedade, de forma ainda mais específica, associada à esfera pública. Contudo, a tentativa de analisar a noção de ordem pública em meio a soma de subjetividades das duas expressões não se revela uma tarefa simples e por isso, em busca de um primeiro passo para uma adequada compreensão, recorre-se à história.

Na verdade, desde a noção histórica no Direito Romano clássico e dos esforços doutrinários subsequentes, o mundo jurídico ressente-se até hoje de um conceito definitivo ou completo de ordem pública, falta esta que reflete sobremaneira na interpretação e aplicação das normas legais que tratam da sua garantia, inclusive no Estado Constitucional brasileiro. (LENZA, 2020, p.54). Composta por duas palavras abstratas, a expressão ordem pública revela-se polivalente, sendo inviável esperar um conceito unitário mediante suas várias fontes e formas de aplicação específicas para cada setor. 

Sob o prisma jurídico, a ordem pública pode ser verificada sobre diferentes vertentes, visto que cada uma de suas disciplinas a interpreta de uma maneira específica conforme seus princípios e regras fundamentais, com variações em sua finalidade, aplicação e extensão. Deste modo, tem-se um conceito multifacetado, que apresenta desdobramentos e esferas de atuação diversas, considerando o ramo do direito no qual se encontra inserido. Logo, pode-se afirmar que ordem pública apresenta significados distintos para os civilistas, constitucionalistas e processualistas. É neste estágio que se desenvolve o raciocínio apresentado neste breve estudo.

Ao longo dos tópicos propostos inicialmente serão apresentadas considerações sobre a noção geral de ordem pública, para em sequência apresentar suas concepções formais e materiais. O terceiro tópico tratará da visão metajurídica do instituto para que em seguida, se discuta acerca da dualidade entre as normas de ordem pública versus normas dispositivas de ordem privada. 

Em sua parte final, o presente estudo se fixará na relação na função balizadora da ordem pública frente ao Direito Internacional Privado, enquanto instrumento apto a indicar a ineficácia da lei, ato ou sentença estrangeira que ofender a ordem pública, a soberania nacional e os bons costumes. A noção de ordem pública será explorada tanto enquanto via negativa quanto impeditiva à aplicação de lei estrangeira, ao reconhecimento de atos e sentenças realizados ou proferidos no exterior, como na via positiva, sendo instrumento de constituição e melhoria do exercício da cidadania em matérias internacionais.

1. OLHARES SOBRE A NOÇÃO DE ORDEM PÚBLICA 

Embora a noção de ordem pública já existisse na Roma, englobada no “ius publicam”, a sua caracterização como instituto jurídico ocorre na Idade Média, quando se passou a adotar ideia da supremacia do interesse público sobre o privado, de modo a possibilitar e justificar a aplicação de penas violentas para resolver problemas sociais em nome da segurança pública que, muitas vezes, se confundia com os próprios governantes. (GONZÁLEZ MÍNGUEZ, 2006, p. 12). 

A partir do uso termo em documentos policiais, século XVIII, tem-se referências ao conceito de ordem pública em obras jurídicas, como o “Traité de Police”, de Nicolas Delmare, de 1705, e as “Cartas Sobre La Policía”, de Valentin de Foronda, escritas entre 1767 e 1781. E, mais relevante, na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que contempla a expressão no seu art. 10: “Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida em lei”.1

No Brasil, salvo a menção nas Constituições de 18912 e de 19373, a ordem pública passou a ser adotada como instituto jurídico pelo Código de Processo Penal, de 1941, enquanto fundamento da prisão provisória ou preventiva4. Sob a égide da Constituição Cidadã, de 1988, a ordem pública é tratada no Título V – Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas, que se divide em nos Capítulos do Estado de Defesa, Do Estado de Sítio, Das Forças Armadas e Da Segurança Pública. 

Sob a égide da Constituição Cidadã, de 1988, a ordem pública é tratada no Título V – Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas, que se divide em nos Capítulos do Estado de Defesa, Do Estado de Sítio, Das Forças Armadas e Da Segurança Pública. Na realidade, na leitura do texto constitucional vigente, o resguardo da ordem pública, compreendida enquanto paz social na manutenção do bem comum, se apresenta como função e um objetivo a ser alcançado pelo Estado Democrático de Direito. (FERREIRA FILHO, 2015, p. 1523).

A melhor de todas as sugestões doutrinárias afirma ser possível identificar a ordem pública como um princípio geral de preservação de valores jurídicos, morais e econômicos de determinada sociedade política (BARROSO, 1999. p. 46). Em outra descrição ordem pública foi caracterizada como juridicidade, objetividade, ser reflexo social, flexibilidade, fixação jurisprudencial e limitatividade por Acedo Penco. (ACEDO PENCO, 1997, p. 323-324). Acompanhando este pensamento, é possível afirmar que a ordem pública perpassa todo o organismo jurídico, se apresentando em todos os institutos e a propósito de quase tudo, sendo seu conteúdo mutável ao tempo em que sua definição se revela vaga e imprecisa. (CALIXTO, 1987, p.96).

Em muitas ocasiões, a interpretação parte da afirmação que o resguardo da ordem pública se encontra intimamente ligada à paz social, sendo função do Estado em prol do bem comum. Tal assertiva mais uma vez não traz uma definição satisfatória, mas acaba por atribuir o caráter de objetivo para a expressão. (FERREIRA FILHO, 2012, p. 1523).  

Por prática a ordem pública é simplesmente definida como a paz ou tranquilidade no meio social5 ou ainda como a ausência de perturbações nas relações sociais. (PIERO, 2004, p.12). Embora a doutrina não se tenha furtado da missão de definir a expressão, não logrou êxito na elaboração de um conceito unívoco, sucumbindo a variações metodológicas que geraram sentidos distintos, porém, adequados conforme suas particularidades que de certa forma passaram a coexistir. 

Um outro caminho para a compressão da ideia de ordem pública, perpassa pelo abandono das tentativas de uma definição formal por meio de um conceito em essência, para analisar e indagar sobre a desordem e os demais comportamentos que devem ser eliminados e permanecer à margem de tudo o que a contraria. (MELO, 2022, p.60).

Na acepção sistêmica, a ordem pública assume a posição de condição fundamental para o funcionamento do sistema da convivência pública. Afinal, viver em sociedade exige harmonia e organização de tal modo que o cidadão em suas relações possa usufruir de liberdade, agindo sem perturbações, se filiando aos sistemas sociais conforme sua vontade sem restrições que não sejam aquelas necessárias para assegurar o cumprimento das normas impostas pela ordem jurídica com o objetivo de garantir a paz e o bem-estar social.

O contexto da convivência pública, embora apresente grande relevância, não necessariamente auxilia na busca de uma definição clara para a ordem pública visto que se revela igualmente mutável e amplo. Assim, recorre-se a distinção metodológica entre a concepção descritiva ou material e a acepção normativa ou formal de ordem pública em uma tentativa de minorar as controvérsias.

1.1 A ORDEM PÚBLICA NA CONCEPÇÃO FORMAL

Em sua concepção formal ou normativa, a ordem pública se apresenta enquanto um conjunto de princípios oriundo de uma concepção abstrata e de uma afirmação de vontade, assumindo desta forma um caráter prático. Seria um conceito geral de Direito, que importa em um sistema de referência para a ordem jurídica. Conforme Pontes de Miranda seria um “sobredireito” que faria as vezes de balizador dos limites impostos às liberdades individuais. (MIRANDA, 1970, p. 67). 

Neste sentido, seria um conjunto de princípios, valores e normas com função de mediar a convivência entre direitos individuais, disponíveis e os interesses coletivos, promovendo um equilíbrio nas relações e um funcionamento estável, ao tempo em que evitasse excessos anti-sociais. (MOREIRA NETO, 1988, p. 143).

Logo, no esteio de seu sentido formal, ou estrita de ordem pública é possível encontrar a expressão “normas de ordem pública”, que indica um caráter imperativo para as leis. Prevalece a noção de um conjunto de princípios essenciais para concretização do bem comum e consequentemente para a vida em sociedade. 

Nesta vertente não há uma identificação direta da ideia de ordem pública com a ordem jurídica, ou pelo menos não se partilha a visão de que a ordem pública seja uma decorrência da ordem jurídica, mas sim uma parte desta. Além de normas, estariam aqui presentes as instituições que asseguram o bom funcionamento do país por meio da prestação de serviços públicos, segurança e moralidade nas relações entre os indivíduos.6

Nesta vertente, a ordem pública não deixa de ser uma situação de moralidade e legalidade, a ser observada porque possua competência. Nos dizeres de Cretella Júnior “A ordem pública existirá onde estiver ausente a desordem, isto é, os atos de violência, de que espécie for, contra as pessoas, bens ou o próprio Estado”. “A ordem pública, arremata o autor, não é figura jurídica, embora ela se origine e tenha a sua existência formal”. (CRETELLA JÚNIOR, 1998, p. 8.).

A ordem pública formal não seria uma figura jurídica, bem como não se caracteriza como uma instituição de caráter político ou social, apresentando-se como “uma situação fática de respeito ao interesse da coletividade e aos direitos individuais que o Estado assegura”. (CRETELLA JÚNIOR, 1998, p. 93). Seria sim, uma espécie de guia ou de molde para a realidade conforme o que se pretende que sejam observados em uma sociedade.

1.2 A ORDEM PÚBLICA NA CONCEPÇÃO MATERIAL

    Apresentada do ponto de vista material ou descritivo, a ordem pública representa uma situação fática que se verifica em sociedade, sendo consequência da organização harmônica dos elementos que ali interagem, proporcionando um funcionamento estável, que permita o exercício da liberdade de cada cidadão. Sendo esta acepção diretamente associada a um modelo real e prático, o significado de ordem pública se apresenta de modo direto como oposição à desordem. 

    Por tanto, trata de uma situação de convivência social pacífica, na qual embora se percebam divergências, debates e controvérsias, não há a caracterização de ameaça de violência ou de sublevação que tenha produzido ou que supostamente possa produzir, a curto prazo, a prática de crimes. (SILVA, 1998, p. 742).

    No sentido material, a ordem pública se apresenta como tranquilidade pública, segurança pública e salubridade pública. Seria a ausência de perturbação, paz pública e disposição harmoniosa da convivência7. Seria a pública propriamente dita, enquanto a ausência de desordem, de atos de violência contra as pessoas, os bens ou o próprio Estado; Situação e o estado de legalidade; Estabilidade e segurança do organismo social por meio do poder de polícia do Estado8. Segundo tal visão, a ordem pública não se confunde com a ordem jurídica, embora derive dela. Conforme o pensamento de Moreira Neto, a ordem pública enquanto objeto da segurança pública, seria a situação de convivência pacífica e harmoniosa da população fundada em princípios éticos vigentes em sociedade. (MOREIRA NETO, 1998, p.138).

    Dentre todos os conceitos apresentados, observa-se que em sua acepção material, a ordem pública é apresentada como uma situação fática, cujo conteúdo se relaciona com a paz e harmonia sociais, enquanto seu fundamento deriva não apenas do direito, mas apresenta igualmente a moral e os costumes como fontes. Diante da apresentação da vertente material, surge ainda aqueles que decidem optar por uma interpretação híbrida, interpretando a ordem pública como condição de paz para a realização dos objetivos do Estado e do seu papel de modo que ordem pública há de ser entendida como aquela que corresponde ao funcionamento normal da sociedade como um todo, evidentemente que dentro de uma ótica de juízo de valor que corresponde aos valores consagrados e aceitos por esta mesma sociedade. (DANTAS, 1989, p. 48).

    Ao mesclar as duas vertentes, emerge a ideia de um pressuposto para uma normalidade mínima dentro de uma convivência social harmônica, contudo o mencionado elemento de normalidade, se analisado de modo mais profundo, apresenta conexão com uma ordem efetivamente material.

    1.3 A ORDEM PÚBLICA NA CONCEPÇÃO METAJURÍDICA

    Em meio as variações conceituais surgem posicionamentos que agregam novos elementos à noção de ordem pública sem que haja identificação com as vertentes material ou formal. A exemplo disso, a visão de ordem pública associada ao Direito Administrativo proposta por Emilio Fernández Vásquez, segundo a qual esta é constituída por condições imprescindíveis a uma vida social adequada, apresentando como fundamento a segurança de pessoas e bens, salubridade, tranquilidade, além de indicar aspectos políticos, econômicos e estéticos (DANTAS, 1989, p. 47). 

    Seria este um exemplo da concepção metajurídica, na qual a ordem pública se encontra para além da oposição à desordem. Conforme afirma Otto Mayer, a ordem pública sob o prisma metajurídico seria a boa ordem da comunidade e se apresenta em posição antagônica as acepções de natureza jurídica, afastando se das visões material e formal previamente analisada9.

    A premissa de Mayer se constrói a partir da ideia de que a conduta de um particular não pode perturbar a boa ordem da comunidade a qual pertence, pois há a obrigação social de não realizar tais perturbações, mediante uma obrigação que se configura de forma natural sem que haja a necessidade de imposição por meio de uma norma jurídica. (FERNÁNDEZ-VALMAYOR, 1990, p. 12). Neste raciocínio, haveria um direito natural de polícia autolegitimado para manter a ordem social.

    Paul Bernard defende que a ordem pública tem seu conceito baseado tanto em fontes jurídicas, bem como extrajurídicas e alerta sobre a linha tênue que separa a proteção da liberdade individual e a garantia da segurança comum. E em sua definição, aponta que a expressão trata de uma noção básica para o centro vital do Direito e da sociedade. (BERNARD, 1962, p.182).

    Nas palavras de Lazzarini, obedece a um critério contingente, histórico e nacional, sendo descrita como uma situação de fato oposta à desordem, sendo essencialmente de natureza material e exterior (2003, p.8). Seria a ordem pública, por tanto percebida a partir de um conjunto de critérios, políticos, econômicos e até mesmo religiosos.

    Percebe-se que visão metajurídica se distancia das concepções anteriormente apresentadas a medida em que se baseia em princípios abstratos e sem conotação jurídica, tais como “ausência de desordem”, “ausência de perturbações”, “paz” e “convivência harmônica”, conforme as definições previamente apresentadas. Seria para esta acepção, efeito de uma realidade específica, elevando-se a partir da convivência harmônica oriunda do consenso da maioria, variando conforme o tempo, espaço e as contingências históricas.

    Desta forma, conclui-se que a ordem pública enseja uma compreensão aberta e variável, especialmente quando norteada pelo sentido formal ou material. Em um breve recorte, propõe-se exemplificar pelo olhar da jurisprudência pautada no direito internacional os reflexos de tamanha subjetividade que acaba por se revelar fonte de contradições e dificuldades nas mais diversas áreas, provendo uma matéria desafiadora para os tribunais brasileiros quando da necessidade de se trabalhar com leis alienígenas e seus impactos. Contudo, para maior clareza se faz necessário recordar os principais desdobramentos das normas de ordem pública quanto ao confronto com dispositivos de ordem privada.

    2. NORMAS DE ORDEM PÚBLICA VERSUS NORMAS DISPOSITIVAS DE ORDEM PRIVADA

    A natureza desse tópico reside dentro de uma perspectiva de ordem nominal, ou seja; é importante referir às normas de ordem pública e privada para que se detenha exatamente ao objetivo do trabalho e fique clara a diferença.  A ordem privada na compreensão atual é a orientação que permite aos particulares praticarem um ato, legitimado pela expressão, ou pela interpretação ou pela presunção de corresponder à vontade das partes. 

    A ideia básica para que se possa denotar a diferença entre normas de ordem pública e privada é que de um lado o Estado regulamenta pela lei determinadas relações da vida em sociedade, mas por outro lado deixa em diversos pontos, alguns espaços para que os cidadãos exerçam o que é denominado de autonomia da vontade.10

    Explicando de maneira detalhada, as regras que permitem o exercício de autonomia privada são chamadas de regras dispositivas, ou seja; elas estabelecem uma maneira básica para a relação jurídica, mas esta maneira pode ser alterada pelas partes.

    O que configura claramente essa situação são os exemplos vivenciados no mundo dos contratos, pois, os sujeitos têm liberdade para disporem a respeito das cláusulas contratuais. O que não se verifica nas normas de ordem pública, pois estas, não podem ser derrogadas pelos cidadãos. Elas estabelecem limites, que muitas vezes são questionados na ordem da aplicação legal, o que permeia uma série de debates conforme tratado ao longo do trabalho. 

    Verifica-se então que às leis de ordem privada correspondem à liberdade individual. É a esfera que engloba as normas dispositivas,  aqui compreendidas como aquelas em que nenhum interesse social existe a proteger, podendo ser derrogadas pela vontade das partes. Tem-se no caso, uma relação na qual predomina a vontade privada, conforme a conveniência dos interessados.

    Com efeito, à ordem pública são adjudicados os valores extraídos de um consenso social e jurídico de um ordenamento determinado11, ao passo que na ordem privada é possível derrogar normas dispositivas pela vontade dos sujeitos envolvidos. A relação entre o público e privado é bastante intrincada, revestindo-se de desdobramentos complexos dentre os quais se destaca, para fins deste estudo, as situações de conflito envolvendo a aplicação de normas estrangeiras.

    Ao se considerar os interesses gerais de uma sociedade há que se olhar para suas as tradições e costumes, valores morais e religiosos, além de ideologias políticas e econômicas. Assim, sempre que se determine a aplicação de uma lei estrangeira em território nacional, em um determinado caso concreto, será necessária uma cuidadosa avaliação a fim de assegurar que sua aplicabilidade não representa ofensa aos princípios de organização política, jurídica e social, ou seja, a soberania nacional, ou os bons costumes.

    3. A ORDEM PÚBLICA FACE AO CONFLITO DE LEIS NO ESPAÇO

    Mediante um conflito de leis no espaço, o ordenamento brasileiro adota a visão da territorialidade moderada, aplicando ao mesmo tempo, o princípio da territorialidade e o princípio da extraterritorialidade. Desta forma, há permissão para que em casos excepcionais, se solicite a aplicação da lei estrangeira em território nacional.

    Em fato, sempre que ocorre um litígio no qual se verificam dispositivos de fontes legais de origem distintas aptas à solução do caso, cabe ao responsável pela resposta jurídica buscar amparo e direcionamento nas normas de direito internacional privado para indicar qual será o norteador adotado. (RECHSTEINER, 2022, p.107).  É preciso cautela para definir a lei aplicável à situação ou ainda decidir quanto à possibilidade de aceitar efeitos estrangeiros em território nacional, face o risco de um conflito direto com as normas jurídicas, éticas e morais vigentes em âmbito interno. Segundo dispõe o artigo nº 17 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, “as leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes.”

    Ao se pensar na ideia de ordem pública as características da relatividade e da contemporaneidade emergem primeiramente. Seria relativa visto que cada sistema jurídico a define de maneira específica, constatando-se uma variação local. Na mesma linha, é possível perceber a existência de uma variação temporal em razão das alterações de características, valores e costumes de cada época. (SCHAEDLER, 2012, p.32). Curioso perceber que as variações na interpretação da ordem pública baseadas na realidade contemporânea têm sido extremamente aceleradas nas últimas décadas, o que torna a matéria ainda mais delicada e relevante.12

    Pela visão da ordem pública, se deve rejeitar a aplicação de normas alienígenas sempre que consideradas ofensivas aos princípios básicos da ordem jurídica do foro, ainda que haja indicação de sua competência conforme a conexão prevista no direito internacional privado. (DOLINGER, 1986, p.385).  O papel da ordem pública mediante conflitos de normas no espaço se pauta na análise dos possíveis efeitos e desdobramentos que uma lei alienígena poderia vir a desencadear caso aplicada em foro nacional, tendo por base somente a determinação expressa na respectiva norma sobre conflitos desta natureza.

    Porém, a ausência de um rol taxativo inviabiliza a segurança no momento de estabelecer as hipóteses nas quais será cabível a exceção da ordem pública, o que resulta na relativização do instituto na visão do direito internacional. A rejeição ao direito estrangeiro se dará através da discricionariedade judicial, que decidirá pela conveniência ou não do uso da a aplicação do instituto da ordem pública como óbice ao direito estrangeiro. Esta delicada situação se estende além das cortes estatais e igualmente recai sobre outros meios jurisdicionais de solução de controvérsias, como as câmaras de arbitragem internacional, configurando um cenário que induz o questionamento quanto aos limites para essa discricionariedade a fim de evitar excessos. 

    A ordem pública enquanto instrumento de intervenção apto a inviabilizar a aplicação de lei estrangeira deve ter por base possíveis efeitos nocivos decorrentes de tal emprego. A justificativa deve considerar risco à integridade social, levando em consideração aspectos da contemporaneidade e sem jamais ser utilizada de forma leviana. De fato, sob outro prisma a ordem pública atua como instrumento de constituição e melhoria do exercício da cidadania em matérias internacionais, protegendo diretamente a integridade dos interesses sociais e da soberania nacional. 

    Em um panorama globalizado, marcado pelas tecnologias de aproximação e por relações de conectividade das mais diversas naturezas, sejam econômicas, culturais ou até mesmo pessoais, há clara necessidade de tolerância e diálogo entre ordenamentos jurídicos, especialmente com a integração de tribunais forjada pelas comunidades internacionais. Há que se recordar que cada Estado ou nação definirá as leis que regerão as relações pessoais e materiais de seus cidadãos, existindo uma variação natural e inevitável. Logo, é preciso atenção na busca por um equilíbrio de interesses e bem como na compreensão das peculiaridades envoltas no dilema, desde o reconhecimento da posição fragilizada do estrangeiro até os interesses das comunidades envolvidas.

    Nos casos nos quais a ordem pública conduz à não aplicação de uma norma estrangeira, a motivação da negativa incide na verificação de conflito considerado apto a causar algum tipo de prejuízo ao Estado. Seria assim, uma prerrogativa de não aceitação de preceito legal estrangeiro, ainda que perfeitamente válido em seu ordenamento de origem, com base em uma possível colisão com valores primordiais do ordenamento nacional. Tal fato explica a constante associação realizada entre ordem pública e a ideia de limite para aplicação de normas estrangeiras, sob o prisma do Direito Internacional Privado.  

    Na realidade, a ordem pública na visão do Direito Internacional prescinde da preocupação com a tutela de direitos subjetivos, para focar na proteção de um interesse social público, tomando por referencial o direito interno de cada país. Porém, mais uma vez não consta em meio a doutrina uma definição segura quanto às matérias consideradas de ordem pública, não havendo, portanto, uma sistematização por meio de rol taxativo de situações que exigiram  a  proteção da cultura, da filosofia, dos costumes e da moral local.

    Resta ao aplicador da lei caminhar de forma cuidadosa e sensata, buscando clareza para definir o que seria fundamental no sistema jurídico, a fim de assegurar a ordem, mesmo diante da manifesta vontade das partes envolvidas, ou da orientação de lei estrangeira conflitante. Neste sentido, buscando uma melhor compreensão da matéria, se apresenta a seguir algumas situações emblemáticas enfrentadas pelo ordenamento pátrio.

    4. A ORDEM PÚBLICA, O DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO E A JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA

    Conforme visto nas linhas deste breve estudo, a ordem pública, ao apresentar-se na condição de critério axiológico, deverá ser observada em conformidade com o fórum e tendo em conta o contexto atual. (MARQUES, 2002, p.5). Logo, além de apresentar como característica direta o fato de sem se encontrar atrelada ao direito interno de cada país, a ordem pública também é marcada pela liberdade atribuída aos operadores do direito quanto a verificação de seus limites e aplicações. Por outro lado, é preciso ponderar as restrições oriundas da ideia de ordem pública com o direito à liberdade que se atribui às partes para contratar e definir as regras aplicáveis a suas relações, princípio básico do Direito Internacional Privado. 

    Deste modo, a ordem pública enquanto contenção negativa deve ser aplicada de maneira cautelosa, devendo-se primar sempre pela razoabilidade conforme a análise da questão. Neste sentido, o entendimento de parte da doutrina contemporânea que defende a possibilidade da aplicação parcial de sentenças estrangeiras, observando a preservação daquilo que não for considerado nocivo à ordem pública pátria, de modo a não impedir completamente a aplicação da visão do Direito Internacional Privado.

    Antes de aprofundar a problemática das sentenças estrangeiras é importante ressaltar que são diversos os setores do Direito Internacional Privado afetados pelo instituto da ordem pública, dentre os quais se destacam como exemplos, uma possível declaração de nulidade de certas cláusulas de contratos internacionais ou mesmo a recusa do reconhecimento e a possível declaração de nulidade de execução de sentença arbitral internacional13. Contudo, é inegável que os questionamentos decorrentes da possibilidade de homologação de sentenças estrangeiras acabam por despertar maior atenção tanto por parte do cidadão comum, como para estudiosos e operadores do Direito.

    Tarefa delicada é indicar de que forma o termo “ordem pública” deve ser considerado para fins de homologação de sentença estrangeira, seja ela judicial ou arbitral, no Brasil.  Em um primeiro momento, se eleva a ideia de que será necessário buscar equivalência entre a lei nacional e a estrangeira a ser aplicada.14 Porém, resta a dúvida se a ausência da equivalência pretendida entre os preceitos legais dos dois Estados seria fator determinante para inviabilizar a aplicação da norma alienígena em território nacional. 

    A dificuldade se amplia ao se tentar avaliar a violação da ordem pública em questões classificadas limítrofes, decorrentes de situações culturais e sociais distintas, que se admite embora aceitas em um determinado país e não são permitidas no Brasil. (RANZOLIN, 2023, p.5). O problema aqui mencionado, se centra na concorrência entre a lei local e a lei estrangeira, devendo-se buscar solução nos princípios gerais do direito internacional privado, bem como na fixação das normas relativas à autoridade preponderante de uma das duas leis, tendo por base a competência legislativa de onde elas se encontram, aplicando regra a lexfori em lugar da lei estrangeira contrária à ordem pública. (VINCENZI, 2009, p.3). 

    Porém, uma vez que se determine a aplicação de uma lei estrangeira em território brasileiro, será necessário previamente verificar se tal fato não afrontará os princípios que regem a organização política, jurídica e social, convergindo na soberania nacional, ou ainda a ordem pública e os bons costumes. Mas por outro lado, nem sempre a situação prática mostra de forma cristalina o caminho para a manutenção da ordem pública. A título de exemplo, tem-se o caso do cidadão brasileiro condenado ao pagamento de dívidas de jogo15, que gerou visões divergentes: se por um lado as dívidas de jogo não seriam passíveis de execução em solo brasileiro por contrariarem à ordem pública nacional, impossibilitar tal cobrança comprovada resultaria em permissão ao enriquecimento sem causa, situação ainda mais afrontosa à ordem pública.

    Como todo direito adquirido de modo regular, em razão de lei internacionalmente competente, deve ser reconhecido e protegido por todos os países, embora haja limitação da ordem pública, imagina-se que a dívida deva ser quitada. Neste sentido, se posicionou a Terceira Turma do STJ utilizando-se da regra prevista no artigo 9º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, segundo o qual para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem. 

    Entenderam os julgadores que a cobrança de dívida proveniente de jogo de azar contraída no estrangeiro, onde o ordenamento jurídico permite tal prática, não ofende a soberania nacional, visto que concessão de validade a negócio jurídico realizado no estrangeiro não retira o poder do Estado em seu território e nem cria nenhuma forma de dependência ou subordinação a outros Estados soberanos16. Assim, leis, atos e sentença de caráter internacional que não ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes, serão considerados no Brasil.

    Coube ao Superior Tribunal de Justiça a difícil tarefa, imposta pela Constituição Federal, de recomendar quais situações se apresentam de forma contrária à ordem pública, bem como os casos nos quais não há qualquer tipo de agravo, devendo ser permitida a homologação de sentença estrangeira em território nacional. Na tentativa de estabelecer parâmetros tal avaliação, o STJ tem assumido em seus julgados que são normas de ordem pública as constitucionais, as processuais, as administrativas, as penais, as de organização judiciária, as fiscais, as de polícia, as que protegem os incapazes, as que tratam de organização de família, as que estabelecem condições e formalidades para certos atos e as de organização econômica17

    A decisão de aplicar ou não norma alienígena dependerá, ainda, da verificação do momento em que o órgão judicante irá apreciar o caso, baseado em norma constitucional, leis e decisões do país, considerando o meio social. Em um segundo exemplo para a mesma dificuldade, questiona-se como seria visto pelo nosso ordenamento as relações matrimoniais estabelecidas por um cidadão árabe que se transfere e fixa residência no Brasil. 

    Na ausência do reconhecimento de relações poligâmicas, delicado será definir os efeitos pessoais, sociais e patrimoniais decorrentes do matrimônio entre o marido e suas mulheres, ou ainda, autorizar um novo matrimônio. Em um primeiro momento, não seria possível o reconhecimento destas relações mediante a clara contradição com os dispostos na Constituição Federal e no Código Civil, contudo seria imperioso reconhecer e assegurar o direito dos filhos dessa união múltipla. 

    Logo, sentenças judiciais estrangeiras que contrariar preceitos de ordem pública e leis já consolidadas no ordenamento não serão homologadas no Brasil. A jurisprudência já se encontra pacificada na compreensão de que diante da concordância da decisão com sistema jurídico estrangeiro, o juiz brasileiro deve aplicar o direito de acordo com as regras que seriam observadas pelo juiz estrangeiro, atendendo às disposições de seu ordenamento. Portanto, em regra serão respeitados e reconhecidos os direitos adquiridos no exterior, considerando-se ineficazes somente leis, atos e sentenças de outro país que ofenderem a ordem pública, a soberania nacional e os bons costumes. 

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Mediante os desencontros doutrinários sobre a definição de ordem pública, percebe-se que a matéria tratada é complexa e delicada. Em meio a variação de significados e conteúdos encontrados a depender do contexto no qual a expressão está inserida, surge a necessidade de se trabalhar em um cenário subjetivo. Dentre as concepções analisadas, percebe-se traços de complementaridade entre as noções de ordem pública formal e material, ao tempo em que se verifica um antagonismo entre as vertentes jurídica e metajurídica.

    A compreensão jurídica de ordem pública infere que seu conteúdo apresenta caráter jurídico, sendo definido pelo direito positivo. Já a vertente metajurídica, se baseia em princípios abstratos e sem conotação jurídica. Curiosamente, a segunda percepção acaba por se caracterizar em uma parte significativa das tentativas de conceituação de ordem pública realizadas pela doutrina pátria.

    Em que pese as dificuldades observadas em razão do significado aberto, não há dúvidas acerca da relevância da ordem pública para a existência da sociedade e para a manutenção do Estado. Conforme recorte apresentado no qual se enfatizou a ordem pública no Direito Internacional a partir da leitura da jurisprudência pátria, resta nítido que além de ser base da soberania e da construção do Estado enquanto nação autônoma, a ordem pública também abarca uma importante função balizadora ao considerar ineficaz lei, ato ou sentença estrangeira que ofender valores jurídicos, éticos, econômicos e morais.

    Contudo para desempenhar sua força negatória, deve-se observar o contexto específico do caso e buscar garantir a aplicação do princípio dentro das vicissitudes do caso concreto, sempre em consonância com os preceitos constitucionais, sob pena de ferir o direito de liberdade das partes. Os conflitos entre normas de Estados distintos é a motivação primeira do Direito Internacional Privado. Sempre existiram e certamente se perpetuarão ao longo do tempo, de modo que não se deve pretender eliminá-los, mas sim conduzir as tensões da melhor forma.

    Há que se caminhar para um equilíbrio entre a força do direito interno, maciçamente presente no Direito Internacional Privado e a necessidade do desenho de uma a ordem pública internacional, ainda abstrata neste momento, mas em fase de reflexão e com algumas linhas de construção para um futuro não distante. Tal movimento pode ser percebido através da presença cada vez mais comum de elementos internacionais na formulação e aplicação das normas pátrias.

    Desta forma, o presente estudo sem qualquer pretensão de esgotar a matéria,  buscou destacar  a importância de se trabalhar a noção de ordem pública aplicada ao Direito Internacional Privado em uma linha de razoabilidade e flexibilidade, ao tempo em que se reconhece a fragilidade da parte estrangeira, e os interesses da comunidade nacional. Na carência de definições e orientações mais precisas, seria este o caminho mais viável para se equilibrar direitos individuais e coletivos entre culturas distintas aproximadas no contexto globalizado.


    1Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen de 1789. Documento forjado a partir do pensamento iluminista, pautado em definir direitos individuais e coletivos dos homens. Enfatiza a universalidade dos direitos do homem.
    2
    Constituição Federal de 1988: “Artigo 72, § 8º – A todos é lícito associar-se e reunirem-se livremente e sem armas; não podendo intervir a polícia senão para manter a ordem pública.”
    3
    Com a Carta Magna de 1937, a ordem pública surge associada a direitos e garantias individuais e dos limites da liberdade e exercício de culto, no artigo 122.
    4
    Na redação atual do Código de Processo Penal, art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
    5
    Segundo autores como Fernando da Costa Tourinho Filho e Nestor Távora, “a ordem pública, enfim, é a paz, a tranquilidade no meio social”.
    6
    Entendimento defendido por Fortunato Lazzaro e Henri Capitant, observado na leitura de FILOCRE, Lincoln D’Aquino. Revista à ordem pública. Revista de Informação Legislativa do Senado Federal ano 46, nº 184. p. 131–147, out./dez., 2009.
    7
    Conceitos atribuídos a Louis Rolland e a Paul Bernard, conforme indica MOREIRA NETO, 1988, p. 143-144.
    8
    Noção atribuída a Osvaldo Ferreira de Melo.
    9
    Otto Mayer é considerado o representante clássico do que se denomina concepção metajurídica de ordem pública.
    10A autonomia, condicionada ao voluntarismo jurídico e proveniente do liberalismo econômico, a partir de um sucinto recorte histórico, é mencionada por Cristhian Magnus De Marco (2011, p. 246) e tem papel relevante, considerando sua utilização a partir de F. Gény, em 1899, quando a ideia absoluta de autonomia foi rechaçada pelos ideais socializantes da época. Exigia-se uma forte intervenção estatal, para equilíbrio das relações sociais. Na perspectiva contemporânea, com valores morais e econômicos invertidos, a preservação do Estado do bem-estar social e o convívio entre os indivíduos prescinde de uma intervenção estatal contundente, diminuindo o papel da vontade.
    11Versando a matéria, Eduardo Espínola (1939, p. 242-244), com apoio em renomados juristas, faz a distinção entre as normas privadas de ordem pública e as simplesmente privadas: “As primeiras são leis a cujas prescrições têm que se submeter, indeclinavelmente, aqueles que intervêem nas relações jurídicas por elas reguladas, jus quod privatorum pactis mutari non potest; regulam as relações a elas sujeitas de tal modo que não deixam em absoluto campo para determinações divergentes dos interessados (Dernburg), com invariável necessidade, sem permitir, porventura, à vontade individual qualquer campo de ação (Keller); excluindo o arbítrio individual, a elas é devida incondicional obediência, não se admitindo derrogação nem mesmo em caso de pleno acordo dos interessados (Ravà), ou duma diversa manifestação de sua vontade (Barassi); aplicando-se ainda que as pessoas, em cujo favor são estabelecidas, declarem não lhes quererem a aplicação (Chironi e Abello). As outras, quia simpliciter discount, non prohibetur, constituindo o jus dispositivum… quod privatorum pactis mutari potest, deixam um campo livre às vontades individuais, e somente quando essas negligenciam em se explicar, então a regra se apresenta para determinar a relação jurídica (Savigny)”.
    12Como exemplo a problemática envolvendo a questão do divórcio. Somente em 1977 o ordenamento jurídico brasileiro passou a reconhecer o divórcio. Antes deste período qualquer sentença estrangeira que versasse sobre a matéria não poderia receber homologação, visto que seria considerada como um atentado contra a ordem pública nacional. Logo, as sentenças obtidas em países vizinhos como o Uruguai ou a Argentina não tinham validade.
    13Tal hipótese é expressamente prevista na Lei Modelo da UNCITRAL, em seu artigo 36, 1, b, II: Artigo 36.º Fundamentos de recusa do reconhecimento ou da execução: 1 – O reconhecimento ou a execução de uma sentença arbitral, independentemente do país em que tenha sido proferida, só pode ser recusado se o tribunal constatar: II – Que o reconhecimento ou a execução da sentença contrariam a ordem pública do presente Estado.
    14A Lei de Introdução ao Código Civil, traz o dispositivo mais explícito no que tange a presença expressa da ordem pública no nosso ordenamento jurídico. Veja-se: Art. 17. As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes.
    15O entendimento que vinha sendo encabeçado pelo Min. Sepúlveda Pertence, era de que as dívidas de jogo não poderiam ser executadas no Brasil em razão de serem contrárias à Ordem Pública Nacional (SEC 5.404 – STF). Esse entendimento foi desafiado pelo Ministro Marco Aurélio, ao proferir voto onde manifesta que o brasileiro é constantemente estigmatizado por ser considerado “malandro”, o que não pode ser incentivado. Para ele, impossibilitar a cobrança ensejaria enriquecimento sem causa e seria ainda mais contrário à Ordem Pública do que permiti-la (CR 9.970/EU).
    16
    REsp 1.628.974 voto do relator em: https://goo.gl/Lwjb33. Ação monitória ajuizada por Wynn Las Vegas Llc contra Carlos Eduardo De Athayde Buono, para cobrança de R$ 2.306.400,00 (dois milhões, trezentos e seis mil e quatrocentos reais), quantia representada por 5 (cinco) títulos assinados pelo réu no valor total de U$ 1.000.000,00 (um milhão de dólares).
    17
    SEC 802/US, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO.

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    1Formação acadêmica mais alta: Graduada em Direito; Mestre em Filosofia; Doutoranda em Direito. Instituição: UniCEUB – DF E-mail: virna_nunes@hotmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5608-849X
    2Formação acadêmica mais alta: Mestre e Doutora em Direito Instituição: Universidade Estadual do Piauí – UESPI E-mail: aurimelo@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3866-6014