REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7691956
Claudiele Marques Garcia
Animais são sencientes, o que significa que são capazes de sentir e perceber através dos sentidos. Em virtude disso, devemos protegê-los contra qualquer forma de crueldade baseada na suposição de que o ser humano, por ser senciente, é superior a outras espécies. A compaixão para com todos os seres em condições vulneráveis à dor e ao sofrimento é um dever humano. A consciência acerca desse assunto vem crescendo nos últimos anos e os consumidores passaram a ter uma preocupação com o bem-estar dos animais de produção. Estes estão aderindo ao veganismo – estilo de vida que elimina toda ou a maior parte de exploração dos animais – ou exigindo alimentos oriundos de um sistema de produção onde o animal é respeitado durante toda a cadeia produtiva. O Brasil, como o 4° produtor e exportador de carne suína do mundo, deve investir na qualidade de vida desses animais e se adequar às práticas de manejo para atender às expectativas do novo mercado consumidor.
Segundo a Campanha de Bem-Estar Animal lançada pelo Conselho Federal de Medicina Veterinária em 2018, um animal com alto grau de bem-estar é aquele que tem boa saúde e pode expressar seu comportamento natural, sejam animais de companhia, selvagens, de laboratório ou de produção, como os suínos. As cinco liberdades que todo animal deve ter serve como um parâmetro para avaliar esse grau de bem-estar. Elas são: a liberdade de sede, fome e má-nutrição; a liberdade de dor e doença; a liberdade de desconforto; a liberdade de medo e de estresse e a mais básica de todas: a liberdade para expressar o comportamento natural da espécie. Seguindo essa linha de raciocínio, Donald Maurice Broom – biólogo e professor emérito de bem-estar animal na Universidade de Cambridge – afirma que o bem-estar animal é o estado de um organismo em relação às tentativas de se adaptar ao seu ambiente, logo, quanto maior a dificuldade de adaptação, menor o bem-estar.
Os indicadores comportamentais são baseados na frequência com que ocorrem comportamentos anômalos (não naturais) ou agressivos, e para avaliarmos o comportamento não natural de uma espécie, precisamos saber quais são naturais: Primeiramente, os porcos são animais diurnos que estabelecem uma hierarquia linear em seu grupo e relações de longo prazo. Por serem bastante inteligentes e sociáveis, podem sofrer de estresse por confinamento, já que possuem hábitos de vida livre como fuçar e explorar; por isolamento social; por superlotação; ou até mesmo pela monotonia ambiental, tendo em vista que suas atividades variam de acordo com as condições de onde vive. Um ambiente monótono os leva ao sedentarismo, que causa o enfraquecimento dos ossos, redução muscular, ferimento nas patas ou manqueira, além de problemas cardiovasculares que podem levar a óbito. Então, deve ser realizado o enriquecimento ambiental com brinquedos, palha, correntes, etc, que proporcione um ambiente mais adequado para o animal expressar seu comportamento natural, se exercitando.
No grupo dos animais homeotermos (temperatura constante variando entre 38,6 a 39,3°C de acordo com o ambiente), os porcos têm a característica de não transpirar, pois não possuem glândulas sudoríparas bem desenvolvidas, além de uma camada de gordura subcutânea que os impede de dissipar o calor corretamente, por isso banham-se em água ou lama para aumentar a perda de calor. Um ambiente quente e muito seco, por exemplo, tem evaporação rápida, podendo causar irritação cutânea, problemas respiratórios e desidratação, que pode afetar o seu crescimento, produção e reprodução com o fim de manter seu equilíbrio interno. Logo, o local em que são criados deve atender tais necessidades, dispondo de água/lama e de boa ventilação para mantê-los na zona termoneutra, evitando assim, casos de estresse térmico.
Acerca da alimentação, são animais onívoros, com uma grande capacidade de adaptar as suas dietas em razão das condições disponíveis no ambiente, tendo em sua base alimentar as plantas, raízes, frutos, sementes e bagas. E o olfato, acima de qualquer outro sentido, é de extrema importância para a ingestão do alimento.
As fêmeas gestantes têm o hábito de fazer o ninho, e no momento do parto – que tem duração de 2 a 6 horas – passam a trocar o decúbito, movimentar a cauda e vocalizar bastante. Por isso, devem ter condições mínimas de deitar-se em decúbito e levantar-se sem impedimentos, o que não é possível em uma gaiola, objeto que impede seu instinto materno e comportamento natural.
Os comportamentos supracitados são alguns exemplos de comportamentos naturais da espécie. Os mesmos devem ser estimulados para garantir um alto grau de bem-estar e facilitar sua adaptação durante a cadeia produtiva. Caso contrário, os animais podem apresentar um elevado nível de estresse, observado muitas vezes pela manifestação de comportamentos estereotipados (não naturais da espécie), como movimentos repetitivos sem propósito aparente. Dentre os comportamentos estereotipados já relatados em suínos confinados estão: morder as instalações, aerofagia, canibalismo, enrolar a língua e lamber o piso.
O estresse pode ser definido como um estímulo ambiental com potencial para sobrecarregar a homeostase. Esta ocorre por meio de uma série de sistemas de controle, envolvendo mecanismos fisiológicos, que mantém estável, por exemplo, a temperatura corporal, frequência respiratória, e o balanço hídrico. Um dos cinco princípios para medir o nível de bem-estar, como supramencionado, se dá pela liberdade de dor e doença, ou seja, o organismo em homeostase. Lembrando que saúde não é um sinônimo de bem-estar, mas um de seus componentes, e é claro, para que possam expressar livremente seu comportamento natural, precisam ser livres de doenças e desconforto. Para isso, deve-se investir na prevenção de enfermidades, administração de tratamentos veterinários apropriados, abrigo adequado, alimentação própria para sua fase de vida e o seu correto manejo.
A prevenção de doenças na suinocultura deve ser realizada baseada em biosseguridade, como na colocação de cerca de isolamento, limitando o acesso de veículos para fora do perímetro da fazenda, banho ou uso de roupas descartáveis antes do manejo, água e alimento de qualidade, destino adequado dos animais mortos e do lixo, etc, para evitar a entrada e propagação de doenças no rebanho. Além é claro do uso correto de vacinas e do planejamento de manejo que privilegiam o bem-estar animal.
Constata-se que um aumento de mortes de suínos tem sido associado a caminhões equipados com rampas internas, podendo estar relacionado aos maiores níveis de estresse, assim como a manipulações prejudiciais aos animais por parte dos manejadores. Desse modo, o transporte dos suínos deve ter densidade correta de 230 quilos por metro quadrado para que possa haver uma hierarquia de dominância natural da espécie, minimizando os conflitos entre eles, e consequentemente, as lesões, dores e doenças. O veículo deve ter piso antiderrapante para prevenir ferimentos, dispor de meios de proteção que minimizem os efeitos das temperaturas extremas e permitam uma boa circulação de ar. No trajeto, é importante molhá-los, principalmente nos primeiros quilômetros em que o estresse é maior, e na chegada deve-se esperar no mínimo duas horas para que se recuperem do estresse do desembarque. Tudo isso buscando ao máximo evitar o estresse desses animais. A submissão do leitão à caudectomia e ao desgaste ou corte dos dentes é um exemplo de prática que vai totalmente contra os princípios de bem-estar que analisamos até então. Ambos são realizados sem anestesia e/ou analgesia, o que resulta em dor aguda, podendo se tornar crônica, e a caudectomia ocasiona também um processo inflamatório que pode durar até 41 dias. Ademais, os animais que passam por esse procedimento apresentam a diminuição de seu comportamento exploratório, dificultando a localização de recursos como água e alimento, o que somado à dor – que por si só reduz a ingestão de alimentos – pode levá-los a desnutrição. Outro fato importante é que os porcos usam a cauda como um mecanismo de comunicação, assim sendo, a caudectomia os impossibilita também de praticar seu comportamento natural, indo contra três princípios do bem-estar animal. Por conseguinte, faz-se necessário práticas que eliminem a necessidade desses procedimentos dolorosos, como o enriquecimento ambiental, boa ventilação e espaço nos comedouros para diminuir os episódios de caudofagia. E caso não for possível evitar esse procedimento, que ao menos seja realizado de maneira correta, com o uso de analgesia e anestesia local. Por fim, os sistemas de criação dizem muito sobre a qualidade de vida dos animais que ali habitam durante todo seu ciclo de vida. Sistemas extensivos, que mantêm os porcos soltos em vida livre, apresentam menor prevalência de feridas severas no corpo e caudofagia, já que essa ocorrência tem sido relacionada a limitação da expressão de seu comportamento exploratório, mais comum na fase de creche. Quando comparado com o sistema convencional de confinamento em baias coletivas ou gaiolas individuais, fica evidente a relação entre estresse e confinamento, pois como mencionado acima, suínos são seres muito sociáveis, capazes até mesmo de estabelecerem relações de longo prazo.
Em síntese, qualquer estímulo ambiental sobre um indivíduo que sobrecarregue os seus sistemas de controle (homeostase) e dificulte sua adaptação ou tenha potencial para isto, resultará em estresse. Devemos salientar finalmente que o estresse, em seus diversos níveis, pode produzir alterações metabólicas, fisiológicas e comportamentais, com consequências negativas sobre o desempenho e a sanidade. Logo, é indispensável salientar a importância de cultivar o bem-estar dos animais ao longo da cadeia produtiva, para que haja tanto qualidade de vida para os suínos quanto qualidade nos produtos derivados dos mesmos. Para que isso ocorra, é preciso manter o foco e os investimentos em estimular o comportamento natural em um sistema extensivo de criação, prezando pela saúde, conforto térmico, qualidade alimentar e liberdade de estresse, dentre outros parâmetros para seu bem-estar. Haja vista que os consumidores atuais de produtos de origem animal não permitirão uma produção animal opressora, que desrespeite as cinco liberdades de seres sencientes, como os suínos.