REGISTRO DOI:10.69849/revistaft/th10249091733
Isabella Godoy Danesi[1]
Gabriela Soares Maia[2]
INTRODUÇÃO
A violência doméstica e familiar contra a mulher em sua magnitude, é um tema de grande atualidade na sociedade embora podemos perceber que suas raízes socioculturais remetem a muitas décadas.
Este fenômeno tem demonstrado um aumento em números e está
intensificação decorre dos modelos hegemônicos de “desenvolvimento” que têm sido historicamente impostos à América Latina, expressão da colonialidade do poder constitutiva do sistema-mundo moderno/colonial/capitalista/patriarcal (GROSFOGUEL, 2008), baseado na classificação social, hierarquização e subalternização racial, de gênero e de classe (QUIJANO, 2005).
No Brasil a violência perpetrada dentro das relações afetivas tendo como principais vítimas as mulheres e sendo motivada pela questão de gênero é considerado um problema cultural que remonta um período histórico em que as mulheres eram consideradas meros objetos reprodutivos.
Ressalta-se que a violência intrafamiliar cometida contra a mulher não só acarreta traumas especificamente femininos, como também resulta em um fenômeno social difuso presente em todas as classes sociais e atinge crianças e idosos, proporcionando inúmeros prejuízos ao ambiente familiar.
O presente trabalho visa fornecer uma nova abordagem para o estudo da violência doméstica e sua origem. Para tanto, utiliza perspectivas pós-estruturalistas e descoloniais para melhor compreender as relações de raça e gênero e os mecanismos pelos quais a subjetividade masculina está intimamente ligada à dinâmica da violência.
Nesse sentido, parte da premissa de que o sujeito é formado por uma miríade de discursos, signos, tecnologias e práticas, propagadas e tornadas hegemônicas pela matriz do poder colonial (MIGNOLO, 2009, p. 254), que desde o início da sociedade moderna impôs aos povos coloniais da América Latina e de outros lugares uma existência definida em termos eurocêntricos, o que permitiu a plena realização dos sempre renovados planos coloniais das potências capitalistas.
Procura-se, assim, investigar o impacto da colonização, marcados por diferenças de gênero, raça, classe, etc., nas representações que os sujeitos têm de si e dos outros, nas posições que tentariam ocupar e nas expectativas a partir delas.
Assim, reconhece as conexões complexas entre diferentes estruturas de dominação – gênero e raça, formando uma matriz colonial de poder e de uma sociedade hierarquizada.
A COLONIALIDADE
O conceito de democracia, originário da Grécia, e desenvolvido com maior ênfase na Europa e nos Estados Unidos seguindo um parâmetro característico de desdobramento de suas próprias sociedades singulares, configura uma enorme e problemática ruptura quanto às condições em que a democracia é imposta para outras sociedades com diferentes mecanismos de desenvolvimento social.
Tal fato implica, consequentemente, na concretização da colonialidade no padrão de poder, categoria desenvolvida pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano, e que significa, em suma, que as relações de colonialidade na economia e na política não terminaram com o colonialismo, e que tais relações significam a dominação exercida pelos colonizadores em relação aos colonizados através de dois eixos fundamentais, quais sejam, a codificação das diferenças alcançadas através da ideia de raça – em que o elemento biológico permitiria alcançar-se uma situação de inferioridade natural entre os indivíduos e a articulação do trabalho em torno do capital e do mercado mundial (QUIJANO, 2019).
Na América Latina, o Colonialismo, processo da Colonização, teve início no contexto histórico do século XV, marcado pelas grandes navegações que resultaram na vinda dos povos espanhóis e portugueses a então novas terras, concebida posteriormente como as Américas. Com a chegada desse homem, branco, cristão, denominados europeus, veio também a colonização dos povos que habitavam essas terras, entre eles, “astecas, maias, chimus, aimarás, incas, chibchas etc. Trezentos anos mais tarde todos eles reduziram-se a uma única identidade: índios” (QUIJANO, 2019, p. 254).
Esse processo de homogeneização identitária ocorreu de maneira nada pacífica, foi-lhes imposta à reconfiguração dos seus modos de vida. Tudo que estava fora dos padrões hegemônicos dos colonizadores era o “outro” que precisava ter sua “selvageria” retirada para serem considerados civilizados, esse processo civilizatório incluía o extermínio de sua fé, língua e outros aspectos culturais.
Nesse contexto histórico, em nome de um projeto de homogeneização identitária, que visava levar ao novo mundo o progresso europeu, foi feita a Colonização de diferentes povos através dos açoites das chibatas e das catequeses. O fim da Colonização acontece com as independências das Colônias que por sua vez se libertam do colonizador visível, contudo permaneceram no que Mignolo (2005) chama de herança colonial, a Colonialidade.
Esse padrão hegemônico de poder implica na inserção do conceito de democracia nas sociedades modernas, a partir de um rol salvacionista ocidental, com intuito mascarado de promover a “sua” democracia a nível global, elicitando a lógica da colonialidade de poder.
Nesta linha, as colonialidades do poder, do saber e do ser – processos históricos de subjetificação e de subordinação política, econômica, cultural e epistemológica, originados da intolerância da modernidade para com a existência de múltiplas cosmovisões (LUGONES, 2015, p. 943) – continuam operando e têm no âmbito privado da vida doméstica um forte aliado na manutenção das hierarquias sociais.
É sob as pilastras, da Racialização e da Racionalização, que o Colonialismo se encontra presente na atualidade através da Colonialidade, um arbitrário processo de dominação no qual a lógica colonial penetra as estruturas sociais, econômicas, políticas e epistêmicas se manifestando através do Poder, do Saber, do Ser e da Natureza (QUIJANO, 2019; WALSH, 2008).
Materializando-se através de hierarquias como as de raça, gênero, relações sociais entre outros, a Colonialidade do Poder é exercida pelos colonizadores que se julgam superiores aos demais.
Importante evidenciar que tais benefícios são de efeitos materiais e de poder advindos dos discursos e práticas que produzem as categorias hierarquizadas conforme a antropóloga Henrietta L. Moore:
É importante reconhecer que o investimento [em determinadas posições de sujeito] é uma questão não apenas de satisfação emocional, mas de benefícios materiais sociais e econômicos muito reais que são a retribuição do homem respeitável, da boa esposa, da mãe poderosa ou da filha bem-comportada em muitas situações sociais. É por essa razão que modos de subjetividade e questões de identidade estão ligadas a questões de poder, e aos benefícios materiais que podem ser uma consequência do exercício desse poder (MOORE, 2015, p. 37).
Ocupar certas posições significa adquirir certos poderes e prestígio em relação a outros sujeitos e posições, menos valorizados nos discursos dominantes. Este cenário se complexifica ao considerarmos que o poder, a força e a violência são frequentemente sexualizados e racializados (MOORE, 2015, p. 34-35)
Além da Colonialidade do Poder observa-se a presença de uma Colonialidade do Saber que é admitida apenas uma única perspectiva de conhecimento: o eurocêntrico, uma vez que, suas validações provem da racionalidade moderna. O caráter universal dos conhecimentos científicos eurocêntricos abordou os estudos de todas as demais culturas e povos a partir da experiência moderna ocidental. Desta forma, a hierarquização do saber está amparada sobre três prerrogativas: o lugar de produção do conhecimento; os sujeitos dessa produção e a maneira de produzi-lo. O lugar da produção do conhecimento científico eram as universidades localizadas no hemisfério norte. Este lugar tinha o privilégio de criar os critérios epistemológicos de validação, produção e difusão do conhecimento científico sendo imposto ao hemisfério sul o papel de consumir esse conhecimento e, no máximo, produzir saber literário. Os sujeitos produtores desse conhecimento em sua maioria são homens, brancos e europeus que produziam conhecimentos de maneira universal e mensurável (MIGNOLO, 2005).
Desta forma, é através da Colonialidade do Ser que ocorre a internalização da subalternidade e desumanização presentes nas relações estabelecidas entre os diferentes povos. Para Quijano (2019, p. 12), “os povos conquistados e dominados foram postos numa situação natural de inferioridade e consequentemente também seus traços fenótipos, bem como suas descobertas mentais e culturais”.
Abordando a Colonialidade como forma de dominação contemporânea Walsh (2008), salienta a existência da Colonialidade da Natureza, está se faz presente na exploração e relação binária do homem para com a natureza. Dentro dessa relação binária, prevalece a imposição do sujeito moderno e “civilizado”, sobre a natureza, em nome de um progresso euro centrado. Rompendo com a
Colonialidade, em seus vários eixos, os Estudos Pós-Coloniais surgem das lutas de diferentes povos subalternizados contra a estrutura hegemônicas através de teorias analíticas que permitem refutar o Estado, descolonizar as estruturas e instituições.
Nesta direção, os Estudos Pós-Coloniais se propõem a pensar o que antes era impensável pois, sob tal perspectiva, visam romper com as estruturas coloniais do modelo neoliberal, que é monocultural, excludente e civilizatório, tem por finalidade evidenciar à voz aos que foram historicamente silenciados.
O PENSAMENTO DECOLONIAL
Neste sentido a teoria da existência social e a teoria da modernidade, levam a repensar as possíveis alternativas. Em primeiro lugar, uma proposta social pressupõe des/colonialidade da teoria, que desde seus fundamentos inovadores sobre o padrão de poder e a partir de raízes não eurocêntricas reabram novamente o caminho de seu desenvolvimento para América Latina e o mundo.
E em segundo lugar, a partir das práticas sociais das populações, aventurar novas perspectiva que permitam imaginar um futuro diferente para a sociedade contemporânea. Dado a originalidade da teoria da colonialidade do poder, a construção de alternativas induza a formular novas problemáticas à realidade contemporânea, que facilitem o debate sobre as vias que possam remeter a repensar a modernidade e facilitem vislumbrar outro mundo possível. (QUIJANO, 2019).
Faz – se necessário então enxergar a perspectiva de des/colonialidade da proposta da descolonização. Para Quijano (2019) des/colonialidade conceitua a superação do padrão de poder da modernidade, colonialidade e euro centrada, que se sustenta na classificação étnico/racial da população mundial e que estrutura todos os âmbitos da reprodução da existência social numa unidade sócio histórica mundial.
Em mudança, a descolonização se refere ao desmantelamento do controle da autoridade política sobre uma estrutura de dominação e exploração económica e social por uma potência exterior, situações que podem envolver as sociedades prémodernas ou contemporâneas. A colonialidade se refere às relações de poder ao prolongamento bases contemporâneas que sustentaram a modernidade na América Latina. (MIGNOLO, 2005).
Neste sentido, Bom viver ou bem viver se refere à germinação de práticas sociais alternativas da dês/colonialidade à modernidade global pelas demandas dos movimentos do continente. Alternativas que requerem de uma alteração total das desigualdades sociais e do domínio sobre a natureza pela colonialidade global, que têm como fundamento a continuada ampliação e aprofundamento da democratização da existência social.
Assim, propostas que se orientam fundamentalmente, em primeiro termo pela igualdade social de indivíduos heterogéneos e diversos, como ponto de partida de toda a existência social alternativa, contra a classificação e hierarquização social, sexual e racial da população, supõe a igualdade em frente ao acesso dos recursos e bens e serviços, nesse contexto os agrupamentos e/ou identidades serão o resultado de decisões livres de gentes livres (QUIJANO, 2019).
Outro elemento essencial, é a reciprocidade entre indivíduos e grupos socialmente iguais, na organização do trabalho e a distribuição de os produtos, em frente à lógica do viver melhor do bem-estar capitalista, do progresso ilimitado, que implica a concorrência desenfreada entre os humanos e que leva à submissão e destruição da natureza.
O bem viver então supõe que tudo se encontra interrelacionado, forma uma unidade homem, comunidade, terra e universo. O bem viver aponta ao bem-estar de toda a comunidade, supõe uma concepção diferente da existência social, uma concepção que integra ao ser humano e a natureza, é a grande comunidade de vida a que inclui além do ser humano, homem e mulher, à pachamama (a terra) e à energia da pachakamaq (do universo). (PAREDES ,2011)
Com a pesquisa realizada ficou evidente que o processo de colonização desenvolvido nas premissas da colonidade do poder e do saber ao não considerar a existência social dos povos foi precursor dos diversos tipos de violências existentes no mundo pós-colonial.
Deve-se então buscar abordar a problemática da violência pela perspectiva do projeto decolonial (MIGNOLO, 2009; LUGONES, 2015), cuja perspectiva põe em relevo a necessidade do sistema mundial de poder capitalista, iniciado com o período moderno/colonial.
A TEORIA DO PODER
A teoria sobre a existência social e o poder permite desenvolver um entendimento de caráter geral sobre a organização da sociedade e o comportamento social. Proposta desenvolvida por Aníbal Quijano (2019) como o padrão de poder da existência social, que tem possibilitado às ciências sociais, de modo particular em América Latina, superar a parálisis cognoscitiva e a hegemonia do eurocentrismo.
A existência social é um conjunto interrelacionado de âmbitos vitais de sobrevivência e reprodução da espécie humana, é a forma em que os indivíduos, grupos e instituições se estruturam socialmente.
Neste sentido, tem como característica histórica construtiva, a disputa pelo controle das relações sociais, dos recursos, dos produtos e em conjunto das áreas da existência social: sexo, trabalho, subjetividade, autoridade coletiva, relações com outras espécies e com o universo. O poder vem através das relações de dominação, exploração e conflito para manter a organização do sistema e das condutas individuais na sociedade. Ou seja, o poder é dominação, exploração e conflito entre atores sociais que disputam o controle da existência social e se configura como desenvolvimento de situações históricas especifica (QUIJANO, 2019)
Assim é considerada como unidade organizada, se encontra como um estado de autoprodução permanente através do tecido interconectado de indivíduos e se recompõem incessantemente através das ações dos indivíduos. As ações das pessoas se desdobram em função a especificas estruturas organizacionais através de conflitos, desordens e antagonismos pelo controle dos recursos e produtos disponíveis que podem levar a mantes a ordem sistêmica e, ao mesmo tempo, podem distanciar e minar o ordenamento dos próprios âmbitos da existência social. (QUIJANO, 2019)
Quando a reprodução das ações individuais de dominação/exploração/conflito se dirige ao mantimento e a persistência da organização nos âmbitos de existência social, a sociedade se manifesta nas ações das pessoas. Para a autoprodução permanente da ordem social, é indispensável as condutas dos indivíduos que buscam reproduzi-la. E, ao mesmo tempo, as ações podem ser divergentes frente ao padrão de organização, o resultado é que se desenvolvem condutas de dominação, exploração e conflito que tendem a reconfigurar o controle dos recursos e seus produtos em cada âmbito da existência social. A oposição e modificação social são possíveis quando as condutas pessoais se relacionam e se desviam em relação a uma ordem social especifica. (QUIJANO, 2019)
O padrão de poder moderno colonial e eurocentrado gerou o desenvolvimento da família burguesa e a rearticulação do antigo sistema patriarcal que possibilita estabelecer o controle e disputa do âmbito das relações sexuais, da reprodução da espécie humana e do prazer corporal individual. As diferenças corporais de sexos entre macho e fêmea condicionam diferenças biológicas entre os indivíduos.
No entanto, o gênero é uma construção mental que a modernidade assume sobre as diferenças sociais que sustentam a superioridade hierárquica do homem, o masculino e das relações heterossexuais sobre a mulher, o feminino e outras sexualidades. (QUIJANO, 2019)
De acordo com essa lógica muitos homens buscam afirmar suas masculinidades por meio da agressividade, atributo tipicamente representado como masculino. Assim, a violência confirma a identidade masculina, que é retribuída com o poder masculino que, por sua vez, legitima o uso da violência desempenhando o seu poder e papel social. (MOORE, 2015)
Assim, caso o homem se veja ameaçado em suas posições de sujeito – provedor, chefe de família, homem ativo da relação –, ou caso a esposa não supram suas expectativas quanto a submissão que devem assumir, a violência se coloca como um possível instrumento retificador fundamentado na teoria do poder masculino.
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA PANDEMIA DO COVID-19
A partir desta lógica filosófica, a modernidade traz consigo certas ambiguidades que, escondem um mito. Por detrás da racionalidade da modernidade, o mito encobre uma modernidade ambígua e violentadora do outro, culminando em um processo de dominação cultural. A dominação se faz em desfavor do índio varão pelo trabalho de servidão, pela dominação sexual da índia, e, finalmente, pela dominação religioso-cristã em torno dos valores religiosos antes construídos pelos índios. (DUSSEL, 1994).
O habitante do novo mundo, denominado de índio pelos europeus, perdem, assim, sua identidade, passando a serem vistos como partes de um processo necessário de civilização européia. Ou seja, a Europa “centro” passa a constituir o ponto de referência para a América Latina “periferia”. A ambigüidade da modernidade e do projeto eurocêntrico fica latente no encontro espiritual de dois mundos. (DUSSEL, 1994).
A violência da modernidade produzida pelos povos europeus é sintetizada por José Carlos Moreira da Silva Filho a partir da obra de Dussel (1994) e a grande crítica que o autor faz com relação à concepção da Modernidade não está em negar aquilo que ele chama de “núcleo libertário” ou “razão emancipatória”, mas em mascarar a existência de uma outra face desse processo de modernização, relacionada com o exercício em larga escala de uma violência irracional nas colônias, não apenas física, mas cultural, que simplesmente nega a identidade do
“outro”, seja através de uma postura assimilacionista, seja através da simples exclusão e eliminação.
Exemplo típico da perniciosidade da dominação cultural feita pelos europeus sobre os índios é a patologia conhecida como banzo, que é uma espécie de “moléstia mental originada das saudades da pátria, tendo como sede o cérebro”, segundo célebre definição de Joaquim Manuel de Macedo em sua monografia sobre a Nostalgia no ano de 1844, tendo sido causa de várias mortes por suicídio. Ora, como se pode perceber, a dominação é tão nefasta que fez com que os povos originários perdessem sua referência de lar.
Ou seja, aqueles que por milhares de anos habitaram estas terras já não podiam mais tê-las como lar e, desta forma, sofriam de uma patologia que era conectada com estrangeiros. É verdade, portanto, dizer que Ginés de Sepúlveda foi vencedor em seu celebre debate com Bartholomé de Las Casas em Valladoid, como a história tratou de demonstrar. Seus argumentos escodem um “mito” da modernidade, denunciado por Dussel (1994).
Tudo isto está simbolizado no “mito sacrifical”, isto é, toda a violência derramada na América Latina era, na verdade, um “benefício” ou, antes, um “sacrifício necessário”. E diante disso, os índios, negros ou mestiços eram duplamente culpados por “serem inferiores” e por recusarem o “modo civilizado de vida” ou a “salvação”, enquanto os europeus eram “inocentes”, pois tudo que fizeram foi visando atingir o melhor.
Assim, a pretexto de civilizar o incivilizado, de emancipar aquele que supostamente seria incapaz e de ensinar o ignorante, a retórica do poder cometeu violências dos mais diversos tipos, tal como matar, a pretexto de salvar, violentar, a pretexto de curar. O maior problema, entretanto, é que a história, dominada pelos modernos, passou a ser contada e recontada pelos vencedores, dominadores. A história, assim, é a história dos modernos, e tudo quanto conhecemos nesta seara, é do olhar europeu.
A partir da colonialidade do poder, o capitalismo e do euro centrismo, a Europa diferenciou-se de outros povos coloniais/imperiais, principalmente no que tange a homogeneização de práticas sociais e culturais pelos povos conquistados, algo único na história conhecida, construindo modelos hegemônicos intersubjetivos de Estado-nação, família burguesa, empresa e racionalidade eurocêntrica.
A modernidade ou o processo de modernização é um projeto que encobre o diferente, exatamente por considerá-lo “inferior”, incivilizado, ou seja, a dominação cultural o faz se tornar igual ao europeu. A padronização dos valores, culturas, tendo como parâmetro aqueles compartilhados no velho continente traz consigo uma forma de violência que busca fazer o povo originário perder sua identidade construída desde longos tempos.
E assim foi concretizado o processo intrusivo na colônia e consequentemente o fenômeno da emasculação dos homens no ambiente extracomunitário, frente ao poder dos administradores brancos (SEGATO, 2012).
Consistindo a emasculação no sentindo biológico do termo na castração de homens, mas em uma roupagem da subjetividade masculina consiste nesta perda do papel social.
As populações masculinas das terras colonizadas foram então submetidas ao estresse e lhes mostraram a relatividade de sua posição masculina ao sujeitá-los ao domínio soberano do colonizador. Este processo é violentogênico, pois oprime aqui e empodera na aldeia, obrigando a reproduzir e a exibir a capacidade de controle inerente à posição de sujeito masculino no único mundo agora possível para restaurar a virilidade prejudicada na frente externa. As relações intrafamiliares com mulheres e filhos são particularmente prejudicadas. Isto vale para todo o universo da masculinidade racializada, expulsa da condição de “não brancura” pelo ordenamento da colonialidade. (SEGATO, 2012).
A violência masculina, por sua vez, potencializada pelo estresse causado pela pressão exercida sobre os homens no mundo exterior somado ao confinamento compulsivo do espaço doméstico e das suas habitantes, as mulheres, como resguardo do privado tem consequências terríveis no que respeita à violência que as vitimiza. (SEGATO, 2012).
Ocorre, que o papel social está diretamente ligado a noção de possuir um território e desempenhar funções masculinas de poder.
A colonização então buscando a homogeneização acarretou uma brusca ruptura na dinâmica destes povos com consequências desastrosas.
Imprescindível compreender que o a existência social e o conflito de poder ocorrem ainda na atualidade pós-colonial sendo diversos os propulsores do estresse muitas vezes ligados ao papel social do masculino na sociedade uma vez que quando não desempenhado pode desencadear quadros clínicos de depressão, levando – os muitas vezes ao alcoolismo, uso de substancias entorpecentes e ao cometimento de atos violentos.
Este fenômeno ficou evidente com a pandemia do COVID 19 onde a população mundial enfrentou uma pandemia de um vírus raro e desconhecido altamente contagioso e que levou a morte de milhares de pessoas e gerou o aumento de casos de violência doméstica.
A violência doméstica se manifesta na sociedade de todas as formas possíveis, desde a violência simbólica, que é fruto da idealização de papéis impostos a homens e mulheres, até; violência física, moral, sexual, psíquica e patrimonial levando a destruição da vítima em sua integralidade.
Denomina-se violência contra a mulher, segundo Rovinski (2004, p. 11):
A qualquer ato de violência que tenha por base o gênero, e que resulta ou pode resultar em danos ou sofrimento de natureza física, sexual ou psicológica. Coerção ou privação arbitrária da liberdade quer se reproduzam na vida prática ou privada, podem ocorrer como formas de violência.
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH,2020), em parceria com a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos (ONDH), declarou que nos meses de fevereiro, março e abril de 2020 o número de denúncias de violência doméstica teve um aumento de 14,12% em comparação com o mesmo período de 2019.
A pandemia vivida também acarretou uma grave crise econômica onde muitos perderam seu emprego e suas fontes de renda, causando nas pessoas verdadeiro estresse e preocupação.
O agressor se torna mais estressado por causa do desemprego e consequente redução da renda; sente insegurança em relação ao futuro, além de consumir álcool e drogas (MARTINS, 2020)
Como medidas de contingência do vírus foram desenvolvidas diversas políticas como a decretação do lockdown ordenando que todos os habitantes de determinadas cidades permanecessem em suas residenciais cessando qualquer contato com o mundo externo, gerando um verdadeiro isolamento social, obrigando assim mulheres e homens passarem mais tempo juntos, convivendo sob o mesmo teto sob condições altamente estressantes, circunstancias que gerou o aumento da violência doméstica.
Para Franceschi, a violência contra a mulher não é um fenômeno novo nem gerado pela covid-19: “[…] trata-se de outra ‘pandemia’, que existe desde longa data. O machismo estrutural e a desigualdade de gênero já existiam antes do isolamento social e da quarentena” (Franceschi, 2020).[1] No país, o contexto de isolamento social imposto pelo coronavírus apenas contribuiu para o agravo de um fenômeno social já existente, revelando uma difícil realidade na qual as mulheres brasileiras não estão seguras dentro das próprias casas.
A violência contra a mulher se estabelece na desigualdade de poder entre o sexo feminino e o masculino, decorrente do sistema patriarcal, cuja estrutura de poder está fundamentada sob a ideologia machista, prevalecendo as relações de poder que submetem as mulheres ao domínio e ao controle dos homens, refletindo em violência contra a mulher. (Lisboa; Pinheiro, 2005)
Este artigo evidencia a similaridade do cenário vivido na pandemia do COVID 19 com o cenário observado durante a colonização quando as mulheres passaram a compulsoriamente serem confinadas em seus lares e os homens acabavam descontando o estresse adquirido no mundo exterior no elo mais vulnerável, ou seja, a mulher dentro do ambiente familiar.
Como observado, a violência contra a mulher sempre foi uma manifestação abrangente da violência doméstica.
Atualmente, diversas formas de violência contra a mulher constituem crimes, entendidos como qualquer violação da integridade da mulher. (TELES, 2006).
Portanto, é indiscutível a importância de reflexões sobre a questão de gênero e patriarcado para compreendermos as diversas violências cometidas contra as mulheres. Todavia, a violência contra as mulheres não se restringe a uma questão de gênero. Atualmente, existem outras estruturas de dominação, como o racismo e o capitalismo. Dentro da sociedade de classes, a violência contra as mulheres não é produto somente do patriarcado, mas da sobreposição com outros sistemas de dominação, como o racismo e o capitalismo, “que produz as relações sociais de sexo/gênero, classe, raça/etnia e, consequentemente, a exploraçãoopressão que dela deriva” (Barroso, 2019, p. 142).
Conclui-se que é preciso repensar no fenômeno da violência doméstica e na proteção da mulher por uma lógica além do punitivismo pois, apesar de ignorado por muitos pesquisadores e doutrinadores euro centrista é necessário compreender de que forma este fenômeno se desenvolveu ao longo do tempo, tendo origem no mundo intrusivo e desdobrando-se no mundo pós-colonial e na atualidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A modernidade, enquanto sinônimo de sociedade capitalista, este modo de pensar, transporta-se de um lugar para o outro, definindo a produção de outro tempo e espaço, desterritorializando e reterritorializando novas relações e gerando conflitos de territorialidades.
O processo de consolidação do sistema mundo-moderno colonial construiu a negação dos territórios indígenas e a construção de novas formas, as apropriações dos lugares são regidas por normas orientadas pelo capital.
As reflexões apresentadas revelam a importância de olhar com atenção para as relações entrelaçadas entre as estruturas de opressão que moldaram e replicaram a matriz do poder colonial.
A violência doméstica se manifesta como fenômeno multidimensional e diante disto exige métodos de intervenções multidisciplinares como a decolonialidade visando compreender as dinâmicas individuais, motivacionais, educacionais, familiares e socioculturais que sustentam as interações violentas nestas relações.
Assim no quadro do Estado de Direito, esta perspectiva é indispensável, uma vez que a formulação de medidas adequadas e eficazes pressupõem um profundo conhecimento dessas questões e devem ser considerados na complexidade geral.
Ressalta-se que a intenção deste Artigo não foi de esgotar o assunto uma vez que existe uma grande necessidade de prosseguir com a pesquisa já que se trata de um assunto complexo.
Mas sim o propósito desenvolver uma nova roupagem no tema da violência doméstica, amplamente debatido.
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[1] Ana Carolina Pinto Franceschi, promotora de Justiça que coordena o Núcleo de Promoção da Igualdade de Gênero, do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos – Ministério Público do Paraná.
[1] Mestre do Programa de pós graduação em Direitos Humanos e políticas públicas da Universidade Pontifícia Católica do Paraná (PUCPR). E-mail: isagdanesi@hotmail.com
[2] Especialista em Direito Animal pelo Centro Universitário Internacional em conjunto com a Escola da Magistratura Federal do Paraná (UNINTER/ESMAFE-PR). E-mail: soaresmaiagabriela@gmail.com