CINEMA COMO RECURSO DE APRENDIZAGEM HISTÓRICA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/pa10202412061344


Jorge Wanderson Mendes do Nascimento


RESUMO

Desde o início do século XX, historiadores e educadores, bem como pesquisadores trazem abordagens relevantes acerca da utilização de métodos pedagógicos como o cinema como recurso didático no ensino de história. No Brasil, nos últimos anos as escolas de educação básica passaram a ter a obrigatoriedade de exibir duas horas de filmes por mês, filmes estes de produção nacional que servem como componente curricular, de acordo com a determinação da lei 13.0006/2014, a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Neste sentido, conforme o apontamento de diversos autores com base em discussões de especialistas e determinações dentro deste campo de pesquisa, pode-se observar as mudanças nos métodos do seu uso nas salas de aula, sobretudo nas aulas de história, visto as mudanças socioculturais, bem como pelas constantes inovações tecnológicas e de técnicas audiovisuais para a produção do conhecimento histórico. Neste sentido, o presente estudo tem por objetivo geral investigar a evolução histórica, suas transformações tecnológicas e influências culturais que moldaram a origem e o desenvolvimento do cinema. Já como objetivos específicos, tem-se de identificar os elementos narrativos e alegóricos do filme Terra em Transe e realizar um diálogo entre o filme e a revisão da literatura encontrada. Conclui-se, portanto, que a linguagem cinematográfica é bastante utilizada no ensino de História, de forma que os docentes, tanto do ensino básico, como do fundamental da disciplina de história tenham em mente a perspectiva da formação da consciência histórica e a importância da competência narrativa como método de aprendizagem histórica.

Palavras-Chave: Cinema. História. Expressão Cultural.

ABSTRACT

Since the beginning of the 20th century, historians, educators, and researchers have brought relevant approaches to the use of pedagogical methods such as cinema as a teaching resource in history. In recent years, in Brazil, elementary schools have been required to show two hours of films per month, nationally produced films that serve as a curricular component, in accordance with the determination of law 13.0006/2014, based on the Law of Guidelines and Bases of National Education. In this sense, according to the points made by several authors based on discussions by experts and determinations within this field of research, it is possible to observe changes in the methods of its use in classrooms, especially in history classes, given the sociocultural changes, as well as the constant technological innovations and audiovisual techniques for the production of historical knowledge. In this sense, the present study has the general objective of investigating the historical evolution, its technological transformations, and cultural influences that shaped the origin and development of cinema. As specific objectives, it is necessary to identify the narrative and allegorical elements of the film Terra em Transe and to establish a dialogue between the film and the review of the literature found. It is concluded, therefore, that cinematographic language is widely used in the teaching of History, so that teachers, both in primary and secondary education, of the subject of History keep in mind the perspective of the formation of historical consciousness and the importance of narrative competence as a method of historical learning.

Keywords: Cinema. History. Cultural Expression.

1 INTRODUÇÃO

Enraizada em um processo de convergência tecnológica e criativa que começou no final do século XIX, a origem do cinema veio impulsionada pelo desejo humano de capturar e reproduzir o movimento visual. Nesse período, a invenção da fotografia foi um passo essencial para o desenvolvimento do cinema, permitindo a preservação de imagens estáticas que, mais tarde, seriam colocadas em sequência para simular o movimento. Inventores como Eadweard Muybridge, com seu zoopraxiscópio em 1879, lançaram as bases para o conceito de frames por segundo, o que prenunciaria o advento do cinema como uma forma artística e narrativa (Silva, 2019).

No entanto, o marco inaugural do cinema como o conhecemos é amplamente atribuído aos irmãos Lumière, que, em 1895, apresentaram ao público o primeiro filme comercial: A Saída dos Operários da Fábrica Lumière. Esse momento é considerado o ponto de partida para a indústria cinematográfica, que logo evoluiria de uma curiosidade científica para uma poderosa forma de entretenimento e comunicação de massas. Através das curtas-metragens dos Lumière, o cinema se consolidou como um meio de representar a vida cotidiana, ainda que de forma rudimentar (Paula, 2020).

Simultaneamente, Georges Méliès explorou o cinema como uma ferramenta de fantasia e ilusão, destacando-se com obras como Viagem à Lua (1902), que explorou o potencial dos efeitos especiais e da edição para contar histórias fantásticas (Cardoso, 2014). Enquanto os Lumière enfocavam o realismo, Méliès reconheceu o potencial do cinema para transcender a realidade, criando novos mundos e histórias através da manipulação visual. Essas duas abordagens, a documental e a fictícia, pavimentaram o caminho para a diversidade estilística que o cinema apresentaria nas décadas subsequentes.

Nos tempos modernos, a revolução digital trouxe novas mudanças para o cinema, facilitando a produção e distribuição de filmes e democratizando o acesso à criação cinematográfica. A tecnologia digital não apenas ampliou o alcance dos cineastas independentes, mas também permitiu a experimentação visual, oferecendo novas possibilidades para a narrativa cinematográfica. O surgimento de produções de grande orçamento, em conjunto com narrativas seriadas e franquias, redefiniu o modelo de negócios da indústria, mas o cinema independente continuou a desempenhar um papel fundamental, oferecendo perspectivas alternativas e inovadoras (Silva, 2019).

Dessa maneira, o cinema passou de uma inovação tecnológica para uma forma dominante de expressão cultural, marcada por constantes avanços técnicos e estilísticos, além de que passou a ser utilizado como ferramenta metodológica para o ensino de diversas disciplinas, com base na Base Nacional Comum Curricular. Assim, a convergência entre arte e tecnologia, aliada à evolução das narrativas e ao impacto cultural global, consolidou o cinema como uma das principais formas de comunicação e entretenimento do século XX e XXI (Silva, 2019).

2 A UTILIZAÇÃO E RELEVÂNCIA DE INSTRUMENTOS LÚDICOS PARA O ENSINO DE HISTÓRIA

A inclusão do cinema como ferramenta pedagógica nas escolas brasileiras, estabelecida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em 2014, reflete o reconhecimento de seu valor educativo, deste modo, o Ministério da Educação (MEC) determinou que as escolas exibam filmes produzidos no Brasil por, pelo menos, duas horas mensais, recomendando ainda a inclusão dessas produções na grade curricular de forma integrada com a proposta pedagógica das instituições. Esse movimento destaca o papel crescente do cinema no campo educacional, onde ele se configura como uma ferramenta inovadora e estratégica para acompanhar as transformações sociais e adaptar-se às novas necessidades de aprendizado (Farias; Britto; Santos, 2019).

O cinema, como meio audiovisual, possui um enorme potencial para comunicar ideias, provocar reflexões e expandir o conhecimento dos alunos, diferentemente de abordagens mais tradicionais de ensino, como livros didáticos ou palestras, os filmes são capazes de engajar os estudantes ao explorar aspectos emocionais, visuais e narrativos de uma forma única. Além disso, a produção cinematográfica brasileira pode servir como um instrumento de fortalecimento da identidade cultural, ao colocar os alunos em contato com narrativas que abordam a história, cultura e valores do Brasil (Rossi, 2021).

Entretanto, conforme aponta Gianelli (2023), apesar de seu enorme valor, o cinema não pode ser encarado como uma única fonte de informação em ambiente educacional, assim, o caráter dramatúrgico e criativo das produções cinematográficas muitas vezes conduz a uma estilização dos fatos históricos, com o objetivo de atender às exigências narrativas e de entretenimento da indústria. Isso significa que os filmes nem sempre apresentam uma representação fiel e acurada dos eventos, podendo distorcer a realidade ou criar interpretações que não correspondem à verdade histórica.

Diante disso, é necessário que os educadores adotem uma postura crítica ao utilizar o cinema como ferramenta pedagógica, onde, antes de apresentar um filme aos alunos, é fundamental investigar como a obra trata os fatos históricos e em que medida a narrativa foi adaptada para atender aos interesses da indústria cinematográfica. Essa análise crítica envolve considerar o contexto em que o filme foi produzido, as intenções do diretor e roteirista, bem como o impacto das questões culturais e políticas da época em que a obra foi realizada. Assim, o cinema pode ser utilizado de forma eficaz na educação, desde que complementado por outras fontes de informação, como livros didáticos, artigos acadêmicos e debates em sala de aula (Farias; Britto; Santos, 2019).

Nesse contexto, o papel do professor é crucial para garantir que o cinema seja utilizado de forma consciente e educativa, cabe então ao educador não apenas selecionar filmes adequados ao conteúdo curricular, mas também promover discussões que estimulem a análise crítica e reflexiva dos alunos, incentivando-os a questionar o que veem na tela. O uso do cinema na educação, portanto, deve ser realizado de maneira integrada, dialogando com outras áreas do conhecimento e abordando temas que incentivem o pensamento crítico e a reflexão sobre as questões sociais, políticas e culturais da contemporaneidade (Rossi, 2021).

O uso de recursos paradidáticos no ensino, incluindo o cinema, tem se mostrado uma ferramenta poderosa e cada vez mais valorizada para enriquecer o processo de aprendizagem, entretanto, muitos professores ainda demonstram resistência em adotar essas práticas, preferindo métodos de ensino tradicionais. Essa aversão permanece, apesar de a utilização de recursos como filmes, jogos e música ser amplamente defendida por documentos normativos da educação brasileira, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), onde ambos reconhecem a importância de diversificar as estratégias pedagógicas com o objetivo de tornar o aprendizado mais dinâmico e eficaz (Gianelli, 2023).

Neste sentido, o cinema se apresenta como sendo um recurso de grande valor pedagógico, capaz de atuar não apenas como um complemento, mas como uma ferramenta que facilita a contextualização de conteúdos complexos em diferentes disciplinas. Desde a sua primeira exibição pública em 1895, o cinema tem sido uma forma de expressão artística profundamente conectada com a cultura, tornando-se um reflexo das transformações sociais, políticas e culturais ao longo da história. Dentro do contexto educacional, ele oferece a possibilidade de aproximar os alunos de realidades muitas vezes distantes, tanto no tempo quanto no espaço, proporcionando uma experiência de aprendizado mais rica e diversificada (Oliveira; Araújo; Albuquerque, 2020).

Ademais, outro ponto relevante é que o cinema pode ser um recurso eficaz em diversas disciplinas além da história, visto que o uso de filmes baseados em obras literárias facilita a compreensão dos temas, personagens e tramas, especialmente para alunos que têm dificuldades em se conectar com o texto escrito. Dentro do ensino da geografia, filmes documentários ou ficcionais podem ilustrar questões ambientais, urbanas ou globais, dando aos alunos uma visão mais concreta de temas abstratos discutidos em sala de aula. Até mesmo disciplinas exatas, como a física ou a matemática, podem se beneficiar do cinema, ao utilizar filmes que abordam a aplicação prática dos conceitos teóricos (Soares; Chaigar, 2020).

Dentro de um contexto onde o mundo se encontra cada vez mais multimidiático, o cinema também tem o papel de alfabetizar os alunos em termos de linguagem visual, pois torna-se fundamental que os estudantes aprendam a interpretar textos escritos. Assim, é igualmente importante que desenvolvam a habilidade de “ler” imagens, compreendendo a gramática visual que permeia os filmes. Isso inclui entender como enquadramentos, ângulos de câmera, iluminação e trilha sonora podem influenciar a narrativa e a interpretação do espectador. Essa alfabetização visual é uma competência necessária na sociedade contemporânea, em que as imagens dominam os meios de comunicação (Farias; Britto; Santos, 2019).

Portanto, a resistência ao uso do cinema nas salas de aula, embora compreensível dentro de contextos tradicionais de ensino, deve ser superada em prol de um aprendizado mais envolvente, crítico e significativo. O cinema oferece uma rica gama de possibilidades pedagógicas, ao mesmo tempo em que amplia o horizonte cultural dos alunos e desenvolve neles competências essenciais para o mundo contemporâneo. O educador, ao integrar o cinema em sua prática pedagógica, está não apenas diversificando suas estratégias de ensino, mas também oferecendo aos alunos uma oportunidade de ver o mundo sob diferentes perspectivas e refletir criticamente sobre ele (Morettin, 2014).

2.1 O Brasil Nos Anos De 1960 E A Importância Do Cinema Novo

Marcado por profundas transformações sociais, políticas e culturais, o Brasil na década de 1960, período esse que antecedeu o golpe militar de 1964 e a subsequente ditadura, testemunhou intensas mudanças que reverberaram em diferentes setores da sociedade, incluindo a arte e o cinema. Nesse contexto, o cinema novo emergiu como uma das manifestações culturais mais relevantes e inovadoras da época, posicionando o Brasil no cenário internacional do cinema e oferecendo uma nova perspectiva sobre a realidade social do país. Esse movimento cinematográfico foi não apenas um reflexo das tensões e contradições da sociedade brasileira, mas também uma crítica direta à desigualdade, à miséria e às condições de vida da população, em um momento de grande efervescência política e cultural (Ribeiro, 2023).

Dentro deste contexto e época, o Brasil enfrentava desafios relacionados ao seu desenvolvimento econômico e social, os quais contrastavam com os sonhos de modernização prometidos pelo governo de Juscelino Kubitschek na década anterior, enquanto a modernidade e o progresso eram promovidos, grande parte da população permanecia marginalizada e excluída dos benefícios desse desenvolvimento. Neste sentido, o cinema novo, nascido em meio a essa realidade, teve como objetivo proporcionar voz e visibilidade a essa parcela esquecida da sociedade, adotando uma estética e uma narrativa que rompesse com as produções mais tradicionais do cinema brasileiro (Pinto, 2011).

Neste sentido, um dos elementos centrais do cinema novo foi a sua busca por uma expressividade enraizada no “Brasil profundo”, em outras palavras, nas realidades das classes populares e nas regiões mais pobres e rurais do país, visto que, diferente das produções anteriores, que privilegiavam os estúdios e uma estética mais polida, como as realizadas pela produtora Vera Cruz, o cinema novo optou por filmar em locações reais, utilizando luz natural e captação de som direto. Essa escolha estética foi uma tentativa de retratar o Brasil de forma mais autêntica e crua, aproximando o espectador das realidades sociais e econômicas do país. Além disso, ao rejeitar o artificialismo do estúdio e das produções anteriores, o cinema novo consolidou um compromisso com a verdade social, trazendo à tona o contraste entre a modernidade das elites urbanas e a miséria das classes trabalhadoras (Figueira, 2020).

3 ELEMENTOS NARRATIVOS E ALEGÓRICOS EM TERRA EM TRANSE

A trama de um filme típico do cinema novo pode ser exemplificada em Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), dirigido por Glauber Rocha, uma das principais figuras do movimento, onde o filme segue a trajetória de Manuel, um vaqueiro nordestino que, após matar um coronel local em defesa própria, foge com sua esposa, Rosa, em busca de redenção e sobrevivência no árido sertão brasileiro. Ao longo da narrativa, Manuel é atraído para dois caminhos opostos, onde, por um lado, segue o beato Sebastião, uma figura messiânica que prega a salvação espiritual e a luta contra os ricos, já por outro lado se encontra Corisco, um cangaceiro que busca justiça social através da violência. Rosa, porém, é a única personagem que, ao final, toma uma decisão drástica para romper com o ciclo de violência e fanatismo. Ao matar o beato Sebastião, ela tenta libertar o casal da opressão e da miséria, embora o final permaneça ambíguo quanto ao futuro dos protagonistas (Soares, 2014).

A sinopse básica revela elementos centrais da estética e da temática do cinema novo, onde o cenário árido e inóspito do sertão nordestino trata-se de um reflexo das condições sociais adversas que o filme aborda, assim como a luz natural e as locações externas sublinham a busca por um realismo estético que distancie o filme dos cenários de estúdio e da artificialidade das produções comerciais da época. A escolha por personagens do povo, inseridos em um contexto de pobreza extrema e violência, ressalta o compromisso do movimento com a denúncia das desigualdades sociais que assolavam o Brasil na época (Macedo; Ficheira; Guerón, 2010).

Em termos de crítica inicial, “Deus e o Diabo na Terra do Sol” oferece uma narrativa profundamente alegórica que se engaja com as contradições da sociedade brasileira, a dualidade entre o beato e o cangaceiro reflete o dilema do povo pobre, onde o beato representa a religiosidade messiânica e a crença na redenção espiritual como forma de escape da miséria, enquanto o cangaceiro simboliza a resistência armada e a luta pela justiça social, mesmo que através de meios violentos. A figura de Manuel, preso entre esses dois extremos, pode ser lida como uma metáfora da impotência do camponês brasileiro diante de um sistema opressor e injusto, já Rosa, ao tomar a decisão de matar o beato, simboliza a possibilidade de ruptura com essas narrativas pré-determinadas e a busca por uma nova alternativa, ainda que incerta (Soares, 2014).

A ambiguidade final do filme é um ponto crucial para sua análise crítica, desta maneira, o cinema novo, diferentemente de movimentos anteriores no cinema brasileiro, não oferece respostas fáceis ou finais conclusivos, mas, em vez disso, apresenta a realidade como um espaço de incertezas e conflitos contínuos, reforçando a ideia de que o subdesenvolvimento brasileiro é um problema estrutural e profundo, sem soluções rápidas ou definitivas. Assim, “Deus e o Diabo na Terra do Sol” não é apenas um retrato da vida no sertão, mas uma crítica feroz às estruturas sociais e políticas que perpetuam a miséria e a violência no Brasil (Soares, 2014).

Por fim, a estética da fome, conceito proposto por Glauber Rocha, é plenamente realizada neste filme, de forma que a escassez, a aridez e a brutalidade não são apenas temas da narrativa, mas também moldam a forma como o filme é estruturado e visualizado. As escolhas de direção, como o uso de planos longos, as paisagens desoladas e a trilha sonora intensa de Heitor Villa-Lobos, sublinham a sensação de desespero e impotência que permeia a vida dos personagens, transformando a própria linguagem cinematográfica em um reflexo das condições de vida que o filme retrata. Assim, “Deus e o Diabo na Terra do Sol” se estabelece como um dos pilares do cinema novo e como uma das obras mais importantes do cinema brasileiro, oferecendo uma visão crítica e poética das tensões e contradições do país na década de 1960 (Vieira, 2023).

3.1 Análise da construção narrativa personagens principais na trama

Os filmes “Terra em Transe” (1967), de Glauber Rocha, e “O Diabo na Terra do Sol” (Tengoku to Jigoku, 1963), de Akira Kurosawa, apresentam narrativas que se conectam por meio de elementos que exploram a relação entre poder, moralidade e o impacto das estruturas sociais sobre os indivíduos. Ambos os filmes utilizam a estética cinematográfica para construir alegorias críticas, que transcendem a particularidade de seus contextos nacionais — o Brasil dos anos 1960 e o Japão do pós-guerra — e atingem reflexões universais sobre desigualdade e a luta por justiça (França, 2010).

Em “Terra em Transe”, Rocha utiliza a fábula política para criticar as elites dominantes e as contradições da América Latina, enquanto Kurosawa, em “O Diabo na Terra do Sol”, emprega o suspense moral para revelar as tensões entre valores éticos e a busca individual por poder e status. A articulação narrativa em ambos os filmes é marcada pela exploração das escolhas humanas em ambientes corrompidos, seja pelo clientelismo político de Rocha ou pela dicotomia entre classes sociais no Japão retratado por Kurosawa (Silva, 2019).

Ademais, as obras compartilham um uso simbólico do espaço, onde Rocha transforma a fictícia Eldorado em uma representação da instabilidade política, enquanto Kurosawa utiliza os contrastes entre as paisagens urbanas e rurais para reforçar a segregação social. Em ambos, a narrativa fílmica não apenas relata eventos, mas engaja o espectador em um processo crítico de análise sobre a condição humana frente a sistemas opressivos. Essa convergência torna “Terra em Transe” e “O Diabo na Terra do Sol” narrativas cinematográficas profundamente complementares em suas abordagens sociopolíticas (Soares, 2014).

No centro da construção narrativa de Terra em Transe está o personagem Paulo Martins, interpretado por Jardel Filho, o qual representa a figura do intelectual latino-americano, engajado, porém desiludido com os sistemas políticos vigentes. Paulo é um poeta que inicialmente se alia a um líder populista, Felipe Vieira, com a esperança de que sua revolução traga mudanças significativas ao país. Contudo, à medida que se desilude com as limitações do populismo e sua incapacidade de promover transformações concretas, ele é atraído para o lado do conservador Porfírio Diaz, um político autoritário que simboliza o poder oligárquico e o controle das elites sobre o país. A trajetória de Paulo, que oscila entre Vieira e Diaz, reflete o dilema de muitos intelectuais e artistas da época, que, imersos na polarização política, buscavam uma saída para as crises sociais, mas se viam perdidos entre projetos de poder incongruentes (França, 2010).

A construção narrativa de Paulo Martins é, assim, profundamente alegórica, não sendo apenas um indivíduo, mas o símbolo de uma classe intelectual que, no contexto latino-americano dos anos 1960, estava dividida entre diferentes projetos políticos, sem encontrar uma solução clara para os problemas do subdesenvolvimento e da desigualdade. Rocha utiliza Paulo como um porta-voz das frustrações e impotências desse grupo, destacando como as contradições internas de sua personagem são também as contradições de uma sociedade inteira. Paulo é, ao mesmo tempo, crítico e cúmplice do poder, sendo consumido pela crise que ele próprio não consegue resolver (Soares, 2014).

Ao redor de Paulo, outros personagens são construídos de forma igualmente simbólica. Felipe Vieira (José Lewgoy) é uma representação do populismo latino-americano, inspirado em figuras como Getúlio Vargas e Juan Domingo Perón, o qual trata-se de um líder carismático que promete mudanças e reformas, mas cuja retórica revolucionária se mostra insuficiente para enfrentar os problemas estruturais de Eldorado. Vieira simboliza as limitações do populismo, que, apesar de mobilizar as massas, muitas vezes falha em implementar mudanças duradouras ou em desafiar as elites de maneira significativa. A crise de Paulo com Vieira reflete a própria crise do populismo em grande parte da América Latina, onde líderes populares frequentemente esbarravam nas contradições internas de seus governos e na resistência das oligarquias tradicionais (França, 2010).

Por outro lado, Porfírio Diaz (Paulo Autran) é uma alegoria da elite conservadora e do poder oligárquico que dominava o cenário político de muitos países latino-americanos, o qual representa a força reacionária, o conservadorismo e a aliança entre os interesses econômicos das elites e o autoritarismo político. Desta forma, ao se aliar a Diaz, Paulo não apenas busca uma saída para sua frustração com Vieira, mas também se envolve diretamente com as estruturas de poder que perpetuam a opressão e o subdesenvolvimento em Eldorado. Diaz é, portanto, uma figura que encarna o controle político e econômico das elites sobre o Estado, e sua aliança com Paulo ilustra a cumplicidade da intelectualidade com essas forças quando os projetos populares falham (Soares, 2014).

Outro personagem relevante é Sara (Glauce Rocha), amante de Paulo e também uma figura alegórica, a qual representa a esperança e o idealismo romântico, mas ao mesmo tempo, sua figura se dilui nas tramas políticas e na desesperança de Paulo. Sara simboliza a figura feminina como representação da pátria e da identidade nacional, sendo destruída pelo caos político e pela ambiguidade moral de seus protagonistas. Sua impotência frente aos desdobramentos políticos em Eldorado reflete a fragilidade das utopias em um contexto dominado por forças que suprimem as aspirações por mudanças reais (França, 2010).

3.2 Elementos alegóricos de Terra em Transe

Um dos principais elementos alegóricos de Terra em Transe é a sua crítica à política e ao poder, Rocha não oferece soluções fáceis, mas expõe as limitações de todos os lados do espectro político, neste sentido, o populismo, apesar de suas intenções de promover mudanças, é apresentado como uma força incapaz de lidar com as profundas desigualdades e as estruturas de poder que dominam o país. Da mesma forma, o autoritarismo conservador de Diaz é mostrado como uma força de opressão, que mantém o status quo e reprime qualquer tentativa de transformação social. Entre essas duas forças, o povo de Eldorado permanece preso, à mercê das elites e das figuras políticas que lutam pelo controle do país. Paulo, enquanto intelectual, acaba sendo tragado por essa luta de poder, sem conseguir encontrar uma verdadeira solução para a crise de Eldorado (Silva, 2019).

A crise social é outro tema central do filme, representada tanto pela miséria e pelo sofrimento das massas quanto pela crise moral e existencial de Paulo, sendo Eldorado um país à beira do colapso, onde a desigualdade social e a violência política se entrelaçam para criar um cenário de desespero e desilusão. A figura de Paulo, dividida entre sua arte e sua política, é também uma alegoria da própria crise de identidade do país, onde os projetos de modernização e desenvolvimento fracassam em lidar com as realidades sociais do subdesenvolvimento. Essa crise de identidade, tanto pessoal quanto nacional, permeia todo o filme, revelando a dificuldade de construir uma identidade política e social em meio ao caos e à opressão (Janotti, 2008).

Em suma, Terra em Transe é uma obra alegórica e multifacetada que oferece uma crítica feroz ao sistema político e social da América Latina, através de personagens profundamente simbólicos, Glauber Rocha constrói uma narrativa que reflete as tensões e contradições da sociedade brasileira nos anos 1960, ao mesmo tempo em que eleva essas questões a um plano universal. O filme não apenas questiona as estruturas de poder, mas também explora a crise de identidade que permeia o continente, deixando o espectador com um senso de incerteza e inquietação que reflete a própria realidade social que o filme retrata (Cardoso, 2014).

3.3 Estilo Visual De Terra Em Transe (1967)

Dirigido por Glauber Rocha, é uma das características mais marcantes do filme e está profundamente enraizado nas propostas estéticas e ideológicas do cinema novo, onde o movimento buscava criar uma estética que refletisse as condições sociais e políticas do Brasil e da América Latina na década de 1960, rejeitando os padrões cinematográficos tradicionais e produzindo uma linguagem cinematográfica própria, alinhada com a realidade e as tensões da época. A cinematografia de Terra em Transe é uma síntese dessa proposta, utilizando imagens e cenários que carregam simbolismos profundos e que dialogam diretamente com o contexto histórico do período (Morettin, 2014).

No Brasil dos anos 1960, o país passava por grandes transformações políticas e sociais, especialmente com a instalação da ditadura militar em 1964, já que, dentro do contexto de repressão política, censura e crise de identidade nacional impactou fortemente o ambiente cultural e intelectual da época. Terra em Transe emerge nesse cenário como uma resposta às tensões políticas e sociais que dominavam o país, e sua estética visual reflete tanto o caos e a instabilidade quanto as contradições que moldavam a realidade brasileira. Rocha utiliza um estilo visual que enfatiza o choque, a ruptura e a crise, tanto nas relações entre os personagens quanto na representação do espaço físico de Eldorado, o país fictício onde a trama se passa (Schvarzman, 2007).

A fotografia de Terra em Transe, dirigida por Luiz Carlos Barreto, é um elemento crucial na construção da linguagem visual do filme, onde Rocha opta por uma cinematografia que muitas vezes usa a luz natural, acentuando a aridez e a dureza das paisagens que compõem o cenário de Eldorado. A utilização de espaços amplos e áridos, como o sertão e as paisagens desoladas, dialoga diretamente com o conceito de “estética da fome”, que Glauber Rocha propôs como uma representação das condições de miséria e subdesenvolvimento que caracterizavam grande parte da América Latina. Essa estética não busca disfarçar ou suavizar as condições adversas do país, mas sim expor sua brutalidade de forma crua e direta. A fotografia acentua os contrastes de luz e sombra, reforçando a atmosfera opressiva que perpassa o filme, criando uma sensação constante de crise e tensão (Schvarzman, 2007).

O uso de planos longos e ângulos expressivos também é uma característica marcante da direção de Rocha, contribuindo para a criação de uma estética que provoca o espectador a refletir sobre o significado das imagens, os enquadramentos muitas vezes desestabilizam a perspectiva do público, reforçando a ideia de que o mundo de Eldorado está em desordem. Em muitos momentos, a câmera acompanha os personagens em planos-sequência extensos, permitindo que as cenas se desenvolvam de maneira fluida, o que também simboliza a confusão e a complexidade das relações políticas e sociais. Esses planos longos criam uma sensação de imersão, colocando o espectador no centro da crise que se desenrola no filme. Ao mesmo tempo, Rocha faz uso de cortes abruptos e disjunções narrativas que rompem com a linearidade tradicional, refletindo as próprias rupturas e fragmentações da sociedade brasileira naquele momento (Morettin, 2014).

O simbolismo dos cenários em Terra em Transe é igualmente central para a construção de sua narrativa visual, os espaços em que a trama se desenrola são frequentemente retratados como lugares de transição e tensão, em consonância com o estado de crise que caracteriza Eldorado. O palácio de Porfírio Diaz, por exemplo, é mostrado como um espaço de poder opressor, com suas salas amplas e frias simbolizando a alienação da elite em relação à realidade do povo. O palácio se destaca por seu vazio e sua grandiosidade, simbolizando o distanciamento e a indiferença dos detentores do poder diante da miséria e da instabilidade social. O uso simbólico do espaço é uma ferramenta que Rocha utiliza para enfatizar a diferença de classes e a opressão estrutural que permeiam a sociedade de Eldorado (Siega, 2009).

Por outro lado, os espaços abertos e áridos, como o sertão e as ruas desertas de Eldorado, são símbolos da desesperança e da desolação que acompanham o protagonista Paulo Martins em sua jornada, essas paisagens inóspitas refletem a impotência e a crise existencial que dominam o personagem, além de representarem o abandono em que o povo de Eldorado se encontra. A terra árida, um símbolo recorrente no cinema novo, carrega um duplo significado: é, ao mesmo tempo, um reflexo da pobreza material que aflige o Brasil e uma metáfora para a aridez moral e política que permeia o sistema de poder (Silva, 2019).

O simbolismo político também está presente em diversos aspectos visuais do filme, onde as cenas de comício e os encontros políticos de Felipe Vieira e Porfírio Diaz são representados de forma teatral, quase surreal, com uma coreografia que revela a artificialidade e o vazio das promessas políticas. Os comícios de Vieira, em particular, são filmados com um tom que mistura esperança e desesperança, revelando a tensão entre o idealismo populista e a realidade de que sua revolução é superficial e incapaz de transformar verdadeiramente a estrutura de poder. Da mesma forma, as cenas de violência e repressão são apresentadas de forma estilizada, ressaltando o caráter trágico da luta política em Eldorado (Schvarzman, 2007).

A trilha sonora composta por Sérgio Ricardo também desempenha um papel importante no estilo visual de Terra em Transe, a música intensifica o impacto emocional das cenas e, em muitos casos, acentua o caráter épico e trágico da narrativa. Os temas musicais, que mesclam ritmos brasileiros com sons dissonantes e dramáticos, reforçam o clima de tensão e instabilidade, sublinhando a ambiguidade das situações políticas e sociais retratadas no filme (Silva, 2019).

No que tange ao contexto histórico do Brasil na década de 1960, o estilo visual de Terra em Transe pode ser lido como uma resposta direta às condições políticas e sociais do país. A ditadura militar, instaurada em 1964, havia reprimido violentamente as manifestações populares e intelectuais, e o filme de Glauber Rocha se coloca como uma obra de resistência simbólica a esse regime. O uso de uma linguagem cinematográfica que rejeita as convenções do cinema comercial e adota uma abordagem visual radical e inovadora é, por si só, um ato de oposição às normas estabelecidas pelo poder. O filme, ao expor de forma crua e direta as contradições e injustiças da sociedade, se alinha à crítica social e política do cinema novo, que buscava uma representação autêntica e engajada da realidade brasileira (Silva, 2019).

Desta maneira, infere-se, portanto, que a trama Terra em Transe se utiliza do simbolismo visual não apenas para retratar a crise política de Eldorado, mas também para propor uma reflexão mais ampla sobre a identidade nacional e o papel do cinema na construção dessa identidade. As imagens de desolação, opressão e violência presentes no filme são uma representação alegórica das dificuldades enfrentadas pelo Brasil em seu processo de desenvolvimento, revelando as tensões entre modernidade e tradição, progresso e atraso, e democracia e autoritarismo. O estilo visual de Rocha é, assim, tanto uma crítica quanto uma forma de engajamento com as questões mais profundas que moldavam o Brasil e a América Latina na década de 1960 (Schvarzman, 2007).

4 PRESSUPOSTOS TEÓRICO METODOLÓGICOS PARA O USO DO CINEMA NO ENSINO DE HISTÓRIA

Para Cardoso (2020), o uso do cinema no ensino de História tem se consolidado como uma ferramenta pedagógica relevante, especialmente quando integrado aos pressupostos teórico metodológicos que norteiam a prática docente, a relação entre cinema e ensino de História repousa na capacidade dos filmes de mobilizar a imaginação, de criar empatia e de apresentar narrativas que ampliam a compreensão dos processos históricos. Entretanto, para que o cinema seja utilizado de forma eficaz e não apenas como recurso auxiliar, é necessário adotar abordagens teóricas e metodológicas que explorem criticamente seu potencial, transformando-o em uma fonte legítima de aprendizado e reflexão.

Em primeira análise, faz-se importante entender que o cinema, ao retratar eventos históricos, não assume uma função meramente documental, pois, embora muitos filmes busquem recriar momentos históricos com fidelidade, a natureza artística e narrativa da cinematografia implica um tratamento criativo dos fatos. Assim, os filmes constituem uma “representação” da realidade, e não a realidade em si. Esse ponto é fundamental na adoção de pressupostos teóricos para o uso do cinema no ensino de História, pois exige que tanto professores quanto alunos desenvolvam uma leitura crítica das obras cinematográficas (Janotti, 2008).

Os pressupostos teóricos para o uso do cinema no ensino de História devem basear-se, primeiramente, na compreensão do conceito de “representação”, onde, a partir das contribuições de teóricos como Marc Ferro, o cinema pode ser interpretado como um discurso histórico, no qual as imagens fílmicas reconstroem o passado sob o olhar de seus realizadores, refletindo valores, ideologias e tensões da época de sua produção. Ferro, em sua obra Cinema e História (1977), destaca que o cinema revela aspectos da realidade social e política de um determinado momento histórico, tanto no contexto que retrata quanto no contexto em que foi produzido (Jardim; Oliveira, 2024).

Lopes (2015), continua, a partir dessa perspectiva teórica, um dos pressupostos metodológicos mais importantes para o uso do cinema no ensino de História é a necessidade de contextualização, assim, a exibição de um filme em sala de aula deve ser acompanhada de uma análise rigorosa do contexto de produção da obra, considerando fatores como o momento histórico em que foi realizada, os interesses políticos ou culturais que moldaram a narrativa, e as eventuais distorções ou omissões em relação aos fatos retratados. Essa análise crítica permite que os alunos percebam como o cinema também pode ser utilizado como instrumento de manipulação ideológica, especialmente em contextos de regimes autoritários, nos quais a propaganda estatal se utilizou de produções fílmicas para disseminar ideologias e moldar a opinião pública.

Outro aspecto metodológico fundamental no uso do cinema no ensino de História é o incentivo à leitura comparativa, a exibição de um filme histórico deve ser acompanhada de materiais complementares, como textos acadêmicos, documentos históricos, e outras fontes que possam confrontar e ampliar a visão oferecida pelo filme. Essa abordagem permite que os alunos comparem diferentes versões e interpretações dos eventos históricos, desenvolvendo uma compreensão mais crítica e reflexiva. Ao contrastar o filme com fontes primárias, os estudantes são incentivados a questionar a fidelidade dos fatos retratados na narrativa cinematográfica, bem como a investigar as motivações por trás das escolhas estéticas e narrativas do diretor (Lopes, 2015).

Além disso, o cinema oferece uma oportunidade única de explorar a dimensão sensorial e emocional da História, de forma que filmes históricos costumam provocar forte impacto visual e emocional, uma vez que recriam ambientes, figurinos, e personagens que transportam os espectadores para o passado. Essa experiência sensorial pode ser utilizada como uma porta de entrada para discussões mais profundas sobre o contexto histórico, a sociedade da época e os conflitos que moldaram determinados eventos. Nesse sentido, o cinema pode ser uma ferramenta poderosa para despertar o interesse e o engajamento dos alunos, mas sempre deve ser complementado por uma análise crítica que vá além do impacto emocional imediato (Macedo; Ficheira; Guerón, 2010).

Assim, os pressupostos metodológicos também envolvem o desenvolvimento da chamada “alfabetização audiovisual”, ou seja, a capacidade dos alunos de interpretar as linguagens e convenções do cinema. Assim como é necessário ensinar os estudantes a ler criticamente textos escritos, é essencial que eles aprendam a “ler” as imagens fílmicas, compreendendo os elementos de linguagem audiovisual, como enquadramento, montagem, trilha sonora e uso de cores. Esses elementos estéticos, muitas vezes, carregam significados ideológicos e simbólicos que precisam ser analisados de forma crítica. Por exemplo, o uso de uma determinada paleta de cores ou o posicionamento da câmera podem influenciar a maneira como os espectadores interpretam os eventos e personagens retratados (Morettin 2014).

Do ponto de vista metodológico, o cinema também pode ser utilizado no ensino de História como uma ferramenta para explorar diferentes perspectivas históricas e subjetivas. Muitos filmes oferecem uma visão particular dos eventos, focando em personagens ou grupos específicos, o que permite uma reflexão sobre a pluralidade de vozes e narrativas no processo histórico. Em vez de se concentrar apenas em uma “grande história” oficial, o cinema permite que os alunos se aproximem de experiências individuais e coletivas, como a vida de pessoas comuns, minorias étnicas, ou movimentos sociais que muitas vezes são marginalizados nos relatos tradicionais (Pinto, 2011).

Outro aspecto que deve ser considerado é o papel do cinema na formação de identidades nacionais e culturais, de maneira que muitos filmes históricos buscam, de maneira consciente ou inconsciente, construir ou reforçar determinadas narrativas sobre a identidade nacional. A análise de como o cinema representa a história de um país ou de um povo pode ser uma oportunidade para discutir questões relacionadas ao nacionalismo, à memória coletiva e à construção de mitos fundadores. A exemplo, filmes sobre a Segunda Guerra Mundial ou sobre a ditadura militar no Brasil frequentemente trazem à tona debates sobre memória e justiça, oferecendo aos alunos a chance de refletir sobre como o passado é lembrado ou esquecido em diferentes contextos históricos e culturais (Morettin 2014).

Por fim, o uso do cinema no ensino de História deve ser pensado como uma ferramenta dialógica, dessa forma, o filme ao ser exibido em sala de aula não deve ser visto como um “fim” em si, mas como um ponto de partida para debates, reflexões e investigações mais amplas. O papel do professor é mediar essas discussões, incentivando os alunos a expressarem suas interpretações, dúvidas e críticas sobre a obra cinematográfica, ao mesmo tempo em que fornece as ferramentas teóricas e metodológicas necessárias para uma análise mais profunda (Schvarzman, 2007).

Infere-se, portanto, que os pressupostos teórico-metodológicos para o uso do cinema no ensino de História envolvem uma abordagem crítica e contextualizada, que reconhece o cinema como uma forma de representação e não como um reflexo puro e simples da realidade. Ao integrar filmes históricos ao currículo, os professores devem promover a análise crítica das narrativas cinematográficas, incentivando a comparação com outras fontes e o desenvolvimento da alfabetização audiovisual. Dessa forma, o cinema pode se tornar uma ferramenta poderosa não apenas para ensinar História, mas também para estimular o pensamento crítico e a reflexão sobre o papel da memória, da ideologia e da cultura na construção do conhecimento histórico (Morettin 2014).

CONCLUSÃO

O filme Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, é um dos marcos do cinema novo brasileiro, destacando-se por sua crítica política e social, além de sua estética inovadora. Ao dialogar com a revisão da literatura sobre cinema e história, é possível perceber como a obra de Glauber Rocha reflete e se alinha a teorias que discutem o uso do cinema como ferramenta de representação ideológica e narrativa histórica. A análise crítica dessa obra cinematográfica permite uma leitura mais ampla de como o cinema pode ser visto como um meio de reflexão sobre as crises políticas, sociais e identitárias, tanto no Brasil da década de 1960 quanto em contextos mais amplos.

Pode-se afirmar que o cinema é uma forma poderosa de representar realidades sociais e políticas, atuando como um espelho de sua época e, ao mesmo tempo, como uma construção ideológica. Terra em Transe se insere nessa discussão ao retratar uma alegoria política, que combina elementos históricos do Brasil e da América Latina, misturando ficção e realidade em um espaço fictício, o país de Eldorado. Nesse sentido, o filme utiliza a arte cinematográfica como um meio de crítica ao cenário político da época, especialmente ao regime militar e à instabilidade das democracias latino-americanas. A obra questiona a manipulação do poder e a alienação das massas, temas que dialogam com as ideias de Ferro sobre o papel do cinema como instrumento de doutrinação ou contestação política.

Além disso, a representação ideológica em Terra em Transe pode ser analisada sob a luz dos pressupostos teóricos que discutem o cinema como um artefato de pensamento, como proposto por Alexander Kluge. A obra de Glauber Rocha, assim como a de Kluge, propõe uma reflexão complexa sobre os contextos políticos e sociais que moldam o comportamento humano. A personagem central de Paulo Martins é um intelectual que, ao longo do filme, se vê dividido entre diferentes correntes políticas e suas próprias convicções ideológicas, o que representa uma crise de identidade frente a um cenário de opressão e manipulação. Essa narrativa de crise e contradição pode ser vista como uma tentativa de representar o “irrepresentável”, uma característica que Kluge identifica em suas próprias produções cinematográficas, ao discutir como o cinema lida com eventos históricos e traumas coletivos.

O cinema, enquanto arte e ferramenta pedagógica, também possui uma dimensão educativa e de formação de pensamento crítico, como discutido em estudos sobre o uso do cinema no ensino de História. Terra em Transe não é apenas um filme de entretenimento ou uma obra puramente artística; ele atua como um meio de conscientização política e social. No contexto educacional, filmes como este podem ser utilizados para debater conceitos centrais da história brasileira, como o populismo, a ditadura e as dinâmicas do poder político. Assim, a exibição de filmes como Terra em Transe em ambientes educativos, conforme proposto pelo Ministério da Educação na inclusão de filmes nacionais no currículo escolar, pode servir como uma ferramenta estratégica para promover discussões sobre a história recente do Brasil e as suas implicações na formação da sociedade contemporânea.

Outro ponto de diálogo entre Terra em Transe e a literatura sobre cinema e história é o uso de alegorias e símbolos para criticar a realidade social. Glauber Rocha utiliza uma estética barroca e caótica, onde a narrativa fragmentada reflete a fragmentação do cenário político e social do Brasil. Esse uso da estética cinematográfica como forma de crítica política também é destacado por teóricos como Marc Ferro, que observa como a linguagem do cinema pode ser manipulada para fins ideológicos. No filme, a montagem não-linear, a sobreposição de imagens e a música intensa constroem um ambiente de transe e confusão, que traduzem o caos político de Eldorado e, por extensão, do Brasil dos anos 1960. A estética visual de Rocha dialoga com a ideia de que o cinema, ao manipular a forma e a narrativa, pode gerar um efeito crítico sobre os espectadores, desafiando-os a questionar a realidade.

Além disso, Terra em Transe representa a crise da identidade nacional e a alienação das massas, temas que estão presentes tanto na filmografia de Glauber Rocha quanto em análises mais amplas sobre o cinema político. O filme não oferece respostas fáceis ou soluções claras para os problemas que retrata; em vez disso, mergulha o espectador em uma atmosfera de incerteza e desesperança. Essa abordagem reflexiva está alinhada com as discussões sobre o cinema como meio de representar o trauma e a complexidade da história, conforme observado na obra de Alexander Kluge, que também lida com questões de identidade, história e memória.

Por fim, faz-se importante destacar o contexto histórico no qual Terra em Transe foi produzido. O Brasil da década de 1960 estava imerso em uma série de transformações políticas, com o golpe militar de 1964 e o estabelecimento de um regime autoritário. Nesse cenário, o cinema novo emerge como um movimento que busca questionar as estruturas de poder e propor uma nova estética cinematográfica, que não se limite às convenções comerciais de Hollywood. A revisão da literatura sobre cinema e história, especialmente no que diz respeito ao papel do cinema em regimes autoritários, permite compreender melhor o impacto político de obras como Terra em Transe, que funcionam tanto como denúncia quanto como reflexão crítica sobre o poder e a alienação.

Nesse interim, o diálogo entre Terra em Transe e a literatura sobre cinema e história revela como a obra de Glauber Rocha transcende a simples narrativa ficcional, transformando-se em um veículo para a crítica social e política. Ao adotar uma estética inovadora e alegórica, o filme desafia o espectador a refletir sobre as crises identitárias, políticas e sociais do Brasil dos anos 1960, ao mesmo tempo em que se conecta com discussões teóricas mais amplas sobre o papel do cinema na construção da memória e da história. Dessa forma, Terra em Transe continua sendo um exemplo poderoso de como o cinema pode ser utilizado não apenas como entretenimento, mas como uma ferramenta de transformação social e política.

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