REGIONAL CENTRALITY AND INTRA-URBAN SPACE: AN ANALYSIS OF MEDIUM-SIZED CITIES LOCATED IN THE NORTHEAST REGION
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ma1020240191050
Rafael Rust Neves1
Resumo
As cidades médias vêm ganhando relevância enquanto objeto de estudo em diferentes campos do conhecimento. Tal importância é resultado do crescimento populacional e do PIB destas cidades nas últimas décadas, frente às deseconomias de aglomeração observadas nos grandes centros urbanos. O presente trabalho teve por objetivo discutir o conceito de cidade média e fazer um estudo descritivo contemplando cidades localizadas na rede urbana nordestina, utilizando como parâmetros o Índice Brasileiro de Privação e Tipos de Domicílio com base no Censo de 2010. Os procedimentos metodológicos consistiram em uma revisão bibliográfica sobre o conceito de cidade média, uma pesquisa nas bases de dados secundários do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/ Fiocruz Bahia) e na análise das cidades, realizada a partir desses dados. Os resultados indicaram que, apesar da relevância como objeto empírico, a conceituação de cidade média ainda apresenta inconsistências e que, dentre as cidades médias localizadas no Nordeste, Arapiraca-AL e Garanhuns-PE são aquelas que apresentam níveis de privação mais elevados e, ao mesmo tempo, altas porcentagens de domicílios do tipo Casa em Vila ou Condomínio, indicando o aprofundamento da desigualdade socioespacial nesses centros urbanos.
Palavras-chave: Desenvolvimento Regional. Desigualdade Social. Segregação Urbana.
1 INTRODUÇÃO
A partir da segunda metade do século passado, os processos de desconcentração industrial decorrentes de políticas de desenvolvimento regional e das deseconomias de aglomeração vêm deslocando a localização das indústrias até então situadas nas metrópoles para centros urbanos menores, embora as grandes cidades ainda sejam o lócus de comando, pois nelas estão localizadas as sedes das grandes empresas nacionais e transnacionais.
As cidades médias vêm ganhando relevância enquanto objeto de estudo em diferentes campos do conhecimento. Tal importância é resultado do crescimento populacional e do PIB destas cidades, nas últimas décadas. De acordo com estudos realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicados nos relatórios “Regiões de Influência das Cidades”, entre 2008 e em 2018 o número de cidades classificadas como capitais regionais B e C registrou um crescimento de, aproximadamente, 50%.
Neste contexto, o presente trabalho teve por objetivo discutir o conceito de cidade média e fazer um estudo descritivo com foco nas cidades assim conceituadas situadas na Região Nordeste do Brasil, utilizando como parâmetros o Índice Brasileiro de Privação e Tipos de Domicílio de acordo com o Censo de 20102. O intuito do trabalho foi contribuir com reflexões que possibilitem avançar na direção de uma conceituação mais precisa de cidade média e alertar para a necessidade de políticas de desenvolvimento urbano e regional que promovam territórios mais justos e inclusivos.
Os procedimentos metodológicos consistiram, em primeiro lugar, em uma revisão de literatura sobre o conceito de cidade média, reunindo reflexões de autores renomados nos âmbitos nacional e internacional. Em seguida, foi realizada uma pesquisa de dados secundários nas bases do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/ Fiocruz Bahia). Por fim, foram analisados os resultados do Índice Brasileiro de Privação e os Tipos de Domicílio do Censo 2010 para diferentes cidades médias localizadas no Nordeste, em uma abordagem descritiva.
2 CIDADES DE PORTE MÉDIO, CIDADES MÉDIAS E CIDADES INTERMEDIÁRIAS
O debate em torno da conceituação de “cidade média” vem sendo travado há décadas, com poucos consensos seja no âmbito acadêmico-científico, seja no meio técnico-institucional. Desde que o termo apareceu com essa denominação, no âmbito das políticas de planejamento regional na França3, no início dos anos 1970, diversos autores ressaltaram as dificuldades para defini-lo de forma precisa e ao mesmo tempo abrangente.
Parte dos autores apontaram que as “cidades médias” são definidas mais pela negação do que pela afirmação dos seus conteúdos. Ela seria, portanto, aquela que reuniria conteúdos que não são próprios das cidades pequenas nem aqueles atinentes às grandes. Segundo Michel (1977, p. 642) “sabemos muito bem o que a cidade média não é, mas dificilmente podemos dizer o que ela é”.
Amorim Filho e Serra (2001) mencionaram que não existe uma ideia consensual e cristalizada do que seriam as cidades médias e que as definições correntemente utilizadas revelam mais os objetivos dos pesquisadores e dos promotores de políticas públicas do que propriamente um arcabouço teórico em si. Na mesma direção, Roberto Lobato Corrêa (2007, p. 23) indicou que “trata-se de uma expressão vaga, aberta a múltiplos significados e impregnada do idealismo que a concebe como um ideal a ser alcançado, apresentando as vantagens da pequena cidade sem ter, contudo, as desvantagens das grandes”.
Apesar dos avanços teóricos alcançados nesse exercício de conceituação, os autores têm rejeitado a perspectiva de definir de forma absoluta e universal o conceito de cidade média. Monod (1974 apud MICHEL, 1977, p. 642) aponta que “parece inútil estabelecer uma definição científica, no entanto, a noção de cidade média possui um conteúdo bastante real”.
Essa afirmação de Monod suscita uma problematização sobre o esforço teórico de conceituação de “cidade média”. Se o conteúdo se apresenta de forma inteligível do ponto de vista empírico, resta questionar se o estatuto epistemológico sob o qual o exercício teórico tem sido realizado desde os anos 1970 seria o mais adequado. Em outros termos, é preciso considerar a hipótese de que o problema referente à definição de “cidade média” esteja mais na insuficiência das teorias para explicá-lo do que propriamente no objeto em si. É possível que o conceito de “cidade média”, dado seu conteúdo transitório, heterogêneo e fluido, não seja passível de uma definição clássica, metafísica, objetiva e universal nos moldes de uma epistemologia estruturalista ou pós-positivista, que influenciava o ambiente técnico-científico na França, entre os anos 1950 e 1970, quando o conceito foi cunhado. É possível que o conceito de “cidades médias” estivesse esgarçando os limites daquele arcabouço epistêmico dentro do qual, ainda hoje, parte dos diversos campos do conhecimento têm ancorado o exercício teórico em prol de formular uma definição.
Maria da Encarnação Sposito (2009, p. 51), contextualizando o problema, afirmou que: “não há, no caso brasileiro, um debate conceitual suficientemente bem fundamentado no plano teórico-conceitual, ainda que tenha havido avanços metodológicos, para designar as cidades que desempenham papeis intermediários nas redes urbanas que compõem o sistema urbano brasileiro.”
Juscelino Gomes Lima e Rogério Leandro Lima da Silveira (2017) argumentaram que o termo “médio”, proveniente das ciências matemáticas, pode estar enviesando o exercício de conceituação de “cidade média”, fortalecendo o determinismo demográfico e consequentemente limitando-a a conteúdos de ordem quantitativa. Como alternativa à noção de “cidade média” os autores propõem “cidades de comando regional”, com o objetivo de retirar o enfoque no quantitativo populacional.
Essa reflexão formulada por Lima e Silveira (2017) alerta para uma preocupação legítima e de suma relevância: a denominação do conceito, no âmbito semântico, pode estar limitando seu alcance. Porém, o uso do conceito “cidades de comando regional” como alternativa ou complemento ao de “cidades médias” merece algumas ressalvas. Oswaldo Amorim Filho (2007), citando trabalho próprio, publicado em 1976, em que propôs um rol de critérios para caracterização das cidades médias, chamou a atenção para um aspecto pouco comentado no debate sobre o tema:
(…) a noção de “cidade média” não deve ser confundida necessariamente com a noção de “centro de polarização regional ou microrregional”. A coincidência não ocorre sempre. Além disso, as relações da “cidade média” com seu environnement nem sempre são relações de “dominação”, podendo ser também relações de estímulo e de dinamização (…) e, em certos casos, até de dependência (Amorim Filho, 2007, p. 74).
Essa contribuição de Amorim Filho expôs os limites de conceituar “cidades médias” a partir de uma perspectiva exclusivamente hierárquica. Se as relações que uma “cidade média” estabelece podem ser de dependência, neste caso, ela não comanda seu entorno regional, mas o contrário: é comandada por ele.
Segundo diversos autores (Michel, 1977; Ferrão et al., 1994; Costa, 2002; Correa, 2007) o exercício conceitual de “cidade média” enfrenta como principal obstáculo a superação do determinismo demográfico. Nesse sentido, Michel (1977, p. 642) questiona: “não é uma contradição, ou mesmo uma ilusão, querer travar um conceito essencialmente abstrato (média) em uma contestável limitação quantitativa?” O autor continua sua argumentação, considerando que o porte populacional, apesar da necessidade de ser relativizado, impregnou no debate conceitual sobre as cidades médias, na França, de forma persistente:
A noção de cidade média repousa, primeiramente, e não importa o que se diga, em um critério: o efetivo da população. Desde logo, a discussão, inevitável e, entretanto, vã, trata frequentemente, dos limites extremos que devem ser dados a esta classe de cidades. De acordo com os autores, a categoria cidades médias começa a partir de 20.000, 30.000, ou 50.000 habitantes. Ela acaba a 100.000 ou 200.000 habitantes. É preciso destacar que este total populacional se refere à população da aglomeração e não apenas a uma única cidade (Michel, 1977, p. 642).
Amorim Filho e Rigotti (2002) também realizaram um estudo sobre a diversidade de portes demográficos atribuídos às cidades médias em diferentes países sul-americanos. Utilizando dados do início dos anos 1990, os autores apontaram que as cidades identificadas como médias no Chile apresentaram variação de porte populacional entre 56.067 (Ovalle) a 218.842 (Talca). Na Argentina, o porte populacional variava entre 50 mil e 1 milhão de habitantes, a exemplo da cidade de San Miguel de Tucaman, considerada como média, com porte populacional de 654.000 habitantes. Na Bolívia, as cidades caracterizadas como médias apresentavam portes populacionais variando entre 3.037 (Tiquipaya) e 52.021 habitantes (Montero).
No Brasil, Andrade e Lodder (1979) operaram com a identificação de cidades médias selecionando aquelas com população entre 50.000 e 250.000 habitantes. Milton Santos (1994) argumentou que as cidades médias seriam aquelas com porte populacional não inferior a 100 mil habitantes.
A heterogeneidade de limiares fica evidente na Tabela 1, elaborada a partir das contribuições de diferentes autores comparando os portes demográficos atribuídos às cidades médias, em diferentes países e instituições.
Fonte: elaborado pelo autor, considerando Costa (2002); Amorim Filho e Rigotti (2002); e Lima e Silveira (2017).
Sposito (2009, p. 51), remetendo aos estudos de âmbito nacional, apontou diferenças entre duas denominações fundamentais que envolvem a noção:
há um relativo consenso na adoção da expressão ‘cidades de porte médio’ para designar aquelas que têm tamanho populacional entre 50 mil e 500 mil habitantes e a opção por reservar a expressão ‘cidades médias’ para fazer referência àquelas que desempenham papeis de intermediação entre as metrópoles e as cidades pequenas.
Na tentativa de superar o determinismo demográfico na conceituação de ‘cidade média’, diferentes autores apontaram a necessidade de adotar outros dois critérios: a escala espacial de referência e a dimensão temporal.
Quanto à escala espacial de referência, Michel (1977, p. 646) indicou que os estudos realizados até aquele contexto, consideravam “a cidade média em relação a ela mesma ou em relação à estrutura urbana geral da França”. No entanto, também é preciso observá-la em relação ao nível intermediário da região.” O autor alerta que a “cidade média”, ainda que seja observado exclusivamente o critério demográfico, apresenta um peso muito diferente dependendo da região a qual pertence. Ele exemplifica chamando a atenção para o caso de Limoges, com menos habitantes que Dunkerque, mas que concentrava naquele contexto 23% da sua população regional, enquanto Dunkerque concentrava apenas 5% na sua respectiva região.
Costa (2002) também chamou a atenção para a necessidade de considerar esse critério, alertando que uma cidade média localizada numa área despovoada não desempenha o mesmo papel que outra localizada numa área fortemente urbanizada. Ou seja, uma cidade com porte populacional tacanho, localizada numa rede urbana esparsa, pode desempenhar a função de cidade média com maior efetividade que outra com porte populacional robusto, mas localizada em uma rede urbana altamente adensada.
Corrêa (2007, p. 26), na mesma linha, argumentou que “a cidade média deve ser pensada segundo uma dada escala espacial, em relação à qual pode adquirir sentido”. Citando o caso de Sergipe, Corrêa pondera que, na escala brasileira, Aracaju pode ser considerada uma cidade média, mas na escala daquela unidade federativa, a mesma cidade se apresenta como uma macrocefalia.
Quanto à dimensão temporal, Michel (1977, p. 643) ressaltou que “a classificação de uma aglomeração na hierarquia urbana e, por portanto, seu pertencimento a esta ou aquela categoria estatística, varia com a época. Uma cidade não nasce média e ela não permanece assim para sempre”. Comparando a situação de Grenoble, o autor apontou que, em 1876, a cidade contava com cerca de 45.000 habitantes e constava no 31º lugar na hierarquia das cidades francesas, sendo considerada uma “cidade média”. Cem anos depois, com 390.000 habitantes em sua aglomeração, ela passou a figurar na 9º posição no sistema urbano francês, tornando-se uma “grande cidade”. Inversamente, Amiens, uma “cidade grande” em 1876, cem anos depois, se apresentava como uma “cidade média”, apesar de seu aumento demográfico.
Na mesma direção, Amorim Filho e Riggoti (2002) chamaram a atenção para a elevada frequência com que as cidades, com o passar do tempo, ascendem ou descendem na hierarquia regional em decorrência da alteração no seu porte demográfico.
Corrêa (2007, p. 26) também destacou a necessidade de a conceituação de cidade média adotar um recorte temporal de referência. O autor advertiu que “dado o rápido processo de urbanização (…) é preciso considerar que 100.000 habitantes têm significados diferentes quando referenciados a 1940, 1960, 1980 e 2000”. Corrêa alertou para a possibilidade de que “uma cidade tida como média em um passado recente, não seja mais assim considerada 20 ou 30 anos depois”. (…) A “cidade média” pode ser, assim, considerada como um estado transitório” (Ibid., p. 26).
É importante constatar que, observando as argumentações desses diferentes autores, os três critérios apontados para conceituar “cidades médias” estão lastreados no primeiro: o porte demográfico; os outros dois – a escala espacial e o lastro temporal – derivam dele. Afinal, o que é relativizado no tempo ou no espaço é o quantitativo populacional, ele é a medida a partir da qual o conceito de “cidade média” tem sido problematizado. Nesse sentido, é possível afirmar que o determinismo demográfico que enrijece o exercício de conceituação de “cidade média” não foi superado, mas apenas relativizado.
Desde os anos 1970, a perspectiva focada no determinismo demográfico apresentava sinais de esgotamento. No contexto francês, as villes relais, entendidas como pontos de contenção da migração para as metrópoles de equilíbrio, deram lugar ao conceito de villes moyennes (cidades médias), valorizando critérios de natureza mais qualitativa, a exemplo de indicadores das condições de vida para analisar as funções que desempenhavam na rede urbana.
No caso brasileiro, Amorim Filho (1976) propugnou que as cidades médias poderiam ser definidas a partir da presença dos seguintes atributos: a) interações constantes e duradouras tanto com seu espaço regional, quanto com aglomerações urbanas de hierarquia superior; b) tamanho demográfico e funcional suficientes para oferecer um leque de bens e serviços ao espaço microrregional onde está situada; c) capacidade de receber e fixar os migrantes de cidades menores ou da zona rural, com oferta de oportunidades de trabalho, atenuando o movimento migratório na direção das grandes cidades; d) dispor de condições necessárias ao estabelecimento de relações de dinamização com o espaço rural microrregional que as envolve; e) apresentar diferenciação no espaço intraurbano, com um centro funcional individualizado e uma periferia dinâmica, com a multiplicação de novos núcleos habitacionais periféricos, evoluindo segundo um modelo parecido com o das grandes cidades; e f) apresentar o surgimento, embora em menor escala, de certos problemas semelhantes aos das grandes cidades.
Os atributos propostos por Amorim Filho expõem uma caracterização que supera o idealismo ancorado no senso comum de que as cidades médias reuniriam os melhores atributos das cidades pequenas sem os problemas das grandes cidades. O leque de atributos listados pelo autor deixa claro que a compreensão sobre as cidades médias passa, necessariamente, pela identificação dos seus problemas, ainda que a natureza destes seja mais explícita nas grandes cidades.
Correa (2007) apontou, ainda, a necessidade de considerar três elementos para a construção de um quadro teórico com vistas ao estudo das cidades médias: a) presença de uma elite empreendedora, que confira uma relativa autonomia econômica e política à cidade, criando interesses locais e regionais e competindo em alguns setores com as grandes cidades; b) localização relativa, que constitua a cidade enquanto nó de tráfego e de fluxos diversos contemplando a circulação de pessoas, capitais, informações, mercadorias e serviços; e c) interações espaciais, dotadas de intensidade, complexidade, em múltiplas direções e escalas, sendo as interações extrarregionais aquelas decisivas para a identificação de uma cidade média. As contribuições de Correa vão além dos atributos funcionais vinculados exclusivamente à hierarquia urbana, incorporando aspectos de natureza sócio-política, como o papel que as elites das cidades médias desempenham na inserção da cidade nas redes de âmbito nacional e global.
Nos anos 1980, a hegemonia das políticas neoliberais, alavancadas pelos governos Margareth Tatcher, na Inglaterra, e Ronald Regan nos Estados Unidos, somado ao advento da globalização, produziram uma inflexão que afetou as mais diversas dimensões da vida humana, inclusive a produção do conhecimento, nos mais variados campos disciplinares.
Naquele contexto, o debate conceitual em torno da noção de “cidades médias” ganhou outros contornos, com a ressignificação de termos já teorizados nas décadas anteriores. A obra de Michel Gault, “Villes intermediaires pour l’Europe”, publicado em 1989, requalificou o papel de intermediação dessas cidades. No contexto da globalização, as cidades médias exerceriam outros papeis, em outras escalas.
Enquanto nos anos 1960 e 1970, a noção de “equilíbrio” estava ligada à busca de uma distribuição mais justa das populações, das atividades econômicas e dos equipamentos sociais, segundo uma perspectiva de desenvolvimento regional, para Gault e seus seguidores, “equilíbrio” passa a denotar o desafio das cidades em oferecer um ambiente estável e propício para os negócios.
Segundo essa abordagem, no capitalismo globalizado, as “cidades médias” deveriam se adaptar às novas demandas da internacionalização da economia, com vistas a alcançar a alcunha de “cidades intermedias/intermediárias”. A partir de então, diversos autores (Ferrão et al., 1994; Costa, 2002; Sanfeliu e Llop, 2004) têm utilizado o conceito de “cidade intermedia” (ou “cidade intermediária”) para se referir, exclusivamente, a essa categoria de cidades no contexto da globalização, diferenciando do conceito de “cidade média”, alusivo ao contexto anterior, dos anos 1960 e 1970.
Amorim Filho e Rigotti (2002, p.4), remetendo a diferenças idiomáticas, destacou a contribuição semântica do termo “intermedia”, apontando que ele contempla numa única palavra o porte demográfico médio e as funções que essa categoria de cidades desempenha na rede urbana: “(…) o termo ciudades intermedias, usado por nossos vizinhos hispano-americanos, parece bem mais feliz que aquele usado comumente por franceses, alemães, americanos e brasileiros.” Contudo, é importante alertar que a natureza da intermediação defendida por Ferrão et al., Costa, Sanfeliu e Llop tem um conteúdo bastante específico, que não se restringe ao plano semântico, embora se valha dele.
Para Sanfeliu e Llop (2004), gestores do Programa CIMES4, as funções de intermediação dizem respeito ao papel que essas cidades desempenham em distintas escalas, desde seu entorno imediato, até os âmbitos macrorregional e transnacional. Os autores chamam a atenção para as características que definem as cidades intermedias: (a) centros servidores de bens e serviços mais ou menos especializados para a população do mesmo município e de outros, além de distritos urbanos e rurais; (b) centros de interação social, econômica e cultural; (c) centros ligados a redes de infraestruturas que conectam as redes locais, regionais e nacionais, além do acesso a redes internacionais (caso das cidades intermedias localizadas nas regiões metropolitanas); (d) nós que articulam fluxos, pontos de referência e de acesso a outros níveis da rede; (e) centros que abrigam órgãos descentralizados da administração regional e nacional facilitando o acesso da população aos serviços públicos fundamentais;
As reflexões aqui apresentadas sobre a contextualização e a conceituação de cidades médias permitiram tecer as seguintes conclusões:
(i) o conceito de “cidades médias” teria sido teorizado na França, nos anos 1970, na segunda fase das políticas de ordenamento do território, sendo precedido pela noção de villes relais, da primeira fase, entre os anos 1950 e 1960, e sucedido parcialmente pelo conceito de “cidades intermediárias” (ciudades intermedias, villes intermédiaires, i-cities), cujo conteúdo é fortemente impregnado da ideologia neoliberal;
(ii) o porte populacional não deve ser considerado como o único critério de classificação das cidades médias, sendo necessário considerar também a escala espacial de análise e a dimensão temporal, embora o determinismo demográfico persista já que os autores de referência abordaram as duas últimas dimensões pautando-as pela primeira;
(iii) a diferença entre cidade média e cidade intermédia/intermediária não se restringe ao plano idiomático e semântico, mas apresentam significados e conteúdos teóricos distintos, sendo a última propagada em escala mundial pelo Programa CIMES e pela ONU-Habitat e impregnada pela agenda neoliberal;
(iv) no Brasil, o termo “cidade intermédia (ou intermediária)” não foi incorporado de forma sistemática na agenda de pesquisa sobre o tema, porém, o último estudo Regiões de Influência das Cidades, publicado pelo IBGE em 2018, traz a noção de cidade intermediária como portadora das funções de caráter médio5.
A conceituação de “cidades médias”, no contexto das décadas de 1960 e 1970, estava imerso em um ambiente acadêmico-institucional que discutia o papel do Estado Nacional como agente promotor do desenvolvimento regional, ainda que de forma articulada às administrações locais. Essas cidades eram identificadas pelos atributos que já possuíam, cabendo às políticas de Estado fortalecerem aquelas que não dispunham dos requisitos para alavancar o desenvolvimento da região, via desconcentração e descentralização de atividades econômicas pelo território.
Já no contexto da globalização, as cidades “candidatas a intermedias” são avaliadas quanto aos requisitos que devem cumprir, ditados pelo capitalismo globalizado altamente seletivo para a alocação de investimentos. Diferente do contexto anterior, agora as cidades deveriam competir entre si para se inserirem em redes de âmbito internacional, conforme os ditames do desenvolvimento local.
No âmbito da administração pública federal, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) vem desenvolvendo, desde os anos 1970, estudos sobre a rede urbana brasileira, a partir da perspectiva da hierarquia urbana. Os relatórios “Regiões de Influência das Cidades” (REGIC) foram publicados em 1972, 1987, 2000, 2007 e 2018 e tiveram como objetivos: construir um quadro nacional, apontando as permanências e as modificações registradas na rede urbana no Brasil; subsidiar o planejamento estatal e as decisões quanto à localização das atividades econômicas de produção, consumo privado e coletivo; e prover ferramentas para o conhecimento das relações sociais vigentes e dos padrões espaciais que delas emergem (IBGE, 2007).
Segundo o REGIC 2008, a rede urbana brasileira contava com 12 metrópoles, 70 capitais regionais, 169 centros sub-regionais, 556 centros de zona e 4.473 centros locais. No REGIC publicado em 2018, a hierarquização dos centros urbanos já contemplava 15 metrópoles, 97 capitais regionais, 352 centros sub-regionais, 398 centros de zona e 4.037 centros locais.
De acordo com Spósito (2009), os níveis da hierarquia que permitem correlacionar, do ponto de vista demográfico e funcional, os centros urbanos às cidades médias, são as Capitais regionais B e C, uma vez que as Capitais regionais A abarcam capitais de estado, com porte populacional e perfil funcional mais próximo das grandes cidades. No REGIC 2008, as capitais regionais B e C totalizavam 59 centros urbanos, enquanto na publicação de 2018, esse quantitativo passou para 88, registrando um crescimento de quase 50%.
No âmbito da Região Nordeste, o REGIC 2018 apresentou alterações substanciais em relação ao REGIC 2008, registrando a consolidação da área de influência de Recife sobre os centros urbanos do Rio Grande do Norte e ampliando sobre os de Sergipe, ao mesmo tempo em que reduzem as áreas de influência de Fortaleza e Salvador sobre os centros urbanos dos dois estados supracitados, respectivamente. O fortalecimento da rede urbana pernambucana também alçaram Caruaru ao nível de Capital regional B e Garanhuns ao nível de Capital Regional C, enquanto Campina Grande teve seu nível anterior de Capital regional B reduzido ao de Capital Regional C.
3 ANÁLISE DO ESPAÇO INTRAURBANO DAS CIDADES MÉDIAS NA REGIÃO NORDESTE
A partir das reflexões de Spósito (2009) é possível inferir que os centros urbanos que mais se aproximam do conceito de cidade média são aqueles classificados pelo REGIC como Capitais regionais B e C. Considerando a Região Nordeste, as cidades assim classificadas pelo REGIC foram Arapiraca (AL), Barreiras (BA), Campina Grande (PB), Caruaru (PE), Eunápolis (BA), Feira de Santana (BA), Garanhuns (PE), Ilhéus (BA), Imperatriz (MA), Itabuna (BA), Juazeiro do Norte (CE), Mossoró (RN), Petrolina (PE), Sobral (CE) e Vitória da Conquista (BA) (Figura 1).
A análise das desigualdades socioespaciais urbanas nesses centros contemplou dois parâmetros: o Índice Brasileiro de Privação, com vistas avaliar o desenvolvimento municipal e a variável Tipo de Domicílio do Censo de 2010 realizado pelo IBGE, com vistas a identificar a porcentagem de domicílios do tipo Casa em Vila ou em Condomínio em cada um dos municípios selecionados, indicando a parcela da população mais abastada que optou pela autossegregação em vilas ou em residenciais horizontais fechados. A correlação entre elevado Índice de Privação e alta porcentagem de Domicílios do Tipo Casa em Vila ou em Condomínio indicam maior desigualdade socioespacial urbana no município.
O Índice Brasileiro de Privação (IBP) foi desenvolvido pela FIOCRUZ em parceria com a Universidade de Glasgow. O índice foi criado com o objetivo de mensurar níveis de privação material ou de posição socioeconômica em diferentes áreas geográficas do Brasil. Diferentemente do IDH, que tem como área de abrangência a totalidade do município, o IBP adota como menor recorte espacial o setor censitário.
O IBP é calculado estatisticamente a partir dos indicadores “renda”, “escolaridade” e “condições do domicílio” da população de cada território, coletados no Censo 2010 do IBGE, utilizando os seguintes parâmetros: (i) percentual de domicílios com renda per capita inferior a 1/2 salário mínimo (renda); (ii) percentual de pessoas analfabetas com idade igual ou superior a sete anos (escolaridade); e (iii) percentual de domicílios com acesso inadequado ao saneamento básico e sem água encanada, coleta de lixo, vaso sanitário e banheiro no domicílio (condições do domicílio) (CIDACS/FIOCRUZ, 2021). Outro aspecto que distingue o IBP em relação ao IDH é que o primeiro incorpora de forma objetiva a dimensão urbanística representada pelas condições do domicílio.
Considerando a Região Nordeste, é possível constatar que dentre todas as capitais estaduais Salvador, Aracaju, João Pessoa e Fortaleza apresentaram status de privação classificado como médio. As demais capitais foram classificadas na faixa de privação alto.
As cidades no Nordeste classificadas como capitais regionais B e C no REGIC 2018 apresentaram, segundo o IBP, nível de privação alto, com exceção de Arapiraca-AL e Garanhuns-PE, que foram classificadas na última faixa, com nível de privação muito alto. Arapiraca apresenta o IBP mais elevado dentre todas, apresentando as maiores porcentagens nos três indicadores que compõem o Índice (Tabela 2).
Campina Grande (PB) e Itabuna (BA) apresentaram valores do IBP que indicam menores níveis de privação, enquanto Arapiraca (AL) e Garanhuns apresentaram níveis de privação mais acentuados. A seguir serão analisados os desempenhos dos municípios em cada indicador do IBP.
Quanto ao indicador “renda”, Mossoró (RN) apresentou o melhor resultado, seguida por Imperatriz (MA) e Itabuna (BA), enquanto Juazeiro do Norte (CE), Sobral (CE) e Arapiraca (AL), apresentaram valores mais desfavoráveis. No que se refere ao indicador “escolaridade”, Feira de Santana (BA) e Barreiras (BA) aparecem com valores mais favoráveis, enquanto Garanhuns (PE) e Arapiraca (AL) apresentaram os piores resultados. Quanto a “condições do domicílio”, Campina Grande (PB) e Caruaru (PE) obtiveram valores que indicam menores níveis de privação, enquanto Arapiraca (AL) e Barreiras (BA) apresentam resultados que apontam para maior nível de privação nesse quesito. Petrolina (PE), Vitória da Conquista (BA) e Eunápolis (BA), apresentaram resultados intermediários, considerando o IBP.
Quanto ao tipo de domicílio nessas cidades, os resultados do Censo (IBGE, 2010) apontaram que Juazeiro do Norte (CE) apresentou a maior porcentagem de domicílios do tipo casa (97,7%), acompanhada de perto por Arapiraca-AL (97,4%). Itabuna-BA apresentou maior porcentagem de domicílios do tipo apartamento (14,4%), seguida por Ilhéus e Caruaru, ambas com 9,1%. Considerando os domicílios do tipo habitação em casa de cômodo, cortiço ou cabeça de porco, Eunápolis-BA apresentou a maior porcentagem (1,7%), e Mossoró-RN, a menor, com menos de 0,1%.
Quanto aos domicílios do tipo casa de vila ou de condomínio, Imperatriz-MA apareceu com a maior porcentagem (7,2%), Caruaru-PE e Barreiras-BA com a menor (0,4%). Arapiraca (AL) e Garanhuns (PE), que apresentaram os valores mais elevados no índice de privação, aparecem na 5º e na 6º posição quando se refere à porcentagem de casas em vila ou em condomínio, indicando um aprofundamento da desigualdade socioespacial nesses centros urbanos.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar da relevância das cidades médias como objeto empírico, sua conceituação ainda apresenta inconsistências. As tentativas de definir cidade média a partir de uma base epistêmica metafísica não têm logrado êxito. Para contemplar a transitoriedade do conceito, outras abordagens teóricas podem ser experimentadas nesse exercício, a exemplo daquelas de pós-moderna, a exemplo da desconstrução derridiana ou do rizoma deleuze-guattariano.
A abordagem em que foram analisadas as cidades médias nordestinas, utilizando o Índice Brasileiro de Privação, apontou que Arapiraca-AL e Garanhuns-PE são aquelas que apresentaram níveis de privação mais elevados. Ao mesmo tempo, os dados do Censo de 2010 indicaram que esses dois centros urbanos apresentam altas porcentagens de domicílios do tipo casa de vila ou de condomínio, considerando as cidades selecionadas para essa pesquisa. A correlação entre esses dois indicadores coloca esses dois municípios em uma situação preocupante na medida em que apresentam elevados níveis de privação social e urbanístico, ao mesmo tempo em que abriga empreendimentos residenciais fechados que tendem a constituir ilhas de prosperidade no tecido urbano.
Em outras palavras, a implantação de residenciais fechados, em um contexto socioespacial como este, tende a aprofundar o fosso entre as condições de moradia do segmento de maior e menor renda na cidade, intensificando as desigualdades socioespaciais e a segregação urbana.
2Os resultados do Censo do IBGE realizado em 2022 ainda não foram divulgados de forma integral.
3As políticas de planejamento regional se consolidaram como políticas sistêmicas de Estado a partir do acelerado processo de urbanização que se seguiu ao pós-Segunda Guerra, em que os temas relacionados às grandes aglomerações urbanas dominaram os circuitos de produção intelectual europeus. O marco referencial do planejamento regional enquanto política de Estado se constituiu, a partir dos anos 1950, na França, com as políticas de desenvolvimento regional conhecidas como aménagement du territoire (ordenamento territorial).
4O Programa Ciudades intermedias y urbanização mundial (CIMES) foi alavancado nos anos 1990 pela Prefeitura de Lérida (Espanha) e pela União Internacional de Arquitetos (UIA), em parceria com a UNESCO. Seu objetivo principal, naquele contexto, foi formar uma rede de cidades intermediárias de âmbito global.
5“Forma-se, então, uma hierarquização das cidades em função da oferta dos bens e serviços, com as funções mais simples se espalhando por toda a rede urbana, as funções de caráter médio estando restritas às cidades intermediárias e grandes e os produtos especializados e serviços avançados tornando-se disponíveis somente nas grandes metrópoles” (IBGE, 2018, p. 69 [grifo meu])
REFERÊNCIAS
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1Docente do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Alagoas Campus Arapiraca. Doutor em Desenvolvimento Urbano (MDU/UFPE). E-mail: rafaelrust@gmail.com