REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10002372
Eduardo Sobral dos Passos1
André Luiz Baião Campos2
RESUMO
A Cannabis é uma espécie de planta nativa da Ásia, que se disseminou pelo mundo devido ao seu uso pelas civilizações. Durante a história a maconha foi usada para diferentes fins, inicialmente das plantas eram consumidas as sementes oleosas, e a partir das suas fibras eram fabricadas vestimentas e cordas, no entanto o seu uso de forma recreativa sempre foi polêmico e os estigmas criados prejudicam o avanço dos estudos para seu uso terapêutico. O presente artigo traz uma revisão integrativa de literatura que aborda o contexto histórico da cannabis no mundo, a origem dos seus estigmas e os impactos sobre a pesquisa e o uso medicinal da planta, destacando a diferença entre o uso medicinal da cannabis e o uso recreativo, trazendo de forma clara os riscos e benefícios de cada forma de uso. Por fim, conclui-se pela importância da promoção de políticas públicas e avanços nas legislações brasileiras, através do Estado, a fim de garantir o direito fundamental à saúde.
Palavras–chave: Cannabis medicinal, sistema endocanabinoide, Terapias com canabinóides, riscos do uso recreativo da cannabis.
ABSTRACT
Cannabis is a species of plant native to Asia, which has spread throughout the world due to its use by civilizations. Throughout history, marijuana has been used for different purposes, initially the oily seeds were consumed from the plants, and clothes and ropes were made from its fibers, however its use recreationally has always been controversial and the stigmas created hinder progress. studies for its therapeutic use. This article presents an integrative literature review that addresses the historical context of cannabis in the world, the origin of its stigmas and the impacts on research and medicinal use of the plant, highlighting the difference between the medicinal use of cannabis and recreational use. , clearly highlighting the risks and benefits of each form of use. Finally, it is concluded that it is important to promote public policies and advances in Brazilian legislation, through the State, in order to guarantee the fundamental right to health.
Keywords: Medical cannabis, endocannabinoid system, Cannabinoid therapies, risks of recreational cannabis use.
INTRODUÇÃO
A planta Cannabis sativa tem raízes profundas na história humana, sendo usada por diversas culturas ao longo de milênios. Existem diversas teorias sobre a origem da planta e seu uso pelos seres humanos, evidenciado há milhares de anos.
Sua introdução no Brasil é atribuída aos escravos africanos no período colonial, o nome “maconha” era como a planta era chamada na Angola. A partir do século XIV a planta é associada a grupos sociais menos favorecidos, sua popularidade se estendeu para todos os grupos sociais, sendo particularmente prevalente na população jovem.
Embora o consumo de maconha possa trazer sensações de bem estar e relaxamento, seu uso excessivo pode levar a efeitos nocivos, transitórios ou permanentes. Paradoxalmente, a planta também tem diversas propriedades e possibilidades medicinais notáveis, que são usadas desde o início da sua história com a humanidade.
Um aumento considerável no consumo de maconha entre adolescentes tem sido observado, especialmente em países desenvolvidos. A planta ganhou notoriedade global durante as décadas de 1960 e 1970, frequentemente associada à arte e aos movimentos sociais da época, como o feminismo e os movimentos de contracultura.
Uma das razões para a prevalência contínua da maconha reside na incessante busca humana pelo prazer e por estados alterados de consciência. O presente trabalho visa examinar a dualidade dos efeitos psicoativos e terapêuticos da maconha.
A recente retomada das pesquisas científicas que visam compreender o potencial terapêutico da cannabis e mapear os seus efeitos adversos, vem tornando o tema cada vez mais relevante, e por meio do conhecimento tem se esclarecido diversas formas do uso terapéutico de canabinóides presentes na planta, particularmente do canabidiol (CBD) e do tetrahidrocanabinol (delta-9-THC), seus principais componentes ativos.
Contudo, é imperativo lembrar que a mesma planta que oferece benefícios terapêuticos também pode causar danos importantes à saúde de forma integral. Os impactos crônicos do uso abusivo incluem prejuízos no convívio social e a saúde física e mental do indivíduo.
O objetivo deste trabalho é desvendar a complexidade desta planta, explorando tanto seus efeitos medicinais quanto os potenciais riscos associados ao seu uso recreativo. Mesmo sendo um tópico com histórico extenso, ainda há muito a ser descoberto e discutido, especialmente levando em conta sua dualidade entre os efeitos terapêuticos e recreativos.
METODOLOGIA
A metodologia utilizada consistiu numa pesquisa bibliográfica integrativa, por meio de busca ativa em bases de dados como SCIELO, Research, Society and Development, Brazilian Journal of Forensic Sciences, Medical Law and Bioethics, tendo como ferramenta de pesquisa a plataforma Periódicos Capes, Public Medline (PubMed) e Google Acadêmico. Para a pesquisa, foram usadas palavras chave como, Cannabis medicinal, sistema endocanabinoide, Terapias com canabinóides, riscos do uso recreativo da cannabis.
Na busca de referências bibliográficas foram selecionados trabalhos científicos nos idiomas
português, inglês, publicados entre 2011 e 2023 . A partir disso, foram analisados 40 () artigos publicados sobre os usos da Cannabis tendo como parâmetros de seleção estudos pré-clínicos ou clínicos, após leitura do título e resumo foram então excluídos 29 trabalhos, usando como critérios de exclusão trabalhos que não abordassem o uso terapêutico ou que abordavam o uso clínico mas não tinham tantos achados de eficácia, e como critério de inclusão os estudos sobre o histórico da cannabis, a legislação atual sobre seu uso medicinal, o sistema endocanabinóide e sobre o uso atual e as tendências de uso terapêutico dos canabinoides. Ao final foram escolhidos 12 trabalhos restritos aos critérios estabelecidos.
O objetivo desta revisão de literatura é elucidar de forma clara, os potenciais riscos e
benefícios do uso da planta, através da interpretação e das evidências existentes, visando uma compreensão abrangente sobre a diferença do uso terapêutico e o uso recreativo da cannabis. Tal esforço é essencial para embasar discussões, políticas e práticas relacionadas, a fim de esclarecer e minimizar os efeitos nocivos do uso da planta, e para que sejam incentivadas as pesquisas, afastando os tabus existentes acerca do tema.
DISCUSSÃO
História da cannabis na sociedade
A maconha é um derivado obtido de um arbusto conhecido mais popularmente como “cânhamo da índia” e cujo nome científico é cannabis sativa e é ainda uma das mais antigas drogas documentadas na história. O extrato de folhas secas é conhecido como maconha, enquanto o haxixe é produzido a partir de uma resina concentrada, resultando em um efeito mais potente.
Existem inúmeras variedades de cannabis, mas não há consenso sobre se Sativa, Indica e Ruderalis são três espécies diferentes ou apenas subespécies separadas de cannabis sativa. A cannabis contém 545 (quinhentos e quarenta e cinco) compostos químicos, 104 (cento e quatro) dos quais são canabinoides, sendo o restante flavo-noides, terpenos e ácidos graxos, entre outros, todos com usos médicos potenciais.
Durante a evolução das civilizações, a planta foi usada para diversas finalidades, sua fibra foi e ainda é usada como matéria prima para fabricação de roupas, para alimentação, como combustível, em rituais religiosos e o seu uso como medicamento está descrito desde 2.700 a.C. no livro chinês Pen Tsao, este livro é considerado a primeira farmacopeia da história, nele a cannabis era indicada no tratamento de diversas doenças como dismenorréia, dor articular e até contra a malária (Cristino, Bisogno & Di Marzo, 2020; Tomida, Pertwee & Azuara-Blanco, 2004).
A cannabis também teve grande importância histórica com o uso dos seus óleos e sementes como alimento para humanos e animais (FILEV, 2021), e como matéria prima suas fibras foram e ainda são utilizadas na produção de tecidos, papéis e cordas pelo fato de que, segundo Riddle (1985) e Carlini (2006), sua fibra retirada do seu caule, conhecida popularmente como cânhamo ser considerada como a fibra natural mais forte e resistente, e por poder ser cultivada em praticamente qualquer tipo de solo e clima.
Ao longo do tempo a planta vem passando por modificações genéticas com propósito de atender as necessidades específicas, incluindo aplicações medicinais. No entanto, no início do século XX, e especificamente na década de 1920, iniciativas legislativas na Europa e nos Estados Unidos levaram à sua proibição. Na época, a planta estava associada a grupos sociais desfavorecidos e era vista como uma ameaça à estabilidade social e econômica.
A busca por uma justificativa legal para reprimir os grupos sociais que pregavam ideias comunistas e de contracultura, como os imigrantes, negros, e o movimento Hippie. O uso da cannabis era o ponto em comum entre esses grupos e por isso, foi então rotulada como uma substância perigosa e ligada ao crime organizado, desta forma, surgia uma justificativa legal para reprimir o movimento.
No contexto pós-guerra, marcado pelo conflito de ideias capitalistas e comunistas, o movimento anticomunista promovido fortemente pelos Estados Unidos e os aliados exerceu forte influência na política externa do Brasil causando um grande impacto no período da Ditadura Militar. A cannabis foi então rotulada como uma substância perigosa e ligada ao crime organizado.
A Lei de Tóxicos nº 5.726 de 1961, impôs punições rigorosas para uso e tráfico de drogas, incluindo a cannabis. O debate sobre a criminalização da cannabis no Brasil permanece até hoje. Os críticos argumentam que as políticas proibitivas não só falharam em eliminar o uso e comércio da planta, mas também contribuíram para consequências negativas como o aumento da violência, a superlotação das prisões e violações dos direitos humanos (CAMPOS, 1998). Essas ações foram muitas vezes influenciadas por estereótipos negativos associados a grupos marginalizados e imigrantes (SADDI, 2021).
No contexto brasileiro, a criminalização da cannabis tem raízes em fatores históricos, culturais e políticos. A proibição começou na década de 1930 sob o governo de Getúlio Vargas, que estava empenhado em modernizar o Brasil e centralizar o poder (Corrêa, 2020).
Uso medicinal Cannabis
No livro “De Matéria Médica”, de Pedânio Dioscórides, o qual é visto como um dos pioneiros da farmacologia, a cannabis é destacada como uma substância natural capaz de aliviar a dor. Segundo o autor, a planta possui aplicações específicas para melhoria de dores articulares e inflamatórias (Riddle, 1985).
Por séculos, diversas culturas têm usado a cannabis como uma forma de tratamento de diversas doenças. No século XIX, a prática médica ocidental começou a integrar a cannabis em grande escala, impulsionada por médicos britânicos. Esses profissionais ganharam experiência ao servir nas colônias e recomendaram a planta para vários fins, como estimulação do apetite, alívio da dor, relaxamento muscular, anticonvulsivante e até mesmo como um hipnótico (Cristino, Bisogno & Di Marzo, 2020; Tomida, Pertwee & Azuara-Blanco, 2004).
As variedades de cannabis provêm principalmente de três espécies: a Cannabis sativa, Cannabis indica e a Cannabis ruderalis. Enquanto as cepas de sativa são ricas em THC (Δ9 Tetrahidrocanabinol), responsável por produzir sensações de euforia, as cepas de indica e ruderalis têm altas concentrações de canabidiol (CBD), que é conhecido por suas propriedades antieméticas, analgésicas e sedativas, mas que não induz a estados psicotrópicos (Lim, See & Lee, 2017; FF et al., 2018).
As terapias com cannabis estão em constante evolução. Devido às suas propriedades poli farmacêuticas, os medicamentos derivados da planta têm a capacidade de atingir diversas doenças, sintomas e desequilíbrios orgânicos simultaneamente, diferentemente da maioria das medicações que, por via de regra, tendem a ser mais específicas. (Cristino, Bisogno & Di Marzo, 2020; FF et al., 2018; Cairns, Baldridge & Kelly, 2016).
Com o avanço dos métodos de pesquisa, as possibilidades terapêuticas da cannabis estão sendo continuamente exploradas, e as expectativas de possíveis tratamentos com extratos da planta vêm alcançando os níveis de evidência necessários para que possam ser utilizados com segurança em diversos contextos de doenças. (Cristino, Bisogno & Di Marzo, 2020; FF et al., 2018; Cairns, Baldridge & Kelly, 2016).
Sistema Endocanabinóide
Em 1964, os cientistas israelenses Raphael Mechoulam e Y. Gaoni sintetizaram pela primeira vez a molécula do THC(Δ9 Tetrahidrocanabinol), e a partir disso uma série de descobertas aconteceram acerca da bioquímica, farmacologia e efeitos terapêuticos da cannabis.
O canabidiol (CBD) foi isolado no ano de 1940, mas sua estrutura só foi descrita no ano de 1963. O THC foi o composto de maior interesse na época por ter sido vinculado aos efeitos psicoativos da planta. O CBD passou a ter maior visibilidade e interesse de pesquisa em 1980 quando foi publicado o primeiro estudo comprovando a eficácia no tratamento de epilepsia em crianças, no entanto, devido ao estigma negativo ainda muito presente na época, o tema só ganhou relevância no século XXI (Vink, 2021).
O grande avanço no entendimento das propriedades farmacológicas da cannabis ocorreu ao serem descobertos os primeiros receptores canabinóides ( CB1 e CB2), que foram encontrados distribuídos em todo o corpo. A partir do mapeamento da localização destes receptores no tecido cerebral foram descobertas substâncias agonistas e antagonistas que tinha capacidade de ativar ou inibir determinadas regiões cerebrais (Lim, See & Lee, 2017; FF et al., 2018).
Em 1990, foi descrito por Mechoulam et al. um neurotransmissor muito semelhante ao THC que tinha capacidade de se ligar aos mesmos receptores em que a molécula de THC se ligava, esse neurotransmissor foi nomeado como anandamida que significa felicidade em sânscrito, em alusão ao efeito do THC.
Nos anos seguintes foram descobertos outros canabinóides endógenos, como a N-aracdonil-dopamina (NADA) (Huang et al., 2002), o 2-aracdonilgliceril éter (noladina) (Hanus et al., 2001) e a O-aracdonil-etanolamina (virodamina) o 2-aracdonoil-glicerol (2-AG). E pouco a pouco foi sendo mapeado o sistema endocanabinoide.
O sistema endocanabinóide é um esquema de sinalização molecular que atua como mediador de diversas funções biológicas de vários animais como répteis, anfíbios, peixes e os mamíferos, incluindo o homem. É o sistema responsável por controlar nossa homeostase e metabolismo, tendo papel fundamental na manutenção da saúde, por ter influência em todos os mecanismos regulatórios do corpo, sendo que disfunções nele estão associadas a diversas enfermidades. (Ver figura 1).
Referência 15 : adaptado de Aizpurua-Olaizola O, Elezgarai I, Rico-Barrio I, Zarandona I, Etxebarria N, et al. Targeting the endocannabinoid system:
future therapeutic strategies, Drug Discov Today 2017;22(1):105-110.
Uso medicinal da Cannabis
O potencial terapêutico dos medicamentos à base de cannabis ricos em CBD e com
baixas ou nenhuma dose de THC, vem atraindo uma crescente atenção à medida que os potenciais efeitos terapêuticos vem progredindo nos níveis de evidência (Smith & Wagner, 2014).
O CBD, constituinte sem efeito psicoativo da planta Cannabis sativa, tem comprovado sua potencial eficácia contra várias problemas de saúde desde doenças a sintomas em seres humanos e outros animais (Black et al., 2019; Allan et al., 2018; Armour et al., 2019).
A tabela abaixo lista os principais tratamentos a base de cannabis, suas formulações e
seu tipo e nível de evidência:
CONDIÇÃO MÉDICA | FORMULAÇÃO | NÍVEL DE EVIDÊNCIA | TIPO DE EVIDÊNCIA | |
*Dor e Espasticidade na EM | Nabiximols (THC +CBD) | Conclusiva | ECR fase III Aprovação Regulatória | |
* Epilepsia (Dravet e Lenox Gastaut) | CBD | Conclusiva | ECR fase III Aprovação Regulatória | |
Dor crônica | THC, Nabiximols (THC+CBD) | Elevado | ECR fase II | |
Esquizofrenia (sintomas positivos e negativos) | CBD | Elevado | ECR fase II | |
Distúrbios do sono secundários a doença neurológica | THC, Nabilone, nabiximols (THC+CBD) | Moderado | ECR fase II-III | |
Glaucoma | THC, cannabis | Moderado | ECR fase II | |
Sintomas urinários da EM | Nabiximols (THC+CBD) | Moderado | ECR fase II | |
Síndrome de Tourette | THC, cannabis | Moderado | ECR fase II Estudos observacionais | |
Demência com agitação | THC, cannabis | Limitado | Estudos observacionais | |
Sintomas motores e não motores na doença de Parkinson | THC,CBD e cannabis | Limitado | Estudos observacionais | |
Síndrome de estresse pós traumático | cannabis | Limitado | Estudos observacionais | |
Ansiedade | CBD | Limitado | ECR fase II Estudos observacionais |
Tabela 2. Nível de evidência dos estudos relacionados à cannabis medicinal. Adaptado de Russo,
2018. • * Indicações aprovadas pelo FDA (Food and Drug Administration). • EM= Esclerose múltipla. THC= (Δ9 Tetrahidrocanabinol). CBD= Canabidiol. ECR= Ensaio Clínico Randomizado.
É imprescindível que toda e qualquer substância, tenha sua eficácia e segurança
comprovada para que possa ser prescrita. Esse processo demanda tempo e depende do quanto é investido em pesquisas para que possam ser explorados o potencial terapêutico, e comprovar a segurança do seu uso.
No cenário atual, o uso dos canabinóides não é isento de riscos, muitos dos
medicamentos apresentam efeitos adversos e interações medicamentosas. Outro ponto é que devido ao período em que os estudos sobre a cannabis medicinal foram reprimidos, a maioria das medicações ainda não são seguras a longo prazo, mais tempo e estudos são necessários para que possamos descobrir os efeitos tardios das formulações atuais, como o seu potencial teratogênico e os seus efeitos sobre o desenvolvimento cerebral e o funcionamento dos demais sistemas
(FRIEDMAN; FRENCH; MACCARRONE, 2019).
Embora os efeitos farmacológicos da cannabis tenham sido explorados por quase 5.000
anos para uso medicinal, foi apenas durante as últimas décadas que as descobertas científicas foram feitas sobre canabinoides.
As rápidas mudanças em torno do uso medicinal da cannabis terá um impacto considerável também nos profissionais de saúde, que atualmente recebem pouca ou nenhuma educação sobre as questões relacionadas à cannabis medicinal. É crucial que os profissionais de saúde obtenham formação adequada e que o Estado monitorize a saúde do paciente quando a cannabis é prescrita.
A cannabis, sem dúvida, desempenhará um papel importante em várias áreas da medicina nos próximos anos, mas ainda há obstáculos que impedem um sistema de acesso seguro para os pacientes.
Um obstáculo notável reside no fato de que a cannabis ainda não é considerada um tratamento aprovado para qualquer condição. Ensaios clínicos de grande escala, controlados e randomizados, ainda são considerados como a primeira linha para provar a eficácia médica de um fármaco, porém são em grande parte inacessíveis a pesquisadores de cannabis por uma variedade de razões legítimas.
Enquanto não podemos confiar apenas em depoimentos de especialistas e relatos de casos para tornar mais amplas as alegações sobre os produtos recém-sintetizados, historicamente o perfil segurança da planta cannabis poderia ser utilizado para produzir dados a partir de outros estudos clínicos mais admissíveis para formular diretrizes de prática clínica confiáveis.
No cenário sociopolítico atual, caracterizado por um conservadorismo crescente, a legalização do uso médico da Cannabis representa um marco importante. É fundamental que se divulgue amplamente que o CBD não é sinônimo de maconha recreativa e que pesquisas estão em andamento para estabelecer sua eficácia em diversos contextos clínicos, já citados anteriormente.
A utilização de Cannabis medicinal está ganhando terreno em distúrbios neuropsiquiátricos como ansiedade e depressão, uma vez que atua na modulação de neurotransmissores, sendo esse o principal alvo das investigações atuais (Shannon et al., 2019).
Sendo assim, a informação é uma ferramenta fundamental para que seja esclarecida a diferença entre o uso medicinal de cannabis e o uso recreativo e orientar a população acerca dos distintos compostos da Cannabis, como o CBD e o THC, este último também com propriedades medicinais mas com efeitos psicoativos.
O histórico estigma negativo da cannabis ainda exerce papel fundamental na problematização do seu uso como terapia, devido a falta de esclarecimento acerca da diferença entre o tipo da planta de uso recreativo e de uso medicinal, o desconhecimento acerca das concentrações dos seus componentes, há um conflito de interesse entre os órgãos de saúde e segurança pública.
Risco do uso recreativo
Apesar de tão difundida no mundo, o conhecimento sobre e os riscos da maconha uso é distorcido. A carência de políticas públicas voltadas para informação sobre os reais riscos do seu uso coloca em risco grande parte da população, que desconhece as possíveis consequências graves do seu uso.
O consumo das plantas com alto teor de THC costuma gerar uma série de efeitos indesejados, que podem gerar desde consequências sutis a consequências graves irreparáveis.
O THC, principal composto com efeito psicoativo da cannabis, atua sobre os diversos sistemas corporais e, por consequência, gera um amplo espectro de efeitos no organismo que podem causar alterações temporárias ou permanentes no funcionamento e desenvolvimento mental, e no comportamento.
O uso abusivo costuma causar ou intensificar quadros ansiosos, podendo desencadear crises de pânico. Em indivíduos com predisposição genética, a maconha pode desencadear quadros psicóticos permanentes (Galligo, 2006).
Os efeitos mais comuns experienciados pelos usuários são influenciados pela concentração de THC da planta consumida e podem gerar desde uma sensação de relaxamento e bem-estar em quando em doses baixas.
Seu uso pode levar a sensação de relaxamento e sonolência (Carlini, 2004; Burgierman, 2002). As plantas com concentrações altas de THC podem causar perda de memória recente, dificuldade de realizar certas tarefas que exigem foco e concentração, como dirigir, colocando em risco a saúde física do usuário e de outras pessoas.
Alguns indivíduos apresentam quadros dissociativos, alucinações visuais e auditivas e paranoia. Em contrapartida, alguns usuários relatam um estímulo a reflexões e aumento de criatividade, o que torna o consumo muito comum entre os músicos, pensadores e filósofos.
O THC atua também intensificando os sentidos e o sistema de recompensa, o que torna as atividades de lazer habituais como ouvir música, mais intensas e incentivam o uso diário da droga.
O uso esporádico da maconha tem baixo potencial de causar dependência química ou psíquica, drogas lícitas como o álcool e o tabaco têm maior potencial de causar dependência e tolerância.
A dependência psíquica da maconha é possível e bastante comum em usuários que consomem a erva com frequência. O uso abusivo é capaz de causar alterações do ciclo sono-vigília, do apetite, perturbação psicomotora e perda de conexão com a realidade. Doses elevadas de THC têm capacidade de desenvolver tolerância cronicamente e causar o efeito de adição (Marshall, 2006).
O uso crônico da maconha causa danos cumulativos no sistema cardio respiratório que podem comprometer a função cardíaca e pulmonar, além de atuar como fator risco para o câncer no pulmão (Oga, 2014).
Ao inalar a fumaça, os canabinóides impregnam o tecido pulmonar e rapidamente alcançam o fluxo sanguíneo e o cérebro. O uso da maconha em associação com o álcool, tem seus efeitos sedativos intensificados; o consumo com tabaco aumenta o risco de dependência,além neutraliza os efeitos positivos da maconha, causa sérios danos ao pulmão e aumenta o risco de câncer.
Usuários crônicos da maconha podem sofrer prejuízo sócio-comportamentais, causando conjunto de sinais e sintomas que caracterizam a síndrome amotivacional caracterizada por um estado generalizado de apatia, perda de interesse por interação social, e diminuição da capacidade de adquirir conhecimento (MCGLOTHLIN & WEST, 2016).
Esses prejuízos são mais intensos e preocupantes entre os usuários adolescentes, alguns estudos relatam prejuízo na neuroplasticidade e consequentemente no desenvolvimento biopsicossocial e do comportamento.
CONCLUSÃO
O uso dos extratos da cannabis atualmente se tornou a esperança de um futuro melhor
para milhões de pacientes, quando se trata da esfera medicinal da planta, é imprescindível investigar seus benefícios e malefícios exclusivamente pela perspectiva científica, e é através da informação que se pode neutralizar a influência do preconceito que burocratiza a distribuição do medicamento no Brasil.
A disseminação dessas crenças até os dias atuais causa uma série de consequências negativas na vida do indivíduo, da família, do Estado e da sociedade.
A Constituição Federal Brasileira de 1988, preconiza que ‘’todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza’’, garantindo não somente o direito à vida, mas a uma vida digna. Neste ínterim, destacou também em seu artigo 1°, inciso III, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana como um dos fundamentos da Carta Magna.
Perante isso, questiona-se então se realmente o Estado vem garantindo esse direito, enquanto milhões sequer tem o acesso democrático a uma medicação que é cientificamente comprovada e entende ser melhor para si.
Em vista do analisado, conclui-se que o Direito brasileiro não tem obtido êxito em conduzir os avanços que os canabinóides apresentam para a melhoria da saúde de milhões de pessoas no Brasil.
Por conseguinte, sempre que o debate pela cannabis medicinal vem à tona, argumentos pessoais, como ‘’é a porta de entrada para outras drogas’’, ‘’maconha vicia’’ e outras afirmações sem base científica, são envolvidas.
Contudo, é primordial destacar que os efeitos nocivos do uso recreativo não devem ser utilizados como um propósito para problematizar seu uso medicinal, da mesma maneira que, os efeitos positivos da cannabis medicinal, não cabem de argumento para a relativização dos problemas do seu uso recreativo, ou como argumento para pauta da legalização do seu uso como entorpecente.
Desse modo, milhares de brasileiros ficam à margem dessa falta de regulamentação, enquanto o artigo 196 da Carta Magna apregoa que é dever do Estado a garantia de saúde a todos. Por isso, não basta apenas a regulamentação atual, quando apenas uma pequena parcela da população consegue obtê-la, uma vez que outras aprovações poderiam facilitar o tratamento ainda aguardam votação, a exemplo do Projeto de Lei n° 399/2015.
Isto posto, é preocupante o futuro da saúde pública do Brasil, sendo um país onde muitas pessoas sofrem por carência de acesso a recursos terapêuticos efetivos e de qualidade para uma série de doenças ,mas burocratiza o acesso a um medicamento de enorme potencial, no tratamento de diversas enfermidades. Tal fato, explicita a necessidade da ampliação do acesso ao conhecimento para uma democratização da cannabis medicinal, e também para prevenir ou ao menos reduzir os possíveis danos causados pelo uso recreativo, a informação traz ao indivíduo a possibilidade de tomar uma decisão mais racional quanto ao seu uso, protegendo principalmente as pessoas que têm fatores de risco importantes para o desencadeamento de transtornos de saúde graves e muitas vezes permanentes.
Em conclusão, para a promoção e garantia plena do direito fundamental à saúde, são necessárias melhores medidas de políticas públicas, e avanços nas legislações que hoje se encontram paradas aguardando votação, onde muitas vezes sequer são colocadas em pauta, devido aos preconceitos pessoais, além da pressão de bancadas religiosas e conservadoras, que mais uma vez, não tratam do tema sob a perspectiva da saúde pública, mas com base em seus pré-conceitos.
O intuito deste artigo foi promover reflexões acerca das suas possibilidades, mensurando seu potencial terapêutico, e esclarecendo seus riscos e benefícios em suas diferentes formas de uso, com propósito de incentivar o debate acerca do tema. Por meio da informação é possível desburocratizar e ampliar o acesso aos medicamentos à base de Cannabis para mais brasileiros, e também reduzir os danos causados pelo uso abusivo da planta, principalmente para aquelas pessoas que possuem fatores de risco que contraindicam o uso.
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