SUPLLY CHAIN AND THE ECONOMIC PARADOX OF PROTECTION OF THE “INTERMEDIARY CONSUMER”
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ma10202412301709
Marco Aurélio Ceccato1
Resumo
O artigo analisa a cadeia de fornecimento sob a ótica do Direito do Consumidor brasileiro, abordando conceitos como solidariedade entre fornecedores e a interdependência de contratos. Discute a controversa jurisprudência do STJ sobre o “consumidor intermediário” e a teoria do “finalismo aprofundado”, criticada por sua potencial ampliação indevida da proteção do Código de Defesa do Consumidor e seus possíveis impactos econômicos negativos, culminando no repasse de custos para o consumidor final. Defende-se uma interpretação mais restritiva, utilizando o artigo 29 do CDC para proteger empresas efetivamente vulneráveis, em vez da ampliação da tutela em torno de um conceito problemático como o de “consumidor intermediário”.
Palavras-chave: Cadeia de fornecimento. Consumidor intermediário. Destinatário final. Finalismo aprofundado. Vulnerabilidade.
Abstract
The article analyzes the supply chain under the Brazilian Consumer Law, addressing concepts such as solidarity between suppliers and the interdependence of contracts. It discusses the controversial jurisprudence of the Superior Court of Justice (STJ) on the “intermediary consumer” and the theory of “deep finalism”, criticized for its potential undue extension of the protection of the Consumer Protection Code (CDC) and its possible negative economic impacts, resulting in pass-through of costs for the final consumer. It defends a more restrictive interpretation, using article 29 of the CDC to protect effectively vulnerable companies, instead of expanding protection around a problematic concept such as “intermediary consumer”.
Keywords: Supply chain. Intermediary consumer. Final receiver. Deep finalism. Vulnerability.
1. Introdução
O trabalho tem por objetivo analisar o fenômeno da cadeia de fornecimento no âmbito das relações jurídicas de consumo, explorando o seu contexto de surgimento e os principais reflexos dela decorrentes. Em sequência, será analisado o conceito de consumidor intermediário e a abordagem jurisprudencial que tem sido conferida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Ao término, pretende-se demonstrar a relação existente entre esses dois conceitos e as suas possíveis consequências econômicas.
2. Cadeia de Fornecimento
A cadeia de fornecimento, um dos tópicos inseridos dentro da temática do Direito do Consumidor, não é, propriamente, um conceito jurídico, mas, antes, um conceito econômico. Pode ser entendida como um modo de organização do modo de produção e distribuição de produtos ou de fornecimento de serviços complexos, estando inserida em uma lógica produtiva contemporânea que envolve, cada vez mais, um grande número de agentes voltados para a consecução de um objetivo comum: atender à demanda cada vez maior de consumidores2.
Entretanto, ainda que a cadeia de fornecimento não seja um conceito expressamente definido em nosso ordenamento jurídico, é um fenômeno que foi previsto indiretamente pelo legislador brasileiro. A própria redação do art. 3º do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990) demonstra que o legislador pátrio buscou sistematizar a existência e tutela da cadeia de fornecimento em nosso ordenamento, ao dispor que “fornecedores” são todos aqueles que desenvolvem atividade de “produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços”.
Perceba-se que a própria redação do dispositivo legal em comento aponta para a existência de uma cadeia que se inicia com a produção e se encerra com a comercialização de produtos ou de serviços. Todos aqueles que estão no interregno entre a produção e a comercialização final de produtos ou serviços podem ser considerados “fornecedores” para fins de enquadramento de uma relação jurídica como sendo de consumo.
Sob a ótica do consumidor médio, é altamente improvável que ele visualize a complexidade dessa cadeia e tenha noção da quantidade de fornecedores, diretos e indiretos, que concorrem para que aquele produto ou serviço que usufrui chegue ao seu alcance. É ainda mais improvável que tal consumidor tenha consciência de que, ao adquirir um produto ou serviço, mantém relação contratual com todos os fornecedores da cadeia e de que pode exigir informações de cada um deles sobre o produto ou serviço adquirido.
Note-se que a complexidade da cadeia de fornecimento e a sua obscuridade, ao menos do ponto de vista do consumidor, são alguns fatores que, dentre inúmeros outros, apenas reforçam a necessidade de se reconhecer a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo. Se o consumidor não conhece todos aqueles com quem contrata em uma cadeia de fornecimento, mais do que lógico que o sistema de proteção consumerista lhe confira formas privilegiadas de tutela. Nesse ponto, especificamente, a proteção ao consumidor que se sobressai é o regime de solidariedade entre os fornecedores da cadeia, o que será analisado adiante, em momento oportuno.
Para que se compreenda toda a lógica por detrás da cadeia de fornecimento e da sua consequência principal (o regime de solidariedade), é de suma importância conhecer o contexto em que ela está inserida.
2.1. Contexto da cadeia de fornecimento
É senso comum que o mercado de consumo, hoje, já não é mais pensado em uma lógica de relações jurídicas intuitu personae. Já há muito se foi o tempo em que uma determinada pessoa adquiria um produto sabendo que um vendedor em específico era a pessoa que encabeçou a maior parte da fabricação de um produto.
Embora essa forma de comercialização, hoje, seja extremamente rara, já foi comum em sociedades cujo modo de produção era o artesanal ou manufatureiro, em que o comerciante participava de todos, ou ao menos da maior parte, das etapas do processo produtivo e o comprador de então adquiria aquele determinado produto justamente porque sabia que eram as características daquele comerciante que garantiria a qualidade do bem almejado.
Contudo, com a multiplicação massiva da população e a revolução dos meios de produção, principalmente com o advento da revolução industrial, tornou-se cada vez mais rara a existência de uma relação jurídica direta e imediata entre o consumidor e o fabricante principal do produto. Cada vez mais as diversas etapas do processo produtivo ficaram especializadas, de modo que, hoje, é extremamente comum que um determinado fornecedor cuide apenas de uma etapa mínima do processo produtivo. Todavia, apesar de mínima, uma única etapa não é necessariamente menos significativa, porque pode, por si só, comprometer toda a qualidade do produto ou serviço final.
Nesse cenário de sociedade de massa e de processo produtivo fragmentado, pode-se afirmar que a personalização do fornecedor praticamente desapareceu, o que, por consequência, fez com que praticamente desaparecessem as chamadas obrigações “personalíssimas”. Hoje, a maioria dos serviços ou obrigações é fungível e o próprio Código de Defesa do Consumidor, mais uma vez tacitamente, reconheceu tal fenômeno, como, por exemplo, em seus artigos 203 e 354, ao prever que a reexecução de serviços defeituosos pode ser confiada a terceiros por conta e risco do fornecedor inadimplente, assim como produtos e serviços equivalentes (ou seja, não os almejados inicialmente) podem ser exigidos pelo consumidor em casos de descumprimento da oferta pelo fornecedor.
Contudo, se, de um lado, é cada vez mais rarefeita a personalização no mercado de consumo e a identificação que tem o consumidor daquele que de fato está por detrás do produto ou serviço adquirido, vigora hoje, como bem sustenta Cláudia Lima Marques5, uma “repersonalização desmaterializada” no mercado de consumo, por meio de símbolos, marcas e outros bens imateriais, que têm por objetivo fidelizar (ou “cativar”) a clientela, mantendo-se um vínculo com o consumidor ao longo do tempo.
Assim, sustenta a Autora, é possível afirmar que existe hoje no mercado de consumo um misto entre uma relação prima facie despersonalizada (na qual é irrelevante a verdadeira personalidade jurídica do fornecedor), mas que é, ao mesmo tempo, externamente personalizada (por meio de marcas e outros sinais e comportamentos distintivos). Em síntese de seu pensamento, afirma Cláudia Lima Marques que vivemos, hoje, em um período de semianonimato das relações consumeristas, o que, parece-nos, é uma análise acertada do atual momento6.
Justamente nesse cenário em que se desconhece a real personalidade dos fornecedores de produtos e serviços é que se insere a cadeia de fornecimento. Pouco importa para aqueles que integram a cadeia de fornecimento como eles de fato aparecerão e se apresentarão para os consumidores, conquanto sejam vendidos aos consumidores os bens ou serviços dos quais participaram no processo produtivo.
Em verdade, a cadeia de fornecimento, caso não houvesse a expressa disposição legal7 impondo o regime de solidariedade aos seus integrantes, seria uma verdadeira forma de “esconder” e isentar os fornecedores que houvessem participado do processo produtivo, mas que não se apresentaram aos consumidores no momento da destinação final do produto ou serviço. Isso poderia, inclusive, transferir ao simples comerciante final a maior responsabilidade na cadeia de fornecimento. Entretanto, acertadamente, o legislador brasileiro visualizou essa lógica produtiva e impôs o regime de solidariedade na cadeia, excluindo o comerciante, como regra, da responsabilidade por defeitos em produtos (como se verá adiante).
É importante mencionar que, se, de um lado, pouco importa ao consumidor saber quem são os fornecedores que realmente estão por detrás do produto ou serviço adquirido, pois poderá requerer de qualquer um deles as medidas protetivas do sistema de defesa do consumidor, para os fornecedores, de outro lado, a relação que mantêm entre si passa a ser relevante, pois o inadimplemento de qualquer um deles poderá repercutir, direta ou indiretamente, na própria atividade desenvolvida8.
Assim, ainda no contexto da cadeia de fornecimento, é importante destacar outro fenômeno econômico relevante: a conexidade de contratos. Tal pode ser entendido como um método de comercialização pautado na multiplicidade de vínculos, contratos, pessoas e operações para atingir um fim econômico unitário. Em outras palavras, a conexidade de contrato são os liames entre pessoas estabelecidos para se atingir a uma finalidade comum: o fornecimento ao consumidor.
É sobre esse fenômeno econômico de conexidade de contratos que a doutrina jurídica desenvolveu a denominada teoria dos “contratos coligados” ou dos “contratos conexos”, terminologia variável, a depender do autor9. Ainda, a doutrina, incluindo-se a própria Professora Cláudia Lima Marques (inspirada em trabalho do Professor da Universidade de Buenos Aires, Ricardo Luis Lorenzetti10), diferencia as subcategorias “grupos de contratos” de “rede de contratos” e, ainda, de “contratos conexos stricto sensu”. Contudo, para os fins deste trabalho, essa diferenciação não é relevante11.
Importante decorrência da conexidade de contratos, estritamente ligada com a noção de cadeia de fornecimento, é que se pode falar, hoje, em “atos de consumo por conexidade”. Isso quer dizer que, se uma das atividades (ou um dos fins) de uma determinada relação contratual é de fornecimento, esse ato “acaba por ‘contaminar’, por determinar a natureza acessória de consumo ou da relação ou do contrato comercial”12. Exemplos ilustrativos, inclusive jurisprudenciais, serão expostos adiante, quando tratarmos da interdependência dos contratos coligados quanto à finalidade de consumo.
O que realmente importa quanto ao fenômeno da conexidade de contratos são os seus reflexos produzidos, os quais, na verdade, são reflexos do próprio fenômeno da cadeia de fornecimento. É o que se passa a expor.
2.2. Reflexos da cadeia de fornecimento
O exame do contexto e a visualização da cadeia de fornecimento são imprescindíveis para que sejam compreendidos, logicamente, os dois principais reflexos que dela decorrem: a solidariedade entre os participantes da cadeia de fornecimento e a interdependência dos contratos coligados (ou conexos) quanto à finalidade de consumo.
2.2.1 Solidariedade entre os integrantes da cadeia
O regime jurídico de solidariedade é a principal consequência da visualização da cadeia de fornecimento, porque, como mencionado anteriormente, traz a garantia ao consumidor de que fornecedores por detrás da cadeia não poderão se eximir de suas responsabilidades. Diante de tamanha importância, é imprescindível que façamos uma análise, ainda que breve, do regime jurídico da solidariedade no âmbito do Código de Defesa do Consumidor e dos principais pontos de interface com o regime de solidariedade clássico trazido pelo Código Civil.
Primeiramente, com relação à responsabilidade por vícios do produto, o artigo 1813 do Código de Defesa do Consumidor menciona expressamente a responsabilidade solidária de todos os fornecedores de produtos pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor.
Com relação a vícios do serviço, diferentemente do que ocorre no caso da responsabilidade por vícios de produtos, o artigo 2014 do Código de Defesa do Consumidor não menciona expressamente a responsabilidade solidária dos fornecedores que integram a cadeia de fornecimento. Em uma primeira leitura do dispositivo, essa omissão poderia causar alguma estranheza, levando a crer que a responsabilidade de fornecedores por vícios do serviço não seria solidária.
Contudo, fez bem o legislador ao dispor, em seu artigo 25, §1º15, que trata da vedação de cláusulas exoneratórias ou limitadoras de responsabilidade, que todos os fornecedores responderão solidariamente pela reparação prevista “nesta e nas seções anteriores”, as quais englobam a responsabilidade por vícios e fatos, tanto de produtos como de serviços.
Esse dispositivo é de suma relevância, pois tornou inequívoca a responsabilidade solidária dos integrantes da cadeia, ainda que em alguns dispositivos não anteriores não exista a menção expressa à responsabilidade solidária. Do contrário, isto é, caso não tivesse sido incluído pelo legislador esse dispositivo genérico, poder-se-ia suscitar dúvidas em relação à natureza da responsabilidade dos fornecedores, uma vez que, como se sabe, a solidariedade não pode ser presumida.
Quanto à responsabilidade por fatos de produtos e serviços, o regime de solidariedade traz mais peculiaridades do que as verificadas no caso de responsabilidade por vícios.
Para os fatos do produto, o Código de Defesa do Consumidor adotou uma solução clássica, a qual já mencionamos indiretamente em momento anterior. Diz-se “solução clássica” por que o artigo 1216 do Código estipula responsáveis solidários principais, quais sejam: o fabricante, o produtor, o construtor (nacionais ou estrangeiros) e o importador. O artigo 1317 do Código, por sua vez, estipula o comerciante como responsável solidário subsidiário, o qual somente poderá ser responsabilizado (a) quando o fabricante, o construtor, o produtor ou o importador não puderem ser identificados (inciso I); (b) quando o produto for fornecido sem identificação clara do seu fabricante, produtor, construtor ou importador (inciso II) ou (c) quando o comerciante não conservar adequadamente os produtos perecíveis.
Vê-se, portanto, uma clara intenção do legislador de também proteger quem apenas comercializa o bem e que, sem dúvidas, no mais das vezes, não é o grande responsável pelos defeitos apresentados em um determinado produto. Como mencionado anteriormente, caso o legislador não amparasse minimamente o comerciante com uma regra específica excludente da solidariedade, tal fato poderia se tornar, inclusive, um desestímulo ao desenvolvimento da atividade comercial, o que, certamente, não coaduna com a lógica de uma sociedade de consumo.
Se o legislador brasileiro adotou uma solução clássica com relação a fatos do produto, pode-se dizer que, com relação a fatos do serviço, adotou uma solução ousada18. Isso porque o artigo 1419 do Código, diferentemente da lógica dos artigos 12 e 13 mencionados anteriormente, não cria nenhum regramento específico para responsáveis principais e subsidiários. Apenas menciona, genericamente, que o “fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores”, não abrindo qualquer exceção de acordo com a posição que o fornecedor ocupe na cadeia de fornecimento. O regime de responsabilidade por fatos do serviço é, pois, mais rigoroso que o regime de responsabilidade por fatos do produto20.
Dessa breve análise comparativa do regime de solidariedade para vícios e fatos do produto ou do serviço é possível se chegar a outra conclusão relevante: a opção do legislador pela solidariedade é coerente com a lógica de sua opção pela responsabilidade objetiva. Embora a responsabilidade solidária em nada se confunda com a responsabilidade objetiva, se o regime do Código de Defesa do Consumidor dispensa a existência de culpa como fundamento indenizatório, dispensa também a necessidade de se demonstrar quem da cadeia falhou perante o consumidor, motivo pelo qual qualquer um dos fornecedores da cadeia pode ser acionado para indenizar o consumidor.
De todo modo, deve-se ressalvar que a legislação brasileira assegura, em todos os casos, o direito de regresso entre os fornecedores, oportunidade em que se pode apurar a medida da culpa de cada um na causação do evento danoso21.
De todo modo, ainda que seja assegurado pelo ordenamento brasileiro o direito de regresso dos fornecedores, o Código de Defesa do Consumidor não permite, por força de expressa disposição legal (artigo 88), a denunciação da lide ou qualquer outra indicação no processo do verdadeiro culpado frente ao consumidor ou seus representantes legitimados22.
Essa restrição é coerente, pois caso se permitisse a denunciação da lide em demandas consumeristas, certamente uma série de discussões incidentais no curso do processo exigiria atenção do juízo e dispêndio de tempo, o que apenas postergaria o direito do consumidor de ser indenizado. Obviamente, a lógica por detrás de um sistema de defesa do consumidor é proteger apenas o próprio consumidor, de modo que eventuais discussões subsidiárias entre fornecedores devem ser discutidas em processo autônomo.
Ainda, a imposição, pelo Código de Defesa do Consumidor, de um regime de responsabilidade solidária passiva (e objetiva) entre os fornecedores da cadeia de fornecimento traz também outra grande repercussão no âmbito do direito privado como um todo: promove uma mitigação da divisão clássica entre responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual.
Isso porque o Código de Defesa do Consumidor, reconhecendo o contexto social de que as relações contratuais massificadas passaram a demandar um paradigma mais objetivo do que a boa ou má-fé do fornecedor, estipula um modelo de responsabilidade pautado em padrões de qualidade e de segurança esperado por todos23, o que é decorrente, inclusive, do princípio da proteção da confiança no mercado de consumo. Assim, mais importante do que se verificar, in casu, a existência de culpa por parte do fornecedor é verificar se houve, de acordo com os padrões de qualidade usualmente esperados, um defeito no produto ou serviço adquirido24.
Por fim, como uma última observação acerca do regime de solidariedade estatuído pelo Código de Defesa do Consumidor, deve-se destacar que a organização da cadeia de fornecimento de serviços é de responsabilidade do próprio fornecedor, de modo que é impossível ao fornecedor transferir aos membros da cadeia responsabilidade exclusiva. Vigora, pois, uma impossibilidade de o fornecedor se eximir de sua responsabilidade, o que sequer pode ser admitido como tese de defesa em eventual processo judicial25.
Após essas breves considerações sobre a solidariedade na cadeia de fornecimento, passemos à análise do outro reflexo principal da cadeia de fornecimento: a interdependência dos contratos coligados ou conexos quanto à finalidade de consumo.
2.2.2. Interdependência dos contratos coligados ou conexos quanto à finalidade de consumo
Como decorrência da organização da cadeia de fornecimento e do contexto da conexidade de contratos mencionado anteriormente, visualiza-se no mercado, hoje, uma interdependência, uma ligação dos contratos com o objetivo último de conquistar cada vez mais consumidores no mercado.
A consequência por detrás desse fenômeno, com bem salienta Cláudia Lima Marques é que “se, para consumir, hoje, o consumidor necessita de dois ou mais contratos, o destino destes está coligado ou interdependente”. Em termos da chamada “escada Ponteana”, quer-se dizer que a perda da eficácia ou validade de um dos contratos destinados à finalidade de consumo repercutirá no(s) outro(s).
O Código de Defesa do Consumidor, no entanto, não é claro quanto a essa interdependência. O artigo 5226 do diploma consumerista é o que mais se aproxima dessa noção, podendo-se, a partir dele, depreender que no fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, esse contrato acessório tem seu destino ligado ao contrato principal de consumo.
Pode-se chegar a essa conclusão porque a lei expressamente impõe ao fornecedor a obrigação de informar adequadamente não somente sobre o produto ou serviço adquirido, mas também sobre as condições relacionadas ao contrato de financiamento. Ainda, a própria lei assegura ao consumidor a liquidação antecipada do débito, total ou parcialmente, mediante redução proporcional dos juros e demais acréscimos, concluindo-se, pois, que o contrato de financiamento é estritamente ligado com o contrato de consumo principal.
Se o texto expresso da lei foi tímido ao reconhecer a interdependência dos contratos coligados quanto à finalidade de consumo, a jurisprudência é mais sólida nesse sentido. O exemplo clássico enfrentado pelos tribunais é o da intermediação fiduciária, principalmente nos casos de compra e venda de veículos contendo cláusula de alienação fiduciária. Reconhece-se nesses casos, usualmente, que a resolução do contrato de compra e venda acarreta a extinção do pacto acessório de financiamento, haja vista que os negócios jurídicos, embora distintos, são coligados e a perda da eficácia de um repercute na validade do outro27.
Outros exemplos bastante atuais da interdependência de contratos coligados no mercado de consumo são os atuais métodos de pagamento e as relações jurídicas contratuais travadas com operadoras de cartão de crédito e operadoras de pagamento online, como, por exemplo, as já bastante conhecidas plataformas “PayPal” e “PagSeguro”28.
Embora, no Brasil, como afirmado acima, a legislação seja tímida na temática da interdependência dos contratos coligados, na Europa, por exemplo, o tema já vem sendo enfrentado com muito maior ênfase.
Como mero exemplo comparatista, a Diretiva 2008/48/CEE (Comunidade Econômica Europeia) descreve as principais condições para que existam e sejam válidos os contratos de crédito coligados a contratos de compra e venda, estipulando, de maneira geral, duas regras principais: (i) o crédito visado deve servir, exclusivamente, para financiar o pagamento do preço do contrato de fornecimento de produtos ou de prestação de serviços específicos e (i) ambos os contratos, principal e acessório, devem constituir uma unidade econômica29. A Diretiva em comento pode ser salutar para influenciar projetos de atualização do Código de Defesa do Consumidor e tornar de maneira mais técnica a temática dos contratos coligados e da sua interdependência no mercado de consumo.
3. Consumidor intermediário
Expostos o contexto e os principais reflexos da cadeia de fornecimento no ordenamento jurídico brasileiro, passemos à segunda parte de nosso trabalho, que é justamente analisar a figura do chamado “consumidor intermediário” e de seus impactos nessa noção de cadeia de fornecimento e nas relações jurídicas consumeristas em geral.
Como se sabe, o Código de Defesa do Consumidor foi pensado para que fosse um sistema protetivo do destinatário final no mercado de consumo, principalmente da pessoa física vulnerável. No entanto, a jurisprudência, principalmente a do Superior Tribunal de Justiça, vem reforçando a tese do chamado “consumidor intermediário”, que permite a incidência protetiva do Código de Defesa do Consumidor para alcançar fornecedores que ocupem posição intermediária na cadeia, desde que preenchidos certos requisitos.
Considerando que a figura do consumidor intermediário, de certa forma, perturba a lógica da cadeia de fornecimento que expusemos até aqui, o estudo dessa nova teoria consumerista se mostra relevante, sendo pertinente a sua inclusão em um trabalho que tem por objetivo justamente analisar os impactos da cadeia de fornecimento no mercado de consumo.
Antes de adentrar na teoria do consumidor intermediário, é necessário analisarmos, ainda que superficialmente, o conceito jurídico por detrás do termo “destinatário final”, que é o que embasa, em essência, a própria conceituação de consumidor e de relação jurídica de consumo.
3.1. Destinatário final
Desde o início da vigência do Código de Defesa do Consumidor, em 1991, a interpretação do diploma tem causado polêmicas. Em grande parte das vezes, percebe-se uma polarização entre aqueles que defendem uma ampliação da aplicação do Código e os que defendem uma restrição do seu âmbito de incidência.
Como breve recapitulação histórica, deve-se lembrar que, em 1991, ainda vigorava em nosso país o defasado Código Civil de 1916. Por esse motivo, muitos defenderam, inicialmente, uma aplicação ampla do Código de Defesa do Consumidor, já que este trazia elementos muito mais vanguardistas se comparados à legislação civil de então. Essa corrente, que defendia a ampliação da aplicação Código de Defesa do Consumidor, foi denominada de maximalista.
Como contraponto, surgiram os que entendiam, com bastante lucidez, que a função protetiva do Código de Defesa do Consumidor somente poderia ser preservada se houvesse a limitação de sua aplicação àqueles que, de fato, se encontrassem em posição de vulnerabilidade no mercado de consumo. Do contrário, acabar-se-ia banalizando a eficácia protetiva do diploma e, com isso, esvaziando a sua função. Essa segunda corrente foi, e ainda é, denominada de finalista.
Em um plano mais dogmático do que ideológico, a diferença entre maximalistas e finalistas era, essencialmente, a interpretação que cada uma dessas correntes dava ao conceito de “destinatário final”, previsto no artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor30.
Em linhas gerais, os maximalistas defendiam que destinatário final seria quem simplesmente retirasse o produto do mercado, ainda que com a intenção de revendê-lo ou de transformá-lo em outro produto. De outro lado, os finalistas restringiam o conceito de destinatário final àqueles que retiravam o produto ou serviço de circulação, mas que não os empregavam em uma finalidade econômica imediata.
A discussão entre maximalistas e finalistas era reforçada pelo fato de o legislador brasileiro permitir que pessoas jurídicas sejam consideradas consumidoras. Para os maximalistas, essa seria uma clara demonstração do escopo de ampliação do âmbito do Código de Defesa do Consumidor.
Todavia, os finalistas, em contraposição, sustentavam que o simples fato de se permitir a aplicação do Código consumerista às pessoas jurídicas não teria nenhum condão de ampliar sua aplicação irrestritamente, até porque existem pessoas jurídicas não empresariais e, mesmo se empresariais, as pessoas jurídicas somente poderiam ser consideradas consumidoras quando o produto adquirido ou o serviço contratado não fossem insumo produtivos, isto é, parte integrante do processo de fornecimento de outros produtos ou serviços.
Nesse cenário de antagonismos entre essas duas correntes majoritárias, pode-se dizer, genericamente, que a teoria maximalista prevaleceu até aproximadamente a entrada em vigor e aplicação do Código Civil (o que se deu em 2003). Isso porque o Código de Defesa do Consumidor, para os maximalistas31, era visto antes como um “código de comércio”, não como um código aplicável a pessoas vulneráveis.
Contudo, o novo Código Civil, ao também trazer os elementos vanguardistas já introduzidos anteriormente pelo Código de Defesa do Consumidor, principalmente a questão da boa-fé, da função social do contrato e do regime de alteração das circunstâncias contratuais, tornou desnecessário considerar o Código de Defesa do Consumidor como um “código de comércio”. Essa função passou a ser desempenhada pelo próprio Código Civil, momento a partir do qual se pôde conferir a interpretação mais restritiva e técnica ao conceito de “destinatário final”, o que, a nosso ver, é o mais correto32.
A definição de “destinatário final” é elemento central no âmbito do direito do consumidor, pois a relação de consumo primária e típica, que acarreta uma série de direitos e prerrogativas ao consumidor, depende dessa definição. Aliás, saber quem é o destinatário final é verdadeiramente saber quem é o consumidor em uma relação jurídica. Sem uma definição precisa do conceito de destinatário final, a operacionalização do Código de Defesa do Consumidor fica prejudicada33.
Embora a teoria finalista tenha começado a se consolidar após a entrada em vigor do novo Código Civil, em pouco tempo o Superior Tribunal de Justiça passou a encampar uma nova teoria, como se apontará na sequência.
3.2. O STJ, o “consumidor intermediário” e o “finalismo aprofundado”
No momento de transição da corrente maximalista para a corrente finalista, o STJ passou a se valer do conceito de “consumidor intermediário” em seus julgados34. Basicamente, consumidores intermediários seriam os agentes econômicos que, não sendo consumidores em sentido estrito, isto é, não sendo destinatários finais de produtos ou serviços, apresentam alguma vulnerabilidade, permanecendo em situação de desvantagem frente ao outro contratante (no caso, outro integrante da cadeia de fornecimento).
O STJ, adotando o conceito de consumidor intermediário, denominou essa teoria de “finalismo aprofundado”, entendida como um abrandamento da teoria finalista, já que, em determinadas circunstâncias, esta última poderia ser excessivamente rigorosa com sujeitos que demonstrassem algum tipo de vulnerabilidade35.
Embora o STJ tenha sustentado, em muitos de seus julgados, que a teoria do finalismo aprofundado é um abrandamento da teoria finalista, trata-se, na verdade, ou ao menos deveria se tratar, de uma adequada aplicação do artigo 2936 do Código de Defesa do Consumidor. Isso porque se o fundamento para se criar um conceito de “consumidor intermediário”, utilizado pelo STJ, é a vulnerabilidade, o portal para que isso ocorra é o artigo 29 do CDC.
É por meio deste dispositivo, que consagra a figura do chamado “consumidor equiparado”, que o Código de Defesa do Consumidor protege aqueles que não são destinatários finais, mas que sofrem no mercado as mesmas, ou ao menos semelhantes, dificuldades suportadas pelo consumidor típico (destinatário final).
Como bem sustenta Adalberto Pasqualotto37, a expressão “consumidor intermediário” é uma contradição em termos, porque consumidor, necessariamente, há de ser o destinatário final, aquele que não exerce atividade econômica a partir do produto ou serviço adquirido.
Para o autor gaúcho, “onde há atividade econômica, não há consumo”, pois a relação de consumo deve ser entendida como uma relação jurídica típica, em que existem dois sujeitos bem definidos: um fornecedor, que desenvolve a atividade econômica, e um destinatário final (consumidor), que não desenvolve atividade econômica. Ainda segundo o autor, “quando ambos desenvolvem atividade econômica, relação de consumo não haverá”, pois “o fabricante que adquire insumos não pode ser qualificado de consumidor – será simplesmente comprador”.
Deve-se frisar que o autor mencionado não descarta a necessidade de se tutelar o empresário vulnerável. O que ele refuta é a designação desse vulnerável como “consumidor intermediário” como forma de viabilizar a aplicação do diploma. Para ele, existindo uma situação de vulnerabilidade, o art. 29 do Código de Defesa do Consumidor já permitiria a aplicação do regime aos prejudicados, não havendo qualquer necessidade de se cunhar termos contraditórios, que apenas trazem prejuízos para uma operacionalização técnica do Código de Defesa do Consumidor.
3.3. Crítica ao “finalismo aprofundado” e o paradoxo econômico da tutela do consumidor intermediário
A teoria do finalismo aprofundado comporta críticas não apenas por ela ser calcada no conceito de “consumidor intermediário”, que, como apontado, é uma verdadeira contradição em termos. Deve ser criticada também pelos impactos econômicos que pode causar e pela falsa aparência de proteção ao consumidor que pretende conferir.
Embora o Superior Tribunal de Justiça alegue que o “finalismo aprofundado” é uma evolução da teoria finalista, parece-nos que o movimento é muito mais um regresso àquela tutela amplíssima conferida no passado pela teoria maximalista. De fato, ao buscar proteger fornecedores aparentemente vulneráveis que compõem a cadeia de fornecimento de produtos ou serviços, a teoria do finalismo aprofundado incorre no mesmo risco da teoria maximalista: amplia excessivamente o conceito de consumidor e, com isso, acaba por esvaziar a sua função protetiva.
Como exemplo da ampliação excessiva dessa tutela, julgado do fim do ano de 201238, de relatoria da Min. Nancy Andrighi, é bastante emblemático do atual posicionamento do Superior Tribunal de Justiça. Nele foi reiterado que a Corte se inspira no conceito de consumidor por equiparação (art. 29 do CDC) para formular a teoria do finalismo aprofundado, mas, mais importante, é a disposição no acórdão de que a pessoa jurídica adquirente de um produto ou serviço pode ser equiparada à condição de consumidora sempre que apresentar, frente ao fornecedor, qualquer tipo de vulnerabilidade.
Nos termos do acórdão, além das já tradicionais modalidades de vulnerabilidade – técnica, jurídica, fática e, mais recentemente, a informacional39 – dispôs-se que “a casuística poderá apresentar novas formas de vulnerabilidade aptas a atrair a incidência do CDC à relação de consumo” e que mesmo “a relação de dependência de uma das partes frente à outra pode, conforme o caso, caracterizar uma vulnerabilidade”.
Ora, a relação de dependência de uma das partes em relação à outra possui mecanismos de tutela própria, não havendo qualquer necessidade de tutela principal por meio do Código de Defesa do Consumidor e de posicionamento tão maximizador do STJ (embora disfarçadamente denominado de “aprofundamento” do da teoria finalista).
O que o Superior Tribunal de Justiça busca com a teoria do finalismo aprofundado é tratar de maneira mais justa uma relação jurídica envolvendo duas pessoas jurídicas de poderio econômico desigual. O Código de Defesa do Consumidor, sendo um diploma que tutela, por excelência, os vulneráveis no mercado, seria, no entender da Corte, o portal adequado para tanto. No entanto, em momento algum o ordenamento jurídico brasileiro ignora a necessidade de se proteger empresas desiguais, muito pelo contrário.
A própria Constituição Federal confere tratamento jurídico favorecido às empresas de pequeno porte, em seu art. 170, inciso IX40, que, não por mera coincidência, é o mesmo artigo que contém também o preceito de que a defesa do consumidor é princípio geral da atividade econômica.
Ainda em sede constitucional, o art. 17941 complementa o dispositivo anterior e determina que as microempresas e empresas de pequeno porte recebam tratamento jurídico diferenciado por meio da simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, visando a incentivá-las. Tais vantagens foram concretizadas pela Lei Complementar 123/06 e têm por objetivo justamente colocar tais empresas mais fracas em melhores condições de competitividade no mercado.
Ainda, e novamente para se aproveitar o entendimento do STJ de que “a relação de dependência de uma das partes frente à outra pode, conforme o caso, caracterizar uma vulnerabilidade” e, por conseguinte, ensejar a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, a Lei de Defesa da Concorrência (Lei 12.529/11) estipula, em seu art. 36, §3º42, diversas infrações da ordem econômica que são cometidas por aqueles que, de alguma forma, abusam da relação de dependência que um contratante mais vulnerável possa ter em relação ao contratante mais poderoso do ponto de vista econômico.
O art. 47 da mesma Lei, por sua vez, expressamente dispõe que os prejudicados poderão ingressar em juízo para, “em defesa de seus interesses individuais ou individuais homogêneos, obter a cessação de práticas que constituam infração da ordem econômica, bem como o recebimento de indenização por perdas e danos sofridos”.
Por fim, o próprio Código Civil de 2002, diploma ideal para regular a relação entre empresários, incorporou elementos do Código de Defesa do Consumidor, principalmente em matéria de contratos e de responsabilidade civil. Destaque-se, nesse ponto, que o regime jurídico de alteração das circunstâncias contratuais pode ser fator a permitir a revisão do contrato quando a prestação para uma das partes se tornar excessivamente onerosa e com extrema vantagem para a outra (CC, art. 478)43.
Quer-se demonstrar que tanto a Lei Complementar 123/06, a Lei 12.529/11 e o próprio Código Civil são exemplos de que o ordenamento jurídico brasileiro, para além da Constituição Federal, prevê um tratamento jurídico favorável para empresas em situação jurídica de vulnerabilidade e que, embora possa haver também a aplicação, em alguma medida, do Código de Defesa do Consumidor, com base no conceito de consumidor por equiparação, não se deve admitir, por respeito à melhor técnica jurídica, uma aplicação tão maximalista do deste diploma, como tem feito o Superior Tribunal de Justiça por meio da sua já emblemática teoria do finalismo aprofundado.
Reforce-se ainda que, a despeito de o STJ sustentar que a teoria do finalismo aprofundado busca “atrair a incidência do CDC à relação de consumo”, na verdade não se está atraindo a incidência do Código de Defesa do Consumidor para a relação jurídica de consumo típica, mas, sim, para a relação jurídica de consumo por equiparação, que, como tal, não comporta (ou ao menos não deveria comportar) tratamento igual ao da relação jurídica de consumo típica.
Essa distinção não fica clara na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, mas é de suma importância, pois, como bem explica Adalberto Pasqualotto, “não se podem tratar como iguais aqueles que são apenas equiparados”, até porque o Código de Defesa do Consumidor autoriza essa distinção entre relação jurídica de consumo típica e equiparada ao prever, no art. 51, inciso I, última parte, a possibilidade de tratamento diferenciado a consumidores pessoas jurídicas.
Além de o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça ser bastante questionável do ponto de vista da técnica jurídica, a nosso ver a maior crítica que pode ser feita é do ponto de vista econômico.
Na verdade, duas são as críticas: a primeira é a de que, ao proteger tão amplamente a empresa que apresente qualquer tipo de vulnerabilidade frente à outra, acaba, mais uma vez, por dar mais forças aqueles que demonizam as grandes companhias atuantes no mercado. Reforça-se, com essa mentalidade, a antiquada visão do “capital explorador”, desconsiderando-se o papel fundamental que as grandes corporações possuem no mercado e na sociedade, inclusive na geração de empregos e receitas para a economia.
A segunda crítica, e essa, a nosso ver, a mais séria, é a de que muitos julgadores ainda não se deram conta de que a maximização da tutela dos pretensos direitos dos “consumidores” (aqui entre aspas porque, como dito, os fornecedores intermediários sequer podem assim ser considerados) acaba por gerar um efeito rebote indesejado: ao se ampliar excessivamente os mecanismos de tutela dos fornecedores intermediários, os outros fornecedores prejudicados certamente acabarão repassando os custos dos prejuízos com condenações judiciais aos consumidores finais44.
No fim, esse é um paradoxo econômico dos mais temerários: ao proteger os ditos “consumidores intermediários”, cria-se o risco de os custos dessa proteção serem repassados aos destinatários finais de produtos e serviços, estes, sim, os verdadeiros consumidores. É mais uma demonstração de que a análise do fenômeno econômico é imprescindível para se avaliar os riscos de uma determinada decisão jurídica, o que, sem dúvidas, não pode ser desconsiderado pelo Poder Judiciário.
O Superior Tribunal de Justiça, por meio da teoria do finalismo aprofundado, propaga uma falsa ideia de proteção aos consumidores. Está protegendo, na verdade, fornecedores intermediários da cadeia de fornecimento por meio da inadequada (ou ao menos impensada) aplicação do Código de Defesa do Consumidor, quando existem outros meios eficazes para tutela de empresas vulneráveis em relações tipicamente comerciais.
4. Conclusão
A cadeia de fornecimento é um fenômeno econômico de organização do modo de produção, inserido em um contexto de uma sociedade de consumo massificada, qualificada não somente pela existência de uma pluralidade crescente de consumidores, mas, também, pela existência de diversos fornecedores intermediários, que atuam conjuntamente para a consecução de um resultado final: atender ao mercado de consumo.
O legislador brasileiro, atento a esse fenômeno econômico e buscando tutelar adequadamente os consumidores, impôs o regime de solidariedade entre os fornecedores da cadeia, o que, sem dúvidas, facilita contundentemente a reparação de consumidores que tenham seus direitos violados.
Outra consequência da visualização da cadeia de fornecimento é a interdependência dos contratos coligados quanto à finalidade de consumo, isto é, a perda da eficácia ou validade de um dos contratos destinados à finalidade de consumo repercutirá no(s) outro(s). Esta segunda consequência tem importância inconteste no âmbito de contratos de consumo que tenham um contrato acessório de financiamento a ele vinculado.
O Superior Tribunal de Justiça, desenvolvendo a teoria do “finalismo aprofundado”, com base no contraditório conceito de “consumidor intermediário”, passou a tutelar fornecedores intermediários que apresentem, frente ao outro, algum tipo de vulnerabilidade. Essa nova teoria, certamente, trouxe novas consequências para o regime jurídico da cadeia de fornecimento.
Contudo, além de ser altamente questionável a aplicação inveterada do Código de Defesa do Consumidor aos empresários vulneráveis, uma vez que a legislação brasileira prevê meios específicos para tanto, a proteção do “consumidor intermediário” vulnerável pode implicar o paradoxal repasse econômico dos custos ao consumidor destinatário final, esse, sim, o verdadeiro titular dos direitos trazidos pelo diploma consumerista.
2MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 420.
3 “O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: I – a reexecução dos serviços, sem custo adicional e quando cabível; II – a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III – o abatimento proporcional do preço. § 1° A reexecução dos serviços poderá ser confiada a terceiros devidamente capacitados, por conta e risco do fornecedor. § 2° São impróprios os serviços que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam as normas regulamentares de prestabilidade.”
4“Se o fornecedor de produtos ou serviços recusar cumprimento à oferta, apresentação ou publicidade, o consumidor poderá, alternativamente e à sua livre escolha: (…) II – aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente (…).”
5Op. cit., p. 416-417.
6Cláudia Lima Marques enquadra esse fenômeno do semianonimato das relações consumeristas no cenário que denomina de “pós-personalização” (Contratos, p. 419). Embora a análise da autora quanto ao atual cenário, como dito, pareça-nos correta, a criação de novos conceitos jurídicos ou fenomenológicos, como a denominada “pós-personalização”, parece-nos desnecessária. Vivemos em um momento jurídico de proliferação terminológica e principiológica vazia, em que autores adicionam o prefixo “pós” a diversos momentos ou fenômenos jurídicos como forma de cunhar algo próprio, mas que, parece-nos, são termos que carregam baixíssima carga semântica e que, por isso, são desnecessários.
7O Código Civil expressamente dispõe, no seu art. 265, que a solidariedade não se presume, devendo resultar expressamente de lei ou de contrato.
8Demandas judiciais de consumidores, por exemplo, permitirão que qualquer um dos integrantes da cadeia integre o polo passivo da demanda, o que, consequentemente, criará para a empresa demandada uma contingência de natureza cível que poderá acarretar a necessidade de provisionamentos contábeis, a depender do prognóstico de perda da demanda. Esses provisionamentos (e consequente diminuição de reservas de caixa da empresa) se mostrarão necessárias, principalmente, se o integrante da cadeia quiser realizar operações societárias, principalmente de alienação ou fusão, já que os potenciais interessados em com ele negociar buscarão conhecer a real situação contábil da empresa e os potenciais riscos existentes por detrás dela. Em síntese, a solidariedade na cadeia de fornecimento aumenta os riscos para o empresariado, não apenas diretamente em relação ao consumidor, mas, potencialmente, até mesmo em operações societárias.
9Francisco Paulo de Crescenzo Marino, por exemplo, prefere a terminologia italiana “contratos coligados”; Carlos Nelson Konder, de outro lado, opta por “contratos conexos” (GOMES, Orlando; JUNQUEIRA De AZEVEDO, Antônio; MARINO, Francisco Paulo de Crescenzo. Contratos. 26. ed., Rio de Janeiro, Forense, 2009).
10LORENZETTI, Ricardo Luis. Redes Contractuales: Conceptualización Jurídica, Relaciones Internas de Colaboración, Efectos frente a terceros, in RDC, v. 28, out/1998.
11Em verdade, embora autores tenham desenvolvido amplo estudo sobre as diferenciações de cada uma dessas modalidades, doutrinadores clássicos, como Orlando Gomes, simplificam o problema e preocupam-se mais com os efeitos da conexão contratual do que, propriamente, com a sua forma e teorizações sobre o assunto. Filiamo-nos a essa visão clássica do tema, pois parece-nos de pouca relevância prática distinguir de maneira aprofundada esses temas, até porque, na jurisprudência brasileira, quando muito, são apenas mencionados os termos clássicos contratos “coligados” ou “conexos”.
12MARQUES, op. cit., p. 423.
13“Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor (…)” (destacamos).
14“O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor (…)”.
15“É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas seções anteriores. § 1° Havendo mais de um responsável pela causação do dano, todos responderão solidariamente pela reparação prevista nesta e nas seções anteriores (…)”.
16“O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores (…)”.
17“O comerciante é igualmente responsável, nos termos do artigo anterior, quando: I – o fabricante, o construtor, o produtor ou o importador não puderem ser identificados; II – o produto for fornecido sem identificação clara do seu fabricante, produtor, construtor ou importador; III – não conservar adequadamente os produtos perecíveis. Parágrafo único. Aquele que efetivar o pagamento ao prejudicado poderá exercer o direito de regresso contra os demais responsáveis, segundo sua participação na causação do evento danoso”.
18Nesse sentido, v. MARQUES, op. cit., p. 424.
19“O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos”.
20Vale apontar, ainda, que tanto na responsabilidade por fato do produto quanto de serviços não há qualquer menção expressa nos dispositivos legais aplicáveis (artigos 12 a 14) à solidariedade. Contudo, mais uma vez, deve-se reforçar que o regime de solidariedade é trazido às hipóteses mencionadas por força do art. 25, §1º, que acaba por “amarrar” todo o sistema de responsabilização civil solidária de fornecedores, sem qualquer exceção.
21Embora o direito de regresso dos fornecedores somente seja mencionado nos artigos 13 e 88 do Código de Defesa do Consumidor, o próprio regime de solidariedade passiva estipulado pelo Código Civil é aplicável na hipótese.
22A impossibilidade de denunciação da lide é uma importante interface existente entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil. Nas relações paritárias, tipicamente regidas por este último diploma, não há qualquer óbice a essa modalidade de intervenção de terceiro.
23MARQUES, op. cit., p. 426.
24Uma vez que o próprio legislador brasileiro fez a opção pela responsabilização objetiva dos fornecedores por defeitos (vícios ou fatos) de produtos ou serviços, mostram-se terminologicamente inadequadas as excludentes “culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro”, previstas nos artigos 12, §3º, III e 14, §3º, II, do Código de Defesa do Consumidor. De fato, a perquirição de culpa é irrelevante para os fins reparatórios estipulados pelo ordenamento consumerista, motivo pelo qual a terminologia adequada para as excludentes de responsabilidade deveria ser “fato” exclusivo do consumidor ou de terceiro, que são causas externas que rompem o nexo de causalidade e que nada têm a ver com a noção clássica de “culpa”. Como bem sustenta Sérgio Cavalieri Filho (Programa de Responsabilidade Civil, 10ª ed., São Paulo: Atlas, 2012, p. 530), “lamenta-se que o Código, que tão técnico foi ao falar em fato do produto e fato do serviço, tenha, aqui, falado em culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro, em lugar de fato exclusivo dos mesmos. Em sede de responsabilidade objetiva, como a estabelecida no Código do Consumidor, tudo é resolvido no plano do nexo de causalidade, não se chegando a cuidar da culpa”.
25Nesse sentido, vejam-se os seguintes julgados: (1) “CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS. Quem se compromete a prestar assistência médica por meio de profissionais que indica, é responsável pelos serviços que estes prestam. Recurso especial não conhecido” (STJ, REsp 138.059/MG, Relator: Ministro Ari Pargendler, j. 13/03/2001, Terceira Turma). O julgado traz a distinção entre seguros e planos de saúde. No seguro saúde, no qual não há profissionais cadastrados, mas apenas reembolsos de despesas médicas, a seguradora é parte ilegítima em eventual ação indenizatória por erro médico. No caso dos planos de saúde, em que há o credenciamento de profissionais para prestação de serviços médicos, a operadora do plano responde objetivamente, por ter sido organizadora da cadeia de fornecimento, resguardando-se, contudo, o seu direito de regresso contra o hospital ou o médico, no limite da culpa de cada um deles. No mesmo sentido, também o seguinte julgado: “CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ERRO MÉDICO. COOPERATIVA DE ASSISTÊNCIA DE SAÚDE. LEGITIMIDADE PASSIVA. CDC, ARTS. 3º E 14. I. A Cooperativa que mantém plano de assistência à saúde é parte legitimada passivamente para ação indenizatória movida por associada em face de erro médico originário de tratamento pós-cirúrgico realizado com médico cooperativado. II. Recurso especial não conhecido”. (STJ, REsp 309.760/RJ, Relator: Ministro Aldir Passarinho Junior, j. 06/11/2001, Quarta Turma). (2) “RESPONSABILIDADE CIVIL. Agência de viagens. Código de Defesa do Consumidor. Incêndio em embarcação. A operadora de viagens que organiza pacote turístico responde pelo dano decorrente do incêndio que consumiu a embarcação por ela contratada. Passageiros que foram obrigados a se lançar ao mar, sem proteção de coletes salva-vidas, inexistentes no barco. Precedente (REsp 287.849/SP). Dano moral fixado em valor equivalente a 400 salários mínimos. Recurso não conhecido”. (STJ, REsp 291.384/RJ, Relator: Ministro Ruy Rosado de Aguiar, j. 15/05/2001, Quarta Turma). Os casos envolvendo agências de turismo são exemplos clássicos de responsabilidade solidária por organização da cadeia de fornecimento e de inexistência do direito de eximir-se.
26“No fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, o fornecedor deverá, entre outros requisitos, informá-lo prévia e adequadamente sobre: I – preço do produto ou serviço em moeda corrente nacional; II – montante dos juros de mora e da taxa efetiva anual de juros; III – acréscimos legalmente previstos; IV – número e periodicidade das prestações; V – soma total a pagar, com e sem financiamento. § 1° As multas de mora decorrentes do inadimplemento de obrigações no seu termo não poderão ser superiores a dois por cento do valor da prestação. § 2º É assegurado ao consumidor a liquidação antecipada do débito, total ou parcialmente, mediante redução proporcional dos juros e demais acréscimos”.
27“AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO CONVERTIDA EM DEPÓSITO. Compra e venda de veículo com financiamento contendo cláusula de alienação fiduciária. Resolução do pacto de compra e venda efetivada por meio de transação extrajudicial entre o adquirente e a vendedora do automóvel. Contrato conexo que sofre os efeitos do contrato principal, embora a instituição financeira não tenha responsabilidade derivada do compromisso de compra e venda. Insubsistência deste último que impede a conservação do pacto de financiamento. Recurso desprovido” (TJSP, AC 0008021-02.2007.8.26.0363, Relator: Dimas Rubens Fonseca, j. 08/02/2011, 27ª Câmara de Direito Privado).
28Essas plataformas são soluções criadas para pagamentos online, as quais visam a garantir a segurança de quem compra e de quem vende na internet. Tais plataformas têm por objetivo fomentar, facilitar e despertar a confiança no comércio eletrônico, eliminando (ou ao menos diminuindo) entraves que dificultam a concretização de negociações. Do ponto de vista jurídico, a eficácia dos contratos celebrados com essas plataformas depende também da eficácia e validade dos contratos principais de consumo, motivo pelo qual se inserem plenamente no tópico ora estudado.
29Disponível em <https://eur-lex.europa.eu/legal-content/>. Acesso em: 29 dez. 2024.
30“Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final” (destacamos).
31Como exemplos de doutrinadores que assumiram a posição maximalista durante a década de 1990, citem-se James Marins e Antônio Carlos Efing. O leading case da posição maximalista é o REsp 208.793, cuja ementa é a seguir transcrita: “Código de Defesa do Consumidor. Destinatário final: conceito. Compra de adubo. Prescrição. Lucros cessantes. 1. A expressão “destinatário final”, constante da parte final do art. 2º do Código de Defesa do Consumidor, alcança o produtor agrícola que compra adubo para o preparo do plantio, à medida que o bem adquirido foi utilizado pelo profissional, encerrando-se a cadeia produtiva respectiva, não sendo objeto de transformação ou beneficiamento. 2. Estando o contrato submetido ao Código de Defesa do Consumidor a prescrição é de cinco anos. 3. Deixando o Acórdão recorrido para a liquidação por artigos a condenação por lucros cessantes, não há prequestionamento dos artigos 284 e 462 do Código de Processo Civil, e 1.059 e 1.060 do Código Civil, que não podem ser superiores ao valor indicado na inicial. 4. Recurso especial não conhecido” (STJ, REsp 208793, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 18/11/1999, Terceira Turma). Perceba-se que o julgado considera consumidor aquele que adquire “bem consumível”, definido no art. 86 do Código Civil. No entanto, tal conceito em nada se confunde com o elemento teleológico da destinação final, previsto no Código de Defesa do Consumidor. Como bem aponta Adalberto Pasqualotto (O destinatário final e o “consumidor intermediário”, in Revista de Direito do Consumidor, vol. 74, p. 3, abr/2010), “no Código de Defesa do Consumidor, o conceito é econômico: não há relação de consumo se o produto é utilizado como insumo”.
32Bruno Miragem analisa que “a interpretação ampliativa do conceito de consumidor justificava-se, em um primeiro momento, pelo caráter renovador das normas do CDC em relação ao direito privado brasileiro centrado no Código Civil de 1916. Neste sentido, foi o direito do consumidor o principal elemento de renovação do direito privado, com a introdução de uma série de inovações, como a boa-fé objetiva, a objetivação do abuso do direito, a responsabilidade objetiva e solidária dos fornecedores, o caráter vinculante da oferta, a proteção do equilíbrio contratual, dentre outras. Entretanto, a promulgação do novo Código Civil de 2002 retirou em parte a centralidade que, sobretudo por ação da jurisprudência brasileira, o CDC assumiu no cenário do direito privado durante a década de 90, uma vez que várias das normas previstas na legislação consumerista, sobretudo em matéria de contratos e responsabilidade civil, foram de algum modo incorporadas à nova legislação. O CDC, deste modo, retornou à sua origem como lei especial de proteção do consumidor destinatário final fático e econômico do produto ou serviço, preconizado pela corrente de interpretação finalista” (Aplicação do CDC na proteção contratual do Consumidor-Empresário: concreção do conceito de vulnerabilidade como critério para equiparação legal, in Revista de Direito do Consumidor, vol. 62, p. 259, abr. 2007).
33Como bem sustenta Adalberto Pasqualotto (op. cit., p. 7), “no direito do consumidor, há uma relação jurídica típica, a relação jurídica de consumo. O que a peculiariza entre as demais relações jurídicas são os seus sujeitos, não o objeto. Tratando-se de um direito especial, o direito do consumidor é centrado na figura da pessoa que ele busca proteger. O risco de não identificá-la corretamente corresponde ao erro que se comete em descaracterizar a relação jurídica de consumo, aplicando o Código de Defesa do Consumidor fora de sua destinação constitucional, que é garantir a defesa dos vulneráveis no contexto da ordem econômica”.
34Como exemplo, confiram-se os seguintes julgados: Resp 541.867; REsp 661.145 e REsp 701.370.
35Acerca do histórico da evolução das teorias consumeristas, Bruno Miragem sintetiza bem a questão: “a rigor, podem ser observados três estágios principais, no modo como a jurisprudência brasileira vem admitindo a interpretação do conceito de consumidor. O primeiro estágio assinala uma vocação expansiva do CDC como lei de regulação geral do mercado, identificando o destinatário final como destinatário fático do produto ou serviço, e abrangendo de modo geral o consumidor empresário, seja pela interpretação do art. 2º, ou do art. 29 do CDC. O segundo estágio indica uma interpretação restritiva do conceito de consumidor e da expressão destinatário final do art. 2º, privilegiando a teoria finalista. E recentemente, sobretudo a partir da rica jurisprudência do STJ, passa-se a um terceiro estágio, no qual se destaca o critério da vulnerabilidade para a identificação do consumidor, independente se destinatário final ou consumidor equiparado. Este terceiro estágio, denominado pela doutrina como finalismo aprofundado, ao destacar o critério da vulnerabilidade, estimula sua interpretação em vista de novos significados, o que é bem demonstrado pela decisão em comento” (op. cit., p. 259).
36“Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas”.
37Op. cit., p. 14.
38“CONSUMIDOR. DEFINIÇÃO. ALCANCE. TEORIA FINALISTA. REGRA. MITIGAÇÃO.FINALISMO APROFUNDADO. CONSUMIDOR POR EQUIPARAÇÃO. VULNERABILIDADE. 1. A jurisprudência do STJ se encontra consolidada no sentido de que a determinação da qualidade de consumidor deve, em regra, ser feita mediante aplicação da teoria finalista, que, numa exegese restritiva do art. 2º do CDC, considera destinatário final tão somente o destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa física ou jurídica. 2. Pela teoria finalista, fica excluído da proteção do CDC o consumo intermediário, assim entendido como aquele cujo produto retorna para as cadeias de produção e distribuição, compondo o custo (e, portanto, o preço final) de um novo bem ou serviço. Vale dizer, só pode ser considerado consumidor, para fins de tutela pela Lei nº 8.078/90, aquele que exaure a função econômica do bem ou serviço, excluindo-o de forma definitiva do mercado de consumo. 3. A jurisprudência do STJ, tomando por base o conceito de consumidor por equiparação previsto no art. 29 do CDC, tem evoluído para uma aplicação temperada da teoria finalista frente às pessoas jurídicas, num processo que a doutrina vem denominando finalismo aprofundado, consistente em se admitir que, em determinadas hipóteses, a pessoa jurídica adquirente de um produto ou serviço pode ser equiparada à condição de consumidora, por apresentar frente ao fornecedor alguma vulnerabilidade, que constitui o princípio-motor da política nacional das relações de consumo, premissa expressamente fixada no art. 4º, I, do CDC, que legitima toda a proteção conferida ao consumidor. 4. A doutrina tradicionalmente aponta a existência de três modalidades de vulnerabilidade: técnica (ausência de conhecimento específico acerca do produto ou serviço objeto de consumo), jurídica (falta de conhecimento jurídico, contábil ou econômico e de seus reflexos na relação de consumo) e fática (situações em que a insuficiência econômica, física ou até mesmo psicológica do consumidor o coloca em pé de desigualdade frente ao fornecedor).Mais recentemente, tem se incluído também a vulnerabilidade informacional (dados insuficientes sobre o produto ou serviço capazes de influenciar no processo decisório de compra). 5. A despeito da identificação in abstracto dessas espécies de vulnerabilidade, a casuística poderá apresentar novas formas de vulnerabilidade aptas a atrair a incidência do CDC à relação de consumo. Numa relação interempresarial, para além das hipóteses de vulnerabilidade já consagradas pela doutrina e pela jurisprudência, a relação de dependência de uma das partes frente à outra pode, conforme o caso, caracterizar uma vulnerabilidade legitimadora da aplicação da Lei nº 8.078/90, mitigando os rigores da teoria finalista e autorizando a equiparação da pessoa jurídica compradora à condição de consumidora. 6. Hipótese em que revendedora de veículos reclama indenização por danos materiais derivados de defeito em suas linhas telefônicas, tornando inócuo o investimento em anúncios publicitários, dada a impossibilidade de atender ligações de potenciais clientes. Contratação do serviço de telefonia não caracteriza relação de consumo tutelável pelo CDC, pois o referido serviço compõe a cadeia produtiva da empresa, sendo essencial à consecução do seu negócio. Também não se verifica nenhuma vulnerabilidade apta a equipar a empresa à condição de consumidora frente à prestadora do serviço de telefonia. Ainda assim, mediante aplicação do direito à espécie, nos termos do art. 257 do RISTJ, fica mantida a condenação imposta a título de danos materiais, à luz dos arts. 186 e 927 do CC/02 e tendo em vista a conclusão das instâncias ordinárias quanto à existência de culpa da fornecedora pelo defeito apresentado nas linhas telefônicas e a relação direta deste defeito com os prejuízos suportados pela revendedora de veículos. 7. Recurso especial a que se nega provimento” (STJ, REsp 1.195.642, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 13.11.2012).
39V. definições na ementa do acórdão transcrito acima.
40“A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (…) IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País (…)”.
41“A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei”.
42“As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no caput deste artigo e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica: (…) V – impedir o acesso de concorrente às fontes de insumo, matérias-primas, equipamentos ou tecnologia, bem como aos canais de distribuição; (…) IX – impor, no comércio de bens ou serviços, a distribuidores, varejistas e representantes preços de revenda, descontos, condições de pagamento, quantidades mínimas ou máximas, margem de lucro ou quaisquer outras condições de comercialização relativos a negócios destes com terceiros; (…)XII – dificultar ou romper a continuidade ou desenvolvimento de relações comerciais de prazo indeterminado em razão de recusa da outra parte em submeter-se a cláusulas e condições comerciais injustificáveis ou anticoncorrenciais; (…)”.
43“Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação”.
44No julgamento do REsp 1.269.691, ocorrido em 22.11.2013, a Min. Maria Isabel Galotti bem observou os riscos da multiplicação de condenações por dano moral no campo do direito do consumidor, principalmente a possibilidade de repasse ao destinatário final: “Penso deva ser cauteloso o reconhecimento de dano moral, em situações como a presente, de fatos indesejáveis e lamentáveis do cotidiano, que, sem dúvida causam dissabores, sustos, desprazer, mas cujo desfecho, imediato e sem consequências de ordem alguma (exceto o susto do momento), não ocasionou dano anormal. O reconhecimento do dever de indenizar por danos morais, em hipóteses do gênero, agravaria de tal modo o custo da atividade econômica, obrigando a contratação de seguros também para danos morais de todo o tipo, que mais oneroso seria o preço dos serviços postos à disposição do consumidor”. Contudo, a despeito da clareza do voto da Ministra, sua posição restou vencida e, mais uma vez, teve-se uma condenação por danos morais contra estabelecimento comercial. O caso tratou de um pedido de indenização por danos morais formulado por consumidor devido à tentativa de roubo (isto é, não consumado) de seu veículo dentro de estacionamento de shopping center.
Referências bibliográficas
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012.
GOMES, Orlando; JUNQUEIRA De AZEVEDO, Antônio; MARINO, Francisco Paulo de Crescenzo. Contratos. 26. ed., Rio de Janeiro, Forense, 2009.
KONDER, Carlos Nelson. Contratos Conexos, Grupos de Contratos, Redes Contratuais e Contratos Coligados. 1. ed. Renovar, 2006.
LORENZETTI, Ricardo Luis. Redes Contractuales: Conceptualización Jurídica, Relaciones Internas de Colaboración, Efectos frente a terceros, in Revista de Direito do Consumidor, vol. 28, 1998.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
MIRAGEM, Bruno. Aplicação do CDC na proteção contratual do Consumidor-Empresário: concreção do conceito de vulnerabilidade como critério para equiparação legal, in Revista de Direito do Consumidor, vol. 62, abr. 2007.
PASQUALOTTO, Adalberto. O destinatário final e o “consumidor intermediário”, in Revista de Direito do Consumidor, vol. 74, abr. 2010.
1Mestre e bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Procurador da Fazenda Nacional (PGFN). Atuou como Procurador do Município de Sorocaba-SP, colaborador da Escola de Gestão Pública da Prefeitura de Sorocaba-SP e como Assessor Jurídico no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Seção de Direito Público). Advogou na área de resolução de conflitos (advocacia contenciosa e consultiva em matérias diversas). Foi também servidor público na Câmara Municipal de São Paulo-SP. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Público, atuando principalmente em temas de Direito Administrativo e Constitucional. Contato: marco.a.ceccato@gmail.com.