REGISTRO DOI:10.5281/zenodo.10183486
Maria Clara Silveira Alves
RESUMO
O conceito de família está atrelado as concepções e anseios de cada sociedade e busca tutelar os interesses dela, razão pela qual a evolução desse conceito sempre esteve ligada a tutela dos interesses das sociedades em determinado tempo e espaço. As rápidas mudanças sociais, especialmente nos últimos anos, forçam doutrina e jurisprudência a abraçarem as mudanças sociais e adaptarem conceitos jurídicos a essa nova realidade, em que a famílias existem com base no afeto, todos em busca do direito a felicidade. O presente artigo busca fazer uma breve análise da evolução do conceito jurídico de família, especialmente as mudanças ocorridas pós Constituição Federal de 1988.
INTRODUÇÃO
A ciência do direito é conhecida por normatizar questões sociais com um certo atraso, a lei vem somente depois de concretizadas as mudanças sociais, na maioria das vezes, e com o instituto da família não é diferente.
Contudo, o conceito jurídico de família não traz reflexos apenas no âmbito cível, mas sim em todo o ordenamento jurídico, sendo uma das razões pelas quais existe um esforço de que o seu conceito e seus reflexos consigam acompanhar a evolução da sociedade de forma mais rápida, não se fazendo de letra morta.
Dentre as proposições, o presente trabalho busca fazer uma breve análise da evolução do conceito jurídico de família, especialmente após a promulgação da Constituição Federal de 1988, do Código Civil de 2002 e as decisões recentes dos Tribunais Superiores.
O método de abordagem empregado neste artigo é o método teórico-dedutivo, enquanto o método de procedimento adotado foi o monográfico, vez que se baseia em outros estudos. As técnicas de pesquisa utilizada foram as técnicas documental e bibliográfica, pois se embasa principalmente na legislação e nas doutrinas que abordam essa temática. Para tanto, primeiramente, abordar-se-á os impactos da evolução do conceito jurídico e social de família, em razão das alterações sociais, legislativas e jurisprudenciais, especialmente aquelas
advindas da Constituição Federal de 1988, do Código Civil de 2002 e de decisões emblemáticas proferidas pelos Tribunais Superiores nos últimos anos.
1 FAMÍLIA ANTES DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, o direito de família e, consequentemente, o conceito jurídico de família, enquanto instituto, tinham suas bases legais no Código Civil de 1916.
Importante salientar que as normas trazidas pelo mencionado código refletiam a mentalidade social da época em que foi editado: uma sociedade extremamente heteropatriarcal, machista e conservadora,
prova disso foi a indissolubilidade do casamento, como também a capacidade relativa da mulher. O artigo 233 do Código Civil de 1916 designava o marido como único chefe da sociedade conjugal. Além disso, à mulher era atribuída somente a função de colaboradora dos encargos familiares, consoante artigo 240 do mesmo diploma legal (BARRETO, 2012).
Sob a égide do Código Civil de 1916, só se reconhecia como entidade familiar aquelas formadas pelo casamento e consanguinidade. Qualquer outra formação familiar era desprovida de proteção jurídica (LEITÃO, 2017).
O Estatuto da Mulher Casada, Lei nº 4.121 de 1962, revogou vários dispositivos do Código Civil vigente à época, assegurando vários direitos as mulheres, mesmo que de forma incipiente, modificando a posição social da mulher e a própria estrutura das famílias, vez que a partir de então as mulheres podiam interferir na administração da casa e exercer o poder familiar (BARRETO, 2012).
houveram significativos avanços no conceito de família com a edição das súmulas 380 e 382 do STF, reconhecendo a união estável entre homens e mulheres. Naquele momento, as uniões estáveis não eram propriamente reconhecidas como institutos do direito de família, mas sim do direito obrigacional, equiparando os casais a sociedades de fato. “Erroneamente, confundia-se affectio societatis com affectio maritalis” (LEITÃO, 2017).
Outra importante modificação foi a edição da Emenda Constitucional nº 9 de 1977 instituindo o divórcio no Brasil A emenda foi necessária para que fosse aprovada a Lei nº 6.515/1977, que substituiu o desquite pela separação judicial, a qual efetivamente rompia a sociedade conjugal; tornou facultativa a adoção do sobrenome do marido; e tornou regra geral o regime da comunhão parcial de bens (LEITÃO, 2017).
Entretanto, as modificações mais profundas no instituto da família são decorrência da Constituição Federal de 1988, do ordenamento jurídico por ela inaugurado e das próprias modificações sociais.
2 CONSTITUIÇÃO FEDERAL E AS INOVAÇÕES NAS FAMÍLIAS
A Constituição Federal de 1988 inaugurou um novo ordenamento jurídico, impactando também as famílias, por mudanças atreladas aos novos direitos e anseios sociais.
Neste novo ordenamento, não se podia (e até hoje não se pode) ignorar a força normativa da Constituição, existia uma preocupação que a nova Lei Maior não se tornasse apenas algo de cunho ideológico, razão pela qual se buscou incorporar conceitos e direitos constitucionais aos demais ramos do direito.
Em relação ao direito de família, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald afirmam que a supremacia constitucional ensejou as seguintes consequências lógicas:
a necessidade de releitura dos conceitos e institutos jurídicos clássicos (como, verbi gratia, o casamento e filiação), (ii) a elaboração e o desenvolvimento de novas categorias jurídicas (não mais neutras e indiferentes, porem dinâmicas, vivas, presentes na vida social, como no exemplo da união entre pessoas do mesmo sexo como uma entidade familiar) e (iii) a interação estreita entre os diferentes campos do conhecimento (reconhecendo a necessidade de uma visão multidisciplinar do Direito, buscando amparo e inspiração na Psicologia, na Antropologia, na Filosofia, na História, na Sociologia, etc.) (FARIAS e ROSENVALD, 2015, p.53-54).
Com a constitucionalização do Direito de Família, verificou-se que os institutos tiveram que se adequar aos fundamentos e princípios constitucionais, passando a se pautar nos “valores sociais e humanizadores, especialmente a dignidade humana, a solidariedade social e a igualdade substancia” (FARIAS e ROSENVALD, 2015, p. 57).
Nessa nova sistemática, as famílias passaram a ser uma “entidade de afeto e solidariedade, fundada em relações de índole pessoal, voltadas para o desenvolvimento da pessoa humana”, conforme é possível extrair do disposto no artigo 226 da Constituição Federal (FARIAS e ROSENVALD, 2015, p. 57).
É da leitura do mencionado artigo que se extrai a primeira grande mudança em relação ao conceito de família. Conforme mencionado no capítulo anterior, somente a família advinda do casamento era considerada legítima e tutelada juridicamente, contudo, a Constituição da República reconheceu como entidades familiares aquelas advindas de uniões estáveis e as formadas por qualquer dos pais e seus dependentes. Além disso, assegurou a igualdade entre homens e mulheres dentro da sociedade conjugal.
O conceito aberto, plural e indeterminado fez com que se tornasse maleável ao cotidiano e as mudanças sociais, sendo uma verdadeira “cláusula geral de inclusão”, formalizando que todas as formas de núcleos familiares merecem igualmente a proteção jurídica (FARIAS e ROSENVALD, 2015, p. 58).
O reconhecimento expresso de alguns modelos não pode, em choque com o conceito aberto, ser usado para colocar a margem do ordenamento e da sociedade outras organizações familiares, sob pena de violar os preceitos constitucionais:
Realmente, a não admissibilidade de quaisquer comunidades afetivas (denominadas por alguns entidades parafamiliares) como núcleos familiares, afastando-as da incidência protetiva do Direito das Famílias, sob o frágil argumento de não estarem explicitamente previstas no art. 226, colidiria a mais não poder com os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade substancial, por ser descabida discriminação de qualquer espécie à opção afetiva de cada cidadão (FARIAS e ROSENVALD, 2015, p. 60).
Percebe-se, portanto, que a Constituição Federal de 1988 trouxe uma nova sistemática para a família enquanto instituto jurídico, avanços importantes à época, mas que hoje não são suficientes para chancelar todas as questões e avanços do instituto em análise.
3 FAMÍLIA BASEADA NO AFETO E SUA CHANCELA PELOS TRIBUNAIS SUPERIORES
Conforme aduzido no capítulo anterior, a Constituição Federal de 1988 foi um marco por inaugurar uma fase em que as famílias não mais existiam puramente por interesses patrimoniais, mas sim em razão da vontade das pessoas de se relacionarem e de constituírem famílias, sem a necessidade de rótulos e requisitos formais.
Barreto aduz: “a família contemporânea caracteriza-se pela diversidade, justificada pela incessante busca pelo afeto e felicidade” (BARRETO, 2012).
O Código Civil de 2002, que regulamenta o direito de família, também segue a sistemática trazida pela norma constitucional, mas por ter sido elaborado e editado há mais de vinte anos, carrega resquícios mais conservadores que não se amoldam a sociedade e realidade atuais.
Por tal razão, cabe as Cortes de Justiça, em especial ao Supremo Tribunal Federal – STF e ao Superior Tribunal de Justiça – STJ a interpretação da norma constitucional e infraconstitucional de modo a atender aos anseios sociais e aos próprios fundamentos postos pela ordem constitucional.
Na evolução do conceito de família, a maior mudança do paradigma foi o reconhecimento do afeto como fundamento das relações. Sobre tal fundamento, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald lecionam:
O afeto caracteriza a entidade familiar como uma verdadeira rede de solidariedade, constituída para o desenvolvimento da pessoa, não se permitindo que uma delas possa violar a natural confiança depositada por outra, consistente em ver assegurada a dignidade humana, assegurada constitucionalmente. E mais: o afeto traduz a confiança que é esperada por todos os membros do núcleo familiar e que, em concreto, se materializa no necessário e imprescindível respeito às peculiaridades de cada um de seus membros, preservando a imprescindível dignidade de todos. Em síntese, é a ética exigida nos comportamentos humanos, inclusive familiares, fazendo com que a confiança existente em tais núcleos seja o refugio das garantias fundamentais reconhecidas a cada um dos cidadãos ((FARIAS e ROSENVALD, 2015, p. 120).
Abraçando as evoluções comentadas, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, através de julgados paradigmáticos, reconheceram o afeto como o grande fundamento da família, modificando entendimentos e reconhecendo modelos e conceitos de família antes a margem do ordenamento. Explica-se.
Em 2011, o Supremo Tribunal Federal, através de seu Tribunal Pleno, reconheceu a possibilidade de existência de uniões estáveis homoafetivas, no julgamento conjunto da ADPF 132-RJ e da ADI 4.277-DF. Nesse importante julgado, mais uma vez a família baseada no afeto foi reconhecida, não se olvidando de reconhecer enquanto entidade familiar as uniões estáveis não formadas por homens e mulheres, como consta do texto expresso da Constituição Federal (BRASIL, 2011).
Requisitos puramente formais que não se justificam perante a consolidação das famílias baseadas no afeto e que impedem reconhecimento jurídico a situações familiares. A titulo exemplificativo: o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê que para a adoção conjunta, os adotantes devam ser casados civilmente ou convivam em união estável, contudo, em 2012, o Superior Tribunal de Justiça flexibilizou tal regra, permitindo a adoção de uma criança por dois irmãos, que a criavam e com ela desenvolveram relações de afeto (BRASIL, 2012).
As mudanças sociais também fizeram necessária a mudança dos institutos. Hoje, não há mais discussões acerca do reconhecimento da multiparentalidade ou pluriparentalidade, ou seja, quando a criança reconhece mais de uma pessoa como pai e/ou mãe. Esse reconhecimento dado pelo STF e STJ é mais uma prova do reconhecimento jurídico dado ao afeto.
Nesse diapasão, a sociedade evoluiu, as famílias evoluíram, razão pela qual o ordenamento jurídico também deve evoluir para acompanha-las, papel esse que hoje tem sido feito através do Poder Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As famílias existem desde o início da civilização e, diante da sua tamanha importância social, são importante instituto jurídico traz consequências para diversas áreas e outros institutos do direito.
Esse instituto por ser tão intrínseco a sociedade se amolda as características dessa, evoluindo junto dela. Assim, após a Constituição Federal de 1988, percebe-se mudanças sociais profundas e cada vez mais rápidas, o que reflete diretamente nas famílias, tanto quanto instituição social, quanto conceito e instituição jurídica.
Nesse contexto, o Direito, em especial do Direito de Família precisa acompanhar tal evolução, para que não se torne letra morta, mas sim, cumpra o seu papel e consiga tratar das questões necessárias para a pacificação social que dele se espera.
Para cumprir esse papel, o STF e STJ tem cumprido o papel de atualizar e reconhecer situações e realidades familiares não antes reconhecidas e tuteladas pelo ordenamento, o que se mostra positivo, especialmente diante da necessidade de evolução rápida, para que se acompanhe as mudanças sociais.
Não se olvida que a atualização do ordenamento sempre estará aquém das mudanças sociais, entretanto, a vontade de acompanha-las e de tutelar a todos se mostra imprescindível para o cumprimento dos preceitos constitucionais, em especial o direito a igualdade e a própria felicidade, que se traduz, nas famílias, como afeto.
REFERÊNCIAS
BARRETO, Luciano Silva. Evolução histórica e legislativa da família. Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 – 10 Anos do Código Civil – Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume I. Disponível em <https://www.emerj.tjrj.jus.br/serieaperfeicoamentodemagistrados/paginas/series/13/volumeI/ 10anosdocodigocivil_205.pdf>. Acesso em 10 de junho de 2022.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Dispo0nível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em 15 de junho de 2022.
BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em 11 de junho de 2022.
BRASIL. Lei 10.406 de 10 de janeito de 2002. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acesso em 15 de junho de 2022.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma. REsp 1217415-RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 19/6/2012. Disponível em < https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201102350369&dt_publicacao=10/09/2012 >. Acesso em 18 de junho de 2022.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4277, Rel. Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011. Disponível em < https://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20111018-02.pdf>. Acesso em 11 de junho de 2022.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: famílias, volume 6. 7 ed. ver. ampl. e atual. São Paulo: Atlas, 2015.
LEITÃO, Fernanda de Freitas. Evolução do direito e do conceito de família. Conjur, 08 mar. 2017. Disponível em < https://jus.com.br/artigos/56343/evolucao-do-direito-e-do- conceito-de-familial>. Acesso em 12 de junho de 2022.