AS QUEIXAS ESCOLARES E O FRACASSO EQUIVOCADO: A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO ESCOLAR CRÍTICO SOB A PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL

SCHOOL COMPLAINTS AND REPORTED FAILURE: the role of the critical school psychologist from the perspective of historical-cultural psychology

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11659317


Dra. Patrícia Vaz de Lessa1


RESUMO

O contexto escolar é um ambiente social complexo, no qual as relações se estabelecem, e se faz profícuo para a formação dos estudantes em Psicologia que se interessam pela atuação em Psicologia Escolar e Educacional. Enquanto orientadora de estagio obrigatório, deparo com situações de queixas escolares entrelaçadas às dificuldades nos processos de escolarização, nomeadas equivocadamente e, estudantes indicados ao fracasso. Para este artigo, apresento a experiência das atividades desenvolvidas no estágio obrigatório em Psicologia Escolar e Educacional, de estudantes de Psicologia de um Centro Universitário no Norte do Paraná, com objetivo de intervir no processo de escolarização de crianças no contexto escolar e, investigar quais os sentimentos envoltos sobre as dificuldades escolares. São apresentados um recorte das atividades em grupo com a turma do 3º ano da educação básica, indicada pela direção da escola, as quais contemplavam atender as necessidades apresentadas pelas demandas identificadas por observação participante e relatos da equipe pedagógica. Concluindo, foi possível observar, estudantes engajados na realização das propostas, nas atividades de rotina escolar, propiciando melhor socialização e empatia entre si, exercitando a expressão, as habilidades sociais e, o reconhecimento das próprias emoções nas diversas situações.

PALAVRAS-CHAVE: Queixas Escolares. Fracasso Escolar. Atuação do Psicologia Escolar. Psicologia Escolar Crítica. Psicologia Histórico-Cultural.

ABSTRACT

The school context is a complex social environment, in which relationships are established, and it is conducive to the formation of students in Psychology who are interested in working in School and Educational Psychology. As a mandatory internship supervisor, I come across situations of school complaints intertwined with difficulties in the schooling processes, mistakenly labeled, and students destined for failure. For this article, I present the experience of activities carried out in the mandatory internship in School and Educational Psychology, by Psychology students at a University Center in the North of Paraná, with the aim of intervening in the schooling process of children in the school context and investigating the feelings involved in school difficulties. A snapshot of group activities with the 3rd grade class of basic education, indicated by the school’s management, is presented, which aimed to address the needs identified through participant observation and reports from the pedagogical team. In conclusion, it was possible to observe students engaged in carrying out the proposals, in school routine activities, promoting better socialization and empathy among themselves, practicing expression, social skills, and recognizing their own emotions in various situations.

KEYWORDS: School Complaints. School Failure. School Psychology Practice. Critical School Psychology. Historical-Cultural Psychology.

INTRODUÇÃO

A Psicologia enquanto ciência possui um vasto campo de aplicação e atuação, e, dentre eles está o campo Escolar e Educacional, cuja as várias escolas da Psicologia norteiam teórico- metodologicamente a atuação dos profissionais em instituições educativas e escolares. Segundo a Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, ABRAPEE, o objetivo da Psicologia Escolar e Educacional consiste em analisar, descrever e intervir em processos de ensino-aprendizagem, atuando em instituições escolares e educativas, bem como se dedicando ao ensino e à pesquisa na interface Psicologia e Educação. Algumas das temáticas de estudo, pesquisa e atuação profissional no campo da psicologia escolar são: processos de ensino e aprendizagem, desenvolvimento humano, escolarização em todos os seus níveis, inclusão de pessoas com deficiências, políticas públicas em educação, gestão psicoeducacional em instituições, avaliação psicológica, história da psicologia escolar, formação continuada de professores, dentre outros.

Segundo Andaló (1984), o psicólogo escolar seria um agente de mudanças dentro da instituição- escola, como um elemento catalizador de reflexões, um conscientizador dos papéis representados pelos vários grupos que compõem a instituição. Segundo a referida autora, o trabalho do psicólogo deve ser feito junto à direção da escola, corpo docente, equipe pedagógica e demais atores, orientando-os como lidar com as questões que emergem no contexto escolar.

Para Lessa (2010, 2014), qualquer que seja a natureza do problema, a saber, relacionadas à cognição, família, desenvolvimento, emoções e sociabilidade, o psicólogo sempre deve procurar conscientizar os atores escolares da realidade concreta vivida, provocando a reflexão sobre os seus objetivos e expectativas em relação ao estudante, analisando conjuntamente o tipo de relação existente entre eles, assim como a realidade concreta vivida.

Dessa forma, Segundo Martins (2003), em vez de abordar os problemas escolares centrando seu olhar sobre os alunos, o psicólogo atuaria sobre as relações que se estabelecem neste contexto, levando em consideração o meio social em que estas relações estão inseridas e o tipo de clientela que atende, assim como os grupos que a compõem. Neste sentido, o foco, portanto, passa a ser o processo de escolarização e não o aluno.

Souza (2007) afirma que a escola deve ser incluída na investigação, ampliando a compreensão da construção da queixa e intervir nesta, e ainda, considera que as críticas na área da Psicologia Escolar necessitam buscar a superação de uma atuação pautada na visão psicométrica com as contribuições de laudos psicológicos; nas explicações ao fracasso baseadas na teoria da carência cultural; e no modelo clínico de atuação no atendimento à queixa escolar.

Cabe ressaltar que a Psicologia construiu história com processos focados no sujeito, no entanto, a evolução da sociedade, da ciência e da pesquisa, evidencia um movimento necessário a fim de atender, dar olhar e espaço para processos de aprendizagem fora do que se considerava adequado e padrão. Em uma sociedade que preza pelo respeito à diferença não cabe processos de avaliação e intervenção focados no indivíduo.

Diante da realidade, a Psicologia também se apresenta em um movimento de mudanças e transformações teórico-metodológicas ao longo de sua história: de um modelo tradicional, baseado em uma intervenção clínica, medicalizante, que utilizava a psicometria como instrumento de avaliação, partindo para uma visão mais ampla do processo de escolarização e da sociedade.

Nesta direção, ao se referir às queixas escolares, Proença (2002) afirma que, historicamente as avaliações e intervenções tinham característica, na grande maioria das vezes, de culpabilizar as crianças, dando explicações sem considerar o processo de escolarização que produziu tal queixa. Na perspectiva de um olhar crítico, considera-se que os rótulos impostos aos alunos como aqueles que são desinteressados, apáticos, entre outras adjetivações, e que os acompanham vida afora podem provocar a cristalização dos personagens na escola, não possibilitando conhecer os fatores multideterminados que levam ao não aprendizado. Desta forma, a intervenção com um enfoque crítico questiona a culpa imposta ao aluno pelo fracasso e direciona sua análise para as questões mais amplas, incluindo a qualidade do ensino, os preconceitos, os estereótipos existentes no contexto escolar, na busca da compreensão desse homem concreto, que se constitui nas relações sociais.

Os pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural primam pela superação de uma Psicologia guiada pela lógica formal, contribuindo para compreender os fenômenos escolares e o desenvolvimento do psiquismo a partir da lógica dialética. Nesta perspectiva teórica, é o historicismo que engendra a compreensão do desenvolvimento do psiquismo, conforme Shuare (2017). A Pedagogia Histórico-Crítica, através do seu representante Saviani (2003), traz para o centro do debate a compreensão de que a escola está vinculada à forma como a sociedade está organizada, aos interesses do capital, e defende a socialização do conhecimento, contribuindo para o processo de humanização dos alunos.

Nesta linha de atuação pautada na Psicologia Histórico-Cultural, fundamentada no materialismo histórico e dialético, o psicólogo passa a entender o homem como “síntese das relações sociais”, conforme destaca Saviani (2004). “O homem passa a ser entendido como um sujeito concreto, que carrega, em seu psiquismo, marcas da história da humanidade e da sua própria história, isto é, um homem que resulta da filogênese e da ontogênese e que, para se humanizar, necessita se apropriar dos bens materiais e culturais já produzidos” (Lessa, e Facci, 2011, p. 134).

Sob os pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural, o Psicólogo Escolar pode promover uma atuação, que vai na contramão da visão tradicional do ideário liberal, aliada na defesa da compreensão  do  desenvolvimento  humano  no  processo  educativo,  por  considerar  a historicidade como centro do sujeito que produz e é produzido pelas condições materiais e históricas.

METODOLOGIA

O estágio obrigatório desenvolvido pelos estudantes do 4º ano de Psicologia de um Centro Universitário no Norte do Paraná, teve como objetivo delimitado: observar os alunos da educação básica, considerando todo o contexto social da criança, intervindo junto aos alunos, professores e pais, na busca de identificar os aspectos envoltos às dificuldades e os relatos de fracasso no processo de aprendizagem, assim como os sentimentos e as condições dificultadoras da aprendizagem.

O estágio foi desenvolvido semanalmente pelos estudantes de Psicologia, e teve como objeto de estudo as manifestações das queixas e dificuldades escolares, assim como os sentimentos envoltos às queixas. Neste artigo, apresento um recorte das atividades realizadas em grupo com os estudantes, as quais contemplavam atender as necessidades apresentadas através do relato e da coleta de demandas, por observação participante, sobre as diversas questões.

Foram observadas na rotina da sala de aula: o modo de se relacionar com os colegas e professores, a forma de organizar estudo, a autoestima, a maneira como se comporta diante de novas situações, como a criança se sente em relação à escola, sua interação social e seu desempenho de acordo com as atividades desenvolvidas na sala de aula. Ainda, com as observações, seria possível analisar qual a concepção que o professor possui sobre os sentimentos da criança com dificuldade na aprendizagem, verificar junto à criança a concepção da queixa e como foi construída, e constatar a forma como se chegou ao diagnóstico da queixa apresentada.

Na coleta de informações, os estudantes de Psicologia tiveram a oportunidade de trabalhar diretamente com as crianças, com os professores, com a equipe pedagógica e também com as famílias, na busca de identificar as queixas trazidas de casa e como as mesmas foram construídas ao longo do processo de escolarização dessas crianças, e, os sentimentos expressos pelas crianças frente às dificuldades e desafios no contexto escolar.

Como atividades, direcionadas às crianças, desenvolvidas pelos estudantes de Psicologia estavam: as diversas formas de levantamento de dados sendo por observação e registro em diário de campo, dinâmicas em grupo, atividade escrita, atividades para expressão da fala, músicas com expressão corporal de ritmo, velocidade, intensidade e emoção, discussão sobre assuntos de interesse do grupo, considerando habilidades necessárias a serem desenvolvidas na formação do Psicólogo Escolar.

Após a identificação das demandas, através da observação participante, as intervenções foram planejadas em cronograma por eixos de temas, com a possibilidade de ajustes caso necessário ao longo do ano letivo. Para alcançar tais objetivos, estivemos ancorados teórico- metodologicamente na perspectiva da Psicologia-Histórico-Cultural, que tem por epistemologia o sujeito histórico, que se constitui na relação com a história e a cultura.

DESENVOLVENDO PESSOAS

Neste item, apresentamos algumas das atividades e dinâmicas desenvolvidas pelo grupo de estudantes de Psicologia frente às demandas identificadas junto à turma, professores e equipe pedagógica. Conforme mencionado acima, apresento neste artigo, apenas o recorte das atividades com as crianças, embora professores, equipe pedagógica e responsáveis tenham também participado de momentos com os estagiários. A partir das observações, as demandas foram analisadas e as atividades foram organizadas por eixos, como: autoconhecimento, auto estima, empatia, respeito, emoções, regulação emocional, habilidades sociais, assertividade, violência, Bulling, e trabalho em grupo. Assim, algumas das atividades desenvolvidas com as crianças foram:

  • “Conhecer uns aos outros”: Foi pedido às crianças que fizessem um desenho delas mesmas do jeito que elas quisessem, e colocassem suas características para depois se apresentarem para os colegas. O objetivo era fazer uma atividade para as crianças se apresentarem e tornar possível a observação da relação que elas estabelecem umas com as outras e a capacidade de falarem de si mesmas. As crianças se desenharam, no lugar, forma e jeito que elas quiseram, pintando e usando a criatividade para retratar o jeito que elas se veem. Para fechamento, cada criança se apresentou destacando suas características.
  • “Duas histórias ao mesmo tempo”: O objetivo era fazer com que as crianças percebessem que não há como conversar e aprender ao mesmo tempo. Duas pessoas contavam duas histórias diferentes ao mesmo tempo. Depois foram perguntadas quantas entenderam cada história, e quem não entendeu nenhuma, promovendo a discussão sobre esse impasse. Na sequência, as crianças escolheram uma das histórias para ser contada sem interferência de outra.
  • “História Continuada”: O objetivo era promover a interação entre as crianças, provocando, com a situação de uma história, o respeito pela vez do colega falar. Os estagiários (as) separaram algumas imagens recortadas referentes ao número de estudantes, e foram tirando uma por uma de dentro da bolsa. Cada imagem que saísse da bolsa, o estudante deveria continuar a história que foi começada, mas colocando aquele objeto dentro da história, sem a intromissão dos colegas. O exercício de esperar a vez para falar não foi fácil, pois essa dificuldade se apresentava nas situações do cotidiano da aula. Ao final, alguns ainda apresentavam a intromissão enquanto os colegas falavam.
  • “Super Herói”: Com o objetivo de que os alunos se identificassem com os super-heróis e percebessem algumas características pessoais para então, mostrar à turma. Foi entregue a cada aluno uma folha e pedido para que desenhasse o super-herói que eles escolhessem. Ao final, cada criança apresentou seu super-herói e comentou a escolha.
  • “Bastão da Palavra”: O objetivo era fazer com que as crianças respeitassem a vez do colega de falar. O Bastão da Palavra que, foi uma boneca feita pela estagiária, era o objeto que representava a vez de falar daquele que estivesse com ele em mãos. Seguidamente, as crianças tiveram dificuldades em esperar a vez do colega falar. O bastão da palavra ficou à disposição na sala de aula como recurso que a professora poderia utilizar no dia-a-dia.
  • “Autorretrato”: O objetivo era fazer com que as crianças olhassem para si e contasse um pouco mais como elas são. Cada criança deveria fazer um autorretrato, escrever uma frase ou uma palavra para se descrever. Ao final, em roda, aqueles que quiseram, comentaram suas características.
  • “Mãos com qualidades e defeitos”: O Objetivo foi destacar as qualidades das crianças, porém, fazendo-as pensar também em seus defeitos. Em uma folha sulfite as crianças desenharam sua mão. Em quatro dos dedos da mão elas escreviam uma qualidade em cada dedo, no dedo mindinho eles deveriam escrever um defeito deles. Após todos escreverem, apresentaram para o grupo e debateram se o grupo concordava com a descrição.
  • “Escravos de Jó”: O objetivo era fazer com que os alunos praticassem sua coordenação motora, o trabalho em grupo, e a flexibilidade para lidar com possíveis situações de conflitos. A sala foi dividida em 3 grupos com um estagiário em cada, foi realizada a brincadeira “escravos de Jó”. A atividade levou tempo para ser dominada pelos grupos, que pediram para repetir varias vezes. Ao final, foi a tentativa de juntar a sala para a dinâmica em conjunto e, como o tempo estava avançado, foi combinado a continuação desta atividade na próxima semana. Esta atividade ficou como uma das preferidas da turma, pois vez ou outra solicitavam a repetição.
  • “Carinhas dos sentimentos”: O objetivo era formar frases de acordo com as emoções expostas e aprender e discriminar emoções em diferentes aspectos. Em uma folha de sulfite as crianças tiveram que escolher duas emoções (representadas por carinhas/emojons do WhatsApp) que estavam coladas na lousa, em seguida montar duas frases de acordo com as emoções escolhidas. Ao final, as crianças leram as frases formadas e apresentaram quais emoções escolheram para escrever. Essa atividade ficou como uma das preferidas, sendo lembrada e solicitada pelas crianças em outros momentos.
  • “Desenho do amigo de sala”: O objetivo da atividade foi ressaltar as qualidades e minimizar os defeitos, então, as crianças desenharam o colega e apresentaram duas qualidades do mesmo. Foi pedido às crianças que fizessem duplas para a realização. Ao final, muitas qualidades foram elencadas e ressaltadas, deixando de lado os defeitos e pontos para conflitos.
  • “Jogo dos sentimentos”: utilizar as cartinhas que contém questionamentos assim, cada criança responde à pergunta e dá um exemplo de uma situação no ambiente escolar e em casa que já aconteceu e o sentimento envolto à situação.
  • “Jogo da memória dos sentimentos”: funciona como um jogo de memória, onde as cartas são dispostas na mesa, viradas para baixo e o jogador deve encontrar o par da carta. Se o jogador errar, vira as duas cartas e começa a busca novamente. Esse formato pode ser jogado em duplas. Nesse caso, os sentimentos foram escritos para exercitar a leitura e escrita, mas poderiam ser através dos emojons do WhatsApp, tão conhecido pelas crianças.
  • Roda de conversa sobre violência: algumas perguntas geradoras: o que é violência? Como evitar violência? Quais os comportamentos alternativos nas situações de violência? Quais as consequências de reagir a violência com violência? qual a sua opinião sobre violência? Cite as formas de violência que você conhece.
  • Técnicas de autocontrole e regulação emocional foram treinadas, discutidas e exploradas pelas crianças, como treino de respiração diafragmática e meditação guiada. Emoções como a raiva foi explorada a fim de compreender o momento da emoção e como reagir na situação. Algumas perguntas geradoras foram: o que me deixa em paz? O que me faz sentir seguro? O que me deixa calmo e feliz?
  • Como lidar com: a tristeza, alegria e amor? Encontros para cada emoção: Conversar, expressar situações, desenhar, desenhar e buscar alternativas de enfrentamento; usar a caixa com espelho.
DISCUSSÂO

Frente às demandas, as atividades desenvolvidas, juntamente com a escuta e a observação, buscaram promover o autoconhecimento, auto estima, a capacidade de resolução de problemas, o trabalho em grupo, os relacionamentos interpessoais, bem como facilitar a relação professor- aluno.

Assim, considero que alguns dos temas identificados em fragilidade, no tempo que os estudantes de Psicologia passaram na escola, podem contribuir para a reflexão do que acontece nesse cotidiano.

Na roda de conversa sobre violência, por exemplo, as crianças mencionaram situações ocorridas em casa, junto à família e também na escola, como por exemplo, como forma de castigo para aquele que fizer bagunça, deverá assistir o documentário ou filme com as mãos em cima da mesa, sem se mexer, olhando fixamente para a TV ou de costas. Segundo as crianças, essa forma de controlar o comportamento para não ocorrer bagunça, não funciona e preferem quando são requeridos a dialogar sobre o que está acontecendo que está provocando tais bagunças.

Em determinadas situações, a visão da equipe pedagógica vai ao encontro de concepções que discriminam e estigmatizam as crianças, sendo pelo local onde residem, ou por motivos que justificam o distanciamento e negligencia das famílias. Outra estratégia utilizada pela professora, no que se refere à bagunça, era colocar de castigo a sala toda no horário do recreio, e com o passar do tempo, somente quem fizesse bagunça ficava na sala. Infelizmente, percebe- se que as práticas arcaicas e históricas, aprendidas pela cultura, ainda estão arraigadas no cotidiano da escola, mesmo que não sejam funcionais em uma sociedade atual.

Ressalto ainda que, numa perspectiva crítica de atuação é imprescindível conceber as dificuldades por outra perspectiva, levando em conta todos aqueles que fazem parte desse contexto: criança, família e comunidade escolar, buscando compreender as queixas de forma mais ampla e propor intervenções efetivas, que validem tanto o estudante, quanto o ambiente escolar. 

Diante do trabalho desenvolvido, e retomando a proposta inicial deste artigo, incitamos a conclusão de que, as queixas e o fracasso foram anunciados equivocadamente pela equipe. As atividades desenvolvidas e, poderíamos denominar de experimentos assim como Vigostki denominou, provocaram claramente, possibilidades de desenvolvimento de habilidades e funções mais complexas em todas as crianças independentemente de sua condição social, cultural ou biológica. Assim, como profissional da Psicologia, acredito na potencialidade de todas as crianças numa visão prospectiva, em que todas podem aprender e se desenvolver, sob a ótica de desenvolvimento e de formação de seres humanos.

Como resultados, foi possível observar, estudantes engajados na realização das propostas nos encontros, e até mesmo nas atividades de rotina das aulas, propiciando melhor socialização e empatia entre si, exercitando a expressão, as habilidades sociais e o reconhecimento das próprias emoções nas diversas situações. Momentos de livre expressão, mas com riqueza e qualidade nas relações foram promovidos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A escola é um ambiente social complexo no qual as relações se estabelecem, muitas coisas acontecem, fragilidades e potencialidades emergem, assim como queixas escolares, diante das quais psicólogos são requeridos para atuar. Este campo de atuação traz inúmeras oportunidades de atuação para o psicólogo e concomitantemente a escola é beneficiada por essa atuação. Essa díade se faz na medida em que o profissional tem consciência de seu próprio papel de atuação e a escola por sua vez cria um ambiente facilitador de atuação para o mesmo.

Temas como a medicalização na escola, a patologização dos problemas escolares vem sendo recorrentemente presente nos meios educacionais, e segundo Moysés e Collares (1997) o fracasso escolar acaba sendo atribuído e localização como sendo da criança e mão na estrutura política do país, e estrutura política e pedagógica da escola. Assim, o que acontece é que a instituição escola se isenta da responsabilidade, refletindo o problema na criança: “Em outras palavras, a criança que não aprende na escola é vista como culpada pelo fracasso da instituição escolar”(Moysés e Collares, 1997, p. 147)

Além disso, Moysés e Collares (1996) mencionam a existência de preconceitos[2] no sistema educacional, mitos, automatismo, pragmatismo, juízos prévios sobre o aluno e sua família, diagnósticos que são realizados pelas professoras, que dificultam a transformação do sistema escolar. Assim, a escola enquanto instituição inserida nesse meio social, integrante de um sistema sociopolítico concreto, “[…] apresenta-se como vítima de uma clientela inadequada” (Moysés e Collares, 1996, p. 27).

Segundo as autoras é bastante conhecido na história da humanidade o processo de transformar as questões sociais, que haviam se transformado em foco de conflito, em biológicas, resultando o chamado processo de biologização. “Nesse processo, sempre houve o respaldo de uma ciência de matriz positivista, cujos interesses coincidem com os de uma determinada classe social” (Moysés e Collares, 1996, p. 27).

Essa forma de biologizar as questões sociais, segundo Moysés e Collares (1996), isenta as responsabilidades do sistema social e, além disso, na escola, coloca como causas do fracasso as doenças das crianças. “Desta forma, desloca-se o eixo de uma discussão político-pedagógica para causas e soluções pretensamente médicas, portanto inacessíveis à Educação” (Moysés e Collares, 1996, p. 28).

A isto, temos chamado de medicalização do processo ensino-aprendizagem. Recentemente, por uma ampliação da variedade de profissionais de saúde envolvidos no processo (não apenas o médico, mas também o enfermeiro, o psicólogo, o fonoaudiólogo, o psicopedagogo), temos usado a expressão patologização do processo ensino-aprendizagem (Moysés e Collares, 1996, p. 28).

Sob este enfoque da medicalização, “os problemas da vida” foram transformados em doenças e distúrbios como: “distúrbios de comportamento”, “distúrbios de aprendizagem”, “doença do pânico” (Moysés e Collares, 1996, p. 75) e outras. De acordo com as autoras, “[…] o que escapa às normas, o que não vai bem, o que não funciona como deveria… tudo é transformado em doença, em um problema biológico, individual” (Moysés e Collares, 1996, p. 75).

Entretanto, as autoras afirmam que problemas psicológicos podem sim comprometer a aprendizagem e neste caso, o tratamento com o psicólogo auxiliaria essa criança a lidar com as questões referentes à sua vida, o seu sofrimento e não tão somente porque não aprende. Na maioria dos casos, se atribui desajustes emocionais às crianças da periferia, visto que vivem num ambiente diferente, com valores diferentes, onde é constantemente agredida pela vida e precisa se defender para sobreviver. “A criança tem que ser forte. Que, agredida, dela se diz que é agressiva” (Moysés e Collares, 1996, p. 142).

E essa escola, o que pode fazer pela criança? O fracasso escolar, segundo Moysés e Collares (1997) é um problema que se constitui institucional, político e pedagógico, “[…] que só pode ser efetivamente enfrentado, superado, por mudanças institucionais nos campos político e pedagógico. Medidas individuais, centradas na criança, são incapazes de atingir os objetivos a que se propõem” (p. 155).

Analisando resultados de pesquisa[3] sobre a visão dos profissionais da educação e as saúde sobre o que pensam sobre a escola, Moysés e Collares (1997) afirmam que ao investigar as causas do fracasso, estas ficam centradas nas crianças e em suas famílias, enquanto a escola fica isenta, ou seja, relegada a segundo plano.

Crianças não aprendem porque são pobres, porque são negras, porque são nordestinas, ou provenientes de zona rural; são imaturas, são preguiçosas; não aprendem porque seis pais são analfabetos, são alcoólatras, as mães trabalham fora, não ensinam os filhos (Moysés e Collares, 1996, p. 26).

A questão do fracasso imposto também é ilustrada por Collares e Moysés (1996) onde a culpabilização e a patologização se tornam evidentes no relato da situação onde a professora encaminhou um aluno, denominado pelas autoras de Reginaldo, para o médico. A professora havia diagnosticado “doenças na cabeça” da criança e não aceitou o laudo médico no argumento de que a médica era incompetente e a criança só seria aceita na escola se fosse medicada.

Moysés e Collares (1996) sinalizam para a freqüência em que ocorrem casos como o de “Reginaldo”, casos estes que têm sua individualidade retirada e as histórias se repetem.

Profissionais que não possuindo uma formação crítica reforçam o “diagnóstico” da existência de uma doença. Professores que baseados nesses diagnósticos identificam facilmente os alunos que vão aprender e aqueles que não vão aprender. Segundo as autoras, é possível observar que os preconceitos e mitos barram até mesmo as discussões com os profissionais envolvidos, no sentido de mudança. Esses preconceitos e juízos recaem sobre o aluno e sua família sem qualquer evidência empírica que confirme sua veracidade. A explicação sobre o fracasso recai sobre o aluno e seus pais, de forma que se propagam ideias tais como: “crianças não aprendem porque são pobres, porque são negras, porque são nordestinas, ou provenientes de zona rural; são imaturas, são preguiçosas; não aprendem porque seus pais são analfabetos, são alcoólatras, as mães trabalham fora, não ensinam os filhos” (Moysés e Collares, 1996, p. 26).

É freqüente ouvirmos dos professores referencias pejorativas ao aluno que não aprende e a seus pais, bem como é comum ouvirmos dos pais considerações do seguinte teor sobre seus filhos que não apresentam bom rendimento escolar: “a cabeça dele não dá para o estudo”, “o estudo não entra”, “ele não é esforçado, só quer brincar” (Patto, 1984, p. 119-120).

Ancorados nos pressupostos da Psicologia Histórico Cultural, enfatizamos que os processos interventivos não devem se restringir ao aluno, mas a toda a estrutura escolar, e coadunando com as defesas de André (1995) sobre a pesquisa etnográfica, afirma que nessa visão de escola, o estudo da prática escolar não cabe numa visão estática, repetitiva e disforme, “mas deve envolver um processo de reconstrução dessa prática, desvelando suas múltiplas dimensões, refazendo seu movimento, apontando suas contradições, recuperando a força viva que nela está presente” (André, 1995, p. 42). A vida escolar tem um dinamismo próprio e requer que as dimensões sejam analisadas nas suas inter-relações a fim de compreender toda a dinâmica social expressa nesse cotidiano escolar.

Na mesma direção, Meira (2003) defende que práticas criticamente comprometidas buscam a compreensão mais aprofundada do fenômeno educacional como síntese das múltiplas determinações no contexto histórico concreto, ou seja, nas relações familiares, nos grupos de amigos, no contexto social e escolar, e, fundamentalmente, a forma como a sociedade está estruturada, as condições de diferentes classes que interferem e produzem as relações sociais. Ao se basear nesta perspectiva crítica para analisar os problemas no cotidiano da escola, não cabe mais a pergunta: “o que a criança tem” ou “o que esse estudante tem que não aprende”, mas sim “como é o campo social que este estudante está inserido no qual a queixa foi produzida”. O foco da análise muda, e passa a ser as diferentes relações e as práticas que produziram a queixa em relação ao aluno.

REFERÊNCIAS

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SOUZA, B. P. (2007). Apresentando a orientação à queixa escolar. Em Souza, B. P. (Org.),Orientação à queixa escolar. São Paulo: Casa do Psicólogo https://abrapee.wordpress.com/sobre/o-psicologo-escolar/


[2] As autoras mencionam problemas de saúde, questões de higiene, desnutrição, disfunções neurológicas, deficiência mental, a falta às aulas, crianças sem família como exemplos de preconceito levantados nas explicações dos profissionais para justificar as dificuldades de aprendizagem. Para aprofundar o assunto, recomendamos a leitura de Moysés e Collares 1996.

[3] Relatos mais detalhados desta pesquisa podem ser encontrados no livro “Preconceitos no cotidiano escolar. Ensino e Medicalização” (1996) São Paulo: Cortez/FE-FCM, UNICAMP e no artigo: “Inteligência abstraída, crianças silenciadas. As avaliações de inteligência”(1997), Revista de Psicologia da USP, n7, vol. 1


1 Graduação em Pedagogia e Psicologia, Mestrado pela UEM, Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano – USP, Pós-Doutorado no mesmo programa. Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Social e Institucional, PSI, da Universidade Estadual de Londrina. Contato: patricia.lessa@uel.br