AS NOVAS FORMAS DE INSTITUCIONALIZAÇÃO EM SAÚDE MENTAL

THE NEW FORMS OF INSTITUTIONALIZATION IN MENTAL HEALTH

LAS NUEVAS FORMAS DE INSTITUCIONALIZACIÓN EN SALUD MENTAL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8374008


Pedro Martini Bonaldo1
Deise Matos do Amparo1
Mariana Lima M. Bonaldo2


RESUMO

Objetivo: identificar a manifestação de novos processos de institucionalização nos serviços substitutivos em saúde mental dado esse movimento histórico de avanços e retrocessos de políticas de saúde mental no Brasil. Métodos: O modelo de pesquisa foi um estudo de caso de uma instituição (CAPS) que cuida dos pacientes com transtornos mentais graves, a metodologia se inspirada no método construtivo-interpretativo. Os pesquisadores realizaram uma entrevista com o gerente do serviço para avaliar a presença ou não de elementos de institucionalização no CAPS. A análise da informação foi feita pela construção de um eixo de análise temático. Resultados: A partir da entrevista nota-se como, em diversos momentos, existe um abismo entre a legislação em saúde mental e a práxis no cotidiano do CAPS. Conclusão: De maneira, geral o processo de institucionalização se mostrou bastante presente nos aspectos organizacionais. O serviço atende uma área com quase cinco vezes mais habitantes do que o preconizado pela legislação, resultando em uma sobrecarga para a equipe de profissionais, o que acaba comprometendo a individualização do atendimento e o acompanhamento terapêutico adequado.

Palavras-Chave: Saúde Mental, Centro de Atenção Psicossocial, Institucionalização.

ABSTRACT 

Objective: to identify the manifestation of new institutionalization processes in substitutive mental health services given this historical movement of advances and setbacks of mental health policies in Brazil. Methods: The research model was a case study of an institution (CAPS) that takes care of patients with severe mental disorders, the methodology was inspired by the constructive-interpretative method. The researchers conducted an interview with the service manager to assess the presence or absence of institutionalization elements in the CAPS. The analysis of the information was carried out through the construction of a thematic analysis axis. Results: From the interview, it can be seen how, at different times, there is an abyss between mental health legislation and daily practice at CAPS. Conclusion: In general, the institutionalization process was very present in the organizational aspects. The service serves an area with almost five times more inhabitants than that recommended by law, resulting in an overload for the professional team, which ends up compromising the individualization of care and adequate therapeutic follow-up.

Key words: Mental Health, Psychosocial Care Center, Institutionalization.

RESUMEN

Objetivo: identificar la manifestación de nuevos procesos de institucionalización en los servicios sustitutivos de salud mental frente a este movimiento histórico de avances y retrocesos de las políticas de salud mental en Brasil. Métodos: El modelo de investigación fue un estudio de caso de una institución (CAPS) que atiende a pacientes con trastornos mentales graves, la metodología estuvo inspirada en el método constructivo-interpretativo. Los investigadores realizaron una entrevista con el gerente del servicio para evaluar la presencia o ausencia de elementos de institucionalización en el CAPS. El análisis de la información se realizó a través de la construcción de un eje de análisis temático. Resultados: A partir de la entrevista, se puede apreciar cómo, en diferentes momentos, existe un abismo entre la legislación en salud mental y la práctica cotidiana en los CAPS. Conclusión: En general, el proceso de institucionalización estuvo muy presente en los aspectos organizacionales. El servicio atiende un área con casi cinco veces más habitantes de lo recomendado por la ley, lo que genera una sobrecarga para el equipo profesional, lo que termina comprometiendo la individualización de la atención y el adecuado seguimiento terapéutico.

Palabras clave: Salud Mental, Centro de Atención Psicosocial, Institucionalización.

INTRODUÇÃO 

Ao abordar sobre saúde mental, faz-se necessário refletir sobre a Reforma Psiquiátrica no Brasil (RPB). Refletir sobre RPB implica repensar o papel do indivíduo com problemas psíquicos e o estigma associado à loucura na sociedade, uma noção em constante evolução. Infelizmente, ainda persiste o processo de exclusão social de pessoas rotuladas como loucas, deficientes, incuráveis e criminosas. Esta lógica tece o manicômio, como descreve Foucault (1987), baseado na segregação, controle, repressão, disciplina e normas. Além das instituições totais, é importante considerarmos a existência de uma lógica manicomial presente tanto na sociedade como em diversas outras instituições, estendendo-se para além dos hospitais psiquiátricos. De acordo com Ferreira Oliveira (2009), a lógica segregacionista se revela através de diferentes atitudes e comportamentos que influenciam as relações entre profissionais de saúde mental e usuários de serviços públicos ou privados. Essas relações estão inseridas em um sistema que objetifica o indivíduo, identificando-o principalmente como um doente mental. O termo “lógica manicomial” é utilizado porque os manicômios historicamente foram o centro de tratamento de pacientes psiquiátricos e é nesse contexto que se desenvolveu a prática clínica que fundamenta o conhecimento psiquiátrico sobre a doença mental. Sendo assim, a lógica manicomial pode estar presente dentro de muitos contextos, incluindo contextos que não necessariamente se configurem como de saúde.

Importante frisar que, para além de uma medicina que se apropria do fenômeno loucura, temos, sobretudo no século XIX, a emergência e o fortalecimento de um modelo biomédico que tem como características: a) dividir mente e corpo, não associando uma coisa com a outra; b) pressupor que a doença resulta de um patógeno: um vírus, uma bactéria ou algum microrganismo que invade o corpo; c) por último, o paradigma não faz menção aos fatores psicológicos, sociais ou comportamentais que estejam no processo do adoecimento (Tesser, 2010). Esse modelo de saúde também dá sustentação para uma psicologia centrada na mensuração do comportamento, reproduzindo um suposto ideal de objetividade, controle e verificação muito presentes nas ciências naturais e positivistas daquele momento (González Rey, 2012). Consequentemente, o saber médico se apodera do fenômeno loucura, bem como outros saberes, tais como: psicologia, neurologia, psiquiatria, fisiologia e anatomia. Nessa perspectiva, o psiquismo passa a ser tratado como um objeto das ciências naturais.   

No Brasil tivemos, por anos, um sistema de saúde mental focado nos Hospitais Psiquiátricos, sendo que apenas a partir da década de 1970 é que a Reforma Psiquiátrica começa a acontecer, a partir da presença marcante dos movimentos sociais, composto por sindicalistas, trabalhadores do movimento sanitário, associação de familiares e pacientes que foram internados por uma longa data. Também é importante destacar outros marcos da Reforma Psiquiátrica Brasileira, como o II Congresso Nacional do Movimento de Luta Antimanicomial, na cidade de Bauru, com o lema: “Por uma sociedade sem manicômios”, em 1987; a experiência do primeiro Cento de Atenção Psicossocial (CAPS) na cidade de São Paulo, em 1987; o Projeto de Lei do deputado Paulo Delgado, de 1989, que tratava sobre os direitos dos usuários dos serviços de saúde mental e a progressiva substituição dos manicômios; a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) , em 1988, com participação popular através dos “Conselhos Comunitários de Saúde” (Brasil, 2007). Tais iniciativas foram imprescindíveis para criação de linhas de financiamento para saúde mental, aumento considerável do número de CAPS e fechamento de diversos hospitais psiquiátricos. Para se ter uma comparação, em 1997 os gastos hospitalares com Saúde Mental representavam 93% e os gastos com serviços extra hospitalares em Saúde Mental eram de 6,86%. Já em 2007, temos uma mudança para 64,84% e 36,16% respectivamente (Brasil, 2005).

No âmbito do Distrito Federal (DF), a saúde mental enfrenta diversos desafios, principalmente devido ao número insuficiente CAPS e a falta de recursos que compõem a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Como exemplo das dificuldades que o DF encontra ao tentar implementar um modelo de atenção em saúde mental, temos o Hospital Psiquiátrico São Vicente de Paulo, que deveria ter sido extinto há pelo menos 20 anos, conforme Lei Distrital nº 975 de 12 de dezembro de 1995, mas que ainda é uma organização em funcionamento com pelo menos trezentos servidores. Além disso, não existem residências terapêuticas, nem centros de convivência públicos, ambos previstos na legislação, (Portaria Nº 3.088, 2011, 23 dezembro). 

O CAPS II, estudado nesta pesquisa, segundo Portaria nº 336, deveria cobrir uma área de 70 a 200 mil habitantes. A referida instituição da pesquisa cobre uma área com um total de 900 mil habitantes, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019), bastante em desacordo com o que preconiza a portaria. Em termos de abrangência, o CAPS é um dos dispositivos da Reforma Psiquiátrica Brasileira, e deveria considerar não o território da pessoa, mas o que Zerbetto (2016) chama de território existencial.

Como se esses dados não fossem suficientemente alarmantes, segundo Movimento Pro-Saúde Mental do DF (2013), o número de CAPS exigidos em 2013 era de 46, mas existiam somente 15. Hoje, em 2020, existem 18 CAPS.  Nesse período (de 2013 a 2018), diversos CAPS foram fechados, alguns foram abertos e outros reformulados. Considerando que a população do DF em 2013 era de 2,7 milhões e hoje contamos com uma população de mais de 3 milhões, acredito que o número de CAPS exigido deveria ser ainda maior que 46, pois não atingiria nem 40% do número que era previsto em 2013. Isto porque 46 CAPS seriam no contexto do DF com uma população menor e consequentemente com uma demanda menor em saúde mental (Santiago, 2009).

Segundo Delgado (2019), nos anos de 2018 e 2019, a Saúde Mental começa a passar por grandes retrocessos. A nova política de saúde mental tem como propostas: inclusão dos hospitais psiquiátricos nas RAPS; financiamento para compra de aparelhos de eletroconvulsoterapia, possibilidade de internação de crianças e adolescentes e abstinência como a principal opção da política de atenção às drogas com preponderância frente a redução de danos e a ampliação das comunidades terapêuticas, essas geralmente religiosas com um tratamento baseado no trabalho forçado (laborterapia) e na religião (Mendonça, 2018). Dessa forma, o objetivo desta pesquisa foi de identificar a manifestação de novos processos de institucionalização nos serviços substitutivos em saúde mental dado esse movimento histórico de avanços e retrocessos de políticas de saúde mental no Brasil. 

MÉTODOS

O método proposto nesta pesquisa se inspirou no construtivo-interpretativo, que se fundamenta na Epistemologia Qualitativa (González Rey, 2005). No método construtivo-interpretativo, segundo González Rey (2007), a função do pesquisador é permitir a construção de um diálogo progressivo e organicamente organizado. Neste diálogo, cria-se um ambiente de segurança, confiança e interesse que favoreceram os níveis de conceituação de experiências pouco comuns na vida cotidiana.

A característica construtiva-interpretativa que a pesquisa usa fez com que algumas dicotomias naturalizadas fossem superadas, principalmente por entender o pesquisador como alguém que constrói a informação. Na perspectiva desta pesquisa, entende-se que o pesquisador vai a campo para construir suas hipóteses, que ele e o participante da pesquisa se engajam em um diálogo onde sentidos subjetivos serão construídos, utilizando-se de um determinado instrumento (como por exemplo completar frases, ou outros instrumentos que podem ser desenvolvidos ao longo do contato). Esta produção depende de características do participante e do pesquisador e, também da forma como o momento dialógico se configurou mobilizando diferentes produções subjetivas como a criatividade e a espontaneidade. O principal instrumento de pesquisa neste referencial teórico é o diálogo, que se traduziu nesta pesquisa como uma entrevista aberta com o gerente do CAPS.

O modelo de pesquisa foi um estudo de caso de uma instituição (CAPS) que cuida dos pacientes com transtornos mentais graves. A pesquisa ocorreu em um CAPS II (Centro de Atenção Psicossocial) que pertence a Secretaria de Saúde do Distrito Federal. O CAPS é um local de tratamento de sofrimento psíquico grave e persistente e constitui-se como uma estratégia fundamental para a Reforma Psiquiátrica Brasileira, sobretudo por ter como responsabilidades atender os casos graves e ordenar a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)

O estudo de caso foi pautado na compreensão da forma singular de organização do CAPS. O participante da pesquisa foi o gerente do CAPS e foi esclarecido quanto aos objetivos da pesquisa e assinou o termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Dessa forma, utilizou-se como instrumentos de análise: 1. Entrevista com o gerente do CAPS. Na interação com este participante foram investigados os aspectos institucionais do CAPS. Essa estratégia facilitou uma aproximação com o modelo de subjetividade social do CAPS, suas contradições, seus acertos e suas limitações.

O seguinte projeto já foi aprovado em dois comitês de ética, sendo eles: Comitê de Ética do Centro Universitário de Brasília – UNICEUB, com parecer número 3.020.436 e CAAE número 96597518.6.0000.0023; e Comitê de Ética da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde/ Fepecs/ SES/ DF, parecer número 1.932.683 e CAAE número 63665616.1.0000.5553.

A análise da informação foi feita pela construção de um eixo de análise temático, isto é, construções dos pesquisadores que se organizam após o trabalho de campo e as análises das informações. Tal eixo foi nomeado: “A diferença entre as políticas públicas segundo a lei e sua expressão na assistência”.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A partir da entrevista nota-se como, em diversos momentos, existe um abismo entre a legislação em saúde mental e a práxis no cotidiano do CAPS. A seguir os trechos que corroboram essa construção.

A diferença entre as políticas públicas segundo a lei e sua expressão na assistência.

Apresenta-se a seguir trechos dos diálogos com o então gerente do CAPS, representado pela inicial I.C.

Pesquisador: Olá I.C, gostaria de fazer algumas perguntas para conhecer a instituição. Este CAPS é um CAPS do tipo II. Gostaria de saber quantos usuários de saúde mental vocês acompanham e quais a regiões que o CAPS dá assistência?

I.C: Olá, Pedro. O CAPS atualmente cobre as seguintes regiões: Taguatinga, parte de Ceilândia, Sol Nascente, Vicente Pires, Pôr do Sol, Águas Claras, Areal e Arniqueiras.

Pesquisador: Certo. Quantos usuários vocês acompanham por mês?

I.C: Temos atualmente 1.561 prontuários ativos, isto é, pessoas que de alguma forma são acompanhadas no CAPS seja em oficinas, consultas ambulatoriais, visitas, dentre outros procedimentos.

Pesquisador: Quantos profissionais vocês têm na equipe?

I.C: Atualmente contamos com 29 profissionais, dentre técnicos e assistentes administrativos. 

Para podermos dar inteligibilidade em relação à compreensão de diferentes processos relacionados às práticas do CAPS, precisamos também entender que tipo de instituição estamos falando. O CAPS II, como trazido na introdução, segundo Portaria nº 336 (2002), trata-se de uma instituição para atender uma área de 70 a 200 mil habitantes. No entanto, segundo o gerente, a referida instituição atende diversas regiões administrativas do DF. Juntas, essas áreas têm quase 900 mil habitantes, segundo o IBGE (2019). Ou seja, o que vemos na prática é que este CAPS funciona muito acima da capacidade do que conseguiria de fato atender. O serviço atender uma demanda maior do que preconiza a lei pode parecer algo presente na Saúde Pública, mas é necessário entender que o CAPS preconiza um atendimento individualizado e com constante revisão dos procedimentos, técnicas e atendimentos aplicados. Então, certamente isto é uma grande contradição e quebra a lógica da saúde mental, fazendo com que os procedimentos tendam mais protocolares, isto é, mais generalistas. O fato de a equipe ser pequena e o CAPS estar trabalhando muito acima do que preconizam as portarias, faz com que exista uma precarização das práticas, bem como prejudique o usuário de saúde mental como um todo. O usuário de saúde mental precisa de um atendimento individualizado e, muitas vezes, estratégias para além de um atendimento ambulatorial, um acompanhamento terapêutico e visitas domiciliares. Todavia, quando se está sobrecarregado geralmente o que acontece com os serviços é apostar em estratégias ambulatoriais de maneira muito frequente, além de soluções rápidas para a demanda, como por exemplo, a medicalização como primeiro recurso. Com a não revisão dos Planos Terapêuticos Singulares (PTS), os casos são vistos de maneira simplistas e se perde a chance de responder melhor a demanda em saúde mental. Processo esse que se expressa no trecho a seguir:

Pesquisador: O CAPS prioriza um tipo atendimento que segue o PTS, isto é cada usuário tem um acompanhamento institucional individualizado, como é possível 29 pessoas realizarem o PTS atualizado de 1.561?

I.C: A verdade é que não é possível fazer o acompanhamento individualizado de cada um deles por não termos pessoal suficiente. Fazemos o PTS no acolhimento e sua revisão quando é possível.

Pesquisador: Notei que muitos usuários de saúde mental são encaminhados de um Hospital Psiquiátrico. Como é um serviço substitutivo trabalhando junto com o hospital psiquiátrico?

I.C: Infelizmente são as contradições e dificuldades de se trabalhar na mesma região que um hospital psiquiátrico, sendo este tem mais recursos financeiros e de mão de obra.

Este CAPS recebe e dá encaminhamentos a um Hospital Psiquiátrico. Como discutido na introdução isso é certamente uma grande contradição, no sentido que o CAPS é um dos serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos (manicômios) e, portanto, ele encaminhar ou receber pacientes do Hospital Psiquiátrico apenas o fortalece como um recurso possível, o que não deveria acontecer. Isto, de fato, tem um sentido político no que se refere à luta da Saúde Mental, que não se resume a conviver com os manicômios (hospitais psiquiátricos), mas extingui-los.  

Por outro lado, O Hospital Psiquiátrico tem pelo menos dez vezes mais funcionários que o CAPS II estudado, então seria difícil para o CAPS simplesmente ignorar a existência dele, sobretudo porque o Hospital Psiquiátrico tem mais recursos humanos para lidar com crises agudas. Agora factualmente, enquanto os CAPS dependerem de Hospitais Psiquiátricos, mais difícil será de extinguir os manicômios, então os serviços de Saúde Mental precisam entender os possíveis desdobramentos políticos de continuar de alguma forma trabalhando junto com os hospitais psiquiátricos. Por último, é relevante pontuar que, de acordo com Brasil (2011), a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que deveria substituir manicômios, compreendem: Unidade Básica de Saúde, Equipe de Consultório na Rua, Centro de Convivência, Núcleo de Apoio à Saúde da Família, Centros de Atenção Psicossocial, SAMU 192, Unidade de Acolhimento, Serviços de Atenção em Regime Residencial, dentre outros recursos. Mas a lei é clara, até o primeiro semestre de 2019, em não incluir os hospitais psiquiátricos dentro da RAPS, até para não termos uma contradição lógica. Importante ressaltar, como discutido na introdução, que no segundo semestre de 2019 os hospitais psiquiátricos passam a fazer parte da RAPS, gerando muitas críticas por parte dos profissionais e usuários de saúde mental. Neste trecho temos um indicador da desassistência do usuário de saúde mental: é intrigante como uma instituição com apenas 29 profissionais pode conseguir dar assistência a quase um milhão de habitantes. Certamente é inviável pensar que estes funcionários consigam cumprir o que preconiza a portaria de assistência em saúde mental, visto que muitos destes funcionários fazem apenas a função administrativa e não se envolvem na assistência. Importante recuperar que o CAPS adota um sistema de assistência pautado no Plano Terapêutico Singular), o que implica acompanhar, de maneira singularizada, uma abrangência de 900 mil habitantes e de 1.561 prontuários ativos (como questionado com o gerente). Fica visível por quais razões a instituição pesquisada não consegue desenvolver o PTS de maneira adequada como relatado por I.C. No CAPS em questão, o PTS de fato é feito logo no início de cada acolhimento, mas durante a entrevista com o gerente pude observar que o processo de avaliação e reavaliação não é contínuo, visto que segundo relado por I.C se discute no máximo cinco casos e outras questões administrativas nas reuniões de equipe.

CONCLUSÃO 

Diante dos resultados encontrados na pesquisa, é possível concluir que o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) estudado apresenta uma série de desafios e contradições em relação à legislação em saúde mental e sua práxis no cotidiano. O serviço atende uma área com quase cinco vezes mais habitantes do que o preconizado pela legislação, resultando em uma sobrecarga para a equipe de profissionais, o que acaba comprometendo a individualização do atendimento e o acompanhamento terapêutico adequado. Além disso, a articulação com a comunidade ainda é incipiente, prejudicando a clínica psicossocial proposta pelo CAPS. A presença de uma divisão marcante entre os profissionais e os usuários também é observada, evidenciando aspectos de uma configuração subjetiva institucional manicomial. Esses dados apontam para a necessidade de reavaliação e aprimoramento das práticas e políticas no âmbito da saúde mental, visando garantir um atendimento mais efetivo e humanizado para os usuários.

AGRADECIMENTOS 

Gostaríamos de expressar nossa mais profunda gratidão ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio institucional que tornaram possível a realização deste estudo.

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Universidade de Brasília (UnB), Brasília-DF1

Faculdade Anhanguera de Brasília (FAB), Brasília-DF2