AS “MULATAS” DO RENASCENÇA: UMA CONSTRUÇÃO SOCIAL A PARTIR DA ANÁLISE DAS REPORTAGENS DA REVISTA “O CRUZEIRO”

THE “MULATAS” OF RENASCENÇA: A SOCIAL CONSTRUCTION BASED ON THE ANALYSIS OF REPORTS FROM THE MAGAZINE “O CRUZEIRO”

LAS MULATAS DE LA RENASCENÇA: UNA CONSTRUCCIÓN SOCIAL A PARTIR DEL ANÁLISIS DE REPORTAJES DE LA REVISTA “O CRUZEIRO”

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202412092134


Michelle de Barros Fonseca1


RESUMO:

Este artigo propõe uma reflexão sobre a construção social da “mulata” brasileira e suas diversas representações que a colocam num terreno ambíguo: de um lado, símbolo da beleza brasileira, reflexo da miscigenação e de uma suposta democracia racial; de outro, sua hipersexualização, objetificação e disponibilidade sexual. Tomo como ponto de partida a análise das reportagens da Revista O Cruzeiro sobre os concursos de Miss Guanabara nos anos de 1960 a 1964. Nesse período o Clube Renascença, fundado por famílias negras de classe média, passa a inserir nos concursos de Miss Guanabara suas candidatas mulatas, as Misses Renascença, que até então não figuravam neste cenário, exclusivamente branco, iniciando assim um contradiscurso de resistência da mulher negra. O impacto dessa ação se revela nos discursos das reportagens, que, ao narrarem as disputas de Misses, expõem a presença de uma ideologia proveniente de um passado escravocrata. Procuramos evidenciar representações da “mulata” a partir do Clube Renascença em seu esforço de integração do negro na sociedade brasileira e os desafios encontrados a partir da representação da “mulata” impregnada por um passado escravocrata e racista nos anos sessenta.

Palavras-Chave: “Mulata”. Clube Renascença.  Famílias negras.

ABSTRACT:

This article proposes a reflection about the social construction of the Brazilian “mulata” and her different representations that place her in an ambiguous field. On one side, symbol of the Brazilian beauty, a reflection of the miscegenation and of an alleged social democracy. On the other side, her hyper sexualization, objectification and sexual availability. I take as a starting point the analysis of the features from Revista O Cruzeiro about the Miss Guanabara pageants in the years 1960 to 1964. In this period, Clube Renascença, founded by black middle-class families, starts to submit its “mulatas” candidates to the Miss Guanabara pageant, the “Misses Renascença”, who until then did not appear in this scenario, which was exclusively white, initiating a counter-speech of resistance by black woman. This action impact is revealed in the features’ discourses that, in the Misses competitions accounts, expose the presence of an ideology marked by a past of slavery. We aim to show the “mulata” representations derived from Clube Renascença’s effort to integrate the black people in Brazilian society and the challenges found in the “mulata” representation impregnated with a slavery and racist past in the sixties.

Keywords: “Mulata”. “Clube Renascença”.  Black family.

RESUMEN:

Este artículo propone una reflexión sobre la construcción social de la “mulata” brasileña y sus diversas representaciones que la ubican en un terreno ambiguo: por un lado, símbolo de la belleza brasileña, reflejo del mestizaje y de una supuesta democracia racial; por el otro, su hipersexualización, cosificación y disponibilidad sexual. Tomo como punto de partida el análisis de los reportajes de la Revista O Cruzeiro sobre los concursos de Miss Guanabara en los años 1960 a 1964. Durante este período, el Clube Renascença, fundado por familias negras de clase media, comenzó a incluir sus candidatas en los concursos de Miss Guanabara, las Misses Renascença, que hasta entonces no aparecían en este escenario exclusivamente blanco, iniciando así un contradiscurso de resistencia por parte de las mujeres negras. El impacto de esta acción se revela en los discursos de los reportajes, que, al narrar las disputas de Misses, exponen la presencia de una ideología proveniente de un pasado esclavista. Buscamos resaltar las representaciones de las “mulatas” del Clube Renascença en su esfuerzo por integrar a los negros a la sociedad brasileña y los desafíos encontrados a través de la representación de las “mulatas” impregnadas de un pasado esclavista y racista en los años sesenta.

Palabras Clave: Mulata. Clube Renascença. Familias negras.

INTRODUÇÃO

O objetivo do presente artigo é analisar a construção social da “mulata” brasileira a partir da ambiguidade que o termo apresenta no discurso midiático, ora associado à miscigenação e democracia racial brasileira, ora associado à objetificação e hipersexualização da mulher negra. Para nos aproximarmos da ambiguidade que o termo “mulata” representa, analisaremos a tensão entre duas visões distintas que acompanham o termo a partir de um episódio bem específico: a participação de candidatas negras em concursos de beleza na década de 60 no Rio de Janeiro e sua cobertura pela Revista O Cruzeiro. A primeira visão é representada pela ação do Clube Renascença, clube de famílias negras do Rio de Janeiro, que propunha a inclusão e dignificação dos negros na sociedade; a segunda visão é representada pelas reportagens da Revista O Cruzeiro sobre os concursos de Miss Guanabara realizados entre os anos de 1960 e 1964, nas quais as candidatas negras serão representadas de maneira diferente das candidatas brancas. Observaremos como essas diversas representações da “mulata” irão se revelar e se confrontar. Para o presente artigo realizou-se uma pesquisa bibliográfica sobre a história do Clube Renascença, sua trajetória na luta pelos direitos dos negros e sua participação nos concursos de Miss Guanabara inaugurando a participação feminina negra. Em seguida analisamos a forma como essa inserção das misses “mulatas” foi divulgada pela imprensa da época. Selecionamos a revista semanal ilustrada O Cruzeiro, pelo destaque como periódico de entretenimento nos anos sessenta na Cidade do Rio de Janeiro e pela ampla cobertura dada aos eventos de Miss Guanabara.

No ano de 1960, o Clube Renascença empreendeu uma inovação nos concursos de Miss Guanabara ao inserir entre as concorrentes candidatas “mulatas”, que até então não figuravam neste cenário, exclusivamente branco. Esta inserção marcará um espaço de disputa entre uma ideologia racista já bem consolidada no Brasil, desde o período escravista colonial e a ideologia de igualdade defendida pelos membros do Clube Renascença. Essa defesa pela igualdade será acionada pelo clube a partir de um esforço de integração do negro na sociedade brasileira, através da valorização entre seus membros de elementos como intelectualidade, família e imagem corporal. O Clube Renascença nasceu nos anos cinquenta, a partir de um grupo de famílias negras de classe média, que não encontrava acesso nos clubes do Rio de Janeiro por serem negras. Nessa época os clubes cariocas elegiam suas integrantes mais belas para participarem do Miss Guanabara; portanto, a criação do clube e a posterior inserção de suas candidatas “mulatas” nos concursos de miss representam ações de resistência e integração que irão evidenciar como os negros – e em especial as mulheres negras – eram concebidos socialmente. É no embate entre essa concepção negativa já cristalizada do negro brasileiro com o contradiscurso de resistência do Clube Renascença, acionando seus valores de família, intelectualidade e imagem corporal através de seus associados, que a ambiguidade do temo “mulata” vai se apresentar.  Nas reportagens da revista O Cruzeiro sobre o desenrolar dos concursos de Miss Guanabara, irá se desenvolver uma disputa para além da beleza feminina, uma disputa entre a mulher negra e a mulher branca, que vai abalar o mito da democracia racial e informar como as “mulatas” eram concebidas pela sociedade. A tensão entre os discursos discriminatórios e os contra discursos de resistência do Clube Renascença nos mostra como esse processo de resistência se constituiu. A análise da trajetória do Clube e dos ideais defendidos e seguidos pelos seus associados nos mostram como foi possível para esse grupo atuar num espaço até então exclusivamente branco. Essa atuação representa uma ousadia. A ousadia de exigir uma democracia racial tão propalada, mas não efetiva.

As teorias raciais que colaboraram para uma visão estereotipada dos negros no Brasil são a base para a compreensão da construção social da “mulata” e a ambiguidade que o termo apresenta. Os principais expoentes das teorias raciais no Brasil em fins do século XIX e início do século XX – como Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Nina Rodrigues, João Batista Lacerda, Oliveira Viana e Gilberto Freyre – acreditavam na inferioridade das raças não brancas e na necessidade de seguir valores europeus, na ciência, na estética e na cultura. Esse grupo de intelectuais, como bem elucida Schwarcz (2019, p. 57), ocupava cargos importantes na sociedade brasileira, como médicos, políticos, escritores, professores, juristas. Esses personagens2 definiam, a partir de seu espaço privilegiado, os rumos políticos, econômicos, educacionais e sociais do Brasil. Comungavam do pensamento racialista que estabelecia correlações rígidas entre genética, intelectualidade e aptidões morais. Nesse sentido, a pluralidade de raças e culturas constituía, para a maioria dos autores destacados acima, um grande desafio a ser solucionado, em particular na realidade brasileira. 

As interpretações dessa elite intelectual brasileira estavam baseadas no determinismo biológico de fins do século XIX, que pregava a superioridade racial branca e a degenerescência como fruto da miscigenação com as raças tidas como inferiores. As teorias raciais da ciência europeia ocidental foram amplamente divulgadas e abraçadas como saber fundamental para o progresso brasileiro, pois havia o interesse de utilizá-las na importante e desafiadora tarefa de construção da nacionalidade no pós-abolição e na República recém-proclamada.

Essas teorias foram implantadas aqui de forma original, pois foram adequadas à realidade brasileira a partir das necessidades daquela elite. Essa originalidade do pensamento racial brasileiro consistiu em apresentar a miscigenação com a raça branca como solução para o embranquecimento do Brasil. João Batista Lacerda3, diretor do Museu Nacional, participou do Congresso Universal das Raças em 1911 e nele expressou suas considerações sobre as raças no Brasil e o desafio da formação de uma unidade racial. Naquela ocasião, defendeu a ideia de que o mestiço se encontrava em um local intermediário em relação à sua intelectualidade quando comparado com a superioridade intelectual branca e a inferioridade intelectual negra. Para exemplificar, citava casamentos inter-raciais entre brancos e mulatos que ocupavam posição de destaque na política Republicana. Lacerda acreditava na miscigenação como mecanismo de embranquecimento e como prognóstico positivo para a eliminação do negro em mais um século.

A grande preocupação dessa elite era neutralizar a influência dos negros na formação da identidade étnica brasileira; nesse sentido, as teorias raciais funcionaram como justificativa ideal na manutenção da hierarquia e das desigualdades, mantendo os ex-escravizados nos espaços de subalternidade e inibindo a formação de uma identidade coletiva politicamente mobilizadora entre negros e seus descendentes.

Esse consenso racialista teve desdobramentos com a prática da eugenia no Brasil. A eugenia foi um movimento científico e social forte a partir de 1880.  O termo – que foi criado pelo britânico Francis Galton em 1883 e etimologicamente significa eu: boa e genus: geração – designa a ideologia que defende a superioridade do homem branco europeu e o controle de fatores físicos e mentais através da hereditariedade. A eugenia, como movimento científico, visava nascimentos desejáveis e controláveis entre raças puras ditas superiores. Como movimento social, visava desencorajar uniões e nascimentos indesejáveis. E como movimento intelectual, influenciou e propagandeou uma autopercepção de mácula na origem do povo brasileiro altamente miscigenado, pregando um caminho para a regeneração baseado na assimilação da cultura europeia, do controle da natalidade e do branqueamento.

A partir de 1930 o contexto político brasileiro passará por mudanças e as teorias raciológicas de fins do século XIX serão consideradas ultrapassadas, porém a ideia de inferioridade racial negra continuou subjacente no imaginário social. Nesse contexto o sociólogo Gilberto Freyre4, ao estudar a identidade nacional brasileira, fará sua análise a partir do conceito de cultura e não de raça. Assim ele traz uma visão na qual as três raças formadoras da nacionalidade brasileira apresentam contribuições culturais ao Brasil. Dessa forma ele distancia de sua análise a ideia de degenerescência do mestiço. Em sua obra Casa grande e senzala, apresenta um contexto agrário escravista colonial, em que a miscigenação brasileira surgirá a partir da falta de mulheres brancas na colônia, o que permitiu uma aproximação entre os senhores brancos e suas escravas negras e índias. Aproximação, que segundo Freyre, foi resultado da flexibilidade natural do português. Esse contexto é apresentado num clima de solidariedade e harmonia que não considera as relações assimétricas de poder do período, gerando uma romantização das relações sociais que foram pautadas pelo extermínio, submissão e violência. Freyre é responsável por consolidar o mito que dá origem à sociedade brasileira e que carrega a noção de democracia racial, uma vez que sugere, a partir da união cultural, uma sociedade sem preconceitos.

O panorama da ideologia racial brasileira construído numa base escravocrata é pano de fundo para as análises deste artigo sobre os concursos de Miss Guanabara com a inserção, a partir da década de 60, de candidatas “mulatas” do Clube Renascença. Sem essa compreensão não é possível desvendar os caminhos e os embates travados entre a suposta ideia de democracia racial, tão conclamada, e a verdadeira percepção da negritude brasileira que vigorava entre os brancos. Foi contra essa estratégia de redução dos negros à subalternidade e à desagregação que o clube Renascença estabeleceu seu contradiscurso de resistência, que acionava como estratégias fundamentais entre seus associados negros o investimento na família, na intelectualidade e na imagem corporal. Seus associados buscavam trilhar um caminho contrário ao que se esperava dos negros, de acordo com as teorias raciais, defensoras da degeneração e da inferioridade.

Para dar seguimento a este artigo, falemos um pouco sobre a origem do Clube Renascença, que representa uma ação legítima de superação dos desafios colocados frente aos esforços de integração do negro na sociedade brasileira. De acordo com Giacomini (2006, p. 26), o Clube Renascença foi fundado em 1951 por um grupo de famílias negras de classe média, que tiveram seu acesso negado nos clubes do Rio de Janeiro por serem negras – desse modo, a criação do clube tem caráter de insurgência, uma vez que representa uma reação à discriminação e segregação racial. A autora destaca que, em sua fundação, o clube acionou alguns elementos fundamentais, entre eles a ideia de um clube familiar, a ideia de valorização da intelectualidade de seus integrantes e a ideia de investimento na imagem corporal.

A partir de uma revisão crítica da literatura sobre a família negra realizada por Giacomini (2006, p. 32), é possível estabelecer um imaginário social da família negra a partir de autores como Gilberto Freyre, Roger Bastide, Florestan Fernandes e Thales de Azevedo como sendo uma família desestruturada, incompleta e desorganizada, recaindo sobre a figura masculina a ideia de irresponsabilidade para com a prole e sobre a figura feminina a ideia de mediadora racial a partir do intercurso sexual com o homem branco, e único pilar de sustentação de uma família problemática. Ambos são concebidos como aqueles que não constituem família. Sendo assim, o fortalecimento da imagem de um clube de famílias negras suscitava os sentidos de seriedade, estabilidade, ordem, honra, etc., em contraste com a ideia vigente sobre as famílias negras brasileiras. A autora também ressalta que a atribuição de pobreza e incultura aos negros é ação naturalizada no senso comum e no quotidiano das relações sociais. O Clube Renascença, ao acionar esses elementos dignificadores, inicia um processo de diferenciação dos outros negros, que em sua maioria não dispõem dos mesmos recursos. É importante analisar esse processo de diferenciação/dignificação iniciado pelo clube, não como uma rejeição aos negros em condição marginal, mas como uma rejeição do que socialmente significava, no imaginário social, ser negro.

À época de sua fundação, o Clube Renascença contava com 29 membros, dos quais 9 possuíam títulos de doutor. Como nos anos cinquenta a taxa de nível superior entre pretos e pardos era baixíssima, o grupo fundador do Clube Renascença pode ser considerado uma elite negra. Nas entrevistas realizadas pela autora, a associação entre a intelectualidade e a situação econômica desses fundadores os qualificava como negros “melhores”, que a partir dessa condição foram capazes de romper com estruturas de subalternidade. Outro aspecto importante dessa dignificação era o investimento na imagem corporal, que, assim como a intelectualidade e a ideia de família estruturada, era acionado como estratégia de neutralização dos estereótipos negativos atribuídos aos negros. Sendo assim, roupas e sapatos elegantes, de qualidade e da última moda, penteados bem feitos, roupas muito bem passadas, tudo isso servia a uma etiqueta que ia além do estar bem vestido – era também uma estratégia para apagar o estigma da cor. 

O passado escravista brasileiro criou uma moldura do que significa ser negro no Brasil, moldura criada e fortalecida pela omissão do Estado5. É importante analisar essa diferenciação que o Clube Renascença opera a partir da rejeição de um estereótipo construído e não a partir da rejeição do negro, ou dos negros em condição marginal. É comum atribuir uma ação de deferência ao branco a todo aquele que não se encaixa em uma moldura negativa sobre a condição de ser negro, mas é preciso ir além desta perspectiva e considerar que estes grupos priorizavam a defesa para o negro dos mesmos espaços e qualidade de vida que em uma sociedade racista como a brasileira é naturalmente reservada aos brancos.

Dentro dessa perspectiva, em que o Clube Renascença, constituído por uma elite intelectual negra, visava a quebra de um estereótipo racista a partir de uma diferenciação dentro do grupo negro, é compreensível sua adesão aos concursos de Miss Guanabara. Giacomini (2006, p. 47) nos esclarece que, a partir dos anos sessenta, o clube inaugurou uma nova fase em que se iniciou uma integração maior com a elite branca, num projeto de competição entre misses de igual para igual. Antes disso, os concursos de beleza promovidos pelo clube tinham a mesma importância de outros eventos internos, como saraus literários, coquetéis, etc. A princípio, os concursos de Rainha da Primavera e Miss Elegante, assim como os bailes de debutantes realizados pelo clube, tinham o objetivo de entreter e divertir internamente seus associados, além de valorizar as mulheres do clube como boas esposas e companheiras. A adesão do Clube Renascença aos concursos de miss pressupõe a crença de que os valores atribuídos a uma miss estão naturalmente presentes em suas integrantes, pressupõe a ideia de igualdade entre as candidatas, que será questionada não de forma direta, mas nas entrelinhas do discurso das reportagens da revista O Cruzeiro.

Os valores acionados na fundação do clube – valorização da família, intelectualidade e imagem corporal – podem ser traduzidos nas características fundamentais de uma miss, como recato/elegância, inteligência e beleza. A miss “mulata” Renascença possui os atributos necessários para ser uma miss Guanabara – porém é preciso destacar que a construção social da imagem “mulata” diverge dos atributos acionados pelo clube, e é aí que a verdadeira disputa acontece. Não se trata de uma disputa apenas entre candidatas a miss, mas de uma disputa sobre o significado social de ser uma mulher branca e ser uma mulher negra no Brasil – uma hierarquia social que já está bem delimitada entre ambas, fortemente construída e reforçada num passado escravista de quase quatrocentos anos.

Sobre esse aspecto nos esclarece Lélia Gonzalez (1983, p. 232) que, ao articular as noções de racismo e sexismo, evidencia a violência dirigida à mulher negra no Brasil. De acordo com Gonzalez, as noções de “mulata” e empregada doméstica foram construídas no período escravista a partir da figura da mucama/amásia. A palavra mucama significa aquela que auxilia nos serviços domésticos da casa grande no período escravocrata. Em sua origem etimológica, a palavra “mukama” é da língua quimbunda e significa escrava amante do seu senhor. Então, atrelada à função doméstica está a função de servir sexualmente. Gilberto Freyre concebe a mulher negra como tendo um papel estratégico de mediadora entre as raças na sociedade colonial; nessa concepção, ignoram-se as relações assimétricas de poder, onde a violência sexual era evidente. Ao branco português é atribuída a noção de benevolência na medida em que ele se relaciona com uma raça tida como inferior e promove a integração de raças e culturas diferentes. Já aos negros e “mulatos” é atribuída a ideia de sexualidade exacerbada como justificativa da acessibilidade sexual empreendida pelo homem branco.

Esses pensadores racialistas comungavam das ideias de hipersexualização e erotização exacerbada do corpo negro que vigoravam em nossa sociedade escravocrata, colocando na vítima a responsabilidade pela violência empreendida. Dentro dessa ótica, atualizada com o passar dos anos na figura da “mulata”, está fortemente atrelada a ideia de acessibilidade sexual, subalternidade e sobrecarga. A mulher negra escrava não formava uma família, não podia cuidar dos seus filhos; toda a sua vida era direcionada a servir a família branca. Servir ao senhor sexualmente, à senhora nos serviços domésticos, amamentação e cuidados com os filhos dos senhores. Todas essas vivências foram construídas ao longo de quase quatrocentos anos de escravidão e pós-escravidão, e atualizadas de diversas maneiras no imaginário social brasileiro a partir de relações de trabalho opressoras; assim, não é de espantar que suas reminiscências estejam impregnadas nos discursos sobre os concursos de miss e suas participantes “mulatas”.

ANÁLISE

Vejamos alguns trechos de reportagens reveladores de um pensamento calcado nesses princípios. O ano de 1960 foi o primeiro em que uma candidata “mulata” participou do concurso de Miss Guanabara. Em reportagem da Revista O Cruzeiro de 18 de junho daquele ano sobre as oito finalistas do concurso, as candidatas são apresentadas ao público leitor do seguinte modo:

Sucesso, sem dúvida, tanto para o público, como para os “entendidos” foi Dirce Machado, do Renascença. Depois que o “Orfeu do Carnaval” deu curso internacional a mulata, como produto genuinamente brasileiro, as semi- “coloreds” passaram ao domínio da passarela. E eis que Dirce abalou o Maracanãzinho, vindo, ao final, a obter a quarta colocação. E notem que grande parte dos espectadores votou nela para melhor colocação. (Revista O Cruzeiro, 18.06.1960, edição 36, pág. 10.)

O que chama atenção neste trecho é a expressão “entendidos”: as aspas aplicadas indicam uma ironia, sugerem que o entender não significa apenas saber o que é uma mulata, mas entendê-la de forma mais profunda, para além da aparência, para aquilo que ela representa, dando a conotação de uma imagem sexualizada, ou seja, daqueles que já se relacionaram com uma mulata ou que a desejam. Outra questão que se coloca neste trecho é a necessidade de justificar a presença desta candidata mulata, o que já pressupõe que ela não é considerada como as outras. Foi preciso citar o filme “Orfeu Negro”, que fez sucesso internacional com atores e atrizes negros no mesmo período, para justificar sua entrada no concurso – ou seja, o destaque já iniciado no cinema deu acesso também às passarelas. A utilização do termo “semi-colored” também nos remete à ideia de que há um padrão de beleza à parte, constituído a partir da miscigenação com brancos e intermediário entre o padrão de beleza branca e o padrão de beleza negra. É comum nessas publicações associar a beleza negra ao fato de ela conjugar características do fenótipo branco a fim de justificar sua condição de beleza. Vale ainda destacar que o prefixo semi nos remete a uma gradação de cor impulsionada pelo ideal de branqueamento presente na sociedade brasileira.

Primeira “Miss” G.B. fala português com sotaque (quando quer) da Escócia. Isso quer dizer que Gina Macpherson, que concorreu pelo Botafogo e cujos pais são escoceses, fala inglês na velha base britânica, além de ter olhos verdes, 1.70 de altura, 93 de busto e de quadris, 58 de cintura, 53 de coxa e 57 de peso. Tudo isso numa moldura de 20 anos, com linhas exatas e belo palminho de rosto, decorado por um sorriso leve. (Revista O Cruzeiro, 18.06.1960, edição 36, pág. 10.)

O relato acima, sobre a vencedora do concurso, ressalta sua ascendência europeia, sua intelectualidade (ao mencionar os idiomas que fala) e o destaque para os olhos verdes, numa clássica deferência ao padrão europeu. As formas do corpo são descritas minuciosamente, tendo destaque a escolha dos adjetivos e substantivos para descrever sua aparência: moldura, linhas exatas, palminho de rosto, sorriso leve. Todas essas características nos remetem a uma idealização da personagem a partir de sua imagem. Sua caracterização idealiza para a mulher branca um imaginário de intelectualidade, pureza, beleza e sofisticação. Aqui não há espaço para a erotização. Seguindo o mesmo padrão de análise, a reportagem segue com modelo semelhante ao descrever outra candidata branca – foco nas medidas corporais perfeitas, olhos verdes, e elegância no vestir. Mais uma vez não há espaço para erotização.

O segundo lugar pertenceu a loura Maria Helena da Costa, do Uruguai Tênis Clube. Sacudam estas cifras e ela aparecerá de corpo inteiro: 1.69 de altura, peso 56, quadris 95, busto 94, cintura 60, tornozelo 21 e 56 de coxa. Maria tem olhos verdes. E beleza longilínea. Desfilou em vestido azul, de organza cristal, saia com três babados plissados, blusa simples, decotada (com duas alcinhas), sapatos azuis de cetim, luvas brancas. (Revista O Cruzeiro, 18.06.1960, edição 36, pág. 10.)

Gilliam (1995, p. 528) nos esclarece sobre a noção de honra atribuída naturalmente às mulheres brancas, como algo que as constitui desde o nascimento, e que só é perdida quando algum comportamento as afeta. Com relação às mulheres negras, essa honra não lhes é atribuída a priori, é preciso lutar para adquiri-la. É preciso demonstrar, através de um comportamento irrepreensível, uma honra negada desde sua origem – ideia que nos remete aos elementos acionados pelo Clube Renascença em sua fundação, visando uma diferenciação/dignificação, justamente para neutralizar estigmas. A autora nos esclarece também que nos Estados Unidos são associados às mulheres afro-americanas os estereótipos da mãe preta e Jezebel (seguindo um dualismo madona-prostituta) que desqualificam essas mulheres para o casamento e justificam o assédio sexual. Seguindo essa linha de análise, vejamos a seguinte reportagem da Revista O Cruzeiro, na seção Cochichos de José de Anchieta.

Verinha, a mulata que internacionalizou o “Renascença”, recusou-se a sentar na cama com Glenn Ford, quando da visita das misses à mansão hollywoodiana do astro. Disse que, no Brasil, moça direita não concordaria com gesto tão íntimo. Glenn ficou zangado, mas não adiantou nada. (ANCHIETA, José. Revista O Cruzeiro,1964, edição 50. Pág.121)

Aqui vemos um movimento que busca fortalecer a honra de Vera Lúcia, “mulata” do Clube Renascença e vencedora do Miss Guanabara em 1964. Ao descrever que ela não aceitou se sentar na cama com Glenn Ford, e como isso atesta sua imagem de moça de família, a reportagem faz um movimento inverso ao das outras reportagens, que sugerem uma visão estereotipada, sexualizada da “mulata”. Nesse discurso sua honra é atestada e qualificada. Mas é no próprio movimento inverso da escrita que detectamos que a necessidade de fortalecer ou criar uma imagem de honra sobre a “mulata” atesta ao mesmo tempo a fragilidade dessa imagem.  A necessidade de fortalecimento desta visão de honra nos mostra que ela não é comumente aceita na sociedade e por isso precisa de validação. A situação provavelmente passaria despercebida caso se tratasse de uma candidata branca, porque esse comportamento já é socialmente esperado dela. É por ele não ser esperado, é por ele causar estranhamento vindo de uma “mulata” que ele merece atenção e destaque da reportagem. A necessidade de enfatizar a defesa da honra que o gesto de Vera Lúcia sugere nos mostra a necessidade de negar uma imagem de acessibilidade sexual da “mulata” brasileira já há muito tempo consolidada.

Ainda sobre uma imagem sexualizada da “mulata” nas reportagens, temos outra descrição sobre Vera Lúcia, “mulata” do Clube Renascença, ganhadora do Miss Guanabara de 1964:

A mais aplaudida foi a beleza nacionalista de Miss Renascença. Funcionou o racismo mulato da plateia. Calou bem o feitiço chocolate da moça, o dengo, o jeitinho. Ela foi a Miss-Palmas e a Miss-Público, a mais aplaudida, a Miss GB das arquibancadas. (Revista O Cruzeiro, 1963, edição 39, pág.06.)

Destaco neste trecho as palavras: feitiço, dengo e jeitinho. Totalmente diversas das palavras utilizadas para a descrição das demais candidatas. A ideia de feitiço corrobora a noção de hipersexualização dos corpos negros, tão aludida como justificativa do intercurso sexual do homem branco com as mulheres negras no período escravocrata. Nesse trecho chama atenção também o destaque para a identificação do público com a candidata, e a justificativa é o “racismo mulato da plateia”. Mais uma vez o sucesso e a aceitação da candidata “mulata” precisam ser justificados, mas, ao contrário do que é feito com as demais candidatas, essa justificativa não está atrelada somente à beleza e elegância na passarela. Aqui a justificativa vem da identificação com o público e da constatação de um Brasil predominantemente mestiço, que escolheu a candidata que o representa.

Em uma sociedade racista, a disputa de misses não foi travada, como era de se esperar, entre mulheres bonitas. Com a entrada das candidatas “mulatas”, a disputa que se coloca é aquela entre a mulher negra e a mulher branca. O dilema era como colocar para competir em pé de igualdade uma raça considerada inferior. A expressou “calou bem” sugere que o júri do concurso ficou impedido de eliminá-la por conta da preferência do público. É importante aqui destacar que a preferência majoritária do público com as misses do Renascença aparece em todas as reportagens da revista desde 1960. O não reconhecimento do desejo do público pela quarta vez consecutiva poderia gerar uma situação delicada, envolvendo o descrédito da população bem como a confirmação do racismo brasileiro. O mito da democracia racial talvez não resistisse a um golpe tão duro. Ou seja, aqui fica subentendido que a participação dessas moças trazia oposições sociais, expressas nas decisões do júri. Oposição a que uma mulher negra fosse eleita ganhadora em detrimento de uma mulher branca considerada superior. Por isso, verificaremos no próximo trecho como essa disputa/tensão se desenrolava numa clara alusão à inferioridade racial e à utilização deste argumento, mesmo que de forma velada, na escolha do júri.

Nunca um júri se reuniu tantas vezes no Miss Guanabara. Foi um recorde de medições, de tomadas de consciência. Afinal, entre tantas louras e morenas, tantos olhos verdes e azuis, havia um detalhe sépia a considerar: Vera, a mulata. Por coincidência a candidata da plateia. Também a penúltima ‘miss” americana (Miami) tinha sido mulata do Havaí. E Miami faz parte do Sul americano. Por que não reconhecer a vitória de Vera do Renascença? Em nome de que preconceito (inexistente) Verinha teria seus direitos cassados? Vai aqui a relação desses abolicionistas da beleza mais brasileira: Oscar Ornstein (diretor do Copacabana Palace), Georges da Silva (cirurgião plástico), Arlindo Silva (Editor de reportagem de “O Cruzeiro”), Oscar Bloch (diretor de “Manchete”), Roberto Faria (redator de “O Globo”), Evandro Castro Lima (figurinista), Walda Menezes (diretora do suplemento feminino de “O Jornal”), Mena Fiala (modista) e o Sr. Mateus Fernandes (escultor). (Revista O Cruzeiro, 1964, edição 41, pág.14.)

Aqui nesse trecho da reportagem temos a armadilha de um discurso ambíguo e pautado pela ideia subjacente de inferioridade racial. Primeiro o autor desqualifica a “mulata”, exaltando a beleza e superioridade das candidatas brancas, depois justifica a escolha de Vera Lúcia Couto fazendo menção a uma miss também “mulata” do Havaí, em seguida afirma a inexistência de preconceito na sociedade brasileira fazendo da vitória da miss “mulata” uma benevolência dos brancos e, mais que isso, um atestado de que o Brasil não é um país racista, e finaliza com os nomes dos responsáveis por esse “ato de nobreza”, chamados de “abolicionistas da beleza brasileira”.

Sobre a origem da palavra mulata, a maioria dos estudiosos apresenta um parentesco etimológico com a palavra em latim “mulus”, que gerou a palavra portuguesa “mula” e significa animal estéril, híbrido, resultado do cruzamento do cavalo com o jumento. Seguindo uma analogia da mestiçagem desse animal com a mestiçagem entre negros e brancos, o termo passou a ser utilizado para definir pessoas descendentes da união desses dois grupos. Segundo o dicionário Houaiss, a palavra mulato para designar pessoas passou a ser utilizada no século XVI. A historiadora Lita Chatan defende outra teoria para a origem do termo mulato, que segundo suas pesquisas teria se originado do termo árabe muwallad, que significa mestiço de árabe com não árabe.

Atualmente a intelectualidade negra condena o uso do termo por sua conotação racista. Apesar de socialmente a condenação do termo se tornar cada vez mais ampla, o debate por sua utilização ainda causa polêmicas, como se entrevê no seguinte trecho de uma entrevista de Caetano Veloso para o Programa Roda Viva em 20/12/2021:

Tem muita gente que decide modificar a terminologia que a gente pode ou não, enfim… a respeito de raça. Eu não sou obrigado a concordar com todas as coisas. Acho que essa movimentação, em grande parte americanizada, é muito útil ao Brasil se o Brasil souber aproveitar, porque eu sou antropófago, então o Brasil tem que saber comer e metabolizar isso, não se deixar dominar por isso. Isso em primeiro lugar e em segundo lugar, eu não vejo qual é o problema de mulato. Eu falei mulato porque é uma palavra que… meu pai era mulato, uma pessoa que eu mais adorava, me respeitava… tem gente que diz que é tirado de mula, mas qual o problema das mulas? Eu não tenho nada contra as mulas. Embora eu nem acho que mulato venha de mula, pode até vir… (VELOSO. Programa Roda Viva, TV Cultura.2021.)

O entendimento da etimologia do termo mulato, a compreensão do passado escravista e do racismo estrutural6 brasileiro deveriam ser elementos suficientes para a não utilização do termo. Ocorre que aqueles que utilizam o termo e defendem seu uso analisam a situação a partir de sua própria intenção, sem considerar o posicionamento daqueles que comumente recebem esse adjetivo. A lógica de análise não deve partir daquele que utiliza o termo, mas daquele que recebe o termo como designação. A subjetividade dos negros é fundamental para a decisão de aceitação ou rejeição do termo. A rejeição do termo vem sendo ampliada em consequência do crescente letramento racial7 da sociedade brasileira. Também atrelada a essa questão temos o gênero, que intensifica negativamente o uso do termo, uma vez que confere às mulheres a noção de acessibilidade e objetificação sexual, não presente na utilização do termo para o gênero masculino. Voltando à análise das palavras de Caetano Veloso, fica mais simples compreender porque o uso do termo não lhe causa rejeição, uma vez que seu fenótipo não o faz vivenciar o racismo à brasileira e o gênero masculino o torna mais distante da vivência da objetificação sexual.

Seguindo a mesma linha de raciocínio de Caetano Veloso, o colunista do site da Revista Veja, Sérgio Rodrigues, reprova a condenação do vocábulo, na matéria “Mulata veio de mula? Isso torna a palavra racista?”. Em um trecho da matéria ele diz o seguinte:

O tom depreciativo da associação original é indiscutível e facilmente explicável pelo racismo escancarado por uma época escravocrata. O que cabe discutir é se vale a pena condenar o vocábulo por causa disso.
Fazê-lo significa manter artificialmente vivo na língua de hoje um parentesco praticamente esquecido, além de ignorar os novos sentidos – alguns deles francamente positivos, como o da exaltação da miscigenação – que foram se colocando com o passar do tempo ao termo “mulato(a)”. (RODRIGUES, Coluna Sobre palavras, Site Revista Veja, 2015)

Aqui vemos o jornalista atestar a etimologia negativa do termo, para em seguida delimitar essa significação negativa a um passado escravista de racismo escancarado. Porém, ao atribuir este significado apenas ao passado escravista, ele transmite uma ideia de que o racismo foi dissipado com a abolição. O fato de o uso do termo “mulato” ser utilizado de forma inconsciente ou não intencional quanto a sua etimologia para designar pessoas não o isenta de sua negatividade, justamente por estar sendo utilizado numa sociedade que permanece racista. O letramento racial aciona uma compreensão que não permite uma inação, é uma compreensão que pressupõe mudança social. As noções que o termo carrega são ambíguas, mas não neutras.

Quando ele diz que o parentesco do termo mulato com a sua etimologia está praticamente esquecido atualmente, ele acaba por sugerir que o racismo é coisa do passado, que não existe mais – ou, para usar a palavra que ele mesmo escolheu, é um racismo não escancarado. Ao final ele relaciona o termo mulato a uma significação atual e positiva de exaltação da miscigenação, ficando evidente que ele desconhece que o culto à miscigenação foi um artifício de embranquecimento liderado pelo Estado brasileiro e por intelectuais racialistas de fins do século XIX e início do século XX, num projeto de eliminação dos negros da sociedade e também largamente utilizado como base para o mito da democracia racial. A rejeição do termo “mulato” deve ser analisada para além da sua etimologia: ela faz parte de um movimento necessário para relembrar e educar uma sociedade racista que insiste em empurrar para debaixo do tapete algo extremamente violento como a escravidão e que tem consequências até hoje.

As reportagens da revista O Cruzeiro utilizam o termo “mulata” com toda a sua carga racista. Nas descrições podemos observar como os comentários divergem dos comentários direcionados às participantes brancas. Encontramos uma constante hipersexualização destas mulheres e uma justificativa constante para a presença delas nos concursos, sendo muitas vezes essa justificativa atribuída à benevolência dos brancos ou para afirmar uma suposta democracia racial brasileira. Nesses discursos percebemos também como a noção de honra não é atribuída a priori às mulheres negras, uma vez que é necessário o reconhecimento de uma conduta irrepreensível para neutralizar este estigma. O termo “mulata” envolve duas concepções sobre a mulher negra, daquela que serve em profissões subalternas e daquela que serve sexualmente. A noção de mulata se origina da relação mucama/amásia conforme exposto por Lélia Gonzalez (1983). Nas duas concepções que o termo “mulata” sugere, a mulher negra é identificada como aquela que serve a alguém, sendo assim tem sua autonomia negada, porque não serve a si mesma, aos próprios sonhos e objetivos. A “mulata” é exaltada como símbolo da miscigenação para justificar e validar o mito da democracia racial, mas a ambiguidade do termo se apresenta justamente por ela ocupar no imaginário social um lugar inferiorizado quando comparada às mulheres brancas. O racismo se atualiza nas relações opressoras do cotidiano, de modo que a consciência da carga negativa que o termo aciona é o pré-requisito necessário para sua não utilização.

CONCLUSÃO

A submissão da mulher negra presente nos discursos dos concursos de Miss da Revista O Cruzeiro é evidenciada quando as candidatas mulatas são comparadas com as candidatas brancas. É na comparação que a hierarquização aparece, revelando o mito da democracia racial brasileira. O Clube Renascença parte para a disputa de igual para igual, sua ação é reivindicatória dessa democracia que não se realiza na prática, uma vez que tanto a participação quanto a vitória das misses Renascença se apresentam como uma inserção do negro de forma subalternizada. A ambiguidade do termo “mulata” mostra a conveniência da sua utilização. Quando se trata de exaltar o Brasil como país não racista, a “mulata” se torna o símbolo, a prova de que as raças convivem harmonicamente pois se relacionam. Mas, quando não é esse o propósito, a carga negativa do termo aparece, deixando evidente a hipersexualização e objetificação da mulher negra brasileira e sua hierarquização quando comparada à mulher branca.

A indagação de um professor durante a escrita deste trabalho foi fundamental para sua construção. A indagação era a seguinte: como esta pesquisa te constitui e te agrega? Na hora eu não soube responder porque escolhi o tema “miss mulata”, intimamente eu sabia que a escolha não era aleatória, mas naquele momento eu não sabia colocar em palavras os motivos dessa escolha e também não sabia mensurar o significado desta noção de “mulata” na minha vida. Foi ao longo do trabalho que essa resposta foi sendo construída.

De acordo com Conceição Evaristo, a escrevivência8 é uma prática literária que surge da mulher negra, expressa suas vivências, marcadas pelas estruturas racistas da sociedade. É uma escrita que abarca uma coletividade e que nasce também de um incômodo com a realidade vivida. O conceito de escrevivência mostra a necessidade de sermos sujeitos da nossa narrativa, com a consciência de que a distância entre sujeito e objeto de pesquisa faz pouco ou nenhum sentido. Na construção deste trabalho minhas vivências foram ganhando sentido, pois o termo “mulata” me acompanha desde criança. Sou filha de pai branco e mãe negra e cresci ouvindo que era “mulata”, mas naquela época a noção que tinha deste termo não era negativa, apenas me fazia lembrar da minha constituição a partir de cores diferentes. Para mim, durante a infância, ser mulata significava ter a cor marrom. Foi a partir da adolescência que o termo, ou melhor o significado de ser “mulata”, de aparentar essa figura, foi se delineando para mim de forma incômoda.

Em 1998, com quinze anos de idade, comecei a trabalhar como modelo, numa agência importante do Rio de Janeiro. Todos os testes, seleções para os trabalhos ocorriam na Zona Sul. Eu, moradora da Zona Norte desde que nasci, me vi com a tarefa de me deslocar sempre que um teste aparecia. O que começou a me chamar a atenção naquelas andanças era o fato de ser assediada nas ruas da Zona Sul, com olhares invasivos e comentários com teor sexual. A Zona Sul do Rio e Janeiro é um espaço majoritariamente branco, onde é comum ver negros em posições de emprego subalternas. Eu tentava entender por que aquilo estava tão presente naquele território, ao passo que na Zona Norte, por onde eu sempre circulei, essa situação poucas vezes ocorria. Eu sabia que era uma violência, mas eu não sabia o que a ocasionava. E isso me intrigava. Percebi que naquele espaço eu era uma exceção.

Na construção deste trabalho, em vários momentos fui dando significado às experiências que vivi como modelo. Um dos trabalhos que fiz foi uma foto de Dia dos Namorados para um shopping: na foto eu aparecia segurando um buquê de flores, abraçada ao namorado. Essa foto circulou nos ônibus, nos jornais e outdoors. Um dia, ao voltar para casa, ouvi uma vizinha dizer: “Até que é uma neguinha bonita”. Ter a aparência de uma “mulata” me fez vivenciar algumas situações em que as pessoas questionavam o porquê da minha escolha e não de uma modelo branca para determinados trabalhos, bem como alusões a uma acessibilidade sexual, principalmente ao transitar em espaços predominantemente brancos, como a Zona Sul. A escrita deste trabalho me trouxe um maior entendimento dessas experiências e colaborou para a compreensão de que o letramento racial é fundamental para entendermos as violências a que somos submetidos cotidianamente e nos posicionarmos de forma consciente. 


2A trajetória destes intelectuais nos museus e centros de pesquisa brasileiros foi analisada por SCHWARCZ, Lília Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil -1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

3 Para saber mais sobre a visão desse personagem sobre a mestiçagem, consultar: MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

4 MUNANGA. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Pág. 77.

5 O passado escravista brasileiro aliado às opressões do capitalismo foi analisado por: MOURA, Clovis. Escravismo, colonialismo, imperialismo e racismo. Afro-Asia, Salvador, n 14, 1983.

6 Para uma compreensão mais aprofundada, ver ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.

7 Letramento racial é o processo de reeducação racial que objetiva desconstruir formas de pensar e agir racistas que estão naturalizadas e normalizadas socialmente.

8 Para mais informações sobre o conceito escrevivência ver: DUARTE, Constância Lima; NUNES, Isabella Rosado, ‘org.’. Escrevivência: a escrita de nós. Reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020.


REFERÊNCIAS

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GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Organizado por Flávia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2020

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STEPAN, Nancy Leys. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005.


1Graduada em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, professora de História na Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, aluna do curso de Mestrado em Relações Étnico-Raciais do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca – CEFET/RJ.

Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca – CEFET/RJ/Diretoria de Pesquisa e Pós-Graduação –DIPPG/ Programa de Pós-graduação em Relações Étnico-Raciais – PPRER, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.