REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10155672
Caio William Barcelos Santos1
Odi Alexander Rocha da Silva2
RESUMO: o presente artigo tem como objetivo a abordagem teórica e sistemática das medidas socioeducativas aplicadas aos adolescentes em conflito com a lei no brasil, bem como da sua estrutura de execução. Através da revisão bibliográfica, veremos que há uma certa diferença entre o ideal previsto pelo ECA e a realidade fática da estrutura de execução das medidas socioeducativas no Brasil.
Palavras-chave: adolescente, delinquência juvenil, medidas socioeducativas.
ABSTRACT: This article aims to provide a theoretical and systematic approach to socio-educational measures applied to adolescents in conflict with the law in Brazil, as well as their implementation structure. Through the literature review, we will see that there is a certain difference between the ideal predicted by the ECA and the factual reality of the structure for implementing socio-educational measures in Brazil.
Key-words: adolescent, juvenile delinquency, socio-educational measures.
INTRODUÇÃO
A delinquência juvenil é um problema grave e complexo enfrentado por diversos países, incluindo o Brasil. Quando o noticiário relata que um ato de violência foi cometido por um adolescente ficamos surpresos, horrorizados e estarrecidos.
Quando tratamos de atos de criminalidade e violência cometida por adolescentes, sem dúvidas, o caso mais emblemático e de grande repercussão que aparece na lembrança popular é o de Liana Friedenbach e Felipe Caffé3 em São Paulo, que foram brutalmente assassinados em 2003 pelo adolescente conhecido pelo apelido Champinha, e seus comparsas.
Na situação citada, por ser adolescente à época dos fatos o Código Penal brasileiro não alcançou o rapaz. O Estatuto da Criança e do Adolescente, a legislação pertinente, foi aplicada ao caso e ao rapaz foi imputado o cumprimento de uma Medida Socioeducativa de internação que foi executada na Fundação Casa de São Paulo.
Anos depois, em 2023 ocorreram diversos atentados em escolas no Brasil. Alguns desses trágicos episódios tiveram adolescentes como protagonistas, como na situação em que um adolescente de 13 anos de idade tirou a vida de uma professora de 71 anos, num atentado ocorrido em uma escola de São Paulo[2].
Apesar das situações terem elementos diferentes, ambas envolveram uso de violência e foram cometidas por adolescentes, e aqui mostraremos a luz da legislação como o Estado responde a estas situações.
Não sendo suficiente todas essas situações, a forma como os profissionais do Estado vem atuando, em especial do sistema de justiça, é no mínimo preocupante se considerar o fato de que as disciplinas que versam sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente não são mais obrigatórias nas grades do curso de Direito das faculdades, o que diminui o conhecimento especializado dos profissionais atuantes com crianças e adolescentes.
Anteriores ao ECA, já tivemos legislações que disciplinavam como o Estado deveria atuar em relação a esse público. Os Códigos de Menores que aqui vigoraram importaram do cenário internacional para o Brasil a chamada Doutrina Menorista, que não fazia uma separação entre crianças e adolescentes, ou muito menos as questões de vulnerabilidade das questões de delinquência juvenil, recebendo todos o mesmo tratamento Estatal.
Rompendo com essa doutrina e promulgado em 1990, o ECA almejava modernizar e melhorar as políticas públicas voltadas a essa parcela da população. Embora tenha, teoricamente, trazido uma nova doutrina, esta não se concretizou no mundo real em muitos aspectos, ainda permanecendo apenas como um ideal a ser alcançado.
Dentre esses aspectos, as medidas socioeducativas, temática que procuraremos esgotar no desenvolvimento deste artigo, são os meios legais previstos e especializados de responsabilização dos adolescentes em conflito com a lei.
Tais medidas são totalmente desconhecidas pela maioria da população, desde os menos instruídos até os profissionais do sistema de justiça que muitas vezes atuam de maneira despreparada, desconhecendo totalmente o seu funcionamento.
Por diversas vezes vemos advogados criminais atuando em defesa de adolescentes em conflito com a lei, mas sequer sabem a diferença prática entre medida socioeducativa e execução penal, ou mesmo a diferença entre uma Ação Penal de uma Ação de Apuração de Ato Infracional.
Sem esquecer de mencionar, que algumas vezes também, quando um juiz, promotor ou defensor titulares da área juvenil saem de férias e um substituo assume essa competência, vemos decisões totalmente equivocadas passíveis de reforma ou até revogação. Contudo, há de se afirmar que é difícil de trazer casos concretos considerando que tais processos tramitem em segredo de justiça.
Não bastando tais fatores, devemos observar também que a população manifesta sentimentos de medo, revolta coletiva e sensação de impunidade contra essas situações de violência e a forma morosa e ineficaz com a qual o Estado responde a essas situações.
Sem dúvida alguma, o motivo principal que revolta a população em relação as medidas socioeducativas é a duração máxima de 3 anos, gerando a sensação de impunidade e trazendo hora ou outra a temática da redução da maioridade penal.
Mas como será que nossa legislação infantojuvenil chegou ao que é atualmente? Quem é o adolescente “infrator” ou “em conflito com a lei”? Por que ele não comete crime? Por que ele não é preso? O que é ato infracional? O que são as Medidas Socioeducativas? São eficazes?
Tentaremos responder esses e outros questionamentos sobre a relação dos adolescentes em conflito com lei e as medidas socioeducativas no Brasil e verificar se elas produzem resultados sociais satisfatórios e atendem os anseios socais.
No decorrer desse trabalho, através de uma revisão documental, legal e bibliográfica, iremos explicar o que são as medidas socioeducativas, como elas surgiram, como são organizadas, e em seguida, iremos traçar paralelos com o que está insculpido no ordenamento jurídico e a realidade fática atual.
1 – UM BREVE HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO INFANTO JUVENIL NO BRASIL
O tratamento legal conferido pelo Brasil as crianças e adolescentes pode ser interpretado cronologicamente em três fases: a primeira do 1501 a 1900, que seria a fase da insignificância; a segunda, de 1901 a 1950, fase da “objetificação” ou do modelo tutelar; e a terceira fase, que dura da segunda metade do século XX até o momento atual, a fase do reconhecimento como sujeitos de direitos (Lima, et al, 2017).
De acordo com Amin e Maciel (2019) a preocupação com “infratores” no território brasileiro, fossem menores ou maiores, tem seu início no período colonial com as Ordenações Filipinas, que estipulava a imputabilidade penal a partir dos 7 anos de idade.
Posteriormente, o Código Criminal do período imperial fixou a imputabilidade aos menores de 14 anos, prevendo também um exame de capacidade de discernimento a ser aplicado dos 7 aos 14 anos. Caso houvesse discernimento, a criança ou adolescente em situação de delinquência juvenil seria encaminhada para uma casa de correção, podendo ficar lá até os 17 anos de idade (BRASIL, 1830).
No primeiro Código Penal do período da velha república (BRASIL, 1890) a idade dos inimputáveis é alterada para menores de 9 anos, manteve-se o exame de discernimento para crianças e adolescentes entre 9 a 14 anos, e atenuou as apenas em até dois terços aos menores de 17 anos. Durante sua vigência, todos os crimes cometidos por crianças e adolescentes eram da alçada dos juízes das varas criminais.
Em seguida, influenciado pelas deliberações dos Congressos Internacionais de Prisões, bem como pela Lei das Cortes Juvenis dos Estados Unidos, em 1921 iniciou-se no Brasil um movimento de assistência e proteção aos “menores” abandonados, desvalidos e delinquentes.
Tal movimento resultou na retirada da competência dos juízes criminais os delitos feitos por menores, e a criação da figura dos Juízes de Menores como mecanismo de justiça especializada, sendo o Dr. José Cândido de Albuquerque Mello Mattos nomeado o primeiro juiz de menores da América Latina.
Em 1927 o Brasil adota o modelo tutelar menorista e promulga a sua primeira legislação especialmente infanto juvenil, resultado de diversos debates e capitaneado pelo doutor Mello Mattos, que estabeleceu a imputabilidade penal aos “menores” abaixo dos 18 anos incompletos e outras diretrizes.
Tal legislação regulamentava o funcionamento da função de juiz de menores e de seus auxiliares e procedimentos, dando amplos poderes para o magistrado interver na situação dos jovens à época. O “Menor” não era considerado um sujeito de direitos, e sim, um mero objeto de tutela estatal.
O Código de menores trouxe a Doutrina da Situação Irregular, que consistia em considerar que o menor em situações de exposição à maus tratos, abandono ou delinquência iria adquirir uma espécie de status de “irregularidade social” passível de intervenção por parte do Estado.
Essa intervenção por sua vez, seria o exercício do Pátrio Poder no qual o Estado retira o jovem do seio familiar ou das ruas e o colocava numa espécie de abrigo ou educandário, ou seja, o jovem passava por um procedimento conhecido como institucionalização para uma passar por uma espécie de adequação social.
Tal procedimento era feito meramente por critério etário, não havendo na prática a diferenciação ou separação entre os menores em situação de vulnerabilidade e de delinquência nesses estabelecimentos.
Durante o regime militar, em 1964 temos a criação da Política Nacional do Bem-estar do Menor e da Fundação Nacional e Estaduais do Bem-estar do Menor para conduzir a institucionalização dos “menores em situação irregular”, retirando essa atribuição da alçada do serviço social. Logo após, em 1969, foi promulgado Código de Menores, que regulamentava o funcionamento dessas fundações, contudo, mantendo a sistemática doutrinária anterior em relação aos jovens.
Posteriormente, o Código de Menores foi duramente criticado por ser considerado uma espécie de política higienista para com as crianças e adolescentes oriundos de famílias vulneráveis e desestruturadas, que ao invés de ajudar a mudar a trajetória e ajudar essas pessoas só estigmatizou mais ainda esses jovens em situação de vulnerabilidade social.
O próprio termo “menor” e “menor infrator” além de não ser usado no estatuto da criança e do adolescente, não é atualmente aceito pelos profissionais e estudiosos da área por sua carga valorativa ser considerada pejorativa e estigmatizante sendo considerado politicamente incorreto (ANDI, 2014).
As fundações de bem-estar do menor também foram alvos de críticas, pois houveram muitas denúncias por parte da mídia jornalística, sociedade civil organizada e de ex-internos de violência física e psicológica, e outras violações de direitos humanos. Hoje a maior parte da população não sabe o que é o sistema socioeducativo ou uma unidade socioeducativa, mas a FEBEM ainda se mantém na lembrança popular.
Após a redemocratização, houveram vários movimentos no Brasil e no mundo para que houvesse um aperfeiçoamento na legislação e no tratamento dado pelo Estado a nossa juventude, resultando na criação do Estatuto da Criança e do Adolescente.
2 – A CRIAÇÃO DO ECA, SUAS INOVAÇÕES E O ROMPIMENTO COM A DOUTRINA MENORISTA IRREGULAR
Após a redemocratização e a promulgação da Constituição Federal, bem como o fato de o Brasil ter se tornado signatário de tratados que versavam sobre direitos humanos e direitos da criança e do adolescente, o Código de Menores se tornou obsoleto e totalmente desalinhado com a nova ordem jurídica e política vigente.
A Constituição Federal de 1988 retirou o centralismo da obrigação de proteção da criança e do adolescente, passando a ser responsabilidade conjunta “da família, da sociedade e do Estado” não somente do Estado.
Além disso, passou a garantir não só a proteção, como também, a promoção de uma gama de direitos, elevando os direitos da criança do adolescente a uma política com status de prioridade absoluta (Brasil, 1988). A Constituição também estabeleceu que crianças e adolescentes são penalmente inimputáveis.
O ECA, promulgado em 1990, revogou totalmente o Código de Menores e foi considerado na época um grande avanço legislativo no tange a forma como o Estado deve tratar a juventude brasileira, trazendo diversas inovações na sistemática legal nas políticas públicas.
O ECA passou a fazer uma separação dicotômica que diferencia as crianças os menores de 12 anos incompletos dos adolescentes que são os maiores de 12 anos completos e menores de 18 anos completos, não sendo utilizando mais o termo “menor”, e também, a reconhece-los não mais como objetos de tutela, e sim, pessoas em situação peculiar de desenvolvimento, sujeitos de direitos e garantias (Brasil, 1990).
Rompendo com a Doutrina da Situação Irregular e com o Pátrio Poder, a partir do ECA passou a vigorar a Doutrina da Proteção Integral que assevera prioridade absoluta a crianças e adolescentes a todos os direitos individuais, coletivos e sociais de modo a assegurar o pleno desenvolvimento infantojuvenil.
O ECA também trouxe modificações na sistemática no que tange ao campo da proteção, criando a figura do conselheiro tutelar nos municípios, que é o profissional responsável por “zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente”, rompendo com o centralismo de funções que havia na figura do antigo juiz de menores.
Outra separação dicotômica que o ECA promoveu foi separar os ambientes e tipos de tratamento previstos para as crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade dos em situação de delinquência.
As crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade são resguardados por meio das medidas protetivas previstas no artigo 101, sendo destacável que em caso de abandono ou maus-tratos as principais medidas são o acolhimento institucional em abrigos ou a colocação em família substituta. Tais medidas são aplicadas em casos excepcionais e extremos.
Em relação aos adolescentes em situação de “delinquência juvenil”, o ECA trouxe uma série de inovações sistemáticas que tratam crianças e adolescentes de maneira mais branda e totalmente diferenciada e separada da execução penal, que passaremos explanar a seguir.
2.1 – Ato Infracional
O Código Penal prevê no artigo 27 que “Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial” (Brasil, 1984), ou seja, crianças e adolescentes não podem ser submetidos a um processo criminal ou execução penal, muito menos serem postas em estabelecimentos penais.
O ECA, dos artigos 103 ao 105, conceitua que o ato infracional é a conduta praticada por criança ou adolescente que seja tipificada como crime ou contravenção por lei penal. Em outras palavras, quando uma criança ou adolescente cometer desde um pequeno furto até um homicídio, esta conduta não será considerada como crime (Brasil, 1990).
Não se limitando somente em relação a conduta, diversas terminologias são utilizadas na execução das medidas socioeducativas de modo a tentar distancia-la do sistema penal. Por exemplo: o adolescente não é preso, e sim internado; não passa por escolta, e sim por acompanhamento; o local em que ele fica não é a cela da cadeia, e sim o alojamento da unidade socioeducativa.
Os professores Murilo e Ildeara Digiácomo (2020, p. 218) e Marcus Bandeira (2006) afirmam que o conceito de ato infracional não deve ser visto como mero eufemismo para suavizar as condutas delitivas praticadas por crianças ou adolescentes, e sim como norma especializada e autônoma de Direito da Criança e do Adolescente de caráter extrapenal, com a finalidade de conferir um tratamento adequados aos jovens por estarem em condição peculiar de desenvolvimento.
Por outro lado, sob a ótica do senso comum ou popular que tenha algum conhecimento deste conceito, o ato infracional é visto faticamente como eufemismo repulsivo na medida em que suaviza o tratamento que o Estado confere menores que praticam delitos.
Outro ponto a ser observado é o desconhecimento de grande parcela da população sobre o conceito de ato infracional ou as medidas socioeducativas, ou mesmo a existência do sistema nacional de atendimento socioeducativo. Para estes, o fato da conduta delitiva ser praticada por adolescente tem sempre como resultado a impunidade e inércia estatal.
Constatada a prática ato infracional por criança ou adolescente, haverá um processo judicial denominado Apuração de Ato infracional, sendo assegurado todos os direitos e garantias processuais, devendo ser analisado por juiz competente e contar com a participação do Ministério Público e da Defensoria Pública, caso a criança ou adolescente não disponha de advogado. Esse processo tramitará em segredo de justiça.
Após a devida apuração do ato infracional no que tange autoria e materialidade, o processo poderá resultar, se cometido por criança, na imposição de uma medida protetiva e na responsabilização dos pais. Caso o ato tenha sido praticado por adolescente, poderá ser imposta uma medida socioeducativa de acordo com as circunstâncias e a gravidade do ato infracional cometido.
2.2 – As Medidas Socioeducativas
São os mecanismos de responsabilização aplicáveis exclusivamente aos adolescentes autores de ato infracional que estão previstas no artigo 112 do ECA. As medidas só podem ser aplicadas por autoridade judicial competente após o devido processo de apuração do ato infracional (Brasil, 1990).
Em raros casos, se o adolescente cometer o ato infracional aos 17 anos e ficar foragido e tempo depois localizado, poderá cumprir a medida até os 21 anos, momento em que será extinta.
Muito se discute acerca da natureza jurídica das medidas socioeducativas. Para alguns, seria de natureza educacional ou de segurança pública. A corrente majoritária é que a natureza predominantemente é a de direitos humanos.
O mais correto seria afirmar que é que se trata de natureza híbrida, pois, engloba diversas áreas do conhecimento além do direito e das diversas políticas públicas setoriais, principalmente a assistencial social e educação, e de certa maneira na segurança pública também.
Ainda que não haja consenso sobre isso, as pesquisadoras Bianca Moraes e Helane Ramos (2019) afirmam que as medidas socioeducativas possuem um caráter sancionatório, pois, após a imposição ao adolescente pelo Estado/juiz, o primeiro deverá ser cumpri-la independente da sua aceitação ou vontade.
Ao impor a medida, o juiz responsável deverá observar os seguintes critérios de aplicação: as circunstâncias e a gravidade do ato infracional e a capacidade do adolescente em cumpri-la (Brasil, 1990). De acordo com as autoras Bianca Moraes e Helane Ramos (2019) “aplicação da medida está intrinsecamente ligada à avaliação sobre a natureza do ato infracional e sobre a situação individual do seu autor”.
Por exemplo, no caso de ato infracional análogo ao crime de dano em que o adolescente tem 13 anos, é impossível ele conseguir providenciar o devido reparo considerando que não possui compleição física ou sequer pode auferir renda por meio de programa de menor aprendiz ou estágio.
As espécies de medidas socioeducativa estão elencadas no artigo 112, sendo elas: a advertência; a obrigação de reparar o dano; a prestação de serviços à comunidade; a liberdade assistida; a inserção em regime de semiliberdade; a internação em estabelecimento educacional.
A depender do caso, as medidas poderão ser aplicadas uma ou mais medidas cumulativamente, tendo o seu cumprimento a duração máxima de até 3 anos ou o adolescente completar 21 anos, devendo ser avaliada no máximo a cada 6 meses.
2.2.1 – As Medidas em Meio Aberto
A medida de advertência se constitui “em admoestação verbal, que será reduzida a termo e assinada” (Brasil, 1990). Os professores Murilo e Ildeara Digiácomo (2020) pontuam que diversas vezes na prática, a advertência é aplicada como mera assinatura de termo de advertência em cartório, e que sua aplicação deveria ter um procedimento mais técnico-pedagógico de modo a conscientizar o adolescente e sua família acerca das consequências da reiteração infracional.
Já a obrigação de reparar o dano é aplicada nos casos em que o ato infracional tenha reflexos patrimoniais, tendo como finalidade a reparação ou compensação à vítima. Conforme explanado pelo Procurador Guilherme Barros (2019) essa medida tem baixíssima aplicabilidade porquê a maioria dos adolescentes e suas famílias sequer têm renda própria que possibilite ressarcir a vítima.
A prestação de serviços a comunidade é a medida na qual, verificada a capacidade o adolescente, será executada em alguma instituição social, escolar ou hospitalar. Tanto Guilherme Barros (2019) quanto Bianca Moraes e Helane Ramos (2019) concordam que o objetivo dessa medida é que o adolescente desenvolva um senso cívico e que a doutrina majoritária concorda que é uma das medidas que mais apresenta resultados positivos
A liberdade assistida é prevista no artigo 118 do ECA, e de acordo com Rossato e et al. (2019) o adolescente a cumprirá junto à sua família e comunidade, sendo orientado e auxiliado por meio de uma entidade de atendimento que designará um profissional capacitado.
Contudo, em munícios pequenos, sem estrutura e localizados longe das regiões metropolitanas, a prática de execução da medida de liberdade assistida é quase a mesma da advertência, isto é, a mera assinatura de um documento em local designado.
Em alguns casos pode ser verificado nas varas da infância e juventude que a depender do ato infracional, o juiz aplica as medidas de prestação de serviços juntamente com a de liberdade assistida para um melhor acompanhamento do adolescente.
2.2.2 – Medidas de restrição e privação de Liberdade
São as medidas consideradas mais severas dentro do ECA por agirem diretamente na liberdade de ir e vir dos adolescentes. Devem ser aplicadas excepcional e brevemente, motivo pelo qual são aplicadas em casos de atos infracionais análogos a crimes com emprego de grave violência física como roubo, homicídio, latrocínio e estupro.
A semiliberdade é uma medida de restrição de liberdade, que é muito semelhante ao regime semiaberto da execução penal. Nela o adolescente é inserido em uma instituição conhecida como casa ou unidade de semiliberdade devendo executar atividades externas durante o dia e repousar durante o período noturno.
Nesta medida adolescente será parcialmente privado do ambiente familiar e comunitário de origem, sendo feita a sua reinserção nesses ambientes de maneira gradual e monitorada de forma a garantir sua reintegração social plena e minimizar as chances reiteração infracional.
Conforme explicado por Rossato e et al. (2019) durante o cumprimento da medida de semiliberdade o adolescente tem livre acesso as áreas comuns da unidade e deve realizar atividades externas de: escolarização formal, cursos profissionalizantes, de lazer e acompanhamentos de saúde na rede próxima.
Tais atividades independem de autorização judicial e demandam acompanhamento pela unidade na qual o adolescente estará vinculado durante a medida.
Caso o adolescente tenha escolaridade suficiente e uma oportunidade, poderá também estagiar ou trabalhar como menor aprendiz. Pode ser usada tanto como medida inicial ou como medida de transição entre a internação e a liberdade assistida.
Já a internação, é a medida mais gravosa, pois, ao contrário da medida de semiliberdade, priva totalmente o adolescente da sua liberdade colocando-o em um estabelecimento educacional (Brasil, 1990). Tais unidades remontam a lembrança popular das FEBEM’s e hoje são conhecidas como unidades socioeducativas que adotam as seguintes nomenclatutas: CASE’s e CEIP’s, casas ou unidades de semilidade.
Ainda sobre as unidades socioeducativas, suas estruturas físicas e arquitetônicas são quase iguais as de um estabelecimento penal, com as seguintes características: muros e portões altos; paredes, grades e cadeados reforçados; um conjunto de servidores ou empregados públicos responsáveis por zelar pela segurança das instalações e dos adolescentes ali internados e uma equipe multidisciplinar composta por assistentes sociais, psicólogos, pedagogos, advogados, e as vezes enfermeiros e médicos.
A depender do Estado da federação, as unidades podem estar vinculadas diretamente a uma Secretaria de Estado como é o caso do Tocantins; ou estar sob a administração indireta como é o caso de São Paulo por meio da Fundação CASA, o Pará por meio da FASEPA e o Rio de Janeiro por meio do DEGASE; ou mesmo por meio de uma parceria público-privada ou cogestão com é o caso de algumas unidades socioeducativas de Minas Gerais.
De acordo com os ensinamentos de Bianca Moraes e Helane Ramos (2019, p. 1261) a medida de internação possuí três modalidades: internação provisória, que é uma medida cautelar em que o adolescente pego em flagrante poderá ficar internado provisoriamente aguardando sentença definitiva até 45 dias; a internação definitiva com prazo indeterminado limitada a no máximo 3 anos; e a internação sanção com prazo determinado, que é usada em razão de descumprimento de medida mais branda anteriormente imposta.
3 – O PERFIL DO ADOLESCENTE EM CONFLITO A LEI NO BRASIL
Os menores infratores ou adolescentes em conflito com a lei são jovens que por diversos motivos acabam se envolvendo em atividades criminosas. É difícil apontar com certeza e precisão os motivos que levam o adolescente a delinquência juvenil, entretanto, os mais apontados pela maioria dos estudos realizados são a falta de acesso à educação, à saúde, renda, cultura, ou seja, vulnerabilidade financeira e social.
No Brasil o Ministério dos Direitos Humanos por meio de sua Secretaria Nacional dos Direitos Humanos e Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, é o órgão competente para coordenar o atendimento socioeducativo em âmbito nacional e deveria realizar o Levantamento Anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo junto aos Estados da federação.
Esse levantamento consiste na coleta e análise de dados sobre os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa em território nacional com a finalidade de subsidiar relatórios estatísticos, estudos de caso, análises quantitativas e qualitativas e outros documentos técnicos que embasam a tomada de decisão na condução dessa política pública social.
Todavia, tal estudo não é realizado com a periodicidade prevista em lei e alguns Estados optam por não participar. Quanto aos que participam, não o fazem efetiva e corretamente, levando o relatório a uma certa inconsistência e incompletude.
Verifica-se no site do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente que entre os anos de 2018, 2019 e 2021 não foram realizados os levantamentos anuais, fragilizando o perfilamento socioeconômico e demográfico dos adolescentes em atendimento socioeducativo, dificultando a construção de diagnósticos e estudos de caso, e inviabilizando a identificação e adoção de ações estruturais e resolutivas que poderiam ser mais efetivas.
Além desses levantamentos, outras fontes de informações existentes são dos poucos governos e comarcas locais, que os elaboram por meio de seus profissionais e de artigos científicos de acadêmicos das diversas áreas do conhecimento, sendo a maioria dos cursos: psicologia, pedagogia, sociologia e serviço social.
Observa-se que há pouca produção jurídica e doutrinária sobre a temática em questão, cujas fontes são de comarcas que possuem profissionais que atuam em varas especializadas na área da infância e juventude. Outra fonte de informação são os levantamentos e relatórios elaborados por ONG’s e projetos sociais atuam na área.
Contudo, deve-se observar que tais documentos não se utilizam dos mesmos critérios, indicadores sociais, sistemáticas e metodologias em suas produções, o que por consequência gera uma falta de padronização, divergência e fragilidade na construção de qualquer diagnóstico, tendo cada órgão ou entidade um ponto de vista sobre a questão socioeducativa no cenário nacional.
Um exemplo claro dessa inconsistência é que o Conselho Nacional de Justiça divulgou o Panorama de Reentradas e Reiterações Infracionais (2019)[3] cujo objetivo era apurar e comparar a os sistemas socioeducativos e prisional nesse aspecto em específico. Contudo, tal relatório foi duramente criticado pelo Juiz de Direito Dr. Paulo Borges[4], conforme veremos a seguir:
[…Ocorre que um olhar atento à metodologia e desenho das pesquisas indicam sérias fragilidades que comprometem suas principais conclusões.
Inicialmente, chamou a atenção a disparidade de escolhas conceituais. Na pesquisa sobre o sistema socioeducativo, optou-se pela utilização de dois termos: reentrada (cumprimento de uma nova medida socioeducativa independente de trânsito em julgado) e reiteração (superveniência de nova sentença condenatória transitada em julgado). Já na pesquisa sobre o sistema prisional, utilizou-se reincidência como o início de uma nova ação penal no sistema de justiça criminal.
A dualidade de critérios, ainda que possa ser decorrência da diversidade da base de dados utilizada em cada uma das análises, contém uma diferença conceitual relevante e com enorme impacto nos resultados.]
[…o relatório conclui que o sistema socioeducativo possivelmente demonstra “uma maior capacidade deste último na interrupção da trajetória dos ilegalismos”, existindo “forte indicador de que a expansão do sistema prisional para a parcela do público atualmente alcançado pelo sistema socioeducativo pode agravar os níveis de criminalidade no país”. Trata-se de uma conclusão que não encontra respaldo estatístico na pesquisa realizada e contém uma relação de falsa causalidade, comparando conceitos e amostras incompatíveis e incomparáveis. Mais grave ainda é a simplificação dali decorrente e a conclusão de que a reincidência no sistema socioeducativo é de 23,5%; enquanto no sistema prisional é de 42,5%…]. (Borges, 2020, Conjur)
Aqui podemos verificar que o maior órgão de controle administrativo do Poder Judiciário tem extrema dificuldade de realizar uma pesquisa estatística sobre a temática. O ilustre magistrado em seu artigo de opinião aponta as deficiências desse panorama, tais como: “a falta de rigor metodológico, a incoerência dos critérios comparativos adotados que são dissonantes entre sí e a conclusão fragilizada pela falta de respaldo científico”.
Dito isso e, em seguida, observando os Levantamentos do SINASE referentes aos anos de 2017 e 2020 juntamente com o Relatório Estatístico do Sistema Socioeducativo do Tocantins – 2020, podemos verificar que os adolescentes que cumprem medida socioeducativa são quase o mesmo perfil das pessoas que cumprimento de execução penal.
Em sua maioria são do sexo masculino, pretos e pardos, com baixa escolarização formal e profissional, de núcleos familiares social e financeiramente desestruturadas, residentes de zonas periféricas, dependentes químicos, vítimas de violência doméstica, física, psicológicas, ou seja, de uma tremenda exclusão social. Não são todos que são exatamente esse perfil, mas uma esmagadora maioria tem alguns ou senão todos esses traços de vulnerabilidade social.
Além desses fatores, com certeza há outras variáveis determinantes que podem levar o adolescente a realizar práticas delitivas, como fatores psicológicos, sociais, culturais, regionais, pessoais, ou seja, é uma questão social complexa e multifatorial. Para uma melhor apuração e análise é necessário realizar um estudo multidisciplinar coordenado em cada Estado da Federação para se obter um melhor panorama.
Nota-se que não há um esforço comum dos órgãos superiores federais em padronizar e traçar parâmetros específicos para o levantamento dos dados pertinentes a política de atendimento socioeducativo. Cada um tem atuando com critérios e metodologias próprias e, portanto, tirando suas próprias conclusões quanto aos problemas e possíveis soluções.
O envolvimento do adolescente com a criminalidade desencadeia diversas consequências, para si mesmo na medida em que adentra um ciclo de violência e tem dificuldade para sair desse ciclo, e para a sociedade na medida em que sofre com o aumento crescente da violência urbana, que por sua vez gera medo e insegurança, fazendo-a clamar por punições mais severas do que as previstas.
Além disso, o custo do sistema de justiça criminal é elevado, e a reincidência entre os jovens que passam pelo sistema é alta, o que demonstra a necessidade de políticas públicas mais efetivas para lidar com a questão.
4 – O ADVENTO DO SINASE: DE MERA RESOLUÇÃO A LEI FEDERAL
Embora o ECA tenha trazido uma série de inovações no campo protetivo, pecou em não sistematizar da maneira devida à execução das medidas socioeducativas. Não estava claro que ente federativo deveria financiar, executar e acompanhar a execução das medidas socioeducativas.
Ainda que tenha estruturado de maneira eficaz os procedimentos judicias e a forma especializada de tratar o assunto com a delicadeza e perícia exigidos no âmbito do sistema de justiça, o ECA não teve o mesmo cuidado de desenhar bem a estrutura de execução das medidas socioeducativas pelo poder executivo.
De 1990 a 2012 permaneceu um limbo jurídico de quem seria o responsável pela execução das medidas socioeducativas nos níveis federal, estadual e municipal. O ECA trouxe conceitos gerais e abstratos, mas não especificou quem ou como seriam conduzidas. O legislador apenas se ocupou em resguardar os direitos do adolescente durante o cumprimento da medida.
Tal cenário caótico mudou em 2006 com a Resolução nº 119 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, ou simplesmente Sinase, conceituando conforme veremos a segui:
O SINASE é o conjunto ordenado de princípios, regras e critérios, de caráter jurídico, político, pedagógico, financeiro e administrativo, que envolve desde o processo de apuração de ato infracional até a execução de medida socioeducativa. Esse sistema nacional inclui os sistemas estaduais, distrital e municipais, bem como todos as políticas, planos, e programas específicos de atenção a esse público (SINASE, 2006, p. 22).
O Sinase (2006) finalmente passou a ter o status de uma política pública social com objetivos claros e competências bem definidos. Teve várias inovações tanto na parte normativa, quanto estrutural e procedimental.
Além de trazer princípios já previstos nas normas gerais, inovou trazendo o princípio da incompletude institucional. Tal princípio assevera que o atendimento socioeducativo por si só não é uma política isolada, e que, portanto, deve ser articulado conjuntamente com as outras políticas e serviços públicos de caráter básico e universal.
Contudo, na prática é difícil materializar esse princípio considerando o crescente desmonte e sucateamento de serviços e políticas públicas, tendo sua capacidade de atendimento e qualidade reduzidos drasticamente.
Embora, o Sinase tenha procurado inovar e melhorar em vários aspectos a execução das medidas socioeducativas, inicialmente foi pouco levado em consideração pelos Estados e Municípios por ter sido instituído por meio de resolução, isto é, uma espécie de norma inferior na escala da teoria da hierarquia das normas.
Em 2012 foi promulgada a lei federal nº 12.594 que “Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional”, ou seja, o Sinase passou a ter status de lei, uma norma a qual todos os entes da federação passam a ter a obrigatoriedade de observar e cumprir.
A lei do Sinase no geral referendou o que já estava previsto na resolução nº 119 do Conanda. Mas os entes da federação passaram de fato a observar e cumprir suas competências, sendo elas: a União deverá traçar as diretrizes gerais do atendimento socioeducativo por meio do CONANDA e da SDH; que os Estados da federação financiem e executem as medidas de restrição e privação de liberdade; enquanto os municípios são responsáveis pelas medidas de meio aberto.
Em relação ao financiamento do atendimento socioeducativo, os art. 30 ao 32 da lei do Sinase definem que será feito por meio cofinanciado por diversas fontes, como “dos orçamentos fiscal e da seguridade social e outras fontes” com diversos recursos a serem direcionados aos Fundos dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, e que estes conselhos de direitos devem estabelecer um percentual a ser destinado ao atendimento socioeducativo.
Em um breve comparativo, pode ser observado que o sistema penitenciário ou penal tem um fundo exclusivo para o seu custeio através da Lei complementar nº 79 de 1994, que criou o Fundo Penitenciário nacional, ou seja, o Brasil tem um fundo exclusivo para aparelhar a execução penal. Enquanto, o atendimento socioeducativo dispõe de um sistema de financiamento precarizado recebendo pouquíssimos recursos. Isso é facilmente observado nos diversos portais da transparência da União e dos Estados
A partir disso, verifica-se que o Brasil ao invés de honrar com o princípio da prioridade absoluta ao direito da criança e do adolescente, aportando recursos numa fase importante de desenvolvimento dos membros da sociedade, prefere adotar uma postura meramente remediativa financiando mais efetivamente a execução penal.
5 – REFLEXÕES E CONSIDERAÇÕES FINAIS
A problemática do envolvimento de crianças e adolescentes com práticas delitivas é uma questão multifatorial, isto é, são diversas as causas que levam o adolescente à prática de ato infracional.
Elas podem ser de ordem: financeira, econômica, psicológica, familiar, ambiental, social e política. Tal questão não será resolvida com uma mera repressão policial, ou “atendimento socioeducativo” sem o devido estudo de caso multidisciplinar para realizar o diagnóstico necessário à devida solução.
A questão demanda tempo e esforços setoriais em conjunto e com estratégias de longo prazo para que seja adequada a níveis relativamente aceitáveis, ainda que mitigar seja o ideal.
Entre os diversos membros da sociedade, como os acadêmicos, atores sociais, militantes, filósofos, e profissionais atuantes no sistema socioeducativo sempre houve as seguintes questões: seria o adolescente infrator uma vítima ou um agressor? O atendimento socioeducativo é uma política de direitos humanos, educacional ou de segurança pública?
Entretanto, no Brasil há um problema crônico no que tange a política de atendimento socioeducativo, a começar justamente pela falta de capacidade em verificar o perfil socioeconômico e demográfico dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa. O professor William Edwards Deming já dizia: “O que não pode ser medido, não pode ser gerenciado.”
Temos uma mera abstração, mas não um panorama claro do perfil dos adolescentes em conflito com a lei no Brasil. Tamanha é a descoordenação entre os três poderes nos mais diversos níveis da Federação em realizar tal levantamento, beirando a inércia, ineficiência e omissão.
Ainda que seja obrigatório reconhecer que o ECA é uma legislação inovadora em diversos aspectos, principalmente no caráter protetivo, falhou igual ao código de menores anteriormente em estruturar devidamente um mecanismo adequado de responsabilização aos adolescentes em conflito com a lei.
Diversas são as críticas pró e contra ao ECA, as medidas socioeducativas e o conceito de ato infracional em geral. Entretanto, há de se reconhecer que não somente o conceito de ato infracional é um eufemismo, mas também, as medidas socioeducativas e o Sinase são um eufemismo em relação ao Código Penal e a Lei de Execuções Penais.
Mesmo que o ECA relativize as condutas e sanções de acordo com o autor da prática infracional/delitiva, o fato praticado em sua essência produz o mesmo no mundo real independente do agente causador. Em outras palavras, o adolescente ou o adulto que cometem atos como homicídio ou estupro produzem o mesmo efeito na realidade de outra pessoa, independentemente de sua faixa etária.
Se compararmos com o código penal, o legislador se dedicou a separar as condutas e estabelecer proporcionalmente as devidas penas. Nas medidas socioeducativas sequer existe essa separação, ficando a critério do juiz a realização da dosimetria de duração da medida, abrindo a possibilidade de “a cada cabeça uma sentença”.
Quanto a estrutura física de qualquer unidade socioeducativa, é perceptivelmente visível em qualquer imagem disponível na internet a extrema semelhança com as unidades prisionais, tanto na parte externa quanto na interna.
Em relação a prioridade absoluta constante no ECA, que abarca o atendimento socioeducativo, ficou apenas no campo ideal, principalmente quando observamos que a União financia o sistema penal por meio do Fundo Penitenciário Nacional.
Enquanto isso, sequer existe um fundo exclusivo para o custeio do atendimento socioeducativo, ficando este apenas com determinada fração dos Fundo Nacional, Estaduais e Municipais da Criança e do Adolescente, ou seja, o que ocorre na pratica é um subfinanciamento.
Não bastando tudo isso, há de ser observado também o evidente e nítido conflito entre os servidores atuantes nas unidades socioeducativas. São diários os embates entre as equipes técnicas/multidisciplinares contra os servidores responsáveis pela segurança, gerando uma crise institucional interna e um grande desarranjo institucional.
Tal conflito é fruto de uma tremenda omissão normativa, tanto do ECA quanto do Sinase, acerca dos instrumentos e procedimentos de segurança que eventualmente poderiam e quando deveriam ser utilizados. Ainda hoje os servidores atuantes na área de segurança das unidades socioeducativas operam de forma precária, sem resguardo ou segurança jurídica, correndo um enorme risco de ser penalizado por qualquer mínima intervenção.
Sobre o prazo de duração das medidas socioeducativas, há um embate entre os pontos de vista dos acadêmicos e popular. É compreensível que o adolescente se encontra em fase peculiar de desenvolvimento e esse tratamento diferenciado talvez se justificaria em determinadas condutas, como nos crimes patrimoniais ou contra a honra.
Contudo, a indignação popular encontra cada vez mais razão na medida em que as condutas “análogas” aos crimes contra a vida e dignidade sexual são respondidos pelo ECA apenas com no máximo 3 anos de internação ao adolescente, quando chega a isso.
Portanto, ainda que os estudiosos, profissionais e militantes da área da infância e juventude afirmem que o espirito das leis do ECA e do Sinase se constituem em legislações autônomas e benéficas à juventude como um todo, para a esmagadora maioria da população, ainda seja leiga no assunto, se constituem de fato em um eufemismo que resulta em impunidade e aumento dos índices criminais.
Considerando a nossa história, em termos legislativos tivemos diversos avanços. Mas no campo prático até mesmo da proteção, pouco se efetivou. As políticas da criança e adolescente não recebem a devida atenção dos governantes, pois, diretamente não rendem votos em uma eleição, portanto, não sendo vistos como prioridade de qualquer dirigente que chegue ao poder do Estado.
Por fim, o que se concluí nesse trabalho é que embora o atendimento socioeducativo seja legalmente uma política social, se constitui na prática em um instrumento de segurança pública sucateado principalmente por parte dos Estados da federação, paliativamente utilizado para meros fins de controle social.
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[2] Disponível em: <https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2023/03/27/estudante-de-13-anos-mata-professora-e-fere-mais-quatro-pessoas-em-escola-estadual-de-sao-paulo.ghtml>
[3] Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/Panorama-das-Reentradas-no-Sistema-Socioeducativo.pdf>
[4] Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2020-ago-16/borges-cnj-reincidencia-metodologia-vila>
Caio William Barcelos Santos – Graduado em Gestão Pública (UNICSUL). Servidor do Sistema Socioeducativo do Tocantins com vivência prática na equipe de gestão na Superintendência de Administração do Sistema de Proteção dos Direito da Criança e do Adolescente, e na atividade finalística da Unidade de Semiliberdade Masculina de Palmas-TO (SECIJU-TO). Acadêmico pesquisador da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS)1
Odi Alexander Rocha da Silva – Doutor e Mestre em Linguística e Letras (PUC-RS), Especialista em Literatura Comparada (PUC-RS), Graduado e Licenciado em Letras (UFRS). Professor (UNITINS e UFT)2