AS MÁSCARAS ENTRE A PROIBIÇÃO E A OBRIGATORIEDADE: DIREITO, VIOLÊNCIA E SUBJETIVIDADE

THE MASKS BETWEEN PROHIBITION AND MANDATORY: LAW, VIOLENCE, AND SUBJECTIVITY

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202501251604


Raphael Ferreira de Ávila1


Resumo

Este artigo traça considerações sobre o exercício democrático e a cidadania no Brasil a partir das proibições do uso de máscaras e outros meios de cobertura da identidade durante manifestações públicas. Estas proibições, resposta do Estado aos atos ocorridos a partir das “jornadas de junho” de 2013, associam o uso de máscaras em meio a tais protestos com as ações de “vandalismo” através do anonimato. Buscamos abordar os limites para a efetividade da lei e da justiça enfocando os efeitos da proibição nos direitos civis e no comportamento dos cidadãos, em análise às posições subversivas dos manifestantes e as consequências do cerceamento das liberdades às vésperas da realização dos “megaeventos” de 2014 e 2016 na cidade do Rio de Janeiro. Contrastamos essa proibição a sequente obrigatoriedade do uso de máscaras para proteção individual durante a pandemia de Coronavírus. Atentos tanto a violência dos protestos quanto a que ocorre contra o cidadão cotidianamente, através das instituições públicas como a polícia e da ineficácia das leis diante a justiça, finalizamos traçando críticas à como o manejo do direto produz efeitos de produção de subjetividade, evidenciando elementos que ajudam na (re)construção de discursos que possibilitam outros modos de inserção nas tramas da sociedade atual.

Palavras-Chave: Protestos, Identidade, Processos de Subjetivação

Abstract

This article outlines considerations on the exercise of democracy and citizenship in Brazil based on bans on the use of masks and other means of covering one’s identity during public demonstrations. These bans, a response of the State to the acts that occurred from the “June days” of 2013, associate the use of masks in the midst of such protests with the actions of “vandalism” through anonymity. We seek to address the limits to the effectiveness of law and justice focusing on the effects of the ban on civil rights and citizens’ behavior, analyzing the subversive positions of the protesters and the consequences of the curtailment of freedoms on the eve of the 2014 and 2016 “mega-events” in the city of Rio de Janeiro. We contrast this ban to the subsequent mandatory use of masks for personal protection during the Coronavirus pandemic. Attentive both to the violence of the protests and to the violence that occurs against citizens on a daily basis, through public institutions such as the police and the ineffectiveness of laws in the face of justice, we conclude by outlining criticism of how the management of the right produces effects of subjectivity production, highlighting elements that help in the (re)construction of discourses that enable other modes of insertion in the plots of current society.

Keywords: Protest, Identity, Subjectivation process

“Quem” é só uma forma que deve ter um porquê. E o que eu sou é um homem de máscara (…)

Não questionei seus poderes de observação, apenas enfatizei o paradoxo de perguntar a um mascarado quem ele é.

V, em “V de Vingança” (2006)

Sob os ecos das manifestações das “jornadas de junho” de 2013, as ações de mídias, Estado e agências de segurança pública detiveram-se, em análise, às imagens de destruição e aquilo reconhecido como ameaça a uma idealizada ordem pública. As cenas de vandalismo e violências explicitas por veículos diversos, sejam por parte dos manifestantes a depredar espaços públicos e privados, ou as cenas da repressão policial, causaram enorme comoção. Aos poucos, foram ganhando feições alguns rostos de manifestantes, supostas lideranças entre os mais radicais. Os grupos foram identificados (associados a tática black bloc), e suas práticas, condenadas. Uma delas, a que buscamos destacar aqui pelo desdobramento que assumiu nos campos inclusive jurídicos, nos parece fundamental na compreensão das estratégias de repressão as manifestações: a proibição do uso de máscaras.

Quase 10 anos depois daquela sequência de eventos, as ruas seguem seu cotidiano entre congestionamentos e tráfegos. Desde junho daquele 2013, cada vez menos movimentos de revolta tomam dos carros seu lugar nas vias. Há as passeatas de apoio público a lideranças políticas, em 2022 parte do calendário corriqueiro das capitais, como ano de eleições. Mas sobre os protestos, a resposta do Estado democrático de direito foi a articulação de uma série de dispositivos legais – alguns (re)apropriados e outros ainda criados – visando enquadrar os jovens mascarados que ocuparam as ruas, identificados com promotores dos atos de violência e categorizados como “vândalos”. Houve sim episódios de vandalismo, como houve uma dimensão de espetáculo na violência empregada nas ruas. Entretanto, a totalizante leitura pela representação do “vandalismo” não nos permite fazer uma leitura dos afetos e da força política das multidões nas ruas daqueles dias de junho. Nesta violência de contornos teatrais, a quebra de um vidro atirando pedras ou a dispersão de populações com tiros de balas de borracha e gases lacrimogêneos, os impactos são políticos e contornam os valores gerais de nossa democracia.

No âmbito federal, deputados e senadores defenderam projetos de lei com implícito intento de “disciplinar” às atuações manifestantes. Do ministério da justiça às secretarias de segurança dos estados, houve propostas de penas mais duras à atual legislação enquadrando delitos cometidos durante protestos. Enquanto o Executivo aplica um conjunto de medidas para “coibir o vandalismo” e aperfeiçoar punições, no Congresso chamaram a atenção discussões de projetos como a tipificação de terrorismo, até aqueles que limitam o direito à livre manifestação e à reunião, o principal deles proibindo o uso de máscaras e “materiais usados para esconder o rosto”.  No Rio de Janeiro, apesar de já promulgada a proibição, esta ainda não se aplica efetivamente nas ruas, aguardando talvez certo “suporte” de instancias federais.

ATRAVESSANDO AS RUAS DA CIDADE

Quando das manifestações de 2013, organizadas inicial e principalmente contra o aumento das passagens de transporte público, foram constatadas uma enorme diversidade de ações diretas como a destruição e depredação de patrimônios públicos e privados. Independente das justificativas que envolvam tais ações (a principal delas toma essas ações como resposta a incitação de violência por parte da polícia), foram imediatamente tipificados pela opinião pública como “vandalismo”. Nestas manifestações – onde por dentro travava-se ainda outra luta: a de grupos tentando impor pautas – desde declarações por saúde, educação e o direito à cidade, temas como corrupção e ataques ao governo federal e governos estaduais favoreceram a ampliação do movimento das passeatas, e com isso produzindo diversas linhas de tensionamento. A pluralidade de tendências e percepções revelaram os apelos ao individual, tornando as ruas da cidade não só palco e território das lutas, mas também aquilo pelo que se luta.

As denominadas “jornadas de junho” muniram de outra forma os movimentos da cidade, alargando pautas e acrescentando vertiginosamente milhares de pessoas às ações e manifestações. Naqueles dias de junho, evidentemente um modelo de representação política extravasou (LIFSCHITZ, 2013): a democracia representativa indireta foi colocada em xeque, e discursos por uma ação mais participativa até ideais libertários ganharam espaço e repercussão. Ocorreram por todo Brasil, articuladas a partir das redes sociais, ajudando na aglutinação das pessoas, causas e performances, e dessa forma, são construídas por vários vetores sociais que ainda causam dificuldades de se delimitar implicações e responsabilidades. Como movimento sem lideranças claras e perceptíveis (porque não são as lideranças habituais, levados por velhos atores políticos) apresentaram-se em pluralidade de tendências e percepções, e onde um dos poucos pontos comuns talvez fosse a união através da crítica e do descrédito aos governos e suas formas:

Uma multidão sem partidos e sem uma identidade social explicitada, deslocando-se em direção a lugares legitimados do poder para expressar suas reivindicações. Não se tratava de legitimar o movimento garantindo seu reconhecimento político. Ele existia em si e se auto validava como tal (LIFSCHITZ, 2013, p.701).

Marchando juntos, permaneciam ao mesmo tempo isolados, preservando individualidades ainda que em meio às fileiras fechadas das marchas, o que se manifestou claramente no uso dos cartazes. A longa faixa de pano que encabeçava as passeatas e que levava inscrita as palavras de ordem da vez foram substituídas por cartazes carregados por cada um, com suas próprias palavras de ordem. Cada cartaz aludindo a demandas de um eu, que se diferenciava das demandas do cartaz do lado, no que Javier Alejandro Lifschitz (2013, p.709) definiu como “nova forma de conceber a ação política como um microagenciamento”. Nesse sentido também as máscaras atuaram como elemento de demarcação das diferenças.

As reações a essa nova forma de organização levaram o poder público — em especial as polícias militares — a demonstrações de que ainda existe muito a ser conquistado em termos de liberdades públicas fundamentais no país, revelando ainda os resquícios dos anos de ditatura que permanecem impregnados como um odor antigo nas fardas dessa instituição. Perante o despreparo, a incoerência e truculência policial, o que se viu foram diversas ações de confronto (STENBRUCH, 2014). Mesmo que em sua maioria a população se dispersasse, alguns diante da violência reagiram. Entre eles, professores, médicos, enfermeiros e estudantes. Cidadãos a partir daí qualificados como “vândalos” pelas autoridades e pelo refrão da mídia. Em manifestações com a grandeza das vistas em junho (mais de um milhão de pessoas na Presidente Vargas, no Rio de Janeiro2), várias foram as ocorrências de depredações. Instituições como bancos, agências telefônicas e multinacionais tiveram suas fachadas completamente destruídas, exprimindo os mais diversos conflitos não declarados em torno dos usos (e abusos) da cidade, como território e como experiência coletiva. Este estado de inquietação social é o que transbordou, e por uma convergência de inércias, bloqueios e indiferenças, catalisou-se numa verdadeira cultura da indignação.

A interpretação da violência, e principalmente de sua legitimidade ou ilegitimidade, parece ter uma ligação direta com a crise de confiança na representação, cerne da democracia indireta brasileira. Camila Jourdan, professora, filósofa, e uma entre os 23 detidos e processados injustamente no contexto destas manifestações (os processos contra todos os acusados foi considerado ilegal pelo Supremo Tribunal Federal apenas em 2020, após diversas violações de direitos) em seu livro (2018, p. 125-126) assume a tese de que nas Jornadas de Junho de 2013, as reivindicações que apareceram nas favelas e comunidades não foram automaticamente traduzidas, como em geral é feito, como uma manifestação do tráfico local. Ao contrário foram pautas consideradas politicamente, refletindo uma alteração no padrão de aceitação, que sai da criminalização aberta para a tentativa de domesticação, gerando um novo espectro de ações do que seria reprimível. Milton Santos (2012) já se atentava para essa dinâmica e seus impactos na configuração urbana: A atividade econômica e herança social distribuem os homens desigualmente no espaço, fazendo com que certas noções consagradas, como a rede urbana ou a de sistema de cidades não tenham validade para a maioria das pessoas, pois o seu acesso efetivo a bens e serviços distribuídos conforme a hierarquia urbana depende do seu lugar socioeconômico e do seu lugar geográfico.

É preciso reconhecer os papéis históricos da violência, em que se destaca também o da resistência. Resistência como por exemplo às mudanças que contrariam interesses coletivos, de aumentos no preço das passagens a instauração de novos regimes. Momentos de descarga violenta estão presentes nos movimentos populares e nas mais diversas culturas, e seriam frutos de uma coletividade que experimenta o sentimento de sua potência e paixão, lançando-se contra vidraças, mutilando esculturas ou ocupando os espaços públicos. Sem pretender diferenciar ações de violência ou não, uma cultura que reprova o “vandalismo” como ato político não parece sustentar que o mesmo ocorra menos ou perenemente, na mesma medida em que uma cultura que reprova o protesto como inconveniência produz tantos protestos quanto onde este é um dever.

Na memória recente, eventos envolvendo violência ou “vandalismo” voltam a ser denunciados, promovidos com intento golpista contra um novo governo eleito, atacando o patrimônio dos três poderes da nação. Tal comparação é inevitável, mas sua diferença não pode ser ignorada: da conquista das demandas a transmissão de uma mensagem, os alvos distintos (do tomo histórico da Constituição de 1988 até a vidraça de um banco privado com declaração anual de lucros recordes, ano após ano) certamente quebram algum silêncio. E não se trata então de apontar para manifestantes que usam de violência, sua necessidade ou não, mas também de reconhecer que entre seus usos, o Estado detém para si um monopólio.

ESTADO DE VIOLÊNCIA E VIOLÊNCIA DE ESTADO

O Estado apresenta-se como entidade de exercício de um poder que tornaria possível a conciliação dos interesses que na população seriam inconciliáveis. Evidencia contradições existentes no corpo dessa população, dividida por interesses particulares, e acaba por fim se afirmando como instituição ético-política de intermédio da multiplicidade dos interesses. Para Michel Foucault (1995) o poder é um exercício constante na forma de um conjunto de ações sobre ações possíveis, inscrevendo-se sobre o campo das possibilidades. Para ele o termo “conduta” aparece como a melhor explicação do que há de específico nas relações de poder. O exercício do poder consistiria em “conduzir condutas” e ordenar possibilidades, assim estruturando o eventual campo de ação dos outros. O Estado atua sobre condutas, em especial, sobre o dissenso, a rebeldia e o desvio, aplicando sobre elas a ordem, que quando inconciliável resulta em no sistemático uso legitimo da força, que nada mais é que um uso legitimado da violência.

Contudo, a violência nunca é único instrumento de afirmação do Estado sobre a sociedade (FOUCAULT, 1995). Seu uso é combinado com as formas de apresentá-lo como legítimo, sendo a violência só eficaz quando envolvida por essas formas de legitimação, que exigem formas organizadas de aplicá-la, servindo às vestes ideológicas que procuram apresentar o Estado como uma função necessária e incontornável da sociabilidade humana. Nesta leitura, uma vez constituída sobre as formas consensuais, nas normas morais e imperativos éticos aceitos e compartilhados, a violência se torna instrumento da segurança para conter os casos desviantes. O Estado é então a garantia que a violência será coibida, mesmo que através de mais violência.

Em análise das origens desse poder atribuído a figura representada pelo Estado surge a contribuição de Sigmund Freud em “O Mal-Estar da Civilização” (1974). Freud apresenta o antagonismo micropolítico intransponível entre as exigências do desejo e as da sociedade, fazendo da cultura produtora de um mal-estar inerente a civilização. Assim, para o bem social, parte do desejo individual é sacrificado: para que a civilização possa se desenvolver o homem teria que pagar o preço da renúncia de sua satisfação, e assim, todo sujeito é um inimigo em potencial a civilização, uma vez que em todos existiriam tendências destrutivas, antissociais e anticulturais. Por fim a civilização trava uma luta constante contra o homem isolado e sua liberdade, substituindo o poder do sujeito pelo poder da comunidade. O poder do Estado se apresenta a partir daí como mediador desse conflito constante, penetrando nas mais intimas relações humanas como guardião da ordem e da civilidade, evitando o sofrimento e oferecendo segurança, as custas da renúncia dos desejos. Assim, o resultante da contradição inconciliável que fundamenta nossa sociedade é o uso da violência disfarçada de formas não explícitas, como valores morais ou formas aceitas de ser e comportar-se.  As formas de ser, agir e pensar são impostas coercitivamente e, se não percebemos esta coerção nas formas cristalizadas como hábitos, não é porque ela não exista. É porque já foi realizada com eficiência.

Mesmo a violência explícita é cotidiana. O Estado se protege no cotidiano da sociedade civil onde desconstrói particularidades e pode-se sempre acusar o erro humano, o desvio de conduta, a corrupção. Mais um caso isolado. No entanto as contradições desta ordem, por vezes, explodem em rebeldia e enfrentamentos. Não apenas como nos protestos que presenciamos em 2013, mas também por pequenas explosões e caóticas resistências que vão desde o enlouquecimento e a miséria que se torna incomodamente visível, até o crime. O Estado reprime e criminaliza essas dissidências, pelo receio de que qualquer pequena rachadura em sua ordem faça emergir a imensa corrente que unirá a população contra esta ordem que o Estado garante. A justificativa ideológica nos faz crer que a complexidade da sociedade contemporânea exige um grau de planejamento, técnica e procedimentos sem os quais seria impossível a vida em sociedade, nos lançando ao caos da guerra de todos contra todos. Entretanto, a ordem imposta sustenta desigualdades (SANTOS, 2012), e inevitavelmente transforma contradições em contradições inconciliáveis, criando formas de poder que servem para consolidar sua necessidade.

A MÁSCARA E OS MASCARADOS      

Oculto pela máscara, o indivíduo dilui-se na coletividade, na sua memória e nos seus sonhos para, dali extrair novos argumentos e razões. Converte-se em deus, no seu próprio antepassado, em animal mítico, em herói ou em fantasia, para regressar a si mesmo, negado e marcado, escondido pelo duplo papel que lhe revela a cena de sua cultura. A máscara permite ao homem representar a sua condição de ser e não ser. Permite que ele recorde a temível verdade do simulacro, o recurso da ficção que deve esconder para revelar. Permite o inquietante paradoxo da comédia humana, de toda a cultura que expressa o que diz e o que silencia.

Ticio Escobar, no catálogo da mostra “Máscaras da América Latina” (2002).

Outra face, outra identidade, outra representação. As máscaras são bastante singulares porque reproduzem uma face ao mesmo tempo em que ocultam outra. Para José Mattoso, a máscara longe de ocultar, revela: “Retira a expressão facial do rosto, mas manifesta aquilo que na vida cotidiana não se pode ver” (2013, p.01). No Brasil, são associadas a festividades de origem religiosa ou pagã, como os bailes e desfiles de Carnaval e as procissões da Quaresma, assim como as representações teatrais. No teatro e na ópera as máscaras desempenham função central: representam personagens ou sentimentos. Sua forma comunica ao público as diferentes facetas da realidade abordadas, e, não é por acaso, são o símbolo do teatro: comédia e tragédia. Mattoso (2013) considera ainda que as sociedades modernas só preservaram esse uso lúdico ou ilusório das máscaras, esquecendo-se de uma outra função, de relação com a vida e a morte, em um uso que estaria para além das aparências, que a face viva e individual faz esquecer.

A exceção das manifestações chamadas culturais como o carnaval, estão proibidos nas ruas de diversos estados brasileiros desde os já clássicos panos e bandanas até fantasias, e principalmente, o enigmático rosto de Guy Fawkes, máscara usada por um personagem de quadrinhos inspirado no revolucionário inglês e popularizada pelo filme “V de Vingança”, projetado para o plano midiático a partir do cinema e incorporado às manifestações de cidades distantes como Istambul, Londres, Rio de Janeiro e São Paulo, passando a ser referência da mudança iconográfica das manifestações contra a ganância corporativa. Lifschitz nos provoca com as inquietações que essa máscara específica gerou no Brasil a partir das Jornadas de Junho, e traduz essa inquietação através do jogo no qual elas nos convidam a participar: “uma imagem lúdica desengajada do contexto político local, excêntrica com relação aos ícones do protesto social, que se instalou como um passe nas mobilizações em junho” (2013, p 704). Esta máscara foi assim capturada da ficção para a realidade, e aparece no espaço da rua em situações políticas das mais diversas, como nas passeatas dos indignados na Espanha, em Wall Street e por fim nas avenidas das metrópoles brasileiras da década de 2010.

Destacaremos aqui três dos muitos usos possíveis às máscaras, evidenciadas nas manifestações a partir de junho de 2013 no Brasil. Sem desconsiderar as outras possibilidades desse uso, apontamos principalmente os que ajudam à tessitura das considerações no contexto da proibição: o uso pelo anonimato, garantido com fantasias ou panos e trapos sobre o rosto; o uso pela proteção, com as máscaras de gás; e o uso pelos aspectos simbólicos, como a de “V de Vingança”.

Em primeiro plano, um uso de máscaras para proteção da identidade. Pano na cara e máscaras: camuflagem para ativistas engajados em práticas ilegais, indumentária padrão dos “vândalos” e subversivos. Estas são representações do uso dessas máscaras usadas durante as ações de confronto, servindo de proteção contra a investigação posterior da polícia através de vídeos. As forças de segurança pública tomam como bases do trabalho de investigação não só as câmeras de segurança públicas e privadas, mas também uma série de câmeras portáteis, e mesmo vídeos gravados pelos próprios manifestantes em meio as ruas e lançados em redes sociais. Desde junho, o refrão das grandes mídias culpabiliza através de seu discurso uma “minoria infiltrada” nos protestos pelas ações de confronto, violência e depredação. Criam um inimigo, os inexplicavelmente onipresentes “vândalos”, e um discurso contra os “manifestantes infiltrados” que de repente tornou qualquer um que estivesse com um pano no rosto durante a manifestação um perigoso criminoso infiltrado.

Usar uma máscara não se trata tão somente de uma questão de ter algo a esconder, como se privacidade ou desconfiança fosse em si um crime. A perseguição, segregação aos mais radicais, e o preconceito entorno de práticas desviantes e marginais sempre foram práticas comuns das instituições tradicionais como a família, a igreja e as grandes empresas. Mesmo pensando no anonimato, há para além da cobertura contra práticas ilegais toda uma série de possibilidades a considerar sobre o uso de máscaras em manifestações. As primeiras Marchas da Maconha chamadas como um baile de máscaras e o aspecto carnavalesco das paradas LGBTQIA+ por todo Brasil garantiram os usos das fantasias com caráter prático: garantia do direito de se manifestar politicamente sem se colocar necessariamente em uma situação de fragilidade e exposição. O anonimato assim garante também a livre manifestação de pensamento e o exercício da democracia.

Neste segundo momento, pensemos as máscaras como parte de uma posição de resistência através da expressão desobediência. Palavra que reflete possível ação perante uma ordem. Demonstra uma posição de não aceitação a uma regra, lei ou decisão imposta, que em determinado momento e contexto não faça sentido. É enfim a prática de não se curvar a quem quer que algo imponha. A resistência é ponto fundamental do princípio de desobediência. Esta tende a demonstrar mais a violência da imposição, uma vez que obriga os agentes defensores das leis a usarem da força contra o praticante da desobediência, que age se negando a seguir as decisões tomadas por imposição, sem agredir ou revidar quem está tentando o impedir.

Uma tática difundida de desobediência civil é o bloqueio de uma área pelos manifestantes. Durante manifestações, quando a polícia intenciona dispersar as pessoas, os manifestantes se aproximam e se postam à frente da polícia, fechando uma rua ou passagem e se posicionando da melhor forma possível para cumprir o objetivo da manifestação, com a ideia de que a polícia não consiga dispersar os manifestantes com a sua simples aparição. Existem muitas formas de bloqueios (barricadas, aparelhos ou correntes para se prender em locais de passagens, queimar pneus ou lixo são alguns exemplos), criadas de acordo com a prática e necessidade. O tipo talvez mais difundido, e mais pacífico, seja o realizado sentado: Todos se sentam próximos na rua, via, ou espaço, não o deixando para que as forças policiais terminem na base da repressão com a manifestação. Nestes casos, e em outros onde a situação de confronto é eminente, máscaras como a descrita no prólogo deste tópico e outras mesmo compradas em lojas de equipamentos de proteção individual (EPIs) para profissionais, são fundamentais por permitirem anular completa ou parcialmente os efeitos do principal instrumento de dispersão de grupos – o gás lacrimogênio.

A desobediência é uma prática de resistência, e pacífica ou não, é um legitimo ato de defesa de qualquer cidadão que não queira colaborar com as decisões impostas, com as quais não concorda, e que têm sido tomadas em seu nome. Desobedecer significa não colaborar com o sistema, entrar em conflito com sua ordem instituída. Para os adeptos da desobediência civil, não é necessário lutar fisicamente contra um governo, apenas não o apoiar, não contribuir com ele, ignorar suas leis. E nesse contexto, resistir é fundamental, e o uso de máscaras com este fim surgem como advento e resposta as táticas de repressão.

Por fim, a máscara como um símbolo. O uso de máscaras no âmbito dos protestos conquistou um relevante significado. Tratando-se de uma dentre as muitas diversidades destas manifestações, foram o principal foco de debate das instâncias legais. E, se “por trás daquela máscara não existiria um homem, mas sim uma ideia”3, as proibições indicam o perfil das ações de reação do Estado frente os diferentes meios de manifestações da sociedade. Por mais pretensiosa que seja ideia de que nas manifestações todos possuíssem os mesmos desejos ou sequer que houvesse um objetivo comum, podemos, entretanto, tomar em dada medida e com efeito os usos de máscara como elemento de união e característica de diferenciação, tratando-se, portanto, de um reflexo subjetivo importante de uma vertente política.

No Estado do Rio de Janeiro, com os protestos desencadeados a partir de junho, alcançou-se patamares agudos de mobilização e falta de preparo da Polícia Militar e do Estado para garantir a ordem pública, sem colocar em jogo a repressão autoritária do direito de reunião e de livre expressão do pensamento. O direito a reunião, uma liberdade pública fundamental, está descrita no art. 5ᵒ, inciso XVI, da nossa Constituição de 1988:

Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente (Constituição Federal, 1988, p. 3).

Na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, uma expressão das reações do Estado contra insurgências desdobra-se na aprovação da Lei Estadual nº 6.528, de 11 de setembro de 2013. Sancionada pelo governador hoje preso Sérgio Cabral com o pretexto de regulamentar o direito constitucional de reunião, viola a liberdade de expressão imanente ao seu exercício, por meio da proibição do uso de máscaras em manifestações públicas no estado. Mesmo assim, influenciou diversos outros estados da união, tornando-se discussão a nível nacional. A lei baseia-se no texto da própria constituição, que fala em “anonimato”, uma única vez, no mesmo artigo 5º, inciso IV: “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (Constituição Federal, 1988, p.2), e produz evidente distorção usada na tentativa de justificar a proibição ao uso de máscaras e a interpretação da lei. O reconhecimento público não se faz pela apresentação simples do rosto, e sim pela apresentação de documento de registro pessoal mediante solicitação de uma autoridade.

Entre o fenômeno social dos protestos e a proteção constitucional que veda a manifestação anônima do pensamento há uma enorme diferença, a qual observada, se torna fácil constatar que o único propósito da iniciativa é o de coibir manifestações públicas sob o suposto combate a ações como o black blocs, intensas desde 2013 e objeto de muitas análises políticas.

A Constituição defende a liberdade do pensamento em sentido amplo, vedando o anonimato com o objetivo de assegurar a responsabilização por eventuais excessos. Assim, diferentemente do voto secreto ou as denúncias anônimas, as passeatas mascaradas são processos históricos decorrentes de uma conjuntura política (de sucessivos fracassos e constantes frustrações partidárias) e, paralelamente, refletem uma simbologia composta de diversos interesses convergindo a objetivos. A constituição assim, visando a aplicação ao maior âmbito possível de sua proteção, só poderia autorizar o entendimento de que toda manifestação de pensamento é livre, salvo se anônima. A exceção à proteção ao anonimato não deve então ser interpretada como uma proibição a este.  A manifestação do pensamento é a exteriorização produto da reflexão. É este sentido que nossa Constituição se presta a defesa: a liberdade do pensamento em sentido amplo. Por sua vez, o uso de máscaras no âmbito dos protestos possui um significado simbólico. Utilizar uma máscara é um acontecimento, cujo efeito e resultado remete a uma produção de subjetividade. Talvez por isso incomode os governos.

A Lei estadual nº 6.528, de 11 de setembro de 2013 do Estado do Rio de Janeiro, traz em seus primeiros artigos:

Art. 1º O direito constitucional à reunião pública para manifestação de pensamento será protegido pelo Estado nos termos desta Lei.

Art. 2º É especialmente proibido o uso de máscara ou qualquer outra forma de ocultar o rosto do cidadão com o propósito de impedir-lhe a identificação.

Parágrafo único. É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.

Art. 3º O direito constitucional à reunião pública para manifestação de pensamento será exercido: (…)

IV – Sem o uso de máscaras nem de quaisquer peças que cubram o rosto do cidadão ou dificultem sua identificação (Lei do Estado do Rio de Janeiro nº 6.528, 2013, p. 1).

A disposição da constituição é tomada como se não se aplicasse imediatamente, e é usada como justificativa para traçar a proibição a condutas de quem quer que exerça o direito a manifestação, limitando por fim o texto original. A continuação do texto segue amparando as afirmações presentes nestes primeiros artigos, em uma tentativa de adequar a norma ao plano constitucional do livre exercício do pensamento, ligando o uso de máscara (um fato, uma conduta) ao termo “manifestação do pensamento” como se o protesto não fosse apenas mais uma das diversas formas manifestação, evidenciando a separação da manifestação do próprio pensamento. As motivações das autoridades para justificar suas medidas, convergindo em um discurso de proteção contra “vândalos”, “criminosos” e em nome da “segurança pública”, por mais que justas à primeira vista, violam direitos e garantias fundamentais e representam um perigosíssimo precedente na história de nossa democracia.

COBERTURA DE IDENTIDADE E PROTEÇÃO CONTRA O CORONAVÍRUS

Era junho quando milhares de brasileiros saíram às ruas no ano de 2013.  Desde os movimentos dos caras pintadas, movimento estudantil realizado no decorrer do ano de 1992, que tinha como principal objetivo o impeachment do presidente da época, Fernando Collor, os movimentos de protesto eram eventos pontuais e restritos a categorias de trabalhadores em luta, organizados por centrais sindicais e partidos. As Jornadas de Junho trouxeram as grandes manifestações de volta à pauta, partindo da insatisfação com o aumento da passagem do transporte público para demandarem pleitos posteriormente diversos e genéricos. Diante de protestos em dimensões até então inimagináveis, a percepção de crise institucional engendrou politicamente um o contínuo movimento de restrição ao direito de protesto que analisamos até aqui. A partir de então, e sobretudo em decorrência da imposição da realização dos chamados megaeventos no Rio de Janeiro — a Copa das Confederações de Futebol, em 2013; a Copa do Mundo de Futebol FIFA, em 2014; e os Jogos Olímpicos, em 2016 —, percebe-se uma articulação institucional entre diferentes órgãos e poderes, visando a repressão por um sistema de vigilância aos protestos. A proibição de uso de máscaras em manifestações foi um desses reflexos.

A COVID-19, doença identificada pela primeira vez em dezembro de 2019 na cidade de Wuhan, China, propagou-se rapidamente e tornou-se uma pandemia em pouco mais de dois meses. Com infectividade elevada de seu agente etiológico, denominado Sars-Cov-2, aliada à ausência de imunidade prévia na população humana e à inexistência de vacina fez com que o crescimento do número de casos fosse exponencial, exigindo medidas para deter sua transmissão. Nesse contexto, foram indicadas intervenções não farmacológicas que incluíram medidas com alcance individual, ambiental e comunitário, como a lavagem das mãos ou uso de substância capaz de neutralizar as moléculas do vírus nas mãos, como o álcool, o distanciamento social, o arejamento de ambientes, a restrição ou proibição de circulação em locais públicos como escolas, universidades, locais de convívio comunitário, transporte público, além de outros locais onde há aglomeração de pessoas (OPAS/OMS, 2020). Tais medidas auxiliam na prevenção da transmissão, na diminuição da velocidade de espalhamento da doença, e consequentemente contribuem para “achatar a curva epidêmica” (em relação ao gráfico de estatísticas entre número de infectados e mortos pela doença e um determinado período). Assim, é possível diminuir a demanda instantânea por cuidados de saúde e mitigar as consequências da doença sobre a saúde das populações, incluindo a redução da morbidade e da mortalidade associadas.

As intervenções não farmacológicas são os métodos mais efetivos para reduzir a morbidade e a mortalidade por infecções respiratórias, com exceção das vacinas. Tais medidas são recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para o enfrentamento da COVID-19. O uso ideal para limitar a transmissão de doenças requer a aplicação de múltiplas estratégias parcialmente eficazes que são introduzidas em fases ao longo da pandemia, dependendo da gravidade da situação e dos padrões de transmissão local. As intervenções não farmacológicas, quando usadas em combinação, podem agir de forma complementar, ou mesmo sinérgica, de modo que sua sobreposição venha a restringir gradualmente a transmissão. A China adotou medidas rigorosas envolvendo diversas intervenções não farmacológicas, como determinações para distanciamento social, fechamento de estabelecimentos, bloqueio da cidade e quarentena em massa em Wuhan, bem como intensa busca de casos e contatos.

Inicialmente na China, uma estratégia complementar adotada no enfrentamento à COVID-19 foi o uso massivo de máscaras, inclusive por pessoas assintomáticas, mesmo em contraste à recomendação inicial da OMS de uso apenas para profissionais de saúde, pessoas infectadas e seus cuidadores. Com o avanço do número de casos no mundo e o controle exitoso de infecção na população chinesa, em abril de 2020 a OMS passa a recomendar máscaras a todos. As máscaras, como barreiras físicas, são efetivas em limitar a transmissão em curta distância por contato direto ou indireto, em especial por dispersão de gotículas pela fala, tosse ou espirro. As máscaras faciais, quando adaptadas adequadamente, interrompem efetivamente a dispersão das partículas expelidas, impedindo a transmissão de doenças respiratórias (OPAS/OMS, 2020). Mesmo máscaras que não se adaptam perfeitamente, como máscaras de fabricação caseira, embora com desempenho inferior às máscaras recomendadas como a padrão N95 têm demonstrado capacidade de reter partículas de vírus transportados pelo ar, de modo que esses não alcancem pessoas próximas.

A República Tcheca foi um dos primeiros países ocidentais em que o governo tornou obrigatório o uso de máscaras, ainda em março de 2020. Prevendo as dificuldades iniciais de acesso em massa a máscaras confeccionadas industrialmente, o país promoveu campanhas incentivando a produção caseira com materiais facilmente acessíveis, como camisetas velhas. O país, em apenas 10 dias, registrou números de quase a totalidade da população usando máscaras em espaços públicos, e o crescimento do número de casos novos da COVID-19 foi o mais lento entre outras nações europeias naquele momento (BBC, 2020). A recomendação para uso de máscaras por indivíduos assintomáticos, como intervenção de saúde pública, pôde interromper o elo de transmissão ao bloquear fontes infecciosas aparentemente saudáveis. Independentemente de proteger ou não quem está usando a máscara, seu uso poderia impedir a transmissão da doença ao limitar o espalhamento de partículas infectantes. A transmissão comunitária poderia ser reduzida se todas as pessoas, incluindo as assintomáticas e contagiosas, usassem máscaras faciais nos espaços públicos.

Giorgio Agamben, renomado filósofo italiano, procurou compreender os esforços dos meios de comunicação e das autoridades para difundir um clima de pânico, provocando o que chamou de “verdadeiro estado de exceção” (2020, p. 18-19), com graves limitações dos movimentos e suspensão do funcionamento normal das condições de vida. Sua análise, muito criticada pela comunidade acadêmica em geral no instante em que esforços buscavam garantir a aplicação das medidas sanitárias frente ao aumento de posições negacionistas, inclusive no Brasil de lideranças políticas, se colocou sobre dois fatores: utilização do estado de exceção como paradigma normal de governo, com a militarização por razões de saúde e segurança pública; e o medo coletivo, em necessidade real de estados de pânico coletivo, sendo a epidemia um pretexto ideal para a restrição da liberdade do cidadão. Em 2021, ainda durante momento de crise da pandemia de coronavírus no país e no mundo, uma nova onda de protestos surgiu no Brasil em denúncia à política de genocídio promovida pelo governo de Jair Bolsonaro. Em vários Estados era naquele instante, obrigatório que os participantes estivessem usando máscaras. Entretanto esta é ainda uma prática ilegal em diversos ordenamentos jurídicos estaduais, como pela Lei Estadual nº 6.528, de 11 de setembro de 2013, do Rio de Janeiro, que proibiu o exercício do direito de protesto com o uso de máscaras ou de quaisquer peças que cubram ou dificultem a identificação do cidadão. É importante ressaltar que esta, ainda em vigor, foi considerada inconstitucional pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ). O acórdão com parecer final desta comissão se encontra submetido ao Supremo Tribunal Federal (STF), ainda aguardando decisão. E no intervalo entre 2013 e as ondas de protestos de 2021, o debate não arrefeceu. Como pode ser visto no decreto nº 64.074, de 18 de janeiro de 2019, do Estado de São Paulo, em que o Governador autoriza a intervenção das Polícias Civil e Militar para tomar providências contra quem estiver ocultando o rosto.

Diante da maior crise sanitária do século, com efeitos econômicos e políticos, este arranjo normativo que regulamenta ainda o uso de máscaras no país. E seu debate retornou ao ordenamento legal e jurídico em 2020, com a obrigatoriedade do uso de máscaras como medida de redução de contágio à Covid-19. Entre diversos atos, destaca-se o decreto nº 47.375, de 18 de abril de 2020 na cidade do Rio de Janeiro, que torna o uso de máscaras obrigatório na cidade. A necessidade sanitária gera um particular paradoxo: se admite, em regime de crise, uma excepcional condição da lei estadual de proibição em virtude de exigências sanitárias, ou o estado de crise passa a figurar como momento de reinterpretação da restrição ao exercício do direito de protesto. Essa sobreposição de proibição/recomendação não se resolve por meio da coordenação da esfera política. As múltiplas preocupações com a gestão das políticas de combate e tratamento à Covid-19 tornam secundárias as limitações ao exercício do direito ao protesto, mas não deveriam deixar de lado as discussões sobre a proibição do uso de máscaras por manifestantes.

O uso de máscaras produz ainda um efeito subjetivo de conscientização e responsabilidade coletiva e pessoal no enfrentamento a doenças infecciosas. O envolvimento da população na implementação de medidas de saúde pública foi fundamental no controle de pandemias, em especial as de síndromes respiratórias. O significado para a saúde pública de significantes como a máscara facial pode ser considerado uma estratégia para enfrentar infecções emergentes. A recomendação para uso de máscaras por pessoas assintomáticas é especialmente útil em contextos locais onde a cobertura da testagem foi baixa, a exemplo do Brasil. Com o uso de máscaras, pôde ser reduzida a transmissão do coronavírus em comunidades onde indivíduos assintomáticos ou com sintomas leves não receberam diagnóstico, e continuaram a interagir com outras pessoas.

A recomendação do Ministério da Saúde no Brasil para o uso de máscaras por pessoas assintomáticas foi fundamental como uma estratégia adicional a outras intervenções não farmacêuticas. Contudo, tal recomendação precisa ser acompanhada por reforço às demais medidas preconizadas, educação da população e orientações claras a respeito do uso correto das máscaras. Quanto a questão de seu uso em protestos e manifestações, o direito de usar máscaras em manifestações é colocado em ponderação entre a liberdade de expressão como direito fundamental individual e a liberdade de reunião como direito fundamental coletivo. E o veto ao anonimato não se confunde com o anonimato absoluto, se considerarmos que uma máscara pode ser retirada por ocasião de procedimentos de fiscalização de agentes de segurança pública.

TRAÇANDO CONSIDERAÇÕES

Prisões arbitrárias dos protestos iniciados em junho (para averiguação, usada sem qualquer desconforto); tentativas de enquadrar jovens sem relação entre si e sem participação em depredações no crime de formação de quadrilha; a Lei de Segurança Nacional em São Paulo usada para enquadrar um casal que documentava a destruição após um protesto; aprovação da Lei de Organização Criminosa, no âmbito federal, e a lei inconstitucional, no Rio de Janeiro, proibindo o uso de máscaras nas manifestações; por fim, a expedição de mandados de busca e apreensão na casa de jovens, para averiguação de seus vínculos com black blocs, Anonymous, ou qualquer outro “grupo” que se utilize do subterfugio do anonimato. Este cenário de ações do Estado no exercício de combate às insurgências evidencia estratégias de poder do Estado que coincidem com a falta de amadurecimento democrático e de compreensão da diversidade própria de uma sociedade plural e complexa.

Restrições às liberdades individuais avançam na onda de leis “contramanifestação”. Posteriormente, a polêmica “Lei do Boné”, n.º 6.717/2014 do Estado do Rio de Janeiro, proibiu o uso do acessório, assim como capuzes, gorros ou capacetes que pudessem esconder o rosto em espaços fechados e estabelecimentos. Apesar de dividir opiniões, foi aprovada na Assembleia Legislativa do estado e promulgada pelo governador, entrando em vigor em maio de 2014. Seu objetivo, segundo a própria autora, deputada estadual Lucinha (PSDB), seria “impedir que criminosos tentem driblar as câmeras de segurança durante abordagens e assaltos”4.

As promessas de um novo Código de Processo Penal vêm com crítica às propostas da comissão encarregada dessa tarefa, principalmente no que se refere tipificação o crime de terrorismo, já considerado crime desde 2016 mas que pode ter suas dimensões ampliadas5. Mesmo diante da arbitrariedade policial e endurecimento da legislação, muitos continuam a hesitar em condenar essas ações. A violência das manifestações é transformada assim em pretexto para o endurecimento da legislação penal e da atuação policial. E o previsível apoio popular a medidas de exceção para o suposto combate ao caos nas cidades ignora que essas medidas somente aparentemente se destinam a grupos específicos, sem que de fato possam atingir a qualquer um bastando vontade política daqueles que ocupem lugares de representação.

É de se supor que os argumentos sanitários pudessem sustentar uma técnica de interpretação excepcional diante da justiça. Nesse caso. as exigências sanitárias demonstram a arbitrariedade da proibição genérica ao uso de máscaras em manifestações. Uma vez que não é a ausência de máscara que garante o reconhecimento individual (no caso da segurança pública, esse reconhecimento se faz pela apresentação de documento de identidade), a tentativa de vedar o anonimato leva à adoção de uma interpretação díspar, de forma a se garantir o uso excepcional dessas máscaras em um contexto de emergência sanitária. Em ambos os caminhos, no entanto, se verifica que a releitura dos dispositivos legais opera uma estratégia de controle. A própria atividade dos Estados no contexto das Jornadas de Junho em 2013 ilustra esse fenômeno em um sentido amplo. Se produziu um arranjo institucional de respostas consideradas emergenciais às crises sociais e políticas do período, de modo que a lei materializou uma restrição ao direito de protesto.

A máscara, antes supostamente instrumento de “camuflagem” para ativistas “mal-intencionados”, tornou-se no atual contexto essencial à saúde pública, sem causar o colapso social fantasiado nos argumentos daqueles que a criminalizaram para sancionar a proibição como resposta e repressão aos protestos de junho. Se nesta conjuntura experienciada a reprovabilidade das máscaras merece flexibilização, devendo-se privilegiar a saúde pública, a norma proibitiva que se figurou como uma reação institucional aos grupos organizados de 2013 revela sua função de dispositivo legal como estratégia de segurança pública a partir da repressão e coerção da liberdade do ato de protesto, criando o estigma da máscara como o artefato do anonimato. A ilegalidade não está na máscara, mas na injusta presunção de comportamentos daqueles que a utilizaram em protestos nos anos anteriores.

Professores em greve, jovens que se recusam a pagar o aumento das passagens, mulheres lutando contra as inúmeras violências que sofrem e jovens se beijando. Escudos, vinagres e máscaras. Estas foram expressões contundentes mesmo que parciais das contradições de nossa sociedade. Antes de haver manifestações, já estava lá um corpo doente da cidade, evidenciado na miséria, no crime e na indiferença (JOURDAN, 2018). É certo que vivemos momento histórico decisivo para que nossa democracia se consolide ou recue. E as posturas autoritárias perante esse momento, sem sombra de dúvida, representam risco a diversos direitos e garantias fundamentais e, por isso, devem ser questionadas e fiscalizadas por todos os que se implicam com a consolidação de uma sociedade justa. O ataque articulado ao direito do anonimato limita a capacidade de expressão, e não pode ser criminalizado. E isso não deve ser tomado como avanço democrático, como se quer fazer acreditar.

O fato de alguns grupos dispostos a depredar e a praticar atos ilícitos em manifestações ser tomado como razão do manejo de um sistema de crises, que se utilizou por exemplo de dispositivos legais em 2013 com a recentemente revogada Lei de Segurança Nacional, associando as ações que pretendem coibir como ameaças a soberania nacional ou o regime vigente, nos remete a história recente com os anos de ditadura, e lembram qual é o potencial de um Estado, se livre para tomar ações arbitrárias, sobre às liberdades públicas. O papel da resistência pacífica, da desobediência civil e mesmo dos protestos radicais, dentre as várias formas de exigir direitos, são importantes no território ordenado pela força da ordem como meio de garantia da manutenção da justiça social (SANTOS, 2012). A existência de ações usadas para criminalizar radicais revelam como as forças que se opõem a essa radicalidade (seja o Estado, o conservadorismo, e até mesmo o capital) atuam apaziguando ânimos para continuar distante da rebelião, cooptando as insurgências radicais e as criminalizando. Vigilância e repressão são ferramentas utilizadas largamente contra o dissenso político, e são contra essas que os movimentos sociais travam cotidianamente suas lutas.


2Dados oficiais da PMERJ relatam que em 20 de junho havia cerca de 300 mil pessoas na manifestação da Presidente Vargas. A COPPE-UFRJ, em recontagem conclui, entretanto, que havia 1.200.000 (um milhão e duzentas mil pessoas) participantes do ato. Ver em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/06/20/manifestacao-no-rio-de-janeiro-ja-reune-100-mil-pessoas-diz-pm.htm

3V, em “V de Vingança” (2006)

4Depoimento divulgado na notícia “Lei do Boné causa polêmica no primeiro dia de validade” de Francisco Edson Alves, para o jornal O Dia de 20/05/2014.

5Informações sobre o debate foram apresentadas na Câmara dos Deputados no final de 20220, Ver em: https://valor.globo.com/politica/noticia/2022/11/03/camara-deve-votar-novo-codigo-de-processo-penal.ghtml

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1Psicólogo e Mestre em Psicologia pela UFRRJ. Doutor em Psicologia pela UFF.
Contato: raphaelfdeavila@gmail.com