AS ILEGAIS E INCONSTITUCIONAIS TENTATIVAS DE LIMITAÇÃO ÀS ISENÇÕES TRIBUTÁRIAS ESTABELECIDAS PELO PERSE (PROGRAMA DE RETOMADA DO SETOR DE EVENTOS)

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10763926


Túlia Gomes de Souza Neves1


Resumo: O Programa Emergencial para Retomada do Setor de Eventos (PERSE) foi instituído pela Lei Federal nº 14.148/2021 trazendo diversos incentivos para recomposição do cenário de dificuldades vivenciado pelo setor em razão das diversas limitações ao pleno funcionamento advindas da necessidade de imposição de normas sanitárias de distanciamento social para combate à pandemia de COVID-19 (Sars-CoV2). Tendo enfrentado desafios que reduziram seus faturamentos, as empresas que compõem esse importante ramo da economia brasileira foram socorridas, dentre outras coisas com o incentivo fiscal que zerou a alíquota dos quatro impostos federais (IRPJ, CSLL, PIS e COFINS) pelo prazo de 60 (sessenta) meses. O que se demonstrará é que, apesar do inegável prejuízo que tais empresários sofreram, o Executivo Federal sempre tentou minorar os efeitos desses benefícios, inicialmente através de Portaria do Ministério da Economia e, mais recentemente, através da Medida Provisória nº 1.202/2023, independente do governante no comando do Governo Federal. Em que pese tal esforço, a jurisprudência do STJ e do STF enfrentaram questões semelhantes em momentos anteriores.

Palavras-chave: Direito tributário. Direito Constitucional. Incentivos fiscais. Isenção.

1 INTRODUÇÃO

O ano de 2020 ficou marcado por um dos maiores desafios enfrentados pela modernidade, a pandemia de COVID-19 (Sars-CoV-2).

Como modo de prevenir a rápida disseminação do vírus, a Organização Mundial da Saúde, através de diversos comunicados e portarias, indicou que toda a sociedade deveria pôr em prática o distanciamento social.

A partir desta medida, um dos setores produtivos que mais sofreu as consequências da recessão econômica instaurada a partir da pandemia foi o de eventos – compreendido pelas empresas e prestadores que atuam em ramos como festas, eventos, turismo (agências, transportes, hotéis, bares e restaurantes) dente outros.

Em 21/12/2020, foi apresentado o projeto de Lei n. 5.638/2020, que dispunha sobre ações emergenciais e temporárias destinadas ao setor de eventos, visando compensar os efeitos decorrentes das medidas de combate à pandemia da Covid-19 e que tratava do denominado “Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (PERSE)”.

Após o seu regular trâmite, houve a votação em ambas as Casas Legislativas e o envio para a sanção ou veto presidencial.

No dia 04/05/2021, houve a publicação da Lei Ordinária 14.148/2021 na edição de 04/05/21 do DOU, acompanhada dos vetos parciais opostos pelo então Presidente da República.

Entre os dispositivos da supramencionada lei que foram vetados estava o art. 4º da Lei 14.148, que reduzia a zero as alíquotas de PIS, COFINS, IRPJ e CSLL pelo prazo de 60 (sessenta) meses, contados a partir da produção de efeitos da lei.

Ou seja, vetou-se justamente os incentivos fiscais estabelecidos pela mencionada lei.

No entanto, no dia 18/03/2022 houve a rejeição ao veto presidencial, pelo Congresso Nacional, voltando a se inserir na lei a redução a zero da alíquota dos quatro tributos federais mencionados por 60 (sessenta) meses, além da participação no Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (PRONAMPE).

Para que seja beneficiária das reduções de alíquotas aqui tratadas – além de outros benefícios legados às empresas do setor de eventos – a Lei nº 14.148/2021 estabeleceu a limitação das atividades que são consideradas pertencentes ao setor de eventos.

Segundo a Lei, então, consideram-se pertencentes ao setor de eventos e, portanto, beneficiárias dela as pessoas jurídicas que exerçam, entre outras hipóteses, as atividades de prestação de serviços turísticos direta ou indiretamente, conforme o art. 21 da Lei nº 11.771/2008 (Lei Geral de Turismo).

Por sua vez, a Lei Geral do Turismo considera como prestadores de serviços turísticos as sociedades (empresárias ou simples), os empresários individuais e os serviços sociais autônomos que prestem serviços relacionados à: hospedagem; agências de turismo; transportadoras turísticas; organizadoras de eventos; parques temáticos; e acampamentos turísticos.

Contudo, tal conceito de serviços turísticos foram estendidos para sociedades empresárias que exerçam outras atividades relacionadas ao setor do turismo, a exemplo de restaurantes, cafeterias, bares e similares (Art. 21, parágrafo único, inciso I, da Lei 11.771/2008), facultando a estes o cadastro dessas atividades no Ministério do Turismo, conforme se depreende da leitura do dispositivo retro mencionado, in verbis:

Art. 21. Consideram-se prestadores de serviços turísticos, para os fins desta Lei, as sociedades empresárias, sociedades simples, os empresários individuais e os serviços sociais autônomos que prestem serviços turísticos remunerados e que exerçam as seguintes atividades econômicas relacionadas à cadeia produtiva do turismo:

I – meios de hospedagem;

II – agências de turismo;

III – transportadoras turísticas;

IV – organizadoras de eventos;

V – parques temáticos; e

VI – acampamentos turísticos.

Parágrafo único. Poderão ser cadastradas no Ministério do Turismo, atendidas as condições próprias, as sociedades empresárias que prestem os seguintes serviços:

I – restaurantes, cafeterias, bares e similares;

II – centros ou locais destinados a convenções e/ou a feiras e a exposições e similares;

III – parques temáticos aquáticos e empreendimentos dotados de equipamentos de entretenimento e lazer;

IV – marinas e empreendimentos de apoio ao turismo náutico ou à pesca desportiva;

V – casas de espetáculos e equipamentos de animação turística;

VI – organizadores, promotores e prestadores de serviços de infraestrutura, locação de equipamentos e montadoras de feiras de negócios, exposições e eventos;

VII – locadoras de veículos para turistas; e

VIII – prestadores de serviços especializados na realização e promoção das diversas modalidades dos segmentos turísticos, inclusive atrações turísticas e empresas de planejamento, bem como a prática de suas atividades.

Confirmando tal expansão, a regulamentação da Lei Geral de Turismo, nos termos do Decreto 7.381/10 (seção II) dispõe sobre os “Prestadores de Serviços Turísticos de Cadastramento Facultativo”, afirmando que tanto os previstos no caput como no parágrafo único são compreendidos como prestadores de serviços turísticos.

Todavia, é importante destacar que, com relação ao inciso I, o decreto nada dispõe, cabendo o regramento à Lei Geral de Turismo, que considera os serviços de restaurantes e similares como serviços de turismo, mesmo que o seu cadastro no Ministério do Turismo seja facultativo.

Diante desse contexto, diversos prestadores de serviço, sobretudo bares e restaurantes, nunca se viram obrigados, por expressa disposição legal, ao cadastro no Ministério do Turismo, mesmo sendo considerada prestadora de serviços turísticos, já que o parágrafo primeiro do art. 21 da Lei Geral de Turismo excepciona a obrigatoriedade do cadastro feita pelo art. 22 da mesma Lei.

O fato de ser considerada prestadora de serviços turísticos independentemente de cadastro no Ministério do Turismo está expresso na Lei Geral de Turismo e no seu Decreto nº 7.381/10, de modo que a impetrante está enquadrada no setor de eventos, sendo beneficiária do PERSE, pela simples leitura do art. 2º, §1º, IV, da Lei 14.148/2021.

Após a Lei 14.148/2021 classificar quem poderia ser considerado agente econômico do setor de eventos, o art. 2º estatuiu que “ato do Ministério da Economia publicará os códigos da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) que se enquadram na definição de setor de eventos referida no § 1º deste artigo.”

Ocorre que, para dar cumprimento ao artigo supracitado, o Ministério da Economia publicou a Portaria nº 7.163/2021 que, além de trazer os códigos “CNAE” indicando quais as atividades beneficiárias, impôs como nova condição para que as empresas do setor produtivo do turismo pudessem beneficiar-se do mencionado programa a inscrição regular no CADASTUR em data anterior a publicação da Lei nº 14.148/2021.

O MINISTRO DE ESTADO DA ECONOMIA, no uso da atribuição que lhe confere o inciso II do parágrafo único do art. 87 da Constituição, e tendo em vista o disposto no § 2º do art. 2º da Lei nº 14.148, de 3 de maio de 2021, resolve:

Art. 1º Definir os códigos da Classificação Nacional de Atividades Econômicas – CNAE que se consideram setor de eventos nos termos do disposto no § 1º do art. 2º da Lei nº 14.148, de 3 de maio de 2021, na forma dos Anexos I e II.

§ 1º As pessoas jurídicas, inclusive as entidades sem fins lucrativos, que já exerciam, na data de publicação da Lei nº 14.148, de 2021, as atividades econômicas relacionadas no Anexo I a esta Portaria se enquadram no Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos – Perse.

§ 2º As pessoas jurídicas que exercem as atividades econômicas relacionadas no Anexo II a esta Portaria poderão se enquadrar no PERSE desde que, na data de publicação da Lei nº 14.148, de 2021, sua inscrição já estivesse em situação regular no CADASTUR, nos termos do art. 21 e do art. 22 da Lei nº 11.771, de 17 de setembro de 2008.

Ora, como demonstrado acima, os serviços de restaurantes e similares são considerados prestadores de serviços turísticos independentemente do cadastro no Ministério do Turismo. Portanto, tal portaria, ao limitar indevidamente o benefício concedido pela Lei nº 14.148/2021, contrariou o art. 111. II, do CTN, pelo qual a interpretação da legislação tributária que verse sobre outorga de isenção deve ser literal.

Assim, diante da possível tributação em dissonância com o modelo regulatório para recuperação dos danos ocasionados pela COVID-19 no mercado de eventos, diversos contribuintes recorrerão ao poder judiciário para garantir-lhes seu direito ao enquadramento no PERSE independente da data de inscrição no CADASTUR.

A declaração pretendida possibilita que os contribuintes tenham segurança jurídica ao informar à receita que estão se beneficiando da redução à zero das alíquotas de tributos federais (IRPJ, CSLL, PIS e COFINS) pelo prazo de 60 (sessenta) meses, tendo em vista que a primeira leitura da norma os excluiria de tal benefício.

Ademais, outro ponto bem debatido nas demandas judiciais propostas é quanto ao início de vigência dos benefícios tributários em questão, posto que apesar da lei ter sido sancionada pelo presidente em 2021, houveram vetos parciais, que apenas foram derrubados em março de 2022.

Nesse sentido, segundo a Tese de Repercussão Geral nº 595 do STF: “É constitucional a promulgação, pelo Chefe do Poder Executivo, da parte incontroversa de projeto de lei que não foi vetada, antes da manifestação do Poder Legislativo pela manutenção ou pela rejeição do veto (…)”.

Confira-se a ementa que embasou a tese anteriormente mencionada:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL (TEMA 595). DIREITO CONSTITUCIONAL. PROCESSO LEGISLATIVO. PROMULGAÇÃO, PELO CHEFE DO PODER EXECUTIVO, DE PARTE DE PROJETO DE LEI QUE NÃO FOI VETADA, ANTES DA MANIFESTAÇÃO DO PODER LEGISLATIVO PELA MANUTENÇÃO OU REJEIÇÃO DO VETO. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES OU ÀS NORMAS CONSTITUCIONAIS DE PROCESSO LEGISLATIVO. REJEIÇÃO DO VETO PELO PODER LEGISLATIVO. AUSÊNCIA DE PROMULGAÇÃO DESSA SEGUNDA PARTE A INTEGRAR A LEI ANTERIORMENTE JÁ PROMULGADA. CARACTERIZAÇÃO DE OMISSÃO INCONSTITUCIONAL DOS PODERES EXECUTIVO E LEGISLATIVO (ARTIGO 66, § 7º, DA CRFB/88). SITUAÇÃO QUE NÃO INVALIDA A PARTE INCONTROVERSA E JÁ PROMULGADA DO PROJETO DE LEI APROVADO. AUSÊNCIA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO A QUE SE DÁ PROVIMENTO.

1. O poder de veto atribuído ao Chefe do Poder Executivo afigura-se como importante mecanismo para o adequado funcionamento do sistema de freios e contrapesos (checks and balances), ínsito a uma concepção contemporânea do princípio da separação dos poderes.

2. A Constituição reconhece que a palavra final em matéria de processo legislativo cabe ao Poder Legislativo, razão pela qual lhe defere autoridade suficiente para rejeitar o veto do Executivo e aprovar o projeto de lei tal como originalmente aprovado (artigo 66, §§ 4º, 5º e 7º, da CRFB/88).

3. A aposição de veto parcial implica o desmembramento do processo legislativo em duas fases distintas, eis que enquanto a parte não vetada do projeto de lei segue para a fase de promulgação, a parte objeto do veto retorna ao Poder Legislativo para nova apreciação, após o que será ou não promulgada, conforme o resultado da deliberação.

4. A rejeição legislativa do veto acarreta o dever de sua promulgação (artigo 66, § 7º, da CRFB/88), cujo descumprimento caracteriza omissão inconstitucional dos Poderes Executivo e Legislativo frente à ausência de encerramento do processo legislativo.

5. A caracterização dessa omissão inconstitucional atrai a possibilidade de controle judicial, todavia revela-se inapta a acarretar a promulgação automática dos vetos parciais derrubados, tampouco macula de inconstitucionalidade a parte anteriormente já sancionada e promulgada.

6. Concluído o processo legislativo quanto a essa parte, a promulgação da parte incontroversa sancionada é medida de rigor, sem que exsurja qualquer vício de inconstitucionalidade, seja pela ausência de violação ao princípio da separação dos poderes, seja pela inexistência de ultraje às normas constitucionais relativas ao processo legislativo.

7. In casu, é constitucional a Lei Municipal 2.691/2007 de Lagoa Santa/MG, eis que quanto à parte inicialmente promulgada foram fielmente atendidas as etapas do procedimento legislativo, suprida a omissão inconstitucional quanto à parte restante pela superveniente promulgação da derrubada dos vetos, por ato posterior do Presidente da Câmara Municipal.

8. Recurso extraordinário PROVIDO, com a fixação da seguinte tese de repercussão geral: “É constitucional a promulgação, pelo Chefe do Poder Executivo, da parte incontroversa de projeto de lei que não foi vetada, antes da manifestação do Poder Legislativo pela manutenção ou pela rejeição do veto, inexistindo vício de inconstitucionalidade dessa parte inicialmente publicada pela ausência de promulgação da derrubada dos vetos.

Assim, também se evidencia que a produção de efeitos da parte em que houve a derrubada do veto somente poderá ocorrer após a publicação da parte vetada, embora venha a integrar a lei publicada anteriormente, isto é, a parte vetada começará a produzir efeitos a partir de sua publicação. Esse é o entendimento do STF sobre o tema:

MANDADO DE SEGURANÇA. HONORÁRIOS DE ADVOGADO. INÍCIO DA VIGÊNCIA DE PARTE DE LEI CUJO VETO FOI REJEITADO. SEGUNDO DECISÕES RECENTES DE AMBAS AS TURMAS DO STF (RE 81.481, DE 8.8.75; RE 83.015, DE 14.11.75; E RE 84.317, DE 06.4.76), CONTINUA EM VIGOR A SÚMULA 512. QUANDO HÁ VETO PARCIAL, E A PARTE VETADA VEM A SER, POR CAUSA DA REJEIÇÃO DELE, PROMULGADA E PUBLICADA, ELA SE INTEGRA NA LEI QUE DECORREU DO PROJETO. EM VIRTUDE DESSA INTEGRAÇÃO, A ENTRADA EM VIGOR DA PARTE VETADA SEGUE O MESMO CRITÉRIO ESTABELECIDO PARA A VIGENCIA DA LEI A QUE ELA FOI INTEGRADA, CONSIDERADO, PORÉM, O DIA DE PUBLICAÇÃO DA PARTE VETADA QUE PASSOU A INTEGRAR A LEI, E, NÃO, O DESTA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO, EM PARTE.

(STF. RE 85950/RS. Min. Rel. Moreira Alves. J. 26 de novembro de 1976)

Considerando que a derrubada do veto foi publicada em 18 de março de 2022, há de se aplicar o prazo de 60 meses previsto no art. 4º da Lei 14.148/2021 a partir desta publicação.

Ante tal cenário, considerando-se as judicializações já por estas razões, no final de 2023 fomos surpreendidos com a edição da Medida Provisória nº 1.202/2023 que, dentre outras medidas, revogou os incentivos anteriormente concedidos.

Conforme se verá, os ataques ao PERSE, buscando o esvaziamento do programa – sobretudo dos incentivos fiscais concedidos, conseguem superar até mesmo as divergências políticas, pois, mesmo com a sucessão presidencial ocorrida em janeiro de 2023, a postura do Governo Federal não mudou.

Em 30 de maio de 2023, com a publicação da Lei nº 14.592 houve relevantes alterações no PERSE como a enumeração das atividades econômicas objeto de aplicação do benefício de alíquota zero do IRPJ, da CSLL, do PIS e da Cofins, além da inclusão do parágrafo 4º ao artigo 4º da Lei, dispondo que somente as pessoas jurídicas (inclusive as sem fins lucrativos) que já exerciam as atividades econômicas elencadas em 18 de março de 2022 poderão usufruir do benefício.

Ou seja, para que o contribuinte pudesse se beneficiar da alíquota zero, bastava que estivesse exercendo sua atividade econômica em 18 de março de 2022.

Entretanto, também ocorreu a inclusão do parágrafo 5º ao artigo 4º da Lei nº 14.148 impondo como condição à fruição do incentivo fiscal a regularidade, em 18 de março de 2022, da situação dos beneficiários perante o CADASTUR nos termos da Lei Geral do Turismo, incluindo, por exemplo, restaurantes e similares cujo cadastramento era voluntário ou opcional.

No decorrer deste artigo buscar-se-á demonstrar que todas essas investidas são inconstitucionais e ilegais, seja pela exigência de um requisito que não está previsto na legislação, mas apenas em uma portaria do Ministério da Economia, seja pela impossibilidade de revogação de incentivo fiscal outorgado por prazo certo.

2 A IMPOSSIBILIDADE DA PORTARIA Nº 7.163/2021 DO MINISTÉRIO DA ECONOMIA LIMITAR OS BENEFÍCIOS FISCAIS CONCEDIDOS AO SETOR DE EVENTOS

O art. 150, I, da CF, entabula o “princípio” da Legalidade, o qual determina que nenhuma pessoa jurídica de direito público institua ou majore tributos sem Lei que o estabeleça. Complementarmente, o inciso II deste diploma constitucional instituir a vedação ao tratamento desigual entre contribuintes que se enquadrem em situação equivalente.

No entanto, a vinculação à legalidade perpassa à necessidade de obediência à lei na instituição e majoração do tributo, e isso porque o “princípio” da legalidade está vinculado ao modelo do Estado de Direito (art. 1º da CF) e deve ser interpretado sistematicamente, para que se possa atribuir coerência ao sistema tributário.

Quando se adota a forma federativa, e há a clara repartição dos poderes, a legalidade há de ser restrita, cabendo ao Legislativo definir a situação que dará azo à tributação, assim como as situações em que a tributação será dispensada, guiando-se, também, pelo mencionado princípio da igualdade tributária (art. 150, II, da CRFB/88).

O “princípio” da Legalidade, portanto, é expressão do sistema de freios e contrapesos, ao exigir consenso entre Legislativo (que aprova o texto legal) e Executivo (que o promulga) para a instituição ou majoração de tributo garantindo previsibilidade e estabilidade nas relações jurídicas, protegendo os contribuintes do arbítrio e insegurança.

Considerando isso, o art. 150 da Constituição Federal, em seu § 6º, vincula a concessão dos benefícios fiscais ao “princípio” da legalidade. Logo, tal “princípio” não abrange apenas a instituição ou aumento de tributo, mas também sua redução, extinção, exclusão e suspensão.

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

[…]

§ 6º Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g.

Portanto, em virtude da ideia de hierarquia de leis, se o legislador ordinário fixou uma alíquota, não pode a administração modificá-la. Do mesmo modo, se o legislador dispensou determinados contribuintes do recolhimento de determinado tributo, não poderá a administração incluí-los sem que isso represente afronta direta à legalidade.

A Constituição Federal, então, à luz da legalidade, ratifica o disposto no art. 97 do Código Tributário Nacional ao determinar que somente a lei pode estabelecer as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de créditos tributários, reafirmando a necessidade de atenção à legalidade.

É nesse contexto que se percebe uma violação ao “princípio” da legalidade quando a Portaria nº 7.163/21 do Ministério da Economia limitou a redução a zero das alíquotas dos impostos respectivos apenas as prestadoras de serviços turísticos que estivessem regularmente cadastradas no Ministério do Turismo.

Explica-se.

A Lei nº 14.148/2021 estabeleceu que ficam reduzidas a 0% (zero por cento) pelo prazo de 60 (sessenta) meses, contado do início da produção de efeitos desta Lei, as alíquotas dos seguintes tributos incidentes sobre o resultado auferido pelas pessoas jurídicas de que trata o art. 2º desta Lei.

O art. 2º, § 1º da mesma lei, por sua vez, aduz que se consideram pertencentes ao setor de eventos as pessoas jurídicas, inclusive entidades sem fins lucrativos, que exercem as seguintes atividades econômicas, direta ou indiretamente: (…) IV – prestação de serviços turísticos, conforme o art. 21 da Lei nº 11.771, de 17 de setembro de 2008.

A Lei Geral de Turismo, ao estabelecer quais são as pessoas jurídicas que podem ser consideradas prestadoras de serviços turísticos, dispôs, no art. 22, a obrigatoriedade ao cadastro no Ministério do Turismo, no entanto afirmou que deveriam ser observadas as formas e condições fixadas por esta lei e sua regulamentação.

Ao se fazer uma leitura sistemática e orgânica da Lei Geral de Turismo, mesmo o art. 22 dispondo que o cadastro no Ministério do Turismo seria obrigatório, há de se atentar ao fato de que o próprio artigo limita a obrigatoriedade do cadastro à observância das disposições contidas na própria lei e na regulamentação correlata.

Dessa maneira, ao se interpretar holisticamente os demais artigos da Lei Geral de Turismo, percebe-se que ela disciplina as atividades que considera de cadastro obrigatório e as que, mesmo sendo consideradas atividades turísticas, são de cadastro facultativo, conforme se vê:

Art. 21. Consideram-se prestadores de serviços turísticos, para os fins desta Lei, as sociedades empresárias, sociedades simples, os empresários individuais e os serviços sociais autônomos que prestem serviços turísticos remunerados e que exerçam as seguintes atividades econômicas relacionadas à cadeia produtiva do turismo:

I – Meios de hospedagem;

II – Agências de turismo;

III – transportadoras turísticas;

IV – Organizadoras de eventos;

V – Parques temáticos; e

VI – Acampamentos turísticos.

Parágrafo único. Poderão ser cadastradas no Ministério do Turismo, atendidas as condições próprias, as sociedades empresárias que prestem os seguintes serviços:

I – Restaurantes, cafeterias, bares e similares;

[…].

A regulamentação da Lei Geral de Turismo feita pelo Decreto 7.381/10, na seção II, ao dispor sobre os “Prestadores de Serviços Turísticos de Cadastramento Facultativo”, reforça a facultatividade do cadastro afirmando que tanto os previstos no caput como no parágrafo único estão compreendidos como prestadores de serviços turísticos:

Seção II

Dos Prestadores de Serviços Turísticos de Cadastramento Facultativo

Art. 46. Para fins do cadastramento facultativo previsto no parágrafo único do art. 21 da Lei nº 11.771, de 2008, o disposto em seu inciso II abrange os seguintes serviços: […].

Importa destacar, ainda, que o referido decreto não regulamenta o disposto no inciso I, do art. 21 da Lei nº 11.771/2008 (Lei Geral de Turismo), mas reforça que aqueles que estão dispostos no § 1º do artigo 21 da Lei 11.771/2008 são considerados prestadores de serviços turísticos.

É importante tal ponderação porque o inciso I do art. 21 da Lei 11.771/2008 aduz que se consideram prestadores de serviços turísticos as sociedades empresariais que prestem serviços de restaurantes, cafeterias, bares e similares, independentemente do cadastro no Ministério do Turismo.

Portanto, estas sociedades empresariais que detém o mesmo objeto social disposto na Lei nº 11.771/2008 e exercem atividade considerada turística, é imperioso reconhecer o direito ao enquadramento no PERSE e, consequentemente, ao benefício fiscal da redução de alíquota, sem sequer precisar realizar o cadastro no Ministério do Turismo.

No entanto, é importante destacar que muitas empresas pertencentes ao setor de eventos e cujo cadastro no CADASTUR é facultativo, não possuíam o referido documento quando a lei foi promulgada, mas se cadastraram alguns dias depois, confirmando que sempre reuniram as condições jurídicas para serem enquadradas como prestadoras de serviços turísticos.

Entretanto, ainda assim, a Receita Federal impôs resistência a utilização dos benefícios fiscais advindos do PERSE por essas empresas, pois, seu cadastro não ser anterior a promulgação da lei.2

Tal fato se dá unicamente pela obrigação trazida pela Portaria nº 7.163/2021 do Ministério da Economia de cadastramento perante o Ministério da Cultura (CADASTUR).

Conforme já dito, a Lei nº 14.148/2021 aduz que apenas se consideram setor de eventos (consequentemente, passíveis de enquadramento no PERSE) as pessoas jurídicas que exercem atividade econômica na prestação de serviços turísticos, conforme o art. 21 da Lei nº 11.771, de 17 de setembro de 2008, sem impor nenhum cadastramento obrigatório, muito menos limitação temporal a este cadastro.

Embora o art. 2º, § 2º da Lei 11.771/2008 impusera ao Ministério da Economia publicar os CNAE’s enquadrados no “setor de eventos”, não estendeu a tal ato a possibilidade de limitar temporalmente ou criar condições para que se possa usufruir da lei, já que tal concessão legal foi feita sob o prisma do poder regulamentar do Executivo.

Pois bem, Poder Regulamentar é a prerrogativa conferida à Administração Pública para editar atos gerais que complemente as leis e possibilite sua efetiva aplicação, constituindo legislação secundária.3

Nesse sentido, veja-se a definição de Carlos Mário Velloso:4

“O regulamento é, pois, de regra, um ato normativo secundário geral. Assim o é, no sistema constitucional brasileiro. Por ser secundário, não pode o Executivo, ao exercer a função regulamentar, criar direitos ou obrigações novas, ou, numa palavra, inovar na ordem jurídica.

(…)

A democracia liberal proclama, como dogma, a separação dos poderes. E porque cabe ao Legislativo, na doutrina de Montesquieu, fazer a lei, o regulamento, ato normativo secundário, obra do executivo, deve submeter-se à lei sob três aspectos, na lição de G. Vedel: ‘1º) deve ser editado sob as formas previstas pela lei; 2º) não pode abranger senão matérias não legislativas, isto é, que não foram reservadas à lei, tomadas pelo legislador; 3º) o regulamento não pode contradizer a lei”.

No mesmo sentido, define Oswaldo Aranha Bandeira de Melo que os regulamentos “são regras jurídicas gerais, abstratas, impessoais, em desenvolvimento da lei, referentes à organização e ação do Estado enquanto poder público”.5

Não pode, pois, a Administração, alterar lei a pretexto de regulamentá-la. Se o fizer, invadirá a competência do Legislativo e cometerá abuso de poder regulamentar.

O Ministério da Economia, a fim de cumprir o comando legal, publicou a portaria nº 7.163, de 21 de junho de 2021, que “define os códigos da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) que se consideram setor de eventos. No entanto, ao fazê-lo, criou uma condição inexistente na Lei 14.148/2021, extrapolando o poder regulamentar por limitar temporalmente o enquadramento no PERSE às pessoas jurídicas que estivessem regularmente cadastradas no CADASTUR na data de publicação da Lei 14.148/2021, isto é, desde 3 de maio de 2021:

[…]

§ 2º As pessoas jurídicas que exercem as atividades econômicas relacionadas no Anexo II a esta Portaria poderão se enquadrar no Perse desde que, na data de publicação da Lei nº 14.148, de 2021, sua inscrição já estivesse em situação regular no Cadastur, nos termos do art. 21 e do art. 22 da Lei nº 11.771, de 17 de setembro de 2008.

Mesmo as empresas que estavam em situação regular, já que seu cadastro era facultativo por disposição legal, a insegurança jurídica quanto ao enquadramento legal levou inúmeros contribuintes à necessidade de obter uma tutela jurisdicional que pacifique a questão, impetrando diversos mandados de segurança a fim de proteger o aludido direito.

Isso porque a portaria dá a entender que somente poderão ser considerados prestadores de serviços turísticos aqueles que tenham cadastro no Ministério do Turismo (CADASTUR), embora a Lei Geral de Turismo e seu decreto regulamentador, diferentemente, disponham que tal cadastro é facultativo.

Tal fato também demonstra uma insegurança jurídica pelo fato de que, mesmo que estas empresas tenham realizado o cadastro (como de fato o fez), não teria, em tese, como se beneficiar da lei, já que não cumpriria o requisito criado pelo Poder Executivo em excesso de poder regulamentar (cadastro anterior à publicação da lei).

Portanto, considerando a legalidade e a interpretação literal que deverá ser atribuída aos benefícios fiscais, não é possível que o Poder Executivo, por meio de portaria, crie condições para a concessão do benefício da alíquota zero, sem que isso represente uma afronta direta à legalidade e à isonomia.

É importante destacar, destarte, que a Lei nº 14.148/2021 dispôs que se consideram setor de eventos os prestadores de serviços turísticos, mas não dispõe acerca da necessidade de cadastro no CADASTUR.

Embora a Lei em comento remeta à Lei 17.771/08, como demonstrado acima, as atividades das empresas mencionadas não necessitam de cadastro obrigatório.

Ainda que se entenda necessário o cadastro no CADASTUR, não se poderá exigir que haja a limitação temporal à data da publicação da Lei, isso porque tal condição foi imposta por ato infralegal sem respaldo na lei que buscou regulamentar, isto é, em claro excesso do poder regulamentador.

O significado de segurança jurídica está conectado à própria ideia de Direito, sendo, portanto, produto de um determinado ordenamento jurídico, só podendo ser compreendida enquanto regra jurídica.

Nas palavras de Humberto Ávila6:

“[…] a segurança jurídica não é uma qualidade intrínseca do Direito ou de suas normas, vinculada à sua prévia determinação, porém um produto cuja existência, maior ou menor, depende da conjugação de uma série de critérios e de estruturas argumentativas a serem verificadas no processo de aplicação do Direito.”

O Direito, pois, é algo determinado com uma certeza relativa, de modo que a segurança jurídica busca dar razoável expectativa ao cidadão dos sentidos e interpretações das leis, isto é, busca garantir previsibilidade, estabilidade e preservar a confiança legítima na aplicação da lei conforme prevista e elaborada pelo legislador.

2.1 VIOLAÇÃO À ISONOMIA E À LIVRE CONCORRÊNCIA. DEVER DE PROPORCIONALIDADE.

A defesa concorrencial é tutelada no ordenamento jurídico brasileiro por mais de uma norma, sendo a mais relevante destas, naturalmente, a Constituição Federal, cujo art. 170 funda a Ordem Econômica na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, sendo a livre concorrência princípio norteador desta ordem econômica (inciso IV).

Ainda, enquadra-se como norma de proteção concorrencial o prelecionado pelo art. 173, §4º, da Constituição Federal, ao impor que: “[a] lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.”

Nessa determinação, reside a proteção às práticas anticoncorrenciais e à promoção da isonomia. A Igualdade, salienta-se, não é preceito que se extrai apenas do art. 150 (especialmente, do inciso II que prevê a igualdade tributária). Ele permeia todo o texto constitucional, como se vê desde o artigo 5º:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo -se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

[…]

Não se vê, no dispositivo acima, qualquer restrição à igualdade. A isonomia é a base do texto constitucional. Se assim for, como explicar que ela reapareça no artigo 150, II, “e”, ainda mais, que o referido dispositivo não se aplique a todos os tributos? A resposta exige que se releia a norma em questão:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, É VEDADO à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

[…]

II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;

[…]

A Ordem Econômica é fundada na liberdade de exercício (art. 170, caput, inciso IV) e não pode permitir que haja tratamento desigual entre quem exerça a mesma atividade econômica sem que isso acarrete violação à ordem econômica e à isonomia, principalmente quando tal distinção é feita sem fundamento legal ou constitucional.

Dessa maneira, o debate ora travado perpassa por este aspecto, pois busca garantir que todos os contribuintes sejam tratados igualmente e não sejam prejudicados pela imposição de condição ilegal para a fruição de benefício fiscal, impedindo que a impetrante seja submetida a tratamento desfavoravelmente desigual.

Tal desigualdade será potencializada em razão de alguns contribuintes se beneficiarem pelo PERSE por terem cadastro anterior no Ministério do Turismo, e outras empresas, que exercem a mesma atividade e prestam serviços no mesmo local não serão beneficiadas por terem sido surpreendidas com a limitação temporal ilegal.

Aqui se ressalva que o cenário de desigualdade concorrencial se configura quando empresas que disputam o mesmo nicho comercial e possuem as mesmas características empresariais são surpreendidas por fatores de desequilíbrio. Por exemplo, restaurantes que foram efetivamente atingidos pelas normas sanitárias vigentes na pandemia não podem ter tratamentos desiguais apenas por não cumprirem uma exigência ilegal, situação diferente de um restaurante que abriu as portas após a flexibilização do distanciamento social e agora pleiteia a extensão do benefício.

Há, portanto, além de um ato atentatório à isonomia dos contribuintes (pela Lei nº 14.148/2021 não impor restrição temporal) uma possível infração concorrencial à ordem econômica, já que assim se consideram os atos que possam prejudicar a livre concorrência, conforme art. 36 da Lei nº 12.529/2011 (Nova Lei Antitruste Brasileira):

Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:

I – Limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa;

II – Dominar mercado relevante de bens ou serviços;

III – Aumentar arbitrariamente os lucros; e

IV – Exercer de forma abusiva posição dominante.

Outro aspecto importante diz respeito à neutralidade tributária e seus efeitos sobre a concorrência, isto é, sobre os efeitos da tributação indevida e desigual em face da liberdade concorrencial da impetrante, que atua no mercado há décadas, com investimentos que atendem à função da empresa no sistema econômico.

A cobrança de qualquer obrigação tributária indevida prejudica a livre concorrência, pois coloca em desfavor de um agente econômico um ônus que gera maior custo de sua atividade, gerando uma possibilidade de danos dos concorrentes que obtiveram a suspensão da exação.

Isso envolve, portanto, aspectos de ordem pública, exigindo intervenção do Poder Judiciário para garantir à impetrante uma tributação adequada, dentro da legalidade e das demais limitações do Estado Fiscal brasileiro, ponderando-se a vinculação da tributação à ordem econômica, que se norteia pelas seguintes premissas constitucionais:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I – Soberania nacional;

II – Propriedade privada;

III – Função social da propriedade;

IV – Livre concorrência;

V – Defesa do consumidor;

VI – Defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;

VII – Redução das desigualdades regionais e sociais;

VIII – Busca do pleno emprego;

IX – Tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

A ordem econômica se estabelece como o conjunto das normas e instituições que tratam das relações econômicas, visando-se manter um padrão de normalidade nas relações entre os diferentes agentes econômicos dentro do ambiente do mercado. Relações estas que estruturam a arrecadação de tributos e sustentam o Estado Fiscal.

Nesse contexto, a ordem econômica deve ser implementada para viabilizar os próprios objetivos constitucionais, lastreados nos PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ECONÔMICOS, normas que visam a um estado ideal de coisas.

Entre tais princípios, destacam-se, aqui:

(a) Liberdade de iniciativa, como a liberdade fundamental de acesso ao mercado dos agentes econômicos;

(b) Liberdade de concorrência, como a liberdade de permanência no mercado dos agentes econômicos;

(c) Proteção da propriedade privada, que abrange a empresa privada e seu papel nas relações econômicas e sociais, bem como a sua função no sistema econômico;

(d) Busca do pleno emprego, como resultado das políticas públicas do Estado e com a implementação das funções dos agentes econômicos no mercado;

(e) Tutela do consumidor, que é o destinatário do direito e da economia da concorrência, elemento que somente sobrevive com a adequada atuação do Estado, que deve corrigir as denominadas falhas de mercado;

(f) Tratamento favorecido das empresas de menor porte, por evidente aplicabilidade da igualdade na execução de políticas públicas (em dever à concorrência).

Pois bem.

A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro estabelece que toda e qualquer decisão, bem como ato do Poder Público, se sujeita a uma análise de seus efeitos. O impacto dos mecanismos estatais deve ser avaliado previamente para evitar novas falhas de mercado, que são nocivas aos direitos econômicos e sociais.

Os valores em questão – direitos ligados à liberdade e à concorrência adequada das atividades econômicas – foram objeto de recente norma legal federal, que veio a demonstrar de que forma deve o Estado agir sem ofender os direitos econômicos. É a Lei da Liberdade Econômica, ratificando elementos já previstos na ordem constitucional.

A “Lei da Liberdade Econômica”, entre várias outras inovações, introduziu a importância da denominada análise de impacto regulatório, a superação do “paternalismo” jurídico, a simplificação dos atos societários, o princípio da intervenção mínima e o horizonte colaborativo entre liberdade e direito do trabalho.

Infere-se, deste caso, a suspensão imediata da obrigação tributária ilegal e eivada de vícios claros e incontroversos. Uma vez que a manutenção da exação de modo inadequado, além de violar a dogmática jurídica, gera custos de transação e distorções no mercado, violando a implementação do modelo de desenvolvimento.

Ainda, a exigência ilegal viola a proporcionalidade, por descumprir os três elementos essenciais deste princípio: (i) adequação dos meios para alcance finalístico; (ii) necessidade do emprego do meio eleito para a obtenção dos fins; e, (iii) proporcionalidade em sentido estrito (ponderação entre os efeitos da medida e o objetivo pretendido)7.

A proporcionalidade foi alçada ao nível de princípio constitucional8, há mais de sessenta anos, pela jurisprudência do STF em matéria de direito público9-10, apresentando-se como instrumento de controle das medidas legislativas, administrativas e judiciárias do Estado, para vedar o arbítrio e proibir o excesso11.

O que norteia a proporcionalidade é o cumprimento de três premissas: (i) a medida deve ser adequada para atingir o objetivo desejado; (ii) deve ser necessária diante da inexistência de outra menos restritiva; e (iii) não deve ser desproporcional ao objetivo pretendido.

A exigência de cadastro para empresas sem observar se estas prestavam os serviços turísticos antes da promulgação da lei se qualifica como ato inconstitucional e ilegal, bem como é cumulativamente arbitrário por caracterizar verdadeiro abuso de poder que, invariavelmente, gerará mais falhas de mercado pelo desbalanceamento da concorrência, justamente o inverso da intenção do legislador e da política pública adotada.

Por esta razão, também se evidencia a ilegalidade da Receita Federal em exigir o cadastramento anterior à promulgação da Lei do PERSE para que os contribuintes possam usufruir do benefício tributário em questão tão somente a partir de uma obrigação criada indevidamente por portaria do então Ministério da Economia.

3 A REVOGAÇÃO DO PERSE PELA MEDIDA PROVISÓRIA Nº 1.202/2023

A medida provisória é o meio pelo qual o Presidente da República pode elaborar atos normativos primários desde que comprovada a urgência e necessidade de sua edição, inovação da Constituição Brasileira de 1988 em face do antigo “Decreto-Lei” que era previsto pelas Constituições de 1937 e 1967.

As MP’s possuem uma índole normativa emergencial que deve se evidenciar pela necessidade e urgência da matéria tratada, mas, sem excluir a participação do legislativo no processo de aprovação posterior da Medida Provisória, tendo em vista que no prazo de 120 (cento e vinte) dias esta deve ser convertida em lei para não perder seus efeitos legais.

Nesse sentido, veja-se o ensinamento de Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gonet Branco acerca das Medidas Provisórias12:

“A constituição cuida das medidas provisórias, enfatizando a sua índole normativa emergencial, como se percebe do caput do art. 62. De outro lado, se ela não for aprovada no prazo constitucional, pelo Legislativo, perde a sua eficácia desde a edição (art. 62, § 3º). Ostenta, portanto, caráter provisório e resolúvel.”

Pode-se apontar a semelhança da Medida Provisória com o Decreto-Lei a partir da definição de Pontes de Miranda dada a este instrumento previsto pela Constituição de 196713: “(…) lei sob condição resolutiva”.

Ou seja, passam a vigorar como lei a partir de sua edição pelo Presidente da República, mas, possuem condição resolutiva pela qual devem se submeter ao Poder Legislativo nos prazos constitucionais, sob pena de perda retroativa da eficácia.

Em 28 de dezembro de 2023 o Presidente da República promulgou a Medida Provisória nº 1.202/2023 que, dentre outras medidas, revogou os benefícios fiscais do Programa emergencial de Retomada do Setor de Eventos (PERSE), agora não só para aqueles cujo cadastramento no CADASTUR foi posterior, como também aos contribuintes que possuíam cadastro regular.

A partir dessa Medida Provisória, haverá o surgimento de um novo embate judicial em torno da possibilidade de revogação de incentivo fiscal concedido por prazo determinado a partir de mecanismo posterior.

Ocorre que, o art. 178 do CTN excetua a revogação de isenção fiscal concedida por prazo certo, ainda que tal revogação seja prevista em lei. Assim, no caso da isenção concedida por prazo certo e em função de determinadas condições é vedada a revogação para os contribuintes que já usufruem a isenção.

O referido artigo concretiza o princípio da segurança jurídica, da proteção da confiança como uma máxima em conformidade com a qual todos devem se comportar com lealdade.

Aliás, a Constituição Federal, no artigo 41, §2º, do ADCT, prescreve que a “revogação não prejudicará os direitos que já tiverem sido adquiridos, àquela data, em relação a incentivos concedidos sob condição e com prazo certo”.

Nesse mesmo sentido o STF editou a Súmula 544: “isenções tributárias concedidas, sob condição onerosa, não podem ser livremente suprimidas”.

Dessa forma, resta sedimentado que o contribuinte tem o direito de manutenção da regra de incentivos, desde que o benefício fiscal tenha prazo determinado e seja dado em determinadas condições.

Este é, evidentemente, o caso do PERSE, porquanto se trata de um incentivo dado com prazo certo (60 meses), além de que apresentar onerosidade, posto que, conforme prelecionado por Hugo de Brito Machado: “a isenção concedida por prazo determinado se presume onerosa, ainda que a lei não estabeleça expressamente condições que sejam claramente ônus para o interessado”.14

Ainda vale asseverar que a concessão de benefícios tributários também importa em uma forma do Estado induzir o comportamento do contribuinte, neste caso isso se evidencia a partir do incentivo do empresário afetado pelas medidas restritivas da pandemia persistir na atividade econômica.

O Recurso Extraordinário nº 350.446, de relatoria do ministro Nelson Jobim afirmou que “o tributo não tem causa só arrecadatória, servindo como instrumento de intervenção do Estado na economia por razões de política econômica.”15 É a ratificação do que a doutrina já explica há décadas.

A concessão de benefícios fiscais possui, também, caráter indutor. No presente caso, a indução tributária é perceptível ao passo que os incentivos foram concedidos para manutenção do funcionamento de um setor cujos faturamentos foram duramente afetados pelas medidas sanitárias restritivas ao funcionamento que foram impostas pelo Poder Público para enfrentamento da pandemia de COVID-19.

Assim, a revogação do benefício fiscal concedido por prazo determinado pela “Lei do PERSE” por meio de medida provisória, além de representar uma afronta à jurisprudência dos tribunais superiores revela a intenção do Governo Federal que, independente do governante responsável, sempre demonstrou interesse em minorar os referidos incentivos.

Tais tentativas unilaterais também desrespeitam o próprio pacto federativo, posto que apesar do incentivo em questão ter sido concedido por lei que tramitou perante o Congresso Nacional, as tentativas do Governo Federal de minorarem tais beneplácitos foram ora a exigência ilegal de cadastramento junto ao Ministério do Turismo em data retroativa efetivada por Portaria do Ministério da Economia ora a revogação por Medida Provisória, sempre em desarmonia com o Poder Legislativo Federal.

4 CONCLUSÃO

Ante o exposto, além de evidenciada a necessidade de concessão de incentivo fiscal para cumprimento do caráter indutor dos tributos16 que serviria para recuperação de um setor fortemente abalado pelas medidas sanitárias rigorosas que limitaram seu funcionamento e, consequentemente, os respectivos faturamentos da empresa, viu-se um processo em que o Estado tentou a todo tempo reduzir os referidos benefícios econômicos para que garantisse a arrecadação tributária.

Ocorre que, em que pese os esforços para manutenção da alta arrecadação, tanto pela exigência ilegal de cadastramento no CADASTUR quanto pela posterior revogação do benefício por Medida Provisória, evidencia-se que tais medidas atacam frontalmente toda a jurisprudência formada no Superior Tribunal de Justiça e consagrada no Supremo Tribunal Federal a fim de resguardar a segurança jurídica dos contribuintes que realizaram o planejamento financeiro de suas empresas contando com os incentivos fiscais concedidos para recuperação dos efeitos deletérios que a pandemia causou.

O cenário que se desenha é de aumento da judicialização de tais casos, a fim de que as jurisprudências do STF e STF sejam cumpridas e resguardem os contribuintes beneficiados com tais medidas, bem como, a manutenção de um cenário de insegurança jurídica até a pacificação judicial da questão.


2Nesse sentido, veja-se: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2024-02/receita-investigara-possiveis-fraudes-em-ajuda-empresas-de-eventos

3RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. São Paulo: Ed. Res. Universitária, 1976. p. 269.

4MELO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo. 2ª ed. São Paulo: Forense. p. 342.

5VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Do poder regulamentar. Revista do serviço público. Ano 39. Volume 110. 1982. p. 31.

6ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica. Entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 136.

7V. STF – Recurso Extraordinário nº 18.331/SP, Rel. Ministro Orosimbo Nonato. Julgamento: 21/09/1951.

8Cf. Gilmar Ferreira Mendes, ob. cit., p. 110. Nessa afirmação escudou-se o autor no acórdão do STF, HC 45.232, Rel. Min. Themístocles Cavalcanti, RTJ 44, p. 322, que se valeu da cláusula genérica da Constituição de 1967, art. 150, § 36, para afirmar o princípio analisado.

9V. STF – RE 18.331, Rel Min. Orozimbo Nonato, DJ de 10.08.1953, Revista Forense, n. 145, p. 164 e s. Nesse acórdão histórico, o Min. Nonato sentenciou: “É um poder, cujo exercício não deve ir até o abuso, o excesso, o desvio, sendo aplicável, ainda aqui, a doutrina fecunda do détournement de pouvoir. Não há que estranhar a invocação dessa doutrina ao propósito da inconstitucionalidade, quando os julgados têm proclamado que o conflito entre a norma comum e o preceito da Lei Maior pode se acender não somente considerando a letra do texto, como também, e principalmente, o espírito do dispositivo invocado.” MENDES, Gilmar Ferreira, Moreira Alves e o Controle de Constitucionalidade no Brasil, São Paulo: Saraiva, 2000, p.108.

10V. STF – Consulta ao site do Supremo Tribunal Federal, disponível em: http://www.stf.gov.br/jurisp.html.

11Cf. Gilmar Ferreira Mendes. Controle de constitucionalidade – aspectos jurídicos e políticos, São Paulo, 1990, p. 42.

12MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. / Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gonet Branco. – 15. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 1.022.

13MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição de 1967. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967. p. 138.

14MACHADO. Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional, volume III, São Paulo: Atlas, 2005, p. 620.

15STF, RE 350.446, Rel. Min. Nelson Jobim.

16SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 109.

REFERÊNCIAS

ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica. Entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011.

MACHADO. Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional. Vol. III. São Paulo: Atlas, 2005

MELO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo. 2ª ed. São Paulo: Forense.

MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade – aspectos jurídicos e políticos, São Paulo: Saraiva, 1990.

______________________. Curso de Direito Constitucional. / Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gonet Branco. – 15. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

______________________. Moreira Alves e o Controle de Constitucionalidade no Brasil, São Paulo: Saraiva, 2000

MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição de 1967. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967.

RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. São Paulo: Ed. Res. Universitária, 1976.

SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

STF, HC 45.232, Rel. Min. Themístocles Cavalcanti, RTJ 44, p. 322.

STF, RE 18.331, Rel Min. Orozimbo Nonato, DJ de 10.08.1953, Revista Forense, n. 145.

STF, RE 350.446, Rel. Min. Nelson Jobim.

VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Do poder regulamentar. Revista do serviço público. Ano 39. Volume 110. 1982. p. 29 – 40.


1Graduada em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ), é especialista em Direito pela mesma instituição de ensino superior e juíza do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba.