AS ESTRATÉGIAS DE CONSTRUÇÃO DO DIZER VERDADEIRO NOS ENUNCIADOS DO GOVERNO BOLSONARO E DE SEUS APOIADORES DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19.

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10565473


Lucas Sloboda de Souza1


Resumo

O presente artigo visa discutir e analisar como racionalizam-se as estratégias enunciativas que permitiram a prática discursiva empreendida pelo governo Bolsonaro e por seus apoiadores durante a pandemia de Covid-19 erigir um espaço de verdade cujas regras de formação governam modos de produção e apreensão do verdadeiro e do falso acerca da realidade circunscrita pelo período pandêmico. Para tanto, tomando como base uma postura de problematização de cunho foucaultiano diante de uma analítica dos discursos de verdade, buscaremos oferecer, a partir da noção de microfísica discursiva, uma trajetória teórico-metodológica que nos permita descrever e desvelar os procedimentos estratégicos idiossincráticos ao regime de veridicção com o qual a prática discursiva bolsonarista sobrepujou o período pandêmico com certa prática de realidade agenciada pela matriz de veridicção que institui.  

Palavras-chave: Governo Bolsonaro; verdade; microfísica discursiva; Covid-19. 

Introdução

 A prática discursiva empreendida pelo governo Bolsonaro e seus apoiadores durante o período deflagrado pela pandemia de covid-19, a qual se ramifica em formas heterogêneas de produção que percorrem pronunciamentos oficiais, falas proferidas em contextos informais, enunciados veiculados em redes sociais e etc., constituiu um importante substrato a partir do qual diversos trabalhos acadêmicos, mas também reportagens jornalísticas, processos jurídicos e manifestações públicas, voltaram-se a fim de problematizar, seja por meio de denúncias, seja pela proposição de trajetórias analíticas, as formas por meio das quais tais discursos agenciavam uma política governamental alicerçada no negacionismo (Veras, 2020; Hur; Sabucedo; Alzate, 2021), no pseudocientificismo (ESTUDO…, 2021) e nas Fake News (Moura, 2021), renovando, em muitos momentos, os debates germinados pelas eleições presidenciais de 2016 nos Estado Unidos da América (Almeida, Toniol, 2019) e 2018 no Brasil (Meneses, 2021; Almeida, 2019), além daqueles gerados a partir do termo “pós-verdade” (Curcino et al, 2021).

 Ainda que tais posições críticas tenham-nos permitido evidenciar as contradições, as mentiras, o descaso e a recusa do governo Bolsonaro em estruturar um plano de combate e contenção à tragédia viral, o que se evidenciava pela coerência e a íntima correlação entre os posicionamentos tomados pelo governo e a produção enunciativa que os agenciava, escassas são as abordagens analíticas que privilegiam as idiossincrasias da própria racionalidade que ampara a produção discursiva bolsonarista frente a pandemia de Covid-19, de modo que permitam desvelar, mais do que uma mentira sendo enunciada ou uma ideologia que o sustente, uma problemática concernente ao verdadeiro ou, mais especificamente, ao regime de produção de verdade instituído pela prática discursiva bolsonarista. Isto é, uma postura crítica que privilegie menos o contraste entre a factualidade do real e a deturpação que sofre na materialidade enunciativa bolsonarista do que os jogos estratégicos por meio dos quais a racionalidade que ampara tal prática discursiva reinscrever as formas do dizer verdadeiro de modo a fazer com a verdade que produz funcione como um dispositivo que cria e gerencia objetos sociais, subjetividades, saberes, posições sociais e relações de poder. Em suma, compreendê-la enquanto uma problemática concernente ao sitiamento do real por certa prática de verdade, a qual atravessa o âmago das palavras, dos conceitos e temas e dos objetos e que forma, assim, uma discursividade passível de construir domínios enunciativos acerca da realidade, bem como gerar efeitos de poder sobre ela, a despeito de contrariarem a factualidade do cenário epidemiológico e social deflagrado pela doença e alertado pelas instituições acadêmicas e internacionais. 

 Em vista disso, o presente artigo objetiva propor, a partir das contribuições teórico metodológicas legadas por Michel Foucault, uma hipótese de leitura e compreensão da prática discursiva bolsonarista em vista da problemática da verdade, ou seja, da maneira como a produção enunciativa do governo Bolsonaro durante a pandemia de Covid-19 institui, segundo as estratégias enunciativas que a racionalizam, um regime discursivo de produção de verdades capaz de sobrepujar o real com uma matriz outra de descriminação entre o verdadeiro e o falso, a qual agenciaria, indissociavelmente, efeitos de poder e de governo dos sujeitos e das formas de produção e apreensão da realidade que os circunscreve. Para tanto, centraremos a presente discussão em torno de quatro eixos temáticos acerca dos quais as estratégias enunciativas empreendidas pela prática discursiva produzida pelo governo Bolsonaro e por seus apoiadores durante o período pandêmico reincidentemente conceberem modos de problematização do verdadeiro, a saber: as estratégias de enfrentamento da Covid-19; as organizações de saúde; as vacinas; e, por fim, a eu-pistemologia[1]. Com isso, objetivamos desvelar trajetórias de compreensão de como a verdade é produzida enquanto uma problemática pelo poder, de modo que a questão política, como afirma Foucault, “não é o erro, a ilusão, a consciência alienada ou a ideologia; é a própria verdade” (Foucault, 2013, p. 158).

Discussão metodológica

 Sob a influência da crítica Nietzschiana ao idealismo alemão, a noção de verdade em Foucault consiste em uma recusa peremptória a postulações que a considere transcendente e absoluta, formulando-a, portanto, “como uma criação social radicalmente mundana e contingente, inseparável do poder, e que é política e historicamente situada” (Silva, 2019, p. 2). Nesse sentido, a verdade apresenta-se como uma prática histórica subsumida a um conjunto regrado de procedimentos que a produzem, a estabelecem e a colocam em circulação e funcionamento, de modo que os discursos aceitos como verdadeiros, bem como os mecanismos, técnicas e procedimentos que distinguem o verdadeiro do falso e aqueles que estariam autorizados a enunciá-lo, erigem-se de um regime político de veridicção sob o qual as sociedades arregimentam-se. Nas palavras do autor, “a verdade é concebida essencialmente como um sistema de obrigações, independente do fato de, deste ou daquele ponto de vista, se poder considerá-la verdadeira ou não” (Foucault, 2016, p. 13), de modo que tais obrigações do dizer verdadeiro constituam o “conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder” (Foucault, 2019, p. 53).

 Nesse ponto, as produções enunciativas, circunscritas por um período histórico cujas relações de poder localizam-nas e as diferenciam, registram em sua inscrição material um processo estratégico que “cria-produz-legitima objetos sociais, lugares, subjetividades e realidades, [que, em suma,] agencia processos e relações de saber, poder e posições sociais e de enunciação, nas quais se produzem regimes de conhecimentos, verdades e modos de subjetivação” (Hur; Sabucedo; Alzate, 2021, p. 553). Ao serem construídos sob a rígida égide desses processos regulatórios, os enunciados se diferem das palavras, frases e proposições pois englobam, nas palavras de Deleuze (2006) sobre a teoria foucaultiana, “as funções de sujeito como as de objeto e de conceito” (p. 20-21). Surge, assim, um espaço histórico correlativo entre as possibilidades do dizer verdadeiro, veridicção (Foucault, 2019), e os estratos do real a qual ela se refere, vindo a ser denominado por Foucault como Discurso (Foucault, 1996) – “conjunto de enunciados que se apoia em um mesmo sistema de formação” (Foucault, 2008, p. 122). Tal sistema de formação é responsável por erigir um espaço de verdade (Foucault, 1996) sujeito a um sistema de obrigações e a um conjunto de regras (Foucault, 2019, p. 53; 2016, p. 13) que distingue o verdadeiro passível de ser enunciado sobre o real, tornando visível e enunciável determinadas singularidades históricas ao mediatizar as práticas de produção e apreensão de significação acerca de seus traços. 

Nesse sentido, entendemos que a possibilidade e a capacidade de problematizar a verdade ocorreria pelo questionamento de seu próprio processo de construção na interioridade de um espaço de verdade que produz estratégias singulares de enunciação do verdadeiro. Tal tomada de posição, além de incontornável à problemática trazida pela presente discussão, revive um dos eixos centrais de uma das teses mais originais do pensamento de Foucault: “o que é feito, o objeto, se explica pelo o que foi o fazer em cada momento da história; enganamo-nos quando pensamos que o fazer, a prática, se explica a partir do que é feito” (Veyne, 2008, p. 257). Assim, a noção de verdade pode ser pensada segundo as práticas enunciativas que a torna possível de determinada maneira e em dado tempo histórico, de modo que sua elucidação analítica não se encontre na verdade ou falsidade de um enunciado acabado, mas naquilo que pavimenta o verdadeiro que enuncia a despeito da própria realidade que o âncora. Afinal, se “o real do mundo não é em si mesmo sua própria verdade”, de modo que “a realidade da coisa verdadeira nunca é a razão do fato de a verdade dessa coisa ser dita no interior de um discurso de verdade” (Foucault, 2016, p. 213), a mera constatação da realidade ou falsidade de determinada prática discursiva não nos permitiria, necessariamente, compreender os efeitos de realidade que dada historicidade agencia mediante o verdadeiro que operacionaliza em suas relações de poder e de governamentalidade. 

 Embora seja natural o movimento de voltarmo-nos a produção foucaultiana em busca de procedimentos metodológicos que nos guiem em uma analítica da construção do verdadeiro na presente prática discursiva, devemos ressaltar, como nos lembra Dreyfus e Rabinow (1995), que Michel Foucault nunca produziu uma teoria universal dos discursos, ao contrário, “limitou-se a descrever as formas históricas assumidas pelas práticas discursivas” (Idem, p. IX). Pontuar tal aspecto é fundamental na medida em que não encontraremos na obra do filósofo uma prescrição exata do modo como uma analítica dos enunciados postos em relevo pelo presente artigo deveria ou não ser realizada. Ao invés disso, Foucault faz emergir de seus objetos de análise caminhos de problematização que os desfamiliarizam de tal maneira que a própria ideia de um objeto definível por si mesmo torna-se suspeita. Logo, mais do que um projeto encerrado em seus próprios pressupostos, Foucault parece munir-nos, a cada produção, de trajetórias de problematização erigidas a partir das desobstruções que realiza sobre os construtos do real que recaem sobre os sujeitos, os discursos, as formas de saber e poder, etc.

 Com isso em mente, e buscando erigir ferramentas de inquirição acerca da anatomia da racionalidade responsável por sitiar o real com certa prática de verdade, a qual nos permite deslindar as idiossincrasias estratégicas dos jogos de verdade (Deleuze, 2006, p. 72) com os quais dado conjunto de enunciados recobrem a realidade pandêmica, propomos a noção de microfísica discursiva a fim de estabelecermos um percurso teórico-metodológico de registro, descrição e, principalmente, problematização da prática de construção do dizer verdadeiro no espaço de verdade bolsonarista. Tomando de empréstimos o conceito de “microfísica do poder” (Foucault, 2019) – cuja análise em Foucault realiza-se mediante a problematização de poderes moleculares que não se localizam em ponto específico algum e cujo funcionamento exerce-se em uma rede de dispositivos e mecanismos na qual não há exterior possível, visto sitiar e mediatizar as práticas mais elementares do social -, poderíamos comparativamente compreender a construção do dizer verdadeiro como uma microfísica discursiva, ou seja, um processo derivacional que ascende da atomística dos signos em direção aos domínios de objetos a partir dos quais se produzem formas enunciativas aceitas como verdadeiras acerca de determinados traços do real pela prática discursiva em questão. Isto é, se a microfísica do poder corresponde tanto a um deslocamento do espaço de análise quanto do nível em que esta se efetua (Foucault, 2019, p. 14), de modo a descentralizar a analítica do poder e direcioná-la as relações capilares e moleculares que o poder instituiu e restitui incessantemente, a proposição da noção de microfísica discursiva busca traçar a anatomia estratégica dos detalhes que determinada discursividade histórica transforma em prática de realidade na interioridade de um espaço de verdade que é, ele mesmo, produtor e produto ininterrupto de uma realidade insular ante aquela partilhada por determinada sociedade ou tempo histórico.

 Nesse sentido, se dizer a verdade é obrigatoriamente situar-se em um espaço de verdade, de modo a evocar, na materialidade do enunciado, o sistema de obrigações correlacionados ao verdadeiro (Foucault, 2016, p. 13; 2019, p. 53), a microfísica discursiva busca nas estratégias enunciativas que o constrói as correlações, posições, funcionamentos e transformações que criam, produzem e legitimam objetos e lugares sociais, subjetividades e realidades, que agenciam processos e relações de saber, poder e posições sociais e de enunciação. Ou seja, objetiva descrever, de início, a base dos processos de construção do dizer verdadeiro nos enunciados bolsonaristas a partir das disposições cartográficas dos elementos que estabelecem os jogos de verdade na própria materialidade do conjunto de enunciados que o compõem, seja por meio de afirmações ou negações explícitas acerca do real, de modo a traçar uma fronteira funcional entre o verdadeiro e o falso, seja mediante uma economia subreptícia da verdade, a qual movimenta o jogo estratégico dos enunciados ao gerir e dotar de significação os traços de realidade que são fabricados pela molecularidade condicionada que empreende.  

 A descrição do sistema de correlações entre as singularidades dispostas na gama de enunciados e, consequentemente, a elucidação das regularidades que estabelecem as regras de formação (Foucault, 2008, p. 47) das práticas enunciativas que possibilitam a distinção estratégica do verdadeiro e do falso, leva-nos a proposta de uma segunda camada de registro e descrição que englobaria a primeira: o estabelecimento daquilo que Foucault compreende como as condições de existência (Idem) de um discurso, isto é, a maneira como determinados enunciados conformam-se às escolhas temáticas, tipos de posicionamento enunciativo ou motes conceituais que restringem as formas de aparecimento dos construtos enunciativos, ou seja, condicionam as estratégias enunciativas empregadas em vista da temática ou situacionalidade correlacionada à produção linguística. 

 Como nos lembra Foucault, um objeto existe na interioridade de um enunciado verdadeiro somente se estiver sobrepujado pelas condições positivas de um feixe de relações complexas, as quais definem as cadeias de visibilidade e apreensão ou, mais precisamente, o referencial de verdade que o permite aparecer de tal maneira e não de outra (Idem, p. 53). Em outras palavras, a partir da noção de condição de existência, objetivamos propor que distintos temas correspondem a distintas estratégias de construção enunciativa, de modo que seja possível descrever: por um lado, a microfísica das regras de formação que regem a construção estratégica do verdadeiro em um grupo de enunciados referentes a dada temática acerca do real; por outro lado, a maneira como é possível eleger, por meio da comparação entre tais microfísicas estratégicas, regularidades ou sistematicidades de formação que agrupem distintas maneiras de construir temáticas sobre o real em torno de um mesmo domínio discursivo acerca da realidade. Caso seja possível descrever o jogo estratégico, ainda que difuso e lacunar, entre construções de pequenas temáticas do real e a racionalidade que as articula, poder-se-á desobstruir, enfim, a maneira como uma racionalidade construtora do verdadeiro ampara as condições de existência de distintas temáticas enunciativas em torno de uma mesma sistematicidade formadora, ainda que esta resguarde um detalhamento singular em vista das micro-estratégias que a arquitetam, de cada micro-tema de sua anatomia. 

 Com isso, capacitamos-nos a elucidação do terceiro elemento que ascende do percurso de descrição da construção do dizer verdadeiro nos enunciados bolsonaristas, a saber: os domínios enunciativos. Assim como a identidade estratégica dos enunciados concebe o conjunto dos limites e restrições das condições de existência nas quais figuram, o domínio de objeto seria formado pelas próprias condições de existência que delimitaram, em função das correlações estabelecidas entre um conjunto de estratégias enunciativas, a interioridade da verdade na qual determinado conjunto de práticas sociais devem remeter a fim de situarem-se em uma prática de verdade que se aposse do real mediante um conjunto de escolhas temáticas, tipos de posicionamento enunciativo ou motes conceituais, em suma, em função de certa regularidade e coerência entre funções de existência.

 Um domínio corresponderia, portanto, ao produto mais geral das estratégias enunciativas, pois sua formação advém da sistematicidade depreendida de um certo conjunto de condições de existência. Comparativamente, o discurso psiquiátrico do século XIX só foi capaz de apoderar-se da loucura na medida em que a tornou um domínio enunciativo na interioridade de sua discursividade histórica, no momento em que a elegeu, por meio de um conjunto de práticas, um objeto focal em torno do qual temáticas, posicionamentos e conceitos são construídos, enunciados são burilados e uma anatomia do detalhe é capilarizada. Nesse sentido, a loucura existiria enquanto tal pois fora concebida como um domínio-objeto, como um campo por meio do qual uma série de práticas atravessaram-na com o verdadeiro, tanto dos temas obrigatórios aos enunciados que almeja se mencionar a loucura ou identificar aquele que a portasse, quanto das estratégias enunciativas que deveriam ser mobilizadas a fim de situar-se em um dos eixos de corporificação ou rarefação do domínio-loucura. O domínio nada mais representaria, enfim, do que um dos limites de uma formação discursiva, uma das circunscrições referente a dado conjunto de temas e objetos sobre os quais dados enunciados devem falar, bem como o feixe de relações que os enunciados no interior de dado domínio devem cumprir para nele fazer ver e dizer de forma verdadeira (Foucault, 2012 apud Dreyfus; Rabinow, 1995, p. 70).

Figura 1: Modelo esquemático de descrição da construção do dizer verdadeiro em função da decantação de eixos de problematização idiossincráticos a uma formação discursiva

Fonte: Elaboração própria. 

 O que se buscou fazer até aqui consiste, portanto, na proposição de uma esquemática progressiva de registro e descrição que nos permita vislumbrar, a partir das contribuições foucaultianas, eixos de problematização na interioridade das práticas de verdade que governam a racionalidade dos enunciados bolsonaristas. De maneira ainda mais elementar, tal percurso de articulações teórico-metodológicas objetiva, fundamentalmente, erigir ferramentas de inquirição que nos permita depreender a anatomia da racionalidade responsável por construir, a partir de um dado conjunto de enunciados acerca de traços do real, certa prática de realidade agenciada pelo verdadeiro. 

 A fim de explicitamos o trajeto de ascensão derivacional da prática discursiva bolsonarista acerca dos quatro eixos pandêmicos supracitados, de modo que o funcionamento microfísico da materialidade linguística seja privilegiado, proporemos esquemas arbóreo derivacionais a fim de expormos detalhadamente os percursos de derivação postulados anteriormente. Para tanto, na figura a seguir, oferecemos um esquema arbóreo derivacional simplificado, o qual nos permitirá abordar algumas de suas características elementares: 

Figura 2: Exemplo de esquema arbóreo derivacional 

Fonte: Elaboração própria.

 A figura apresenta, respectivamente: (a) um trecho de determinada construção enunciativa[2], a qual fora extraída da obra Bolsonaro e seus seguidores – 1560 frases (Barreto Jr., 2021), responsável por manipular objetos, formas de enunciação, conceitos e escolhas teóricas ou temáticas (Foucault, 2008, p. 47; p. 142) que criam determinado “jogo de verdade” ou delimitam determinada cartografia de verdade que vêm a produzir, assim, regras de formação para o dizer verdadeiro acerca de determinada condição de existência discursiva-enunciativa; (b) uma das condições de existência que, por um lado, é regulada a partir de determinado conjunto de enunciados e, por outro,  sistematiza determinado domínio de objetos acerca do real, visto compor uma temática a partir da qual a verdade aloca-se segundo as regras de formação que seus enunciados produzem; (c) um dos domínios de objeto acerca do real que a discursividade bolsonarista sistematiza a partir das condições de existência derivadas das regras de formação produzidas por determinado conjunto de  enunciados. Em outras palavras, de um enunciado deriva se uma condição de existência a determinado tema que, por sua vez, sistematiza um conjunto de temáticas acerca de determinado objeto do real. 

 Na figura a seguir, apresentaremos um esquema arbóreo mais complexo, semelhante àqueles que servirão como mote para as discussões adiante, a fim de discutirmos algumas implicações acerca da esquemática de registro e descrição proposta.

Figura 3 – Exemplo de um esquema arbóreo derivacional completo[3]

Fonte: Elaboração própria.

 Na Figura acima, além de conservarem-se as dinâmicas apresentadas anteriormente, há a adição de outros dois elementos que se mostraram essenciais a uma proposta de registro e descrição que busque explicitar os recursos estratégicos empregados pela gênese formadora das enunciações sob análise, a saber: primeiro, a decantação da própria sequencialidade enunciativa[4] a fim de depurarmos a maneira como a molecularidade dos signos, dos objetos, dos conceitos, das relações e correlações interiores a um mesmo enunciado, em suma, sua microfísica, compõem uma anatomia estratégica dos detalhes responsáveis por construírem determinado jogo de verdade; segundo, após tornar descontínua a sequencialidade dos enunciados e iluminar sua molecularidade formadora, optamos por identificar quatro aspectos elementares que são depreendidos da superficialidade do processo de formação dos enunciados em questão a fim de facilitar a visualização da maneira como a materialidade linguística é reescrita a serviço da racionalidade sob análise. Neste caso, a partir da coloração dos tagmas formadores da enunciação, poderemos identificar quatro aspectos estratégicos da gênese enunciativa do verdadeiro: pontos de emergência do verdadeiro ou instantes da enunciação em que a verdade é problematizada (coloração amarela); a maneira como a enunciação mobiliza recursos instrumentais ou retóricos acerca do real a fim de produzir o verdadeiro (coloração azul); os traços positivos ou valorizados pelas enunciações, os quais compõem, aliados ao verdadeiro, matrizes de sentido a partir das quais a realidade é atravessada (coloração verde); por fim, os traços negativos, diametrais em relação aqueles tidos como positivos ou valorizados pelos enunciados, os quais também compõem, adjungidos ao verdadeiro, matrizes de sentido a partir das quais a realidade é atravessada (coloração vermelha). Em suma, objetivamos destacar e iluminar, na própria materialidade estratégia posta em prática, a maneira como a verdade coloca-se como uma problemática em vista de determinado traço do real, de modo a estabelecer uma descrição pautada na própria emergência de correlações singulares com as quais os enunciados constroem uma prática de verdade que agencia dada prática de realidade. 

Resultados

 A presente seção dedica-se à descrição das estratégias enunciativas empreendidas pelos enunciados produzidos pelo governo Bolsonaro e por seus aliados e cujo domínio derivado circunscreve os objetos relacionados a pandemia de Covid-19. Para tanto, dedicar-nos-emos a discussão de quatro condições de existência circunscritas pelo presente domínio – “estratégias de enfrentamento”; “eu-pistemologia”; “organizações de saúde”; “vacinas” -, as quais se encontram representadas nas três figuras a seguir:

Figura 4: Domínio de objetos acerca da pandemia de Covid-19[5]

Fonte: Elaboração própria.

Figura 5: Domínio de objetos acerca da pandemia de Covid-19[6]

Fonte: Elaboração própria.

 Figura 6: Domínio de objetos acerca da pandemia de Covid-19[7]

Fonte: Elaboração própria.

 As estratégias de enfrentamento ao cenário devastador acarretado pela pandemia de Covid-19 fora temática amplamente incidente nos mais variados discursos produzidos ao longo do período. Correspondendo as figuras 4 e 5, propomos que a condição de existência “estratégia de enfrentamento” fora fractalizada, dada as múltiplas implicações que acarreta, em três condições acerca das quais os enunciados produzem determinado de jogo de verdade acerca do real – “tratamento precoce”, “Medidas de isolamento” e “Forma correta de gerir a pandemia”. Na interioridade de cada uma delas, propomos sub-temáticas derivadas do modo como determinados enunciados focalizam traços acerca do real em sua estratégia de construção do dizer verdadeiro. 

 O mesmo procedimento ocorre na figura 6, cujas condições de existência fractalizam-se em traços específicos do real. Nesse esquema arbóreo, outros dois temas incontornáveis a realidade pandêmica são atravessados por enunciados de verdade – as vacinas e as organizações de saúde. A terceira condição de existência, a qual chamamos “eu-pistemologia”, refere-se a uma estratégia cujo papel na prática discursiva bolsonarista passa a configurar uma condição de existência derivada de determinados enunciados reincidentes dentre aqueles coletados.  

 Atendo-nos, primeiro, aos enunciados responsáveis por derivar as condições de existência “estratégias de enfrentamento” e “eu-pistemologia”, proporemos 4 eixos gerais a fim de descrevê-las em função da prática estratégica por meio da qual a verdade é construída, sendo eles: a noção de ciência, a posição do sujeito (virtual ou detentor da produção enunciativa), a noção de hiato discursivo e, por fim, a ideia de conflito ou guerra permanente. 

 Em vista dos tagmas destacados em amarelo nos enunciados de ambas as condições de existência, os quais sublinham determinada prática de veridicção, observamos que as afirmações de verdade ou falsidade que realizam ocorrem por meio de uma reinscrição do paradigma epistemológico corrente no discurso científico. Isto é, ao afirmar-se a eficácia do tratamento precoce, ao pautar a primazia da relação médico-paciente em oposição às recomendações das instituições científicas consagradas, ao acusar a suposta falseabilidade das medidas de isolamento e ao aventar uma maneira correta de gerir a pandemia de Covid-19, observamos uma prática de verdade que inverte a pirâmide científica a serviço de uma base de legitimação do discurso verdadeiro que se encontra na própria possibilidade da afirmação de verdade de um enunciado, o qual deve ser produzido por determinado indivíduo consagrado pela prática discursiva em questão, ser suficiente para constituir determinado traço de verdade acerca do real. 

 A título de comparação, a ciência médica baseada em evidências hierarquiza as variadas metodologias de pesquisa utilizadas, ranqueando, assim, a qualidade das evidências que depreendem. Desse modo, quanto mais seguro e robusto o método, mais alta sua posição na pirâmide e mais confiáveis são os dados que produz, ao passo que quanto mais inconsistente é o método, mais baixa sua posição na pirâmide e menos confiáveis são os dados que afirma (Cesarino, 2022, p. 248). Nesse contexto, evidências confiáveis são aquelas desenvolvidas por pesquisas com um robusto incentivo de tempo, financiamento e infra-estrutura, enquanto “as evidências na parte baixa da pirâmide – estudos observacionais, estudos de coorte, observações anedóticas – têm custo inferior: são mais fáceis de realizar e, portanto, mais comuns” (Idem, p. 249) e menos confiáveis. O que se depreende da prática de verdade bolsonarista é a inversão dessa pirâmide, ou seja, não é mais a ciência, representada pelas grandes instituições de pesquisa ou pelos grandes estudos realizados, muito menos os especialistas, outrora portadores do dizer verdadeiro nos domínios que lhes cabem (Roque, 2021), ao afirmarem a verdade acerca da realidade pandêmica ou do modo como deve ser gerida. Pelo contrário, é o homem comum, emissor ou interlocutor virtual do enunciado em ato, por meio de sua experiência empírica com a realidade circunscrita a sua esfera pessoal e protegida (Brown, 2019), a ser estrategicamente agenciado como matriz de veridicção. Não por acaso os enunciados que derivam da condição de existência denominada “eu-pistemologia”, bem como alguns que versam sobre a eficácia do tratamento precoce, podem construir-se em uma prática de verdade tal qual exposta nas Figura 4 e 6. 

 Como consequência disso, podemos aventar ao menos duas implicações que essa dinâmica estratégica acarreta. Na condição de existência denominada “empiria ou relação médico-paciente”, observamos a maneira como a inversão da pirâmide científica é amplamente utilizada como fundamento estratégico para justificar a eficácia do tratamento precoce. Se a verdade está ao alcance da constatação empírica, e seu o indivíduo é reposicionado como uma matriz de veridicção a despeito da realidade da verdade que anuncia, torna-se possível afirmar que o tratamento precoce é eficaz por meio dos resultados práticos, ainda que sem comprovação científica, que determinados médicos, não necessariamente personificados, relatam. Ademais, ao centralizar no sujeito a fonte da verdade e, conjuntamente, afirmar a falseabilidade das grandes instituições de pesquisa, vemos ser operacionalizada uma dinâmica enunciativa que privilegia uma tratativa terrena, direta e empírica da população frente aos riscos da Covid-19. Isto é, se o sujeito é a fonte da verdade, somente ele saberá o melhor para si e para os seus, de modo que todo discurso que infrinja sua “esfera pessoal e protegida” (Idem) deva ser tratado com suspeita. Tal estratégia enunciativa permite, assim, que o Estado se exima da função de lidar com a ponta final da catástrofe pandêmica, afinal, a verdade acerca da responsabilidade proveniente dos riscos virais compete ao modo como os sujeitos decidem portar-se, não cabendo ao Estado infringir o discurso de verdade do homem comum.   A inversão da pirâmide científica e a centralização da verdade na figura do homem comum parecem estar associadas a uma estratégia enunciativa que denominamos de práticas de testemunho. Semelhantes ao processo de testemunho de cunho evangélico, formação discursiva amplamente mobilizada pelo bolsonarismo (Guerreiro; Almeida, 2021), no qual a enunciação de determinada experiência de revelação religiosa é revestida de verdade quando associada, pelo emissor do enunciado, as regras de formação do discurso religioso (Rocha; Carmo, 2017), o testemunho empreendido pela prática enunciativa bolsonarista constitui-se como um elo necessário entre o sujeito da verdade e o espaço de verdade em questão. Ou seja, assim como o testemunho religioso habilita que os fieis experienciem a verdade por meio da empiria de uma revelação mediada pelo espaço de verdade religioso, a estratégia enunciativa que torna o homem comum uma matriz de verdade passível de produzir testemunhos acerca do real realiza-se mediante a sujeição, tanto dessas práticas de verdade, quanto do próprio sujeito que as produz, as regras de formação do espaço de verdade bolsonarista. Se há, para o sujeito, uma cadeia acessível de visibilidades passíveis de constituírem traços de realidade que carreiam consigo o verdadeiro, isso só ocorre mediante seu posicionamento, condicionado ou condescendente, no espaço de verdade que as tornam visíveis e enunciáveis. Logo, mais do que uma constatação empírica do verdadeiro, encontramos estratégias que operacionalizam testemunhos de verdade. 

 A relação pendular que caracteriza as práticas de testemunho, isto é, a oscilação entre o sujeito e o espaço de verdade a fim de conceber o verdadeiro, leva-nos a proposição de uma nova estratégia enunciativa empreendida pelos enunciados em questão: a noção de hiato enunciativo. Embora seja possível identificar, nas figuras 4 e 5, diversas proposições de verdade cuja construção enunciativa oferece todos os recursos necessários para estabelecer o verdadeiro e o falso, bem como seus traços de positividade e negatividade, encontramos enunciados cuja construção do dizer verdadeiro parece não se encerrar na materialidade que operacionalizam, isto é, a verdade problematizada não se encontra em meio a atomística dos signos, é somente sugerida por eles, de modo que entre o enunciado linguístico e o enunciado de verdade há um hiato constitutivo, uma silenciosa interrupção do devir da verdade por meio dos signos. No entanto, ainda que a verdade não se materialize na cadeia enunciativa, ela parece materializar-se por meio de um silêncio que significa.

 Nesse sentido, o hiato enunciativo possibilitaria que a prática de testemunho seja melhor direcionada a cada interlocutor que tomar contato com a proposição de um enunciado de verdade. Ao estipular um silêncio que significa, os hiatos enunciativos permitem que diferentes interlocutores projetem, mediados pelo espectro de visibilidade do espaço de verdade bolsonarista, traços de verdade acerca de distintas instâncias do real que melhor relacionam-se com a “esfera pessoal e protegida” que trazem consiga. Em suma, se a prática de testemunho torna o sujeito uma matriz de sentido autônoma governada pelo espaço de verdade, de modo a imputá-lo sobre o real que o circunscreve, os hiatos enunciativos permitem que os sujeitos vejam-se refletidos nos enunciados produzidos pelas figuras públicas e relevantes da prática discursiva bolsonarista, dada a maneira individual e personalizada com que preenchem as lacunas deixadas pelos enunciados reitores.

 Em suma, os hiatos enunciativos cumprem a função estratégica de posicionar as demandas de realidade dos interlocutores bolsonaristas no interior das práticas de verdade que os líderes do movimento produzem. Contida na figura 6, a frase a seguir permite-nos exemplificar uma ocorrência estratégica daquilo que chamamos de hiato enunciativo: “Há uma preocupação de que “interesses outros” possam estar envolvidos nessa questão da vacina. Se morrer hoje, vai para o céu, que é santo. Mas a questão é séria e temos que ter responsabilidade. Não é falar que “vou obrigar”” (Barreto Jr., 2021, p. 119). Por mais que a questão da verdade seja colocada de forma indeterminada pela expressão “interesses outros”, legando ao silêncio a materialidade linguística na qual a verdade realiza-se, postulamos que, nesses casos, o silêncio não seria um não-dito, um lugar vazio sem determinação, mas um dispositivo estratégico que agencia processos de significação e intercompreensão entre emissor e interlocutor na interioridade microfísica do espaço de verdade bolsonarista. Nesse sentido, a utilização estratégica dos hiatos enunciativos compreende um processo pendular e ininterrupto que oscila entre o sujeito e o espaço de verdade a fim de fazer o silêncio significar de forma eficaz e estrategicamente direcionada. 

 Embora não esteja contido nos esquemas arbóreos apresentados até então, um segundo exemplo apresenta-nos, de maneira ainda mais clara, o emprego da estratégia em questão: “É um vírus novo, ninguém sabe se nasceu em laboratório ou se nasceu por algum ser humano ingerir um animal inadequado. Será que não estamos enfrentando uma nova guerra? Qual país que mais cresceu seu PIB? Não vou dizer para vocês” (Idem, p. 154). Nesse enunciado, o hiato enunciativo parece constituir estratégia predominante na proposição de sua veridicção, haja vista: primeiro, a alusão a uma suposta produção premeditada do vírus da Covid-19 pelo governo chinês, o que, além de negar a verdade corrente segundo a qual o vírus teria sido ingerido acidentalmente por um indivíduo, também relaciona-se a maneira como o espaço de verdade bolsonarista compreende a covid-19 como uma arma da oposição política e ideológica em uma guerra global; segundo, faz uso de perguntas retóricas  a fim de direcionar a verdade acerca de determinados traços do real; terceiro, índice próprio ao emprego dos hiatos enunciativos, o enunciado é encerrado por meio da negação da necessidade de demais explicitações acerca das afirmações e alusões feitas, ou seja, cria-se um hiato entre o enunciado e a explicitação linguística dos traços de realidade que legitimam sua verdade. Portanto, a recusa em apresentar indícios as afirmações realizadas, bem como a reiterada suspeita ante a realidade comum, a qual não necessariamente justifica de modo factual os motivos pelos quais tal suspeita poderia comprovar-se, constituem traços do emprego estratégico em questão. Tal arranjo possibilitaria, assim, que os interlocutores que vierem a tomar contato com esse enunciado possam preencher, mediados pela racionalidade do espaço de verdade que os subjetiva e os governa, os hiatos oferecidos. Com isso, torna-se possível que o homem comum testemunhe, em sua “esfera pessoal e protegida”, os indícios de realidade que os enunciados reitores insinuam.

 Por fim, cabe salientarmos o quarto eixo estratégico depreendido da construção do dizer verdadeiro nas figuras apresentadas: a noção de conflito ou guerra permanente. Temática já consagrada nos estudos sobre o bolsonarismo (Cesarino, 2021; Sloboda, 2023), a produção de uma cisão político-social brasileira situa-se nas práticas de governamentalidade do governo Bolsonaro, desde sua campanha eleitoral em 2018, até sua consumação em políticas de governo, como um traço contínuo e inextricável. Em vista disso, a problematização da construção do dizer verdadeiro no espaço de verdade bolsonarista permite-nos vislumbrar a maneira como a produção e a perpetuação permanente do conflito ou da guerra constitui uma das principais estratégias enunciativas empreendidas pela prática discursiva sob auspício. Além disso, dada sua dinâmica idiossincrática, releva-se intimamente articulada às estratégias supracitadas. Afinal, se todos aqueles que se inserem ou são inseridos nesse espaço de verdade detém o poder da veridicção, todo e qualquer enunciado externo a tal racionalidade passa a ser compreendido, ora como um falseamento perverso da realidade, ora como uma posição suspeita. Logo, além das questões históricas, sociais, políticas e ideológicas que revestem a posição diametral àquela ocupada pelo bolsonarismo, entendemos que o revestimento de sentido e significação que esse o espaço de verdade impõe sobre a oposição e os inimigos que delineia dá-se, também, em função de um choque premeditado e estrategicamente estabelecido entre regimes de veridicção. Por um lado, a verdade se torna um dos instrumentos principais para o estabelecimento do conflito social empreendido pela governamentalidade bolsonarismo, por outro, a regularização do conflito ou da guerra permanente, a qual produz uma topografia regular de traços positivos e negativos, verdadeiro e falsos, acerca do real, configura uma estratégia enunciativa axial a construção do verdadeiro. 

Funcionamento semelhante aquele encontrado no espaço de verdade evangélico neopentecostal (Almeida; Toniol, 2019; Almeida; Guerreiro, 2021), no qual a negação da palavra de Deus ou daquele que a transmite, matrizes de veridicção essenciais, remetem a posição ameaçadora do maléfico, do inimigo ou do próprio Diabo, enunciados de verdade contrastantes a racionalidade do espaço de verdade bolsonarista passam a ser regularmente posicionados, correlacionados e revestidos pelos traços negativos dessa prática discursiva. Ou seja, posicionam-se como extensões dos inimigos, da oposição, daquilo contra o que se luta e se combate, como traços de verdade acerca da falsidade que pretendem impor sobre o real, seja a fim de cumprirem planos maléficos e diabólicos em escopo nacional e mundial, seja a fim de prejudicarem, corromperem ou sabotarem o governo Bolsonaro, seus apoiadores e o povo brasileiro nas mais variadas micro-instâncias da realidade. 

 Com isso, podemos iluminar a instrumentalização estratégica que vivifica a maneira como o governo Bolsonaro, seus apoiadores e os valores aos quais se associam passam a ser racionalizados como vítimas de uma ameaça permanente e atroz, calcada em um empreendimento ininterrupto de falseamento, contestação e sabotagem da autêntica verdade acerca da realidade. Nesse sentido, nas três figuras acima, a estratégia de proposição de um conflito, guerra ou ameaça permanente evidencia-se no modo como elege inimigos, ameaças ou opositores, bem como os traços de sentido que portam, responsáveis por falsear o real, tal como nos exemplos que se seguem: “Tem um inimigo muito grande contra esse movimento [tratamento precoce] que é a Rede Globo” (VIDEO…, 2021); “Com a hidroxicloroquina se tornando cada vez mais eficaz contra o coronavírus, agora não tem jeito, o pessoal que torce pelo vírus vai é atacar o medicamento” (Barreto Jr., 2021, p. 67); “Os globalistas preparam uma vacina para mudar nosso DNA, que nos foi dado por Deus. Esse Bill Gates é um assassino, genocida, satanista. Ele quer matar milhões de pessoas e trocar o nosso DNA pela marca da besta. Ele é um demônio” (Idem, p. 121). 

Nesse sentido, se a verdade está circunscrita ao espaço de verdade bolsonarista, a falsidade e a ameaça relacionam-se a elementos como: a contestação ou proibição do tratamento precoce; a suposta politização do vírus realizada pelos inimigos em função de não possuírem argumentos verdadeiros para contestar as medidas governamentais; os políticos, partidos e funcionários públicos não alinhados aos pressupostos de verdade do governo; as instituições científicas e internacionais, como OMS e Imperial College; a grande mídia televisiva, como a Rede Globo; a esquerda num geral, e todos os traços que a ela são associados, como o terrorismo, o crime organizado e afins. 

 Ademais, a instrumentalização do conflito permanente como dispositivo estratégico na construção do verdadeiro não deve ser interpretado como um recurso autônomo, pelo contrário, sua regularidade e sistematicidade conjuga-se e se correlaciona com as demais estratégias enunciativas discutidas anteriormente. Ao mapear e posicionar os inimigos e as ameaças contras as quais o espaço de verdade bolsonarista e os sujeitos que nele se situam fronteirizam-se, tal estratégia enunciativa permite que: primeiro, a inversão da pirâmide científica seja revestida e conduzida segundo a diametralização do conflito, de seus atores e sentidos, de modo a justificar a falseabilidade dos discursos que não tomem como matriz de veridicção a “esfera social e protegida” do homem comum, bem como suas práticas de testemunho ante o verdadeiro, mediante uma prática regular de correlação entre tais discursividades e a posição do inimigo, da ameaça e do falseamento; segundo, as práticas de testemunho e, por extensão, os hiatos enunciativos, ao serem correlacionados com a estratégia do conflito permanente, permite que a prática discursiva bolsonarista atravesse a figura do sujeito comum com as vicissitudes do conflito e da guerra. Isto é, os testemunhos de verdade acerca do real que os sujeitos realizam em sua esfera social e protegida passam a indiciar, também, as dinâmicas do conflito generalizado e ininterrupto que os enunciados reitores asseveram, de modo que os próprios sujeitos sejam levados a apreender a realidade que os circunscreve como implicada e dinamizada, intimamente, pelo conflito. 

Nesse sentido, a condição de existência concernente ao tema “vacinas” possibilita-nos vislumbrar a racionalidade do funcionamento estratégico que o conflito e a ameaça permanente instituem. Mais especificamente, no enunciado: “Os globalistas preparam uma vacina para mudar nosso DNA, que nos foi dado por Deus. Esse Bill Gates é um assassino, genocida, satanista. Ele quer matar milhões de pessoas e trocar o nosso DNA pela marca da besta. Ele é um demônio” (Idem, p. 121), vemos que a figura do inimigo, pouco definível e, por isso, passível de ser preenchida pelos interlocutores segundo suas demandas de realidade-verdade, torna-se o eixo de veridicção que justifica a atuação daqueles que se opõem a prática de governamentalidade bolsonarista em relação a pandemia de Covid-19 – nesse caso, o embate dá-se entre aqueles que defendem a vacina e aqueles, associados ao espaço de verdade bolsonarista, que defendem o tratamento precoce como medida de enfrentamento aos riscos virais. Uma vez que vacina é sobreposta pela estratégia de guerra permanente, sua razão de verdade passa a ser atravessada pelas estratégias que vivificam essa guerra, com isso, a defesa das vacinas ocupa posição externa ante as regras de formação dos enunciados bolsonaristas e, consequentemente, passa a ser apreendida como um dispositivo de guerra empregado pelos inimigos.

Conclusão

 A partir da localização de formas heterogêneas por meio das quais a verdade é colocada e problematizada no conjunto de enunciados trabalhados ao longo do presente artigo, seja por meio de afirmações ou negações explícitas acerca do real, seja mediante uma economia subreptícia da verdade – a qual movimenta um jogo estratégico de produção enunciativa ao gerir seus objetos, formas de enunciação, conceitos, formas de silenciamento, posições e funções dos sujeitos, entes sociais e políticos, etc.-, intentamos explicitar a maneira como a prática discursiva bolsonarista, ao posicionar-se ante o domínio de objeto da Covid-19, operacionalizar estratégias sistemáticas de construção do dizer verdadeiro nos enunciados com os quais sobrepuja a realidade pandêmica. 

Portanto, ainda que a construção do dizer verdadeiro possa oscilar em função dos traços de realidade contra os quais é confrontada – afinal, segundo a proposta de uma microfísica discursiva, os processos de construção do verdadeiro perpassam pela gestão molecular dos intercâmbio de relações externas e internas a materialidade enunciativa visando, assim, ao sitiamento do real de modo que não haja exterioridade possível diante da racionalidade que governa a molecularidade de seu espaço de verdade -, a descrição das estratégias enunciativas empreendidas na construção dos enunciados do governo Bolsonaro e de seus aliados durante a pandemia de Covid-19 indicaram-nos uma possível sistematicidade de suas regras de formação, que seriam responsáveis por promoverem uma política de verdade que problematiza e produz as formas do dizer verdadeiro acerca da realidade pandêmica.

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[2] O termo “eu-pistemologia”, usado no presente trabalho com o intuito de denominar determinada condição de existência enunciativa, terminologia que será posteriormente desenvolvida, fora concebido por Cesarino (2022) a fim de referir-se a um dos modos como o bolsonarismo inverte a pirâmide científica.

[3] O enunciado contido na presente figura encontra-se em Barreto Jr, 2021, p. 118.

[4] Os enunciados contidos na presente figura encontram-se, respectivamente, em: Barreto Jr., 2021, p. 56; p. 279; p. 63; 108; p. 136; p. 118.

[5] A descontinuidade imposta sobre os enunciados cumpre a função de evidenciar o processo microfísico e idiossincrático desempenhado pela estratégia enunciativa de cada enunciado e, posteriormente, da correlação entre elas. No entanto, ofereceremos, a cada esquema arbóreo apresentado, a indicação bibliográfica de cada um dos enunciados contidos na figura.

[6] Os enunciados contidos na presente figura encontram-se, respectivamente, em: Barreto Jr., 2021, p. 58; p. 90; p. 231; p. 114; p. 96; p. 143; p. 88;  p. 90; p. 91; p. 271; p. 91;  p. 92; p. 92; p. 65; p. 65; p. 67; p. 99; p. 134; p. 94.

[7] Os enunciados contidos na presente figura encontram-se, respectivamente, em: Barreto Jr., 2021, p. 70; p. 73; p. 66; p. 89; p. 93; p. 121; p. 128; p. 79; p. 260; p. 102; p. 240; p. 66; p. 109; p. 63. 

[8] Os enunciados contidos na presente figura encontram-se, respectivamente, em: Barreto Jr., 2021, p. 56; p. 54; p. 51; p. 123; p. 66; p. 102; p. 112; p. 119; p. 112; p. 121. 


1 https://orcid.org/0000-0002-4429-3701.