REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202410281011
Luiz Flávio Porfírio Teddo¹.
RESUMO
Este artigo objetiva explorar os requisitos da contratação de serviços de consultoria e/ou assessoria jurídica ou contábil sob a égide da inexigibilidade de licitação à luz da Nova Lei de Licitações e Contratos Públicos. Procura enaltecer as cautelas que devem ser observadas pelo contratante. Através do estudo das leis que regem a matéria, o posicionamento do Tribunal de Contas de Minas Gerais (TCE-MG), a doutrina e o entendimento do Ministério Público sobre o tema, foi possível concluir que a contratação direta por inexigibilidade é uma exceção da regra soberana, que é a licitação. Por assim ser, todos os requisitos da contratação devem ser atendidos de forma concomitante, da mesma forma como os princípios “LIMPE” do caput do art. 37 da Constituição da República de 1988, também devem ser atendidos em conjunto. A contratação por inexigibilidade de um objeto de contratação que seria considerado comum pode ser caracterizado como uma fraude ao instituto da ampla concorrência e a pena prevista é a de reclusão àquele que deu causa e àquele que se beneficiou da contratação ilegal. Além disso, foi preciso ressaltar que o TCE-MG não é o único órgão de controle externo. Outros órgãos, tais como o Ministério Público são independentes e podem possuir entendimento diferente de outro órgão.
PALAVRAS-CHAVE: Licitação. Inexigibilidade. Consultoria. Assessoria. Contadores. Advogados. Singularidade. Notória Especialização.
Abstract
This article aims to explore the requirements for contracting consultancy services and/or legal or accounting advice under the auspices of the non-requirement of bidding in light of the New Public Tenders and Contracts Law. It seeks to highlight the precautions that must be observed by the contractor. Through the study of the laws that govern the matter, the position of the Minas Gerais Court of Auditors (TCE-MG), the doctrine and understanding of the Public Ministry on the subject, it was possible to conclude that direct hiring due to unenforceability is an exception to the sovereign rule, which is bidding. Therefore, all contracting requirements must be met concomitantly, in the same way as the “LIMPE” principles in the caput of art. 37 of the Federal Constitution must also be met together. Contracting due to the unenforceability of an object of contracting that would be considered common can be characterized as a fraud against the institute of broad competition and the penalty provided is imprisonment for the person who caused and who benefited from the illegal contracting. Furthermore, it was necessary to emphasize that the TCE-MG is not the only external control body. Other bodies, such as the Public Prosecutor’s Office, are independent and may have a different understanding from another body.
Keywords:
Bidding. Unenforceability. Consultancy. Advice. Accountants. Lawyers. Singularity. Notorious Specialization.
INTRODUÇÃO
A questão da contratação de advogados e contadores sem licitação, sob a égide do instituto da inexigibilidade sempre foi um tema controverso, especialmente pela divergência de entendimento dos órgãos de controle externo, tais como Tribunal de Contas, Ministério Público e Tribunal de Justiça. O objetivo deste artigo é elucidar, aos gestores públicos que são ordenadores da despesa pública, as cautelas que devem observar antes de estabelecer o enlace jurídico com aquele fornecedor auto declarado notório especialista para executar um objeto de alta complexidade. Sugere-se, aos ordenadores de despesa, analisar o contexto da contratação por inexigibilidade de licitação, evitando adotar dispositivos legais pontuais, isolados, excluindo a ligação que esses dispositivos pontuais possuem com outros dispositivos de teor imperativo.
Com o objetivo de alcançar a meta da elucidação, explora-se o que dizem as leis, as decisões jurisprudenciais de contas e o posicionamento do Ministério Público sobre o tema, pois além de serem órgãos de controle externo do erário, são independentes e podem dotar-se de entendimento diferente.
A INEXIGIBILIDADE NA EXTINTA LEI DE LICITAÇÕES
A extinta lei de licitações (Lei nº 8.666/93), em seu artigo 25, inciso II facultava a inexigibilidade de contratação quando houvesse a inviabilidade de competição. Constituiam-se enquadráveis os serviços mediante estudos técnicos; planejamentos e projetos básicos ou executivos; pareceres; perícias; avaliações; assessorias ou consultorias técnicas; auditorias financeiras e tributárias; fiscalização; supervisão; gerenciamento de obras ou serviços; patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas; treinamento e aperfeiçoamento de pessoal; restauração de obras de arte e bens de valor histórico. Tipificado o objeto, a lei destacava a necessidade da natureza dos serviços serem singulares e que a empresa prestadora de serviços deveria comprovar a sua notória especialização no objeto singular de contratação pretendida.
A revogada lei ainda definia que a notória especialização se poderia inferir pelo profissional ou pela empresa revestida de Know-How em trabalhos pretéritos, equipe de trabalho, desempenho e resultados, no campo de sua especialidade. Era preciso realizar ampla pesquisa no mercado, no sentido de verificar se não existiam outras empresas aptas a executar o objeto pretendido. Encontrando outros profissionais ou empresas de notória especialização para a execução do objeto singular ou não, deflagrava-se a regra geral da lei de licitações e contratos, que é o processo licitatório. Para demandas de menor complexidade, adotava-se o menor preço como proposta mais vantajosa para a Administração. Para demandas de maior complexidade, adotava-se a melhor técnica ou técnica e preço como proposta mais vantajosa para a Administração. Por fim, exauridas as buscas para encontrar outros profissionais com notória especialização do profissional ou da empresa para executar o objeto singular demandado, justificava-se que aquele profissional ou aquela empresa era essencial e “indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato”. Destaca-se que o termo legal “o mais adequado” sugere um caráter único para a contratação daquele profissional ou empresa. Sendo o mais adequado, a inviabilidade de competição torna evidente pela ausência de concorrentes para a execução daquele objeto que somente o profissional ou a empresa encontrada executam.
A LEI FEDERAL 14.039/2020
A Lei nº 14.039/2020 alterou a Lei nº 8.906 de 04/06/1994 (Estatuto da OAB) e o Decreto-Lei nº 9.295 de 27/05/1946 para dispor sobre a natureza técnica e singular dos serviços prestados por advogados e por profissionais de contabilidade. Quanto à citada lei que cria o Conselho Federal de Contabilidade e define as atribuições do Contador e do Guarda-livros, em seu art. 25, § 1º, define-se, ipsis litteris que “Os serviços profissionais de contabilidade são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização, nos termos da lei”. O § 2º da mesma lei conceitua a notória especialização com o mesmo texto da extinta lei de licitações, mas em vigor na época de sua sanção.
Em que pese a Lei nº 14.039/2020 ter copiado o conceito de notória especialização da própria lei de licitações vigente à época, o reconhecimento legal da notoriedade não pode ser reconhecido como regra soberana, pois deve-se observar os demais requisitos da lei de licitações regente à época, que inclui a singularidade do objeto.
Afinal, a Lei 14.039/2020 condiciona o atendimento dos requisitos “na forma da lei”.
O POSICIONAMENTO DO TCE-MG QUANTO À INEXIGIBILIDADE ANTES DA NOVA LEI DE LICITAÇÕES E CONTRATOS (NLLC).
Diversas decisões do TCE-MG, à exemplo da Representação TCE-MG nº 1084321 são convergentes no sentido da Unidade Técnica opinar pela irregularidade da contratação por inexigibilidade, mesmo após reanálise, em face de apresentação de defesa sem a comprovação da singularidade do objeto. A unidade cita, naquela representação, que o objeto “prestação de consultoria ou auditoria contábil e financeira” não pode ser classificada como singular. Argumentou que o reconhecimento da empresa contratada como notória especialista por diversos órgãos públicos não tem o condão de transformar o objeto como singular, uma vez que, em verdade, o objeto abarca atividades corriqueiras, comuns, cotidianas, permanentes e sem a complexidade requerida para caracterização de serviços singulares. Fundamentou, através da Consulta n.º 652.069 do próprio TCE-MG, o conceito de singularidade do objeto da contratação, que requer distinção do serviço em relação aos outros concorrentes, que por óbvio inviabilizaria a competição, que é o principal pilar da contratação por inexigibilidade. Complementa, naquela decisão, que a singularidade não está associada a preço, dimensão ou forma. O serviço singular pode até mesmo se enquadrar nos limites de dispensa de licitação. Exemplificou ainda os serviços corriqueiros, tais como confecção de balanço, auditoria contábil e operacional, comparecimento em audiências trabalhistas e em casos de pequenas indenizações, reclamações simples e defesa administrativa em processo de prestação de contas. Isso porque tais tarefas podem ser realizadas por qualquer um que possua habilitação específica e competência para fazê-los. Por isso, é imposta a licitação. Destacou ainda que a singularidade é do serviço em si e não do seu executor. Portanto, a contratação por inexigibilidade executada por um profissional notório e especialista para a execução de um objeto não singular é uma contratação irregular.
A INEXIGIBILIDADE NA NLLC.
Dispensável conceituar a notória especialização, pois a Lei 14.133/2021, a NLLC trata, no art. 6º, inciso XIX o mesmo texto da lei substituída com um detalhe, in verbis: “[…] que o seu trabalho é essencial e reconhecidamente adequado à plena satisfação do objeto do contrato”. Observa-se que a nova lei não trata “do mais adequado”, mas sim apenas “adequado”.
O art. 74, inciso III da NLLC estabelece que pode-se classificar como inexigível o intuito de contratação quando inviável a competição, em especial nos casos de contratação dos serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual com profissionais ou empresas de notória especialização, tais como estudos técnicos; planejamentos; projetos básicos ou projetos executivos; pareceres; perícias; avaliações; assessorias ou consultorias técnicas; auditorias financeiras ou tributárias; fiscalização; supervisão ou gerenciamento de obras ou serviços; patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas; treinamento e aperfeiçoamento de pessoal; restauração de obras de arte e de bens de valor histórico; controles de qualidade e tecnológico; análises, testes e ensaios de campo e laboratoriais; instrumentação e monitoramento de parâmetros específicos de obras e do meio ambiente e demais serviços de engenharia.
Observa-se que o aspecto de singularidade não foi citado no texto da inovação legislativa. Porém, deve-se ter a cautela na interpretação do contexto, pois a condição de inviabilidade de competição não foi suprimida na NLLC.
Além disso, é possível inferir nos exemplos de objetos de contratação uma demanda específica, um desenvolvimento e uma solução para aquela especificidade. Ainda que o aspecto da singularidade do objeto não tenha sido citado na nova lei, é evidente e literal a condição de inviabilidade de competição, que pode ser conferido no caput do art. 74 da NLLC.
A inviabilidade de competição somente pode ser caracterizada quando não existe, no mercado, outros fornecedores com a mesma expertise para executar o objeto contratual pretendido. É exatamente nessas situações que a lei prevê a necessidade de licitação com o critério de julgamento “técnica e preço” para serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual, nos termos do art. 36, § 1º, inciso I da Lei 14.133/2021. A inobservância do critério de singularidade do objeto associado à notória especialização tornaria comum a contratação de todo e qualquer serviço técnico especializado de advogados e contadores com notória especialização. Isso macularia de forma flagrante o princípio licitatório da ampla concorrência e poderia caracterizar desrespeito ao Princípio Constitucional da Impessoalidade.
O POSICIONAMENTO DO TCE-MG DE MINAS GERAIS QUANTO À INEXIGIBILIDADE DEPOIS DA NLLC.
No Incidente de Uniformização de Jurisprudência n.º 684.973 apud Processo do TCEMG nº 1084321 de 13/6/2023, o Relator ratifica toda a tese da necessidade de associar a notória especialização com a singularidade do objeto para o enquadramento da contratação por inexigibilidade de licitação. Em resumo, cita a especificidade do serviço, o reconhecimento da notoriedade da pessoa física ou jurídica e a heterogeneidade do produto final (serviço) a ser desempenhado pelo contratado.
Fica evidente que para caracterizar a singularidade do objeto que inviabiliza a competição é a especificação do que se pretende obter de resultado, como exemplificado pela própria lei, tais como estudos técnicos e os outros objetos citados neste estudo.
Consequentemente, um objeto de contratação genérico, tais como assessorias e consultorias contábeis ou jurídicas permanentes não poderia ser caracterizado como específicas e, portanto, não singulares.
Porém, no mesmo processo TCE-MG nº 1084321 de 13/6/2023, o relator mencionou a Lei nº 14.039/2020, que alterou o Estatuto da Advocacia e o Decreto-Lei nº 9.295/1946, que criou o Conselho Federal de Contabilidade e as atribuições do Contador. Tais instrumentos passaram a reconhecer a natureza técnica e singular dos serviços prestados por advogados e por profissionais de contabilidade. Dessa forma, citou maior abrangência da singularidade dessas prestações de serviços, sendo que a justificativa seria a “imprevisibilidade do resultado e dos aspectos subjetivos da contratação”. O relator justificou que o seu posicionamento era no sentido de reconhecer que os serviços rotineiros na área de contabilidade deveria ser feita, primeiramente, pelos servidores efetivos do órgão ou ente público e caso o gestor não contasse com uma estrutura adequada, deveria então deflagrar o processo licitatório.
Citou ainda o posicionamento de outro relator no Processo de Representação nº 1058862 do TCE-MG, julgada pela Segunda Câmara em 23/6/2022, que entendeu regular uma contratação de serviços rotineiros de assessoria contábil por inexigibilidade de licitação pelo fato da Lei nº 14.039/2020 mencionar que “os serviços profissionais de contador e advogados são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização”. Entretando, mais adiante, o próprio relator menciona que:
[…] o serviço técnico especializado, previsto no art. 13 da Lei nº 8.666/1993, dotado de singularidade em sua execução, cujo campo de sua especialidade é decorrente de desempenho anterior, […] eis que os trabalhos por ela desenvolvidos foram indiscutivelmente os mais adequados à plena satisfação das necessidades da Administração Municipal de Amparo do Serra.
Ao autor parece forçoso concluir que uma assessoria contábil comum, enquadrada no rol de tarefas citadas no Incidente de Uniformização de Jurisprudência n.º 684.973, não pudesse ser executada por um grande leque de fornecedores notórios e especialistas, condição esta que enquadraria o processo licitatório. Além disso, seria também forçoso sugerir, mais adiante na decisão, que o serviço teria sido executado sob a égide da singularidade, o que contraria a tese de que a inexigibilidade se aplicava por prerrogativa da Lei nº 14.039/2020. Pois, é dito que “[…] porquanto serviço técnico especializado, previsto no art. 13 da Lei nº 8.666/1993, dotado de singularidade em sua execução”. O objeto da contratação em julgamento não era singular.
Por fim, a outra tese da aplicabilidade da inexigibilidade teve como fundamento o Recurso Ordinário nº 1101748 de 07/12/2022 do TCE-MG, em que o relator concluiu que “1. Conforme entendimento deste Tribunal, a singularidade para a contratação por inexigibilidade de licitação de serviços jurídicos e de consultoria está condicionada à demonstração da notória especialização, associada ao elemento subjetivo confiança”.
Porém, o que suscita o autor a outra reflexão e uma ponderação é no sentido de que os serviços jurídicos e contábeis, por um notório especialista e com confiabilidade sob a perspectiva do contratante seriam suficientes para inviabilizar a competição nos termos da lei? Se a resposta for positiva, seria preciso rever o Princípio Constitucional da Impessoalidade, pois vários notórios especialistas poderiam executar o mesmo objeto não singular, de natureza continuada e conforme a vontade de cada gestor público, por inexigibilidade de licitação e com base no seu sentimento de confiança no profissional ou na empresa. Parece também forçoso atrelar o mandamento legal de inviabilidade de competição ao fator de confiança e notoriedade, desprezando o requisito de singularidade do objeto.
Relevante ressaltar Justen Filho (2023, p. 998) acerca dos pressupostos necessários à licitação e o princípio da inviabilidade de competição que, por sua relevância, transcrevo in verbis e com grifos meus: “A primeira hipótese de inviabilidade de competição reside na ausência de pluralidade de alternativas de contratação para a Adminisrtração Pública. Quando existe uma única opção solução e um único particular em condições de executar a prestação, a licitação é imprestável. Mais precisamente, não há alternativas diversas para serem entre si cortejadas”. Fica evidente que a caracterização da inviabilidade de competição tem como pressuposto a impossibilidade de encontrar outras soluções com fornecedores que tenham a especialização e a notoriedade para executar o objeto singular do contrato.
No que se refere à ausência de definição objetiva da prestação a ser executada, Justen Filho (2023, p. 998) exemplifica um processo judicial de grande relevo. Contudo, não é possível prever o resultado da sentença judicial por fatores exógenos, como por exemplo o entendimento do juiz e os requisitos de produção de provas ao longo do processo. Neste caso, o objeto é singular, específico e envolve o fator confiança. Por mais que a solução demore, o processo específico possui um início, um desenvolvimento e um epílogo, o que poder-se-ia também caracterizar como um objeto finito, que diferencia do objeto generalizado e não específico. Neste caso, a seleção sempre se restringiria a indícios preliminares acerca das condições do particular para executar a prestação. É que a avaliação de desempenho apenas se pode estabelecer em face da execução propriamente dita do contrato”. (Justen Filho, 2023, p. 999).
Sobre a singularidade do objeto, Justen Filho (2023, p. 1000) destaca que existem situações que escapam da lista que exemplifica as hipóteses de inexigibilidade de licitação. Explica, literalmente, e com meus grifos:
Portanto, pode haver inviabilidade de competição que não se enquadre em nenhuma das situações referidas nos referidos incisos (do art. 74). Um exemplo seria a contratação de um determinado fornecedor de serviços ou produtos dotados de elevada complexidade e grande sofisticação, relativamente a atividades dotadas de grande potencial nocivo em caso de falha”.
Ou seja, o objeto é de tal forma singular que inviabiliza a competição. Dessa forma, a assessoria jurídica ou contábil, para demandas que não sejam de alta complexidade podem e devem ser processadas pela licitação, pois diversos fornecedores tem a habilitação e a qualificação necessária para executar o objeto do contrato, sendo notórios especialistas ou não. Para demandas que sejam de média complexidade, podem e devem ser processadas pela licitação, através de critérios de mensuração por técnica e preço, nos termos do art. 36, § 1º, inciso I da NLLC. Afinal, diversos fornecedores tem a habilitação e qualificação necessárias para executar um objeto não singular de contrato, notórios especialistas ou não. Se o objeto pretendido escapa do comum, o objeto de média complexidade deve possuir critérios objetivos de valorar cada fornecedor. Caso a medição do valor de cada fornecedor não seja possível em virtude da especificidade do objeto, então a licitação é inexigível.
Justen Filho (2023, p. 1008) explica, ipsis litteris e com os meus grifos:
Não se caracteriza a hipótese de inviabilidade de competição quando, existindo particulares em condições de satisfazer a necessidade administrativa, nenhum deles se dispõe a participar de certame. […] Havendo diferentes particulares em condições de competir, o eventual desinteresse de alguns não caracteriza inviabilidade de competição.
Por fim, Justen Filho (2023, p. 1008) apregoa que, literalmente e com grifos meus:
Seria imprescindível informar o processo com documentos probatórios da ausência de outra alternativa para a Administração. Isso poderia fazer-se por diligência dos próprios agentes administrativos. O fundamental consiste na documentação confiável acerca da ausência de alternativas senão uma, o que basta para configurar a inexigibilidade.
São também por essas razões que ao autor parece forçosa a permissividade de escolher um fornecedor notório especialista apenas pelo fator confiança, desprezando toda a gama de outros fornecedores que teriam a habilitação e qualificação necessárias para executar um objeto genérico de assessoria jurídica ou contábil. Com essas afirmações doutrinárias, o autor considera suficiente a inferência da necessidade de singularidade do objeto para afastar a aplicabilidade da ampla concorrência.
O POSICIONAMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO EM ACORDO COM A ASSOCIAÇÃO MINEIRA DE MUNICÍPIOS – AMM.
A Cartilha denominada “Exercício de atividades jurídicas nos órgãos públicos contratação de serviços advocatícios ou de assessoria/consultoria jurídica” do Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG) foi elaborada a partir de uma provocação da Associação Mineira de Municípios (AMM). O MP-MG elaborou o referido material, com a finalidade de fornecer informações aos gestores municipais quanto à atuação da Instituição no tocante à contratação de escritórios de advocacia por entes públicos.
Por sua relevância, cito excerto da cartilha, que diz, in verbis e com meus grifos:
[…] 2.2.1 – Inexigibilidade de licitação (artigo 74, da Lei nº 14.133/21): Hipótese de contratação direta possível quando se tratar de serviço diferenciado, não ordinário (comum) da função jurídica, que requeira conhecimentos ou técnicas específicas, observados os seguintes requisitos: Inviabilidade de competição; Demonstração, no caso concreto, de que o serviço pretendido não é comum, rotineiro ou usual da Administração Pública, voltado ao atendimento de situações especiais e diferenciadas; Comprovação da notória especialização do contratado.
A cartilha ainda menciona, literalmente e com meus grifos:
Em relação à natureza singular de um serviço, o Ministro do STF Luís Roberto Barroso, ao proferir seu voto na ADC 45, entendeu que para um serviço ser considerado singular, o seu objeto deve dizer respeito a serviço que escape à rotina do órgão ou entidade contratante e da própria estrutura de advocacia pública que o atende. Assim, pode-se concluir que: Não há inviabilidade de competição para a contratação de serviços rotineiros e comuns, ainda que eventualmente se pretenda contratar profissional ou empresa com notória especialização; Serviços rotineiros e comuns, que não sejam serviços diferenciados, podem ser prestados por uma gama maior de profissionais ou empresas e não necessariamente requerem o desempenho por profissionais ou empresas de notória especialização, embora possam, obviamente, ser executados por esses também; O critério da confiança não é suficiente para justificar a não realização de licitação para serviços rotineiros e comuns e sua contratação direta, seja por inexigibilidade, seja por dispensa de licitação; A opção político-administrativa por efetuar contratação de serviços advocatícios ou de assessoramento jurídico para o atendimento a demanda comum do ente municipal, além do atendimento de todos os demais requisitos legais, deverá, em regra, ser precedida de processo licitatório para seleção do contratado, sendo impossível a contratação direta por meio de inexigibilidade de licitação, ainda que demonstrada a (notória) especialização do contratado.
Um aspecto importante que não é tão controverso na prática é a remuneração do profissional ou da empresa que de fato é inexigível. Ou seja, quando se trata de um objeto de contratação singular e específico. A justificativa de preço, na doutrina e na jurisprudência, inclusive na cartilha retrocitada (item 2.2.3) é o nexo causal entre o valor ofertado com o valor praticado no mercado, que pode ser comprovado por pesquisa de preços em bancos de dados, cotações prévias com fornecedores (no mínimo, três), notas fiscais emitidas do próprio fornecedor para outros contratantes no ano anterior ou outro meio idôneo.
IMPLICAÇÕES LEGAIS DA CONTRATAÇÃO IRREGULAR
De acordo com a Lei nº 14.133/2021, no art. 178, o Código Penal passou a vigorar acrescido do Capítulo II-B, que prevê: “Contratação direta ilegal. Art. 337-E. Admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa”.
CONCLUSÃO
Este artigo objetivou explorar os requisitos da contratação de serviços de consultoria e/ou assessoria jurídica ou contábil sob a égide da inexigibilidade de licitação à luz da Nova Lei de Licitações, para enaltecer as cautelas que devem ser observadas pelo contratante. Através do estudo das leis que regem a matéria, o posicionamento do TCE-MG e o entendimento do Ministério Público sobre o tema, foi possível concluir que a contratação direta por inexigibilidade é uma exceção da regra soberana, que é a licitação, que pressupõe a ampla concorrência e a impessoalidade na escolha. A contratação de serviços de assessoria e/ou consultoria jurídica ou contábil depende da caracterização da inviabilidade de competição, para um objeto singular, ou seja, que não é comum e por isso somente pode ser executado por profissionais de notória especialização. É preciso exaurir e comprovar a inexistência de outros profissionais que poderiam executar o objeto de contratação pretendido para justificar a inexigibilidade de licitação. O fator confiança não é suficiente para justificar a não realização da licitação, segundo o MP-MG, mesmo porque a escolha pelo aspecto confiança é um critério subjetivo que pode caracterizar afronta ao Princípio Constitucional da Impessoalidade. Para ser singular e não comum, o objeto deve ser específico e cuja especificidade vá ao encontro dos desempenhos exitosos do notório especialista no exercício de trabalhos pretéritos com a mesma especificação do objeto.
São por essas razões que a Lei exemplifica os tipos de trabalho que são técnicos e especializados, com uma demanda específica que deve ser esclarecida ou resolvida. É uma perícia, um parecer, uma auditoria em um caso específico e fora do comum, dentre outros já citados. Isto posto, fica evidente que um objeto de contratação do tipo “Contratação direta, por inexigibilidade de licitação, de serviço técnico especializado em consultoria e assessoria em licitações, contratos, parcerias com Organizações da Sociedade Civil e nos aspectos econômicos e orçamentários; Auditoria mensal e semestral, nos demonstrativos financeiros; Qualificações e Treinamentos dos servidores municipais, e assessoria no processo de elaboração de impactos orçamentários e financeiros” não se afigura um objeto com características específicas que venha a justificar a inviabilidade de competição, exatamente por ser por demais genérico e que poderia facilmente ser executado por diversos fornecedores especialistas nas áreas apontadas. Muito menos ainda quando é renovado por prazo e valor, sob a mesma “justificativa” genérica. Ad argumentandum tantum, além da necessidade de licitação neste caso, o contrato “guarda chuva” deveria ser segregado. É obrigatória a adjudicação por item e não por preço global cujo objeto seja divisível, tendo em vista o objetivo de propiciar a ampla participação de licitantes, segundo determina o TCU, na Súmula 247.
Ademais, foi possível ressaltar que o TCE-MG não é o único órgão de controle externo. Outros órgãos, tais como o Ministério Público são independentes e podem possuir entendimento diferente de outro órgão, também de Controle Externo, aplicando de forma independente as penalidades que considere cabíveis.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Tribunal de Contas da União. Súmula nº 247. É obrigatória a admissão da adjudicação por item e não por preço global, nos editais das licitações para a contratação de obras, serviços, compras e alienações, cujo objeto seja divisível, desde que não haja prejuízo para o conjunto ou complexo ou perda de economia de escala, tendo em vista o objetivo de propiciar a ampla participação de licitantes que, embora não dispondo de capacidade para a execução, fornecimento ou aquisição da totalidade do objeto, possam fazê-lo com relação a itens ou unidades autônomas, devendo as exigências de habilitação adequar-se a essa divisibilidade. Diário Oficial da União. Sessão de 19-03-2003, Plenário, Ata nº 08, Acórdão 236, in DOU de 28-03-2003, páginas 347/444. Disponível em https://jurisprudencia.tc.df.gov.br/wpcontent/uploads/2018/07/Objeto-divis%C3%ADvel.-Adjudica%C3%A7%C3%A3opor-item.-S%C3%BAmula-TCU-247.pdf Acesso em: 25 out. 2024.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 2. ed. – ver., atual. e ampl. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023. 1869 p.
MINAS GERAIS. Tribunal de Contas de Minas Gerais. (1. Câmara). Representação nº 1084321. Representações. Câmara e prefeitura municipal. Procedimentos de inexigibilidade de licitação. Contratação de serviços técnicos de consultoria em área contábil, administrativa, financeira e de gestão em administração pública. Preliminar. Ilegitimidade passiva. Parecerista. Rejeição. Prejudicial de mérito. Prescrição da pretensão punitiva. Reconhecimento parcial. Mérito. Inexigibilidade de licitação. Inadequação na instrução processual. Montagem dos processos. Identidade entre os pareceres. Ausência de pormenorização dos procedimentos. Prova indiciária insuficiente. Não preenchimento do ônus probatório. Improcedência. Ausência de singularidade do objeto. Mudanças operadas pelas leis n. 14.039/2020 e 14.133/2021. Sentido mais abrangente da singularidade, com presunção para serviços contábeis. Aspectos subjetivos da contratação e imprevisibilidade do resultado. Improcedência. Ausência de justificativa de preço. Comparação com os serviços prestados perante outros órgãos. Nova lei de licitações. Improcedência. Conflito de interesses na contratação da mesma empresa pela Câmara e pela prefeitura. Improcedência. Termo de ajustamento de gestão. Ausência de irregularidades. Prejudicado. Cartilha orientativa ao gestores. Providência já determinada em decisões de outros processos. Desnecessidade. Arquivamento. Relator: Conselheiro Substituto Adonias Monteiro, 13 de junho de 2023. Disponível em: https://tcnotas.tce.mg.gov.br/TCJuris/Nota/BuscarArquivo/3231970 Acesso em: 21 out. 2024.
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Público de Minas Gerais (CAOPP). Cartilha sobre o “Exercício de atividades jurídicas nos órgãos públicos contratação de serviços advocatícios ou de assessoria/consultoria jurídica”. Belo Horizonte, 10 de julho de 2024. Processo SEI n.º 19.16.0948.0136567/2023-73. Disponível em: https://portalamm.com/wp-content/uploads/2024/09/Estudoelaborado-pelo-CAOPP-PGJ.pdf Acesso em: 21 out. 2024.
¹Luiz Flávio Porfírio Teddo é Contador, MBA em Gestão Pública e Mestre em Administração no segmento de políticas públicas. Presta serviços para a Administração Pública Municipal desde 1995 e atua na assessoria, consultoria, capacitação e reciclagem de servidores públicos através da Silva Teddo Assessoria Governamental.