ART AND PSYCHOANALYSIS: SUBLIMATION AND CREATION IN ART AND THE PSYCHOANALYTIC CLINIC
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/pa10202411301710
Rafael José Jorge 1
Luíza Bernardini Ferrari 2
Resumo
Este estudo teve por objetivo a compreensão da interseção entre psicanálise e arte, buscando investigar dois aspectos principais: o primeiro, a arte como um destino pulsional pela sublimação; e o segundo, as interações entre a criação artística e a criação na análise psicanalítica. Como resultado, ainda pode-se perceber que o processo sublimatório de criação artística enriquece a subjetividade do artista e do espectador, conectando experiências individuais e promovendo o avanço cultural. Ainda, a pesquisa também ressalta paralelos entre a criação artística e a prática psicanalítica, ambas funcionando como caminhos para atribuição de sentido e elaboração psíquica. Assim, a arte, nesse contexto, emerge como um elemento transformador que une subjetividade, cultura e estética.
Palavras-chave: Arte, Criação Artística, Freud, Psicanálise, Sublimação.
Abstract
This study aimed to understand the intersection between psychoanalysis and art, focusing on two main aspects: first, art as a drive destination through sublimation; and second, the interactions between artistic creation and creation in psychoanalytic analysis. As a result, it was also observed that the sublimatory process of artistic creation enriches the subjectivity of both the artist and the spectator, connecting individual experiences and fostering cultural progress. Furthermore, the research highlights parallels between artistic creation and psychoanalytic practice, both functioning as pathways for meaning-making and psychic elaboration. Thus, in this context, art emerges as a transformative element that unites subjectivity, culture, and aesthetics.
Keywords: Art, Artistic Creation, Freud, Psychoanalysis, Sublimation.
1. INTRODUÇÃO
Ao estabelecer uma relação estreita entre a arte e as produções artísticas, Freud desenvolveu diversos conceitos fundamentais de sua teoria:
[…] O Édipo, a fantasia, a angústia, a castração, o prazer, horror e o medo, a memória, o inconsciente, o sonho, pulsão e a sublimação, a repetição e a compulsão à elaboração, a transformação em contrários e ambivalência, a interpretação, a identidade e o ciúme o chiste, o parricídio, a escrita, a formação histérica e obsessiva, o devaneio, a constituição da personalidade e o caráter, a religiosidade, a morte, o pai, a infância, mulher etc. […] (Orvatich, 2024, p.3).
A partir dessa interação, explorou mecanismos psíquicos representados na arte e no imaginário popular, com o intuito de popularizar suas descobertas e aproximar a psicanálise das expressões artísticas (Orvatich, 2024).
Em concomitância, Autuori e Rinaldi (2014) defendem que esse diálogo contínuo entre psicanálise e arte permitiu a Freud integrar as manifestações artísticas em suas teorias, reconhecendo-as como aliadas fundamentais na construção de seus conceitos, abordando questões que iam desde o processo criativo do artista até os efeitos da obra sobre o público.
Freud encontrava nas criações artísticas um refúgio para suas teorias sobre os aspectos da mente humana (Werneck, 2022). Esse percurso, embora repleto de desafios e complexidades, foi posteriormente seguido por outros psicanalistas, que, ao explorarem a mesma interseção, promoveram avanços relevantes, mas também consideráveis desvios da orientação original destinada à prática clínica psicanalítica (Kosovski, 2016).
A fundação da Psicanálise no século XX representou um marco de influências mútuas entre a arte e a psicanálise, com a primeira contribuindo para o desenvolvimento da teoria psicanalítica, enquanto esta, por sua vez, exerceu impacto significativo na criação artística, especialmente no surgimento do surrealismo (Pastore, 2009).
A presença constante das obras de arte, especialmente da literatura, foi essencial para a fundamentação da Psicanálise, pois desempenharam uma função crucial na ilustração dos conceitos freudianos, que se integraram à prática clínica psicanalítica. Esse entrelaçamento contribuiu para a expansão da prática clínica e aprimorou a compreensão da constituição do sujeito, oferecendo uma visão das dinâmicas psíquicas e dos processos formativos do sujeito (Figueiredo, Feitoza & Carvalho, 2012).
Freud frequentemente recorria à arte para explicar seus conceitos, revelando aspectos que escapavam à lógica e à consciência (Sekeff, 2005). Ao desenvolver o conceito de inconsciente, intensificou a ruptura no entendimento narcísico da humanidade, trazendo uma contribuição revolucionária para as ciências humanas (Marsillac, Bloss & Mattiazzi, 2019). Para Pastore (2009, p. 2), o criador da Psicanálise antecipou a conexão entre os dois campos, reconhecendo na arte um suporte para sua teoria de que o “Eu não é mais o senhor absoluto em sua própria casa”, dado o controle significativo do inconsciente sobre as ações.
Diante da exploração da expressão artística como uma forma de manifestação do inconsciente, torna-se indispensável discutir as conexões, tensões e limites entre os campos da psicanálise e das artes em sentido amplo. É igualmente crucial investigar o papel e a função da dimensão estética na prática psicanalítica, além de esclarecer de que maneira a experiência psicanalítica pode favorecer a emergência de processos criativos (Pastore, 2009).
Na perspectiva de Estevão (2016), tanto a psicanálise quanto a arte são formas de abordar o real, sendo que a psicanálise frequentemente recorre à arte como uma ferramenta. O artista parece estabelecer uma conexão mais íntima com o inconsciente, permitindo que conteúdos reprimidos sejam trazidos à tona de maneira criativa. “O artista talvez possa ser considerado como um sujeito que não coloca obstáculos, ou os coloca o menos possível, para que o inconsciente se apresente através da fantasia que vela o real” (Jorge, 2022, p. 281).
[…] a psicanálise e a arte se convertem nas formas de se tratar o Real e a psicanálise não se furta, constantemente, de seu recurso à arte. O famoso dito freudiano de que a “arte antecipa a psicanálise” torna-se aqui mais evidente: não se trata de psicanalisar a arte, mas antes de o que a arte pode ensinar a psicanálise, ambos nesse lugar de um discurso que toca o Real […] (Estevão, 2016, p. 77).
Corroborando com este pensamento, Marco Antonio Coutinho Jorge em Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan (2022), postula que para a escritora Marguerite Duras (1988), a escrita é similar tal qual o processo de livre associação em análise, em que se privilegia o sujeito do inconsciente. Assim, até que se inicie a escrita, o autor não sabe o que será escrito. Da mesma forma em análise, o sujeito não sabe o que dirá até que tenha dito.
Assim, o que se evidencia é o processo de criação. O papel aceita o traço do escritor, suporta a pressão com que o objeto desliza sobre a mesma, dando visibilidade às ideias e concepções ali impressas. Da mesma maneira, o analista ocupa este lugar, aceitando as ideias e concepções do analisando, lhe proporcionando visualizar os pontos de maior ou menor intensidade em sua vivência.
Desta forma, considerando a centralidade das artes na constituição do campo teórico psicanalítico, este estudo buscou investigar dois aspectos principais: o primeiro, a arte como um destino pulsional pela sublimação; e o segundo, as interações entre a criação artística e a criação na análise psicanalítica.
2. METODOLOGIA
Para a elaboração deste artigo, realizou-se uma revisão de literatura narrativa. Segundo Brizola e Fantin (2016) esta metodologia de pesquisa é definida como a reunião de diferentes autores sobre determinado tema, obtida por meio de leituras e pesquisas, sendo, portanto, uma documentação realizada pelo pesquisador sobre a temática escolhida em que o resultado não precisa ser inédito, mas analítico e crítico.
Esta revisão de literatura narrativa abrangeu estudos que exploraram as interações entre Arte e Psicanálise, com enfoque especial nas perspectivas de Freud e Lacan. Para isto, os dados foram coletados em bases acadêmicas como Pubmed, Biblioteca Digital de Teses e Dissertações, Scielo e Periódicos Capes, além de literatura reconhecida na Psicanálise. Sendo estabelecidas as palavras-chave: “psicanálise”; “arte”; “Freud”, “sublimação”, “inconsciente”, “criação artística” e “análise psicanalítica”.
3. RESULTADOS E DISCUSSÕES
3.1 Sublimação: a arte como um destino da pulsão
O conceito de sublimação é fundamental para a compreensão da relação entre arte e psicanálise. Embora Freud não tenha desenvolvido um tratado específico sobre o tema, a sublimação aparece em diversos textos ao longo de sua obra. Frequentemente associada à arte, a sublimação reflete uma ligação íntima entre esses dois domínios. Ainda que se reconheça que a capacidade de sublimar as pulsões no ser falante transcenda suas manifestações no campo artístico, é precisamente nesse contexto que sua incidência se torna mais evidente. Assim, a relação entre sublimação e arte enriquece a compreensão dos processos psíquicos e destaca a importância da expressão criativa na vida humana (Werneck, 2022).
Novais (2017) interpreta a sublimação como um processo em que, no desenvolvimento do aparelho psíquico, parte da pulsão sexual é reprimida e redirecionada de seus objetivos imediatos, de modo que a energia resultante é canalizada para outras formas de expressão cultural, alinhadas com os valores sociais internalizados. Além disso, o autor defende que a sublimação não ocorre de maneira indistinta, pois é necessária uma ligação com a sexualidade durante a infância. Assim, a capacidade de deslocar a meta da pulsão sexual para finalidades não sexuais é o que permite que as atividades culturais se beneficiem da energia libidinal, impulsionando o desenvolvimento cultural.
Para Werneck (2022), a pulsão sexual, quando não pode ser satisfeita diretamente, busca outras formas de expressão, reafirmando, portanto, que a sublimação é um processo que canaliza essas pulsões para a criação de obras culturais. Isso implica que a frustração e a falta são condições necessárias para a criatividade, pois transformam a energia pulsional em algo que pode ser apreciado e reconhecido socialmente.
Para fins de conceituação, Ons (2014) define a sublimação como um direcionamento da libido que leva à criação de atividades gratificantes, aproveitando a energia da pulsão sexual e redirecionando-a para objetivos não sexuais e socialmente valorizados. Na leitura da autora, Freud apropria-se da acepção nietzschiana do termo, originária do romantismo alemão, para caracterizar um princípio de transmutação do prazer em uma experiência estética, uma capacidade presente nos seres humanos, especialmente nos artistas. Contudo, essa noção não se restringe ao elevado; o processo de sublimação apresenta um paralelo com fenômenos químicos, referindo-se à transformação de um estado sólido diretamente para o estado gasoso, sem a intermediação do líquido. Essa metáfora representa o destino da pulsão que evita a repressão.
Assim, a arte passa a ser compreendida, sob a ótica psicanalítica, como uma atividade que possibilita a realização substitutiva de desejos reprimidos. A compreensão desse processo evoluiu ao longo da obra de Freud, mas a essência da mudança de meta da pulsão sexual permaneceu constante (Novais, 2017). A sublimação é considerada um meio pelo qual os indivíduos podem encontrar um lugar na sociedade, ao mesmo tempo em que lidam com suas pulsões internas. A arte e outras expressões criativas são vistas como formas de lidar com a falta e a angústia, transformando-as em algo que enriquece a experiência humana (Werneck, 2022).
A relação entre sublimação e inconsciente é enfatizada à medida que a criação artística se apresenta como um espaço em que a subjetividade pode se manifestar. A coragem de questionar as certezas e os signos de reconhecimento é fundamental para que a experiência criativa ocorra, permitindo que o inconsciente se expresse através da arte (Biazus; Cezne, 2010)
o artista, diante e durante a sua criação, sempre será acometido pelo mal-estar da incompletude, a criação artística, não está vinculada a uma ideia de apaziguamento pulsional conforme implica o conceito de sublimação, e sim a uma violência psíquica, a algo que gera sofrimento ao sujeito (Biazus e Cezne (2010, p. 59).
Rivera (2002) reflete sobre a confluência entre a descoberta freudiana do inconsciente e a busca por novas formas de expressão artística que rompem com os padrões convencionais. Ao propor que o inconsciente constitui uma parte essencial da psique humana, Freud inspirou movimentos artísticos que valorizam a subjetividade e a expressão interna, como o expressionismo. Nessa perspectiva, o inconsciente se torna uma fonte de criação artística que se contrapõe à racionalidade e intencionalidade, permitindo ao artista explorar sua criatividade. A ideia de Cézanne, mencionada por Rivera (2002), de que a natureza está no interior reforça essa noção de que a verdadeira arte não segue as normas estéticas impostas, mas emerge da liberdade de expressão proporcionada pelo inconsciente, irradiando imagens de forma mais autêntica e livre das restrições racionais.
Deste modo, é importante ressaltar que o recalque, no contexto da psicanálise freudiana, relaciona-se à supressão dos movimentos pulsionais, que são relegados ao inconsciente. Quando o recalque atua sobre uma curiosidade infantil, limitando o desenvolvimento intelectual, manifesta-se uma característica inibitória, como no caso do neurótico, em que a energia psíquica, destinada originalmente à busca do saber, fica bloqueada. Esse bloqueio leva a uma restrição da atividade intelectual, enfraquecendo-a e, por vezes, interrompendo-a pela compulsão e obsessão. Assim, a pesquisa assume um caráter distorcido e obsessivo, sem a possibilidade de alcançar uma solução satisfatória, já que a pulsão reprimida sexualiza o pensamento (Werneck, 2022).
Freud (1914), citado por Novais (2017), enfatiza a importância dos valores culturais na formação do ideal, o qual influencia tanto a repressão quanto a sublimação. A formação de ideais eleva as exigências do Eu, favorecendo a repressão, enquanto a sublimação oferece uma alternativa para satisfazer essas exigências sem recorrer à repressão. Essa dinâmica é essencial para a criação artística, pois a sublimação permite que a pulsão sexual se manifeste de maneira construtiva, resultando em obras que, embora pessoais, possuem valor estético e cultural.
A sublimação, destacada por Freud como o destino mais raro e perfeito, permite que a pulsão seja canalizada para um fim socialmente aceitável e culturalmente enriquecedor, como a arte ou a ciência. Em vez de ser reprimida, a libido é desviada para a produção intelectual ou artística, transformando-se em um desejo de saber e criar. No caso da sublimação, a pulsão de pesquisa, embora ainda influenciada pelo recalque originário, consegue atuar de maneira mais livre e produtiva. Esse processo permite que a energia sexual seja sublimada e redirecionada para a criação, mantendo, contudo, uma conexão com o inconsciente (Werneck, 2022).
No entendimento de Orvatich (2024, p. 06) a “arte é fonte de prazer, proporciona um prazer preliminar e a libertação das tensões de nossa psique”. Logo, o efeito estético, também chamado prazer estético, é interpretado como um prazer resultante da apreciação estética, em que a arte poética possibilita a superação de sentimentos de repulsa em relação a conteúdos potencialmente desagradáveis. Essa transmutação do desprazer se realiza por meio de um refinamento estético, que inclui o emprego de “técnicas de alterações e ocultamentos”. Autuori e Rinaldi (2014) ressaltam que, nesse contexto, o prazer estético se configura como um meio crucial para a expressão do inconsciente, permitindo que o público vivencie o material psíquico do artista e experimente formas de satisfação emocional e intelectual.
Desta maneira, o artista é alguém que não abre mão do prazer e, ao criar, elabora um mundo imaginário onde suas próprias regras prevalecem. Esse “jogo” com a realidade permite transforme suas fantasias em algo que possa ser compreendido e aceito pela consciência. Assim como nos sonhos, as criações artísticas surgem de maneira disfarçada, contornando a censura interna e acessando a mente consciente (Orvatich, 2024). A arte, ao proporcionar prazer estético, atua como uma forma preliminar de liberação das tensões psíquicas, permitindo que o espectador ou leitor acesse e expresse conteúdos inconscientes (Freud, 1908[1907]/1980).
Desse modo, ao considerar a sublimação como uma alternativa ao sintoma, que é efeito da operação do recalque, propõe-se, a seguir, uma aproximação entre a criação artística e a criação em análise como formas sublimatórias de destino da pulsão, que permitem ir além da expressão sintomática.
3.2 Interações entre a criação artística e a criação na clínica psicanalítica
Segundo Jorge (2022), além dos precursores da psicanálise, Freud e Lacan, diversos outros psicanalistas prestaram tributo à arte e à criação artística, reconhecendo nelas uma contribuição fundamental para a psicanálise. Desse modo, os campos da arte, em especial a literatura, constituem áreas essenciais na formação do psicanalista, posto que Freud associou uma parte significativa de sua própria formação aos ensinamentos transmitidos pelos artistas por meio de suas obras.
Para Biazus e Cezne (2010), a criatividade vinculada ao processo de criação artística seria um espaço de tentativa de integração entre o mundo interno e o externo, entre o ser e a ação. Assim, por meio da criatividade no ato de criação artística, o artista buscaria não apenas construir sua própria subjetividade, mas também se expor ao olhar do espectador, na tentativa de se definir por meio da percepção do outro. De acordo com o Cattapan (2004 apud Biazus e Cezne 2010, p. 66), a criatividade não se limita a ser uma condição para a criação, em que o sujeito se abre para ser afetado. Ela também “[…] enriquece e destaca a relação complexa do artista com o outro, um invasor interno com o qual ele interage, mas ao qual também recorre em sua busca por alguma forma de construir uma representação de si mesmo”.
Para Figueiredo, Feitoza e Carvalho (2012) a relação entre arte e psicanálise é orientada por um elemento crucial: a busca por provocar efeitos de sujeito em ambos os campos. Embora a presença do autor ou artista não esteja diretamente refletida na obra, as fantasias desse sujeito desempenham um papel determinante na criação. A psicanálise enfatiza que, no âmbito artístico, a autoria frequentemente envolve uma forma de subversão do sujeito.
Assim, Freud em seu texto O Poeta e o Fantasiar (1908), explora essa questão ao destacar as dificuldades em observar as fantasias dos adultos, que, ao contrário das infantis, são frequentemente ocultas:
A criança, é verdade, brinca sozinha ou estabelece um sistema psíquico fechado com outras crianças, com vistas a um jogo, mas mesmo que não brinque em frente dos adultos, não lhes oculta seu brinquedo. O adulto, ao contrário, envergonha-se de suas fantasias, escondendo-as das outras pessoas. Acalenta suas fantasias como seu bem mais íntimo, e em geral preferiria confessar suas faltas do que confiar a outro suas fantasias (Freud, 1908, p. 220).
Na perspectiva de Novais (2017) a analogia com o fantasiar sugere que tanto a criação artística quanto a experiência estética são processos intrinsecamente ligados ao inconsciente. A obra de arte, ao ser criada, é impregnada das tensões e dos conflitos psíquicos do artista, que, ao expressá-los, permite ao espectador entrar em contato com suas próprias fantasias e desejos.
Nas palavras de Jorge (2022, p. 296) “a fantasia é uma espécie de fio do desejo que entrelaça passado, presente e futuro” e funciona como um mecanismo que protege o indivíduo da realidade. Freud, mencionado por Orvatich (2024), sugere que a atividade artística e o impulso para criar mundos imaginários têm sua raiz na infância. Assim como no brincar infantil, a fantasia permite que a criança crie um mundo paralelo, no qual as coisas são reorganizadas de forma prazerosa e significativa para ela. Esse mundo de brincar não representa uma simples distração; na verdade, é tomado com grande seriedade e investido de afetos intensos, mostrando que a fantasia não se opõe à seriedade, mas sim à realidade.
Chaves (2015) destaca que Freud não via a arte apenas como uma manifestação dos conflitos psíquicos ou das neuroses dos artistas, mas como um processo complexo de transformação dos conteúdos inconscientes. A arte, para Freud, segue um caminho análogo ao da formação dos sintomas neuróticos, na medida em que ambos são manifestações do inconsciente, porém com finalidades e significados distintos.
Neste espaço, o conceito de sublimação ganha destaque, pois se refere ao redirecionamento de impulsos inconscientes, geralmente de natureza sexual ou agressiva, para atividades socialmente aceitas, como a arte. Dessa forma, a criação possibilita a expressão desses impulsos, transformando-os em uma produção culturalmente valorizada. A obra de arte torna-se, portanto, um produto da energia psíquica canalizada e convertida em expressão simbólica, na qual o artista altera sua realidade para alcançar o que lhe fora negado (Pastore, 2009).
A sublimação, um dos possíveis destinos da pulsão, é, sobretudo, um modo de satisfazer as pulsões sexuais polimorfas através do desvio do alvo e do objeto sexual em direção a novos alvos, ligados, principalmente, às atividades artísticas, conforme Freud nos informa em Os instintos e suas vicissitudes. Ao lado dessa ideia, refere-se, também, à sublimação como inibição no que se refere ao alvo. Em ambas as situações, a sublimação estética indicaria a maneira pela qual a energia sexual seria dessexualizada e colocada a serviço do eu; o que permite a transformação da libido em realização social (Pastore, 2009, p. 22).
Na perspectiva de Jorge (2022), o artista recria o mundo externo enquanto inventa um novo universo que lhe pertence. Nesse processo, ele dá destaque aos objetos de sua fantasia, permitindo que essa nova realidade seja compartilhada por outros indivíduos. O valor da produção artística para a cultura reside justamente no fato de que pessoas que experimentam as mesmas insatisfações, resultantes das renúncias impostas pela realidade, podem se conectar e se reconhecer nesse mundo recém-criado. A arte, portanto, ocupa uma posição especial entre as atividades humanas, ao proporcionar satisfações substitutivas que respondem a algumas das renúncias antigas da cultura.
O processo de sublimação, portanto, contribui diretamente para a expressão do inconsciente na medida em que permite ao artista canalizar suas pulsões de maneira elaborada e simbolicamente rica. Como resultado, o público que entra em contato com a obra de arte também é capaz de acessar aspectos de seu próprio inconsciente, projetando seus próprios desejos e conflitos na obra (Chaves, 2015).
Os processos de criação na psicanálise, conforme explorados por Freud e Lacan, evidenciam uma interação intrincada entre o sujeito, o objeto ausente e a busca por satisfação. Freud introduziu o conceito de das Ding ou a coisa, que representa um objeto primordial e irrecuperável na economia psíquica. Esse conceito reflete a ausência estrutural no desejo humano, um objeto que jamais pode ser plenamente alcançado (Figueiredo, Feitoza & Carvalho, 2012).
O processo criativo desempenha uma função crucial ao estimular o sujeito a enfrentar e expressar a falta resultante dessa ausência estrutural. A criação artística, nesse contexto, surge como uma tentativa de abordar e explorar a falta, oferecendo um espaço para a projeção das fantasias e angústias relacionadas ao objeto perdido. Ademais, por sua natureza essencialmente sublimatória, a arte se alinha à definição que Lacan apresenta para a sublimação, pois visa “elevar o objeto à dignidade de coisa” (Jorge, 2022, p. 290).
Jacques Lacan, na leitura de Figueiredo, Feitoza e Carvalho (2012), ao seguir a formulação freudiana, interpreta o processo criativo como uma resposta ao embate imaginário presente na relação do sujeito com o outro. A criação artística se torna uma estratégia para confrontar as tensões e frustrações internas resultantes da ausência do objeto, oferecendo uma forma de resolução para os conflitos psíquicos. Nesse contexto, a criação busca contornar o vazio deixado pelo objeto ausente e serve como uma ferramenta para negociar e refletir sobre as complexas dinâmicas entre o sujeito e o outro. Os autores ainda complementam que, “sendo a arte algo tão próximo do real, ela dispõe em cena formas de satisfação que vão além do prazer, e se aproximam da angústia. Com isso, não é de se surpreender que muitas vezes, grandes obras de arte tenham como tema o horror e a violência” (Figueiredo, Feitoza, & Carvalho, 2012, p. 57).
Além disso, a fruição estética também é um conceito que se entrelaça com a criação artística e a experiência do espectador, sendo fundamental para a compreensão da relação entre arte e psicanálise. Segundo Novais (2017), a fruição estética é um fenômeno que se origina da dinâmica intrapsíquica tanto do artista quanto do espectador, onde a obra de arte atua como um veículo que transmite conflitos psíquicos.
Para Orvatich (2024), Freud considera o artista como um criador ativo e intérprete fundamental da expressão e da comunicação das ideias e sentimentos. Ao examinar a obra de Michelangelo, Freud questiona se essa liberdade criativa é uma característica exclusiva dos artistas, levantando reflexões sobre a natureza da criação artística em geral. Desse modo, o trabalho com elementos residuais e ocultos, assim como a noção de que a forma artística pode superar barreiras e proporcionar prazer, não indicam uma visão da arte como uma simples forma de recreação, mas entendem a arte como um jogo dinâmico, pressupondo a interação do público com a obra.
Jorge (2022) explica que, na arte, Freud propõe uma reconciliação entre dois princípios fundamentais. De um lado, por meio de sua rica atividade fantasiosa, o artista se distancia da realidade e das insatisfações que ela impõe; de outro, ele também descobre um caminho de retorno desse universo da fantasia para a realidade. Para isso, o artista materializa suas fantasias, as quais são reconhecidas pelos indivíduos como representações significativas da realidade objetiva.
Em suas reflexões sobre a estética, Freud argumenta que a criação artística é uma forma de resolução de parte dos conflitos internos do artista. A obra de arte, portanto, não é apenas um produto final, mas um meio pelo qual o artista expressa e trabalha suas tensões psíquicas (Novais, 2017). Nesse sentido, a obra move o espectador em direção aos conflitos que fomentaram sua criação, sugerindo que a fruição estética seja uma repetição do processo criativo, no qual o espectador é convidado a confrontar e refletir sobre os mesmos conflitos que o artista enfrentou.
Na psicanálise, a interpretação realizada pelo psicanalista assemelha-se ao trabalho do escultor, pois, assim como o escultor não insere sua própria criação no processo, o psicanalista também não se envolve pessoalmente em seu ato de interpretação. O psicanalista, para Lacan, paga com sua própria pessoa; ou seja, ele revela o que encobre o desejo do sujeito, que é desvelado na própria fala do analisando. Além disso, há uma outra analogia entre a criação artística e a escuta do psicanalista: a interpretação psicanalítica é guiada pela ideia de que o significado da fala do sujeito é sempre determinado por quem fala. De forma similar, a obra de arte depende do olhar do espectador, pois é na interação que a obra realmente se torna existente (Jorge, 2022, p. 286).
Por fim, o processo de criação artística se aproxima do processo de criação em análise, pois ambos exigem a atribuição de sentido – seja pelo espectador da obra ou pelo paciente em análise. Uma obra de arte só é considerada como tal a partir de dois pontos de vista distintos: a realização do artista e a interpretação do espectador (Jorge, 2022). Sob outra perspectiva, Jorge (2022) relembra que, para a escritora Marguerite Duras (1988), a escrita, enquanto uma forma de arte, é semelhante ao processo de associação livre em análise, no qual se privilegia o sujeito do inconsciente. Assim, até o momento em que a escrita se inicia, o autor não sabe o que será escrito. De maneira análoga, em análise, o sujeito não sabe o que dirá até que tenha dito.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em síntese, a relação entre arte e psicanálise, conforme discutida por Freud e outros teóricos, revela uma conexão entre o processo criativo e os mecanismos psíquicos. A arte não só reflete o inconsciente, mas também facilita a expressão de conteúdos reprimidos, oferecendo acesso ao desconhecido. Freud destacou a importância da criatividade na revelação dos processos inconscientes, e essa interconexão continua a enriquecer a psicanálise, ampliando a compreensão das dinâmicas psíquicas e sua transformação em expressões culturais. A arte, assim, complementa a psicanálise, ampliando a prática clínica e a interpretação dos processos psíquicos.
Quanto à sublimação, partindo do ponto de vista freudiano, compreende-se como um o processo pelo qual a energia das pulsões, especialmente a sexual, é redirecionada para atividades culturalmente valorizadas, como a arte. Esse processo transforma a energia reprimida em expressões criativas socialmente aceitáveis, contribuindo para o desenvolvimento cultural e artístico. A arte, portanto, torna-se um campo privilegiado de destino para a pulsão, que se diferencia do recalque.
A arte, para Freud, é um meio de criação e transformação. Ao se expor ao olhar do outro, o artista cria um espaço simbólico em que suas fantasias, angústias e desejos são projetados, provocando uma reflexão no espectador sobre seus próprios conflitos inconscientes. Assim, tanto na arte quanto na psicanálise, há uma busca pela reconciliação entre o mundo interno e a realidade externa, evidenciando uma dinâmica de interação entre o sujeito, o outro e o que é simbolicamente representado.
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1 Discente do Curso de Psicologia do Centro Universitário Univel, e-mail: rafa.rafael@gmail.com
2 Docente do Curso de Psicologia do Centro Universitário Univel. Especialista em Psicanálise Clínica de Freud à Lacan pela PUC/PR. E-mail: luiza.ferrari@univel.br