ARTE DECOLONIAL NA ESCOLA: UM ESTUDO SOBRE A CULTURA AFRO-BRASILEIRA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7932643


Brenno Fidalgo de Paiva Gomes¹


Resumo

O presente artigo consiste numa pesquisa sobre a educação escolar na área de conhecimento linguagens e suas tecnologias, mais especificamente sobre o campo das artes, trabalhado em salas de aula do ensino fundamental maior, a partir da lei federal nº 10.639/2003, a qual institui o ensino sobre a história e cultura africana e afro-brasileira e suas contribuições socioculturais para a sociedade brasileira. Buscando na relação escola e comunidades afrodescendentes umbandistas, objetiva-se compreender como a escola, alinhada à lei 10.639/2003, aborda os conhecimentos decoloniais para aprendizagem sobre a cultura afro- brasileira no contexto religioso. Como parte desse trabalho, analisar-se-á a trajetória social de espaços tradicionais de terreiro, que perfazem uma participação nos meios de produção artística umbandistas, por meio de um simbolismo característico das religiões afro, acionados como um mecanismo de memória e identidade dos povos de terreiro. Desta maneira, o estudo percorre o encontro em sala-de-aula com os alunos, com os conhecimentos voltados para as performances de terreiro, as quais envolvem música, dança, vestuário e símbolos visuais, ou seja, expressões artísticas com fundamento religioso. Assim, utilizamos de uma investigação teórica e dialogal no ambiente escolar, procurando observar o contexto social dos terreiros nos seus fazeres artísticos e como o alunado entende e percebe as práticas de arte desenvolvidas nesses locais de culto. Para isso, abordamos os referidos assuntos ao contexto da Escola Municipal Hermelinda de Castro, localizada na zona rural de Teresina, estado do Piauí. Desse modo, descobrimos que os alunos conhecem não só as práticas performáticas dos terreiros, mas identificam-nas como produtos geradores de arte que refletem as vivências e experiências dos povos tradicionais de terreiro.

Palavras-chave: Decoloniais; Arte; Performance; Terreiro; Escolar.

ABSTRACT

The present article consists of a research on school education in the area of knowledge of languages and their technologies, more specifically on the field of the arts, worked in higher fundamental education classrooms, based on federal law nº 10.639/2003, which establishes teaching about African and Afro- Brazilian history and culture and their socio-cultural contributions to Brazilian society. Searching in the relationship between school and umbanda afro-descendant communities, the objective is to understand how the school, in line with law 10.639/2003, addresses decolonial knowledge for new ways of apprehending Afro-Brazilian culture in the religious context. As part of this work, the social trajectory of traditional terreiro spaces will be analyzed, which make up a participation in the Umbanda artistic production means, through a characteristic symbolism of Afro religions, activated as a mechanism of memory and identity of peoples of terreiro. In this way, the study covers the meeting in the classroom with the students, with knowledge focused on the performances of the terreiro, which involve music, dance, clothing and visual symbols, that is, artistic expressions with a religious foundation. Thus, we used a theoretical and dialogic investigation in the school environment, seeking to observe the social context of the terreiros in their artistic activities and how the students understand and perceive the art practices developed in these places of worship. For this, we approach these subjects in the context of the Hermelinda de Castro Municipal School, located in the rural area of Teresina, state of Piauí. In this way, we found that the students know not only the performance practices of the terreiros, but identify them as art-generating products that reflect the experiences of the traditional peoples of the terreiros.

Keywords: Decolonial; Art; Performance; Terreiro; School.

INTRODUÇÃO

O presente estudo partiu de inquietações como profissional e pessoa, localizados no contexto brasileiro, em que a cultura negra possui um protagonismo atuante nas mais diversas possibilidades de se pensar e entender a diversidade cultural brasileira. Os questionamentos surgiram no contato com o ambiente da escola, quando nos diálogos estabelecidos com os alunos, notava-se a curiosidade sobre compreender os significados de práticas culturais voltadas para a população negra. Apesar dessa vontade de conhecer mais sobre essas práticas, os alunos já possuíam algum conhecimento voltado para as práticas religiosas de origem afrodescendente, o que permitiu desenvolver um trabalho adequado a esses meios de produção de saberes.

No entanto, pensar a educação na contemporaneidade é seguir os maiores desafios para atrelar os objetos de conhecimento da área de Artes, com aqueles pautados nos saberes e fazeres dos povos afro- brasileiros. Ao longo de toda uma trajetória na educação brasileira, a Arte seguiu um caminho educacional restrito a produções artísticas em sala de aula que não possuíam qualquer contexto com a realidade de vida dos alunos, assim como não continham uma educação contextualizada na história e cultura dos povos ao redor do mundo.

A essa forma de conduzir a educação escolar brasileira, podemos averiguar que nos últimos anos, professores têm desenvolvido uma produção pioneira tanto na elaboração de aulas com contextos culturais sobre a diversidade do povo afro-brasileiro, como nas práticas artísticas desenvolvidas com fins de agência do alunado, perante a desconstrução de ideias preconcebidas sobre esses povos e seus modos de ser e fazer suas culturas. Por isso, pretendemos unir os conhecimentos da educação escolar com os saberes seculares de povos de terreiros, partindo da lei nº 10.639/2003, a qual torna obrigatório o ensino sobre as culturas africanas e afro-brasileiras na contribuição para o povo brasileiros em seus mais diversos aspectos, incluindo as práticas de religiosidades.

Dessa forma, buscamos uma análise sobre como o alunado interage com as atividades teóricas e práticas referentes às ritualidades afro-brasileiras que envolvem música, dança, vestuário e símbolos visuais, na participação coletiva de povos pretos, no contexto religioso brasileiro. Para isso, seguimos com a questão-problema desse estudo: como o ambiente escolar, a partir da lei nº 10.639/2003, aborda os conhecimentos decoloniais para aprendizagem da cultura afro-brasileira no contexto religioso?

A escola pela qual passamos a trabalhar com a disciplina de Arte está localizada na região do Socopo, zona rural de Teresina, estado do Piauí. Boa parte dos alunos dessa escola possuem uma realidade de vida em contato com espaços de culto religioso afrodescendentes, principalmente em terreiros de umbanda, o que faz o despertar para essas discussões mais consistentes para saber sobre como estes vivenciam essa realidade religiosa.

Esses alunos, em sua maioria, possuem características étnicas negras, morando em povoados e comunidades rurais, onde nesses espaços de convivência adquirem contato com terreiros de umbanda em suas localidades habitadas. São alunos que crescem nessas comunidades, entendendo o seu entorno social, assim como, desde cedo, sabendo sobre a importância desses espaços de culto como sagrados, assim como de entretenimento, onde vão conferir de perto as danças e toques de instrumentos, acompanhados de cantos para as divindades cultuadas e pessoas ali presentes para assistir ao espetáculo religioso.

Notamos com isso, que os alunos, mesmo em meio à realidade cruel da desigualdade social na zona rural de Teresina, conseguem criar seus próprios meios de diversão, assim como de devoção, pois muitos deles consideram esses locais como sagrados e que merecem o devido respeito. Essa pesquisa utiliza toda essa realidade do entorno da escola, de modo a compreender os diálogos produzidos pelo alunado em como percebem as artes produzidas por pais-de-santo, mães-de-santo, filhos-de-santo, cambones e visitantes de terreiros1.

Nesse caso, a pesquisa surge diante das inquietações que já envolviam o curso de licenciatura em Educação Artística, que foi realizado na Universidade Federal do Piauí (UFPI), no campus de Teresina, o qual majoritariamente, ao longo de todas as disciplinas, trazia apenas referências artísticas eurocêntricas. Isso nos questionou sobre onde ficavam os modos de produção artística não só de artistas negros reconhecidos em âmbito nacional e/ou internacional, mas sobre as práticas culturais que são desenvolvidas tradicionalmente nos espaços designados às comunidades afrorreligiosas. Como essa representação étnica- religiosa envolve uma gama de representações sociais, optamos por especificar uma prática ritual e artística muito comumente encontrada nos terreiros: a performance.

Diante disso, o referido estudo busca compreender como o ambiente escolar, alinhado à lei 10.639/2003, aborda os conhecimentos decoloniais para novas formas de apreender a cultura afro-brasileira no contexto religioso por meio da disciplina de Arte. Essa referência traz fomento para discussões historicamente negligenciadas nas escolas brasileiras, nas quais a educação sempre se pautou numa

perspectiva eurocêntrica. Agora, a direção apontada mostra a fundamental importância em adequar o ensino escolar para as contribuições sociais advindas da história e cultura afro-brasileira, principalmente se pensarmos que os alunos da referida escola têm familiaridade com o tema central dessa pesquisa.

Assim, a justificativa desse estudo se concentra na importância de trabalhar com a história e cultura africana e afro-brasileira, mais especificamente nos seus aspectos religiosos e artísticos, voltados para a umbanda local, na cidade de Teresina, estado do Piauí. Levando isso para a sala-de-aula, dando agência para os alunos formarem suas opiniões e conseguirem entender os vários processos de produção religiosa e artística que não somente aqueles considerados oficiais pela sociedade brasileira.

METODOLOGIA

Para dar consistência aos questionamentos apontados no presente trabalho, buscamos na fundamentação teórica, um referencial bibliográfico que nos direcione ao contexto da pesquisa. Para isso, buscamos teorias que estejam alicerçadas ao debate proposto. A pesquisa tem cunho qualitativo, com entrevistas semiestruturadas, interagindo e dialogando com o cenário e as pessoas que compõem o local de investigação. Foram analisadas as falas dos alunos sobre como estes percebem e interagem com os conteúdos trabalhados em sala. Esse alunado é composto por alunas e alunos na faixa etária entre 11 e 16 anos, estudantes do ensino fundamental- 6º ao 9º ano-, em que se pretende entender a relação que possuem com as performances afro-brasileiras realizadas em espaços sagrados de terreiro. Além disso, buscou-se nos diálogos estabelecidos dar voz à capacidade criativa dos alunos descreverem como são realizadas as performances dos rituais umbandistas que usam dos instrumentos dança, música, vestuário e símbolos visuais.

O procedimento para coleta dos dados se deu a partir da construção dos contatos durante as aulas de Arte, procurando ouvi-los e dando vez e voz às suas vivências em relação aos espaços afrodescendentes frequentados por eles em suas respectivas comunidades, de modo que esses interlocutores signifiquem seu entendimento sobre a pluralidade cultural afro-brasileira. Assim, a pesquisa contou com a contribuição das falas do alunado, assim como de suas vivências anteriores à discussão estabelecida sobre a referida temática.

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

Constatamos a partir de observações durante as aulas de Arte, no ano de 2022 e 2023, que os alunos do 6º ao 9º, moradores do Povoado São Vicente e arredores, têm conhecimentos sobre o desenvolvimento das performances de terreiro. Estes alunos descreveram que o uso dos tambores, durante a realização dos rituais, mobiliza as comunidades do entorno a participarem das atividades religiosas. Em todas as conversas estabelecidas em sala de aula, os alunos confirmavam o uso dos tambores, triângulos e canto como um chamamento dos filhos-de-santo para que o mundo espiritual participasse daquela interação humana.

Desse modo, as aulas de Arte que convergiram para esse debate, desenvolveram discussões, a partir de imagens projetadas em datashow, iniciando com a palestra “Dia da Consciência Negra: artistas e tradições afrodescendentes”, realizada no dia 20 de novembro de 2022. No decorrer desse trabalho, as aulas deram continuidade à temática explorada na palestra, seguindo para um campo específico, o da performance em terreiro de umbanda.

Nesse momento, os alunos relataram, a partir das imagens apresentadas, que já conheciam o desenrolar dos rituais afrorreligiosos, onde a música e a dança tomavam frente nos espaços de terreiro. Constatou-se que, por ser a umbanda uma religião assídua nas comunidades interioranas de Teresina, os alunos já eram familiarizados com as práticas rituais desses locais. Isso proporcionou uma diferenciação na abordagem das aulas, pois os alunos já traziam suas percepções acerca da dança praticada por filhos-de- santo, das músicas entoadas pelos instrumentos musicais e pelo canto, das roupas que são vestidas durante os rituais sagrados, assim como das esculturas e pinturas que retratam as divindades cultuadas pelo povo- de-santo.2

Com essa participação, os alunos foram aprimorando os conhecimentos sobre as performances de terreiro, entendendo que aquelas atividades religiosas consistem numa aproximação dos filhos-de-santo com suas divindades. Essas formas de gerar saberes são perpetuadas, sendo repassados das gerações mais antigas para aquelas que estão iniciando na religião. Percebemos que todo o contexto local foi imprescindível para a compreensão da importância de se estudar a contribuição histórico-cultural afro- brasileira, já que essas vivências religiosas se inserem nessa localidade onde se trabalha com a disciplina de Arte. Os alunos, por sua vez, estudaram a importância do uso e manutenção dessas formas artísticas que trazem resgastes étnicos para o povo negro, assim como uma expressão que reativa memórias sociais das populações africanas que foram colonizadas no Brasil, mas que se utilizaram de suas culturas para resistir às violências provocadas em suas vidas.

Com isso, salientamos que a lei 10.639/2003 trouxe o respaldo para a abordagem de conteúdo trabalhado em sala e os aspectos sociais do Povoado São Vicente teve grande contribuição para a análise e leitura das imagens transmitidas durante as aulas, mostrando a importância do protagonismo dos alunos no desenvolvimento das discussões. Essa oportunidade inserida na escola, trouxe não somente o debate social sobre a identidade cultural dos povos de terreiro, mas a contribuição para o combate ao racismo religioso, tão disseminado, quando se pensa nas religiões de matrizes africanas, a exemplo da umbanda.

No decorrer das aulas que iniciaram com as discussões sobre a temática afro-brasileira, do mês de novembro de 2022 até fevereiro de 2023, os alunos puderam fazer leituras de imagens fotográficas que apresentavam referências afrorreligiosas. As imagens que seguem abaixo foram algumas das trabalhadas durante as discussões sobre performance de terreiros umbandistas.

Imagem 01- interior de um espaço físico de terreiro.
Fonte: acervo do autor.

As aulas iniciaram no início do mês de novembro de 2022, debatendo sobre o Dia Nacional da Consciência Negra, como uma forma de discutir sobre a valorização e recuperação histórica do povo afrodescendente em suas múltiplas representações culturais. Nesse sentido, a imagem acima foi apresentada inicialmente como uma forma de incitar os alunos a discutirem sobre os elementos simbólicos presentes. Assim, os alunos descreveram elementos da simbologia umbandista, como os tambores, as velas e os santos católicos como uma forma de sincretismo religioso do catolicismo com as religiões de matrizes africanas.

Os próprios estudantes, do 6º ao 9º ano do ensino fundamental, foram dando significados à imagem apresentada e os sentidos da simbologia presente nesse texto visual apresentado. Nesse aspecto, os alunos definiram o uso dos tambores como marcadores de produção musical no que seria um terreiro, onde filhos- de-santo se reúnem para praticar sua religião. Nesse momento, questionamos como sabiam desses elementos, o que responderam, a maioria, que a religião da umbanda é presente nas comunidades onde vivem. Essa preocupação em saber como os estudantes entendem os textos visuais demonstrados durantes as aulas sobre história e cultura afro-brasileira partiu da compreensão que estes já possuem leitura de mundo sobre o que acontecem nos espaços sociais, principalmente se pensarmos que os alunos interagem com locais de suma importância para a contextualização dos assuntos abordados.

Durante as aulas, focamos no uso de imagens, entendendo que estas são textos visuais que requerem leituras e interpretações subjetivas para dar sentidos a elas, com base no contexto escolhido para análise. Assim, os tambores foram entendidos durante os diálogos como instrumentos simbólicos que trazem alegria e entusiasmo para dançar, como também um elemento imprescindível para que os religiosos de terreiros consigam estabelecer contato com seus deuses e realizar as atividades comuns da umbanda.

Imagem 02: Escultura de Preto-velho.
Fonte: acervo do autor

Na segunda imagem analisada, partirmos de sua leitura, por meio das interpretações dos alunos. Nesse sentido, nos foi relatado que a imagem representava um antigo homem escravizado e que este era cultuado em terreiros por ter experiência de vida e muitos ensinamentos a serem transmitidos. Entretanto, explicamos aos alunos que não necessariamente a imagem escultórica retrate um homem escravizado, pois os pretos-velhos3 são espíritos de homens que viveram em território brasileiro, assim como no continente africano, mas que não estão diretamente envolvidos no regime de escravidão implementado no Brasil Colonial. São seres divinizados na cultura umbandista e, como são senhores da experiência de vida, transmitem seus ensinamentos e experiências com ervas medicinais para passar tratamentos aos indivíduos que buscam seu auxílio.

Diante disso, os alunos passaram a descrever sobre as velas presentes na imagem, ressaltando sua importância como uso de uma simbologia de devoção, pois estes materiais são usados como uma forma de fazer preces e saudar as entidades espirituais dos pretos-velhos.

Imagem 03: vestimentas usadas nos terreiros.
Fonte: acervo do autor.

A partir da terceira imagem, pedimos aos alunos para descreverem os sentidos associados ao contexto afro-brasileiro, nos cadernos, usando da escrita verbal para produzirem sentidos sobre elas. Depois disso, pedimos para que alguns alunos se manifestassem acerca dos seus entendimentos referentes a esta imagem. Com isso, relataram que a imagem retratava roupas que os filhos-de-santo deveriam usar nos espaços dos terreiros para se purificarem das energias negativas que carregavam em seus corpos. Mais uma vez, constatamos a experiência que precedia a análise dessas imagens, visto que boa parte dos nossos estudantes já tinham familiaridade com os terreiros das regiões onde vivem. Depois dessa primeira análise, discorremos sobre as roupas-de-santo que são usadas por homens e mulheres nos terreiros, mostrando que há variabilidade de estilos e cores, dependendo das festas que são realizadas, dos rituais praticados, mas que sempre são necessárias para a manutenção do equilíbrio de energias que são manuseadas, a fim de proporcionar equilíbrio emocional e paz de espírito a todos os envolvidos.

Imagem 04: croqui da performance de terreiro umbandista.
Fonte: acervo do autor.

Nessa imagem, em especial, atendemos ao assunto principal da pesquisa, no que tange às performances afro-brasileiras realizadas no contexto religioso umbandista. Além desta, muitas outras imagens sobre performance em terreiros foram trabalhadas e interpretadas pelos alunos. Todavia, utilizamos essa como escopo para o trabalho, tendo em vista ter sido a que introduziu os conhecimentos sobre performance afrodescendente.

Diante disso, indagamos aos alunos o que observavam sobre o croqui e de que maneira conseguiam associar a alguma experiência já passada por eles. Assim como as outras imagens, esta também encontrou narrativas de vivências dos estudantes, pois de imediato boa parte deles conseguiu associar ao contexto das danças e músicas, encontradas em terreiros umbandistas. Desse modo, conseguimos perceber ao longo de toda experiência em sala de aula como os alunos já entendiam sobre as práticas rituais em terreiros, conseguindo inclusive discorrer sobre a discriminação que essas comunidades sofrem, como também correspondiam suas falas ao prazer que é para os afrodescendentes praticarem sua religiosidade com respeito e devoção. Assim, conseguimos perceber que as aulas de Arte se tornaram espaço para diálogo das vivências e experiências dos alunos com a temática abordada, discutindo não só sobre a contribuição histórica dos povos-de-santo para o contexto cultural afro-brasileiro, mas pelas afetividades criadas pelos próprios estudantes, assistindo a essas festividades.

ENSINO DA ARTE DECOLONIAL NA ESCOLA

Sabendo da oportunidade de discutir as várias nuances culturais protagonizadas pela cultura- afrobrasileira, pensamos no conceito de decolonialidade, enquanto voltado para a discussão do povo negro nos aspectos religiosos da umbanda local. Pensando nisso, podemos entender, a partir de Oliveira e Lucini (2021), quando a decolonialidade é vista como parâmetro para que o sujeito em sua condição de colonizado, crie resistências para mudar “a colonialidade do saber, do ser e do poder” (OLIVEIRA e LUCINI, 2021, p. 99). Em se tratando disso, a colonialidade do saber poder ser contextualizada no ambiente escolar quando, ao longo de todo um histórico na educação brasileira, os ensinamentos sobre a histórica e cultura africana e afor-brasileira foram negligenciadas, estigmatizadas e colocadas em segundo plano, frente à historicidade europeia.

Dessa maneira, conseguimos ressaltar o valor que o pensamento decolonial tem para as mudanças de reflexão e produção de conhecimento, no que tange às sociedades historicamente subalternizadas na sociedade brasileira. Pensar a decolonialidade dentro do ambiente de sala de aula, participando ativamente do processo de aprendizagem dos estudantes, envolve uma gama ampla de recursos culturais e produções artísticas a serem exploradas.

Conforme destaca Reis e Andrade (2018), o pensamento decolonial proporciona a resistência contra todas as formas de opressão colonizadora, no que tange aos aspectos culturais, políticos e econômico, pois existem meios de inovação nas formas e execuções de pensamento e desenvolvimento de epistemologias que priorizem elementos locais, em relação à imposição colonial do pensamento eurocêntrico. Por isso, a umbanda local é abordada nos conhecimentos de sala de aula, já que o entendimento sobre a performance de terreiro parte do próprio incentivo do alunado em significar aquilo que eles presenciam nos terreiros de suas comunidades.

Nesse contexto afro-brasileiro, o pensamento decolonial na escola foi protagonista no entendimento sobre como a população negra produz seus próprios pertencimentos sociais, criando seus espaços de convívio social, incentivando o conhecimento de suas religiões para o combate ao preconceito, utilizando de suas capacidades inventivas para aprimorar a produção de suas músicas e danças. Tudo isso é um incentivo para que os alunos das comunidades do entorno congreguem dessas resistências epistemológicas para o combate ao racismo religioso, como também na intenção de reconhecer a contribuição dos povos negros para o processo de formação contínuo da cultura brasileira.

Nesse caso, a umbanda, enquanto religião afro-brasileira nos permite saber da relação dos seus religiosos com os espaços que envolvem a prática dos rituais. De acordo com Schechner (2012), podemos refletir sobre as práticas rituais dessa religião como um meio de oportunizar o contato com os valores doutrinários, assim como trabalham com a experiência do sagrado, mobilizando uma comunidade a seguir favorável à realização de suas atividades culturais. Nesse sentido, os estudos sobre a religiosidade umbandista dentro de sala de aula foram repassados por meio de seu histórico de experiências que envolvem o conceito de performance. Dessa forma, podemos pensar em performance, também em Richard Schechner (2011), como uma relação que envolve sonoridades e silêncios, onde o ambiente em que é realizada traz junto um contato particular com um tempo, espaço e sintonia diferentes do cotidiano comum.

Essa forma de entender a performance foi transmitida aos alunos, os quais compreenderam que para a realização das danças, músicas e cânticos no contexto religioso afro-brasileiro, o indivíduo necessita de um preparo para adentrar os espaços sagrados designados para a realização de seus rituais. Assim, conforme ressalta Victor Turner (2005), as práticas de rituais consistem no uso de vários elementos simbólicos que se comunicam entre si. Esse autor destaca que um símbolo utilizado nesse contexto tem toda uma interação com as demais simbologias apresentadas na execução das atividades ritualísticas.

Como nessa experiência umbandista, os símbolos debatidos em sala de aula envolveram o uso da dança e música, as vestimentas e símbolos visuais (pinturas e esculturas), notamos como a performance afro-brasileira de terreiro precisa da existência desses pilares para a existência identitária desse povo, unindo saberes e práticas que acionem mecanismos de proteção espiritual, memorização afetiva de seus descendentes, assim como a própria experiência festiva de consagrar suas existências nesse enlace cultural religioso.

Nessa experiência de abordar a performance de terreiro como um exemplo vivo da cultura afro- brasileira, destacamos o que diz Garaudy (1980) sobre a dança, como um instrumento de celebração humana que envolve o amor, a vida e tantos outros aspectos culturais. Com isso, constatamos como a performance de terreiro, enquanto manifestação que envolve a dança, é um artifício de resistência e de respeito à cultura negra, praticada pelos povos tradicionais desses espaços de culto e que serve de experiência de aprendizagem para os estudantes entenderem que os povos afrodiaspóricos que aqui viveram, deixaram um legado histórico que precisa ser debatido nos espaços de socialização, como uma maneira de educar para o combate ao racismo religioso, assim como meio de reflexão sobre a importância de conhecer a cultura de nossos ancestrais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Portanto, o artigo tratou de compreender como a escola desenvolve os estudos sobre história e cultura afro-brasileira, a partir da lei 10.639/2003, por meio da contextualização e leitura de imagens que correspondem ao campo religioso afrodescendente. Notamos com essa iniciativa, que os alunos possuíam contato com práticas religiosas de terreiro, sendo a maioria visitante desses locais, já que nas comunidades rurais da cidade de Teresina é comum encontrar esses espaços de culto afro-brasileiro.

Dessa forma, valorizamos o contato dos estudantes com as referências de matrizes africanas na perspectiva religiosa, de modo a valorizar as referências culturais vindas dos povos negros, assim como trabalhar com o conhecimento, a fim estimular os alunos a combater o preconceito racial em qualquer espaço que socializarem. Desse modo, o conhecimento vem sendo utilizado em sala de aula, na disciplina de Arte em específico, como uma maneira de utilizar as linguagens artísticas e registros fotográficos culturais para ensinar através das artes, como campo de saber, as reflexões de mundo que visam o extermínio de qualquer tipo de discriminação na sociedade mundial.

REFERÊNCIAS

COSTA, Iany Elizabeth da; SILVA, Severino Bezerra da; ROCHA, Solange Pereira da. Educação Integral e Direitos Humanos: implicações pedagógicas e culturais – João Pessoa, Editora do CCTA, 2015.

OLIVEIRA, Elizabeth. LUCINI, Marizete. O pensamento decolonial: conceitos para pensar uma prática de pesquisa de resistência. Boletim Historias, Sergipe, v.8, n.01, p.97-115, Jan./Mar. 2021. Disponível em: https://seer.ufs.br/index.php/historiar/index /Acesso em: 22/03/2023.

REIS, Maurício. ANDRADE, Marcilea. O pensamento decolonial: análise, desafios e perspectivas. Revista Espaço        Acadêmico,        Bahia,        v.1,        n.202,        p.1-11,        Mar.2018.        Disponível        em: https://www.academia.edu/37355150/O_PENSAMENTO_DECOLONIAL_AN%C3%81LISE_DESAFI OS_E_PERSPECTIVAS /Acesso em: 23/03/2023.

SCHECHNER, Richard. Performance e Antropologia em Richard Schechner. LIGIÉRO, Zeca (org.) Rio de Janeiro: Mauad X, 2012.

SCHECHNER, Richard. Pontos de contato entre o pensamento antropológico e teatral. Cadernos de campo, São Paulo, n.20, p.213-236, 2011.

TURNER, Victor W. Do ritual ao teatro: a serenidade humana de brincar. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2015.


1Pais-de-santo e mães-de-santo são os líderes religiosos de terreiros de umbanda, onde há todo um preparo para o desenvolvimento mediúnico desses representantes nos terreiros; os filhos-de-santo são os seguidores de pais e mães-de- santo, praticando suas mediunidades para apresentar danças, músicas e tratamentos espirituais nos terreiros; cambones são os tocadores de instrumentos musicais, nos momentos das performances nos espaços de culto afro-brasileiro; e os visitantes são aqueles que simpatizam com a doutrina religiosa, incluindo boa parte dos alunos da escola pesquisada, que frequentam esses terreiros.
2Segundo os alunos da Escola Municipal Hermelinda de Castro, povo-de-santo é aquele grupo social que pratica uma religião umbandista ou candomblecista. Como na região que moram é praticada apenas a umbanda, eles ressaltaram durante as aulas que já ouviram falar no candomblé, mas que nunca presenciaram algum espaço que cultue essa religião.
3Pretos-velho são entidades espirituais cultuadas nos terreiros umbandistas. Costumeiramente são associados a negros que foram escravizados no período da colonização do Brasil. Entretanto, estima-se que muitos destes espíritos cultuados não sofreram necessariamente com o regime escravocrata.


1Licenciado em Educação Artística pela UFPI (2013). Mestre em Antropologia pela UFPI (2019). Especialista
em Educação, Culturas e Regionalidades pela UESPI (2022).