REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202409150716
Brenda Miguel Ferrari1
Rodrigo da Vitória Gomes2
RESUMO
O presente investiga o processo de responsabilização dos adolescentes por meio da aplicação das medidas socioeducativas. O objetivo é analisar como os princípios do CPP influenciam a efetivação das medidas socioeducativas previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e como essas práticas podem harmonizar a responsabilidade do infrator com a sua reabilitação. A metodologia adotada é qualitativa, baseada na análise de casos práticos e na revisão da literatura jurídica relevante. O estudo revela, ainda, que embora o CPP forneça diretrizes claras para a responsabilização dos adolescentes infratores, frequentemente essas diretrizes não estão suficientemente alinhadas com práticas que enfatizem a reabilitação e a educação. Os resultados indicam que a aplicação atual dos princípios processuais pode favorecer a responsabilização em detrimento da função pedagógica do processo. A pesquisa conclui que é necessário aprimorar a aplicação dos princípios do CPP para equilibrar melhor os aspectos de responsabilização e educação, promovendo uma justiça mais justa e eficaz no tratamento dos atos infracionais. Este aprimoramento visa não apenas assegurar a devida responsabilização dos adolescentes, mas também garantir que o processo contribua de forma significativa para a sua reabilitação e reintegração social.
Palavras-chave: Medidas Socioeducativas; Processo Penal; Apuração de Ato Infracional; Princípios.
ABSTRACT
This paper investigates the process of holding adolescents accountable through the application of socio-educational measures. The objective is to analyze how the principles of the CPP influence the implementation of socio-educational measures provided for by the Child and Adolescent Statute (ECA) and how these practices can harmonize the offender’s responsibility with their rehabilitation. The methodology adopted is qualitative, based on the analysis of practical cases and a review of relevant legal literature. The study also reveals that although the CPP provides clear guidelines for holding adolescent offenders accountable, these guidelines are often not sufficiently aligned with practices that emphasize rehabilitation and education. The results indicate that the current application of procedural principles may favor accountability to the detriment of the pedagogical function of the process. The research concludes that it is necessary to improve the application of the CPP principles to better balance the aspects of accountability and education, promoting fairer and more effective justice in the treatment of criminal acts. This improvement aims not only to ensure adequate accountability for adolescents, but also to ensure that the process contributes significantly to their rehabilitation and social reintegration.
Keywords: Socio-Educational Measures; Criminal Procedure; Investigation of Offenses; Principles.
1 INTRODUÇÃO
No processo de definição do crime, o Código Penal Brasileiro traz um conjunto de conceitos e princípios destinados a esclarecer a sua composição dentro do sistema jurídico, assim como, estabelecer a responsabilidade de seus autores. Este conjunto de princípios é conhecido como a teoria do crime e, através dela, é assegurado uma estrutura para a interpretação e aplicação das normas penais, garantindo que apenas os comportamentos que atendem a certos critérios sejam considerados puníveis. Apesar da série de discussões ocasionando inúmeras teorias na seara penal, adotou-se a teoria tripartite do crime, elaborada e sistematizada por Hans Welzel. E, de acordo com o jurista, um crime é composto por três elementos essenciais, que são o fato típico (tipicidade), antijurídico (ilicitude) e culpável.
Nesse sentido, a aplicação dos princípios do Código de Processo Penal (CPP) na apuração de atos infracionais representa um tema de significativa relevância no campo do direito, especialmente quando se considera o equilíbrio entre responsabilização e caráter pedagógico. O CPP, que estabelece normas fundamentais para a condução dos processos penais, oferece uma base para a apuração de delitos cometidos por adolescentes. Entretanto, o desafio se impõe na conciliação entre a necessidade de responsabilizar o infrator e a função educativa do processo, conforme previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Esse equilíbrio é crucial para assegurar que a justiça não apenas puna, mas também contribua para a reabilitação e reintegração social dos jovens infratores.
Além disso, a relevância da pesquisa reside na necessidade de avaliar como os princípios do CPP são efetivamente aplicados em contextos que envolvem adolescentes. A legislação brasileira, ao adotar o ECA, busca um sistema que combine responsabilização com educação, propondo medidas socioeducativas que visam não apenas punir, mas também promover a reintegração social dos jovens. A análise crítica sobre a aplicação desses princípios permite compreender se o sistema atual consegue alcançar esses objetivos ou se existem lacunas que precisam ser abordadas para melhorar a eficácia do processo.
Ato contínuo, a justificativa para a realização deste estudo é evidenciada pela crescente discussão sobre a eficácia das medidas socioeducativas e o impacto das diretrizes do CPP na vida dos adolescentes infratores. Com o aumento das preocupações sobre o sistema de justiça juvenil, é imperativo investigar se o equilíbrio entre responsabilização e caráter pedagógico está sendo adequadamente mantido. Esta pesquisa busca oferecer uma análise aprofundada para identificar áreas onde o sistema pode ser aprimorado, contribuindo assim para um debate mais informado e para o desenvolvimento de políticas mais eficazes.
O problema central abordado neste artigo é a discrepância entre a aplicação dos princípios do CPP e a função pedagógica das medidas socioeducativas. Embora o CPP forneça um quadro normativo robusto para a responsabilização, surgem questões sobre como esse quadro é implementado na prática e se ele promove, de fato, a reabilitação dos adolescentes. O estudo visa entender até que ponto os princípios processuais influenciam o equilíbrio entre punir e educar, e como essa dinâmica afeta os resultados das medidas socioeducativas.
O objetivo geral, por sua vez, é analisar a aplicação desses princípios e avaliar o equilíbrio entre responsabilização e caráter pedagógico no contexto das medidas socioeducativas. A pesquisa utiliza uma abordagem qualitativa, combinando análise de casos práticos com revisão da literatura jurídica pertinente. Espera-se que os resultados contribuam para uma melhor compreensão dos desafios e das oportunidades de aprimoramento do sistema de justiça juvenil, promovendo um equilíbrio mais eficaz entre os aspectos punitivos e educativos do processo. A metodologia adotada envolve a análise detalhada de processos e a revisão crítica das normas e práticas atuais, oferecendo insights para a melhoria do tratamento de atos infracionais e a eficácia das medidas socioeducativas.
REFERENCIAL TEÓRICO
2 O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988, trouxe uma série de direitos fundamentais a crianças e adolescentes até então não instituídos, tratando em seu artigo 227 que É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 2010).
Desse modo, por tratar-se de direitos fundamentais e estarem contidos na Constituição da República Federativa do Brasil, não podem ser suprimidos do ordenamento. Ora, num Estado Democrático de Direito, onde prevalece a democracia, é precisamente a anexação de uma cláusula pétrea a um dado direito subjetivo o que melhor certifica a sua fundamentalidade, porque assim, ao declará-lo intocável e pondo-o a salvo inclusive de ocasionais maiorias parlamentares, que o poder constituinte originário o reconhece como um bem sem o qual não é possível viver em hipótese alguma. (MARTINS NETO, 2003, p.88).
Sendo os direitos fundamentais algo presente na Constituição da República Federativa do Brasil, nada mais sensato que estes sejam protegidos de qualquer possível abalo jurídico, possibilitando o reconhecimento da condição de cidadão. Logo, é cabível afirmar que sem os direitos fundamentais, ou na eventualidade de sua supressão, “a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive” (SILVA, 2008, p. 163).
É nesse sentido que o Estatuto da Criança e do Adolescente tratou de implantar medidas protetivas, e fortalecer direitos fundamentais de crianças e adolescentes já mencionados na Constituição da República Federativa do Brasil, visando superar a cultura menorista e concretizar os princípios e diretrizes da teoria da proteção integral (CUSTÓDIO, 2009, p. 43).
Conforme artigo 194 da Constituição da República Federativa do Brasil, a saúde constitui-se uma das metas da seguridade social, garantindo-se efetivamente com a criação do Sistema Único de Saúde (BRASIL, 2010). O Sistema Único de Saúde é […] um sistema público nacional, baseado no princípio da universalidade, a indicar que a assistência à saúde deve atender a toda população. Tem como diretrizes organizativas a descentralização, com comando único em cada esfera governamental; a integridade do atendimento e a participação da comunidade. (FIGUEIREDO, 2007, p. 97).
Como forma de garantir o direito fundamental a saúde, a Constituição da República Federativa do Brasil reconheceu em seu artigo 7º, IV e XXII tal direito, como mecanismo de melhoria das condições sociais, atribuindo em seu artigo 30 o dever do Estado através dos municípios garantir os serviços necessários ao atendimento integral de toda população (BRASIL, 2010).
Logo, é através da participação ativa do poder público em conjunto com a própria comunidade que se atingirá com maior efetividade os serviços prestados em relação a saúde do ser humano, se faz de extrema importância que o cidadão tenha a consciência que tal ato não trata-se de mera bondade do Estado, mas um dever que deve ser exigido por toda a sociedade.
3 ASPECTOS TEÓRICOS DAS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS
Em princípio, os comportamentos ilícitos assumem diferentes formas conforme a faixa etária dos indivíduos que os cometem. Enquanto o adulto, plenamente capaz de compreender o caráter ilícito de sua conduta (culpabilidade) e dotado de poder de autodeterminação, será julgado e punido com base em um sistema penal voltado para a responsabilização e a prevenção, o adolescente, por sua vez, não será submetido ao juízo de culpabilidade, uma vez que ainda não atingiu o grau de discernimento necessário, cometendo, portanto, um ato infracional. Deste modo, ao ser verificada a prática de um ato infracional, poderá ser aplicado aos adolescentes as medidas socioeducativas em meio aberto ou privativas de liberdade, de acordo com o Art. 112, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
O Art. 1º, § 2º, da Lei nº 12.594/2012 estabelece que a medida socioeducativa adequada deve ser aquela que atenda aos objetivos de responsabilizar o adolescente pelas consequências do ato infracional, integrá-lo socialmente, garantir seus direitos individuais e sociais e desaprovar a conduta infracional, respeitando os limites previstos em lei. Em relação à proteção das crianças e dos adolescentes, o Estatuto adota a Doutrina da Proteção Integral e, de acordo com Machado, tal doutrina é norteada pela noção de que:
[…] crianças e adolescentes são seres humanos que se encontram numa situação fática peculiar, qual seja, a de pessoas em fase de desenvolvimento físico, psíquico, emocional, em processo de desenvolvimento de sua potencialidade humana adulta; e que essa peculiar condição merece respeito e para tal há de se compreender que os direitos fundamentais de crianças e adolescentes são especiais em relação ao direito dos adultos (há necessidade de direitos essenciais especiais e de estruturação diversa desses direitos) (Machado, 2003, p. 50).
Assim, respeitados os procedimentos de apuração do ato infracional e confirmada a existência de indícios suficientes de materialidade e autoria, o magistrado da Vara da Infância e da Juventude será o responsável por determinar a aplicação dessas medidas, observando os critérios da capacidade do jovem para cumpri-las, as circunstâncias do caso e a gravidade da infração. Não obstante, em regra, a medida socioeducativa se aplique a menores com idade entre 12 (doze) e 18 (dezoito) anos incompletos, excepcionalmente ela poderá se estender a indivíduos de até 21 (vinte e um) anos, principalmente nos casos em que o ato infracional foi cometido por um jovem próximo de completar 18 (dezoito) anos.
No âmbito do processo de avaliação da medida socioeducativa adequada ao caso concreto, é essencial considerar as restrições estabelecidas, especialmente quanto à internação, que é a medida mais severa, por implicar privação de liberdade. Através da Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012, foi criado o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), sendo estabelecido diretrizes para a execução das medidas aplicáveis aos adolescentes que cometem atos infracionais e, nos termos do Art. 1º, § 1º, dessa legislação, o SINASE é definido como o conjunto ordenado de princípios, regras e critérios regulam a execução das medidas socioeducativas e inclui os sistemas estaduais, distrital e municipais, bem como todos os planos, políticas e programas específicos voltados ao atendimento dos adolescentes em conflito com a lei. De acordo com a legislação que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), as medidas socioeducativas estabelecidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente têm como objetivo principal responsabilizar o adolescente pelos danos causados pelo ato infracional praticado, e a efetivação dessas medidas é realizada através do cumprimento do plano individual de atendimento, que busca ajustar as intervenções às necessidades específicas de cada adolescente.
2.1 Medidas Socioeducativas em Meio Aberto
A execução das medidas socioeducativas em meio aberto não envolve a privação da liberdade e possuem, como objetivo, proporcionar um ambiente menos restritivo e mais integrado à vida social do jovem, estando previstas no Art. 112, especificamente, incisos I ao IV, do Estatuto da Criança e do Adolescente, quais sejam, advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade e liberdade assistida.
Dentre as medidas supracitadas, a advertência é a medida mais leve e possui caráter educativo, destinada a adolescentes que cometeram infrações menos graves. Neste caso, exige-se a formalidade de designação de audiência pelo juiz, convocando-se o adolescente e seus pais ou responsáveis, para que através de uma conversa, o jovem seja alertado e orientada sobre a necessidade de mudança de comportamento.
Quanto à obrigação de reparar o dano, sobretudo, em atos infracionais com reflexos patrimoniais, o infrator será responsabilizado pela compensação dos prejuízos materiais ou morais causados pela sua conduta, visando promover o reconhecimento dos danos e incentivar a responsabilidade e a empatia.
“Tem-se que o propósito da medida é fazer com que o adolescente autor de ato infracional se sinta responsável pelo ato que cometeu e intensifique os cuidados necessários para não causar dano a outrem. Posto isto, essa medida tem caráter personalíssimo e intransferível, devendo o adolescente ser o responsável exclusivo pela reparação do dano” (Wilson Donizeti Liberati, Adolescente e ato infracional. Medida socioeducativa é pena?, p. 121).
Na prestação de serviços à comunidade, o adolescente é incumbido de realizar atividades gratuitas de interesse público, como trabalho em instituições sociais ou de caridade, por um período não excedente a seis meses, tendo o claro intuito de conscientizar o jovem sobre a importância do serviço comunitário e os valores que supõem a solidariedade social. Por fim, há a medida socioeducativa de liberdade assistida que envolve o acompanhamento, auxílio e orientação do adolescente por um profissional designado. Em verdade, não existem requisitos específicos para a concessão dessa medida, todavia, ela pode ser comparada à suspensão condicional da pena no direito penal, na qual o adolescente é colocado em um período de prova em liberdade.
2.2 Medidas Socioeducativas Privativas de Liberdade
Em contrapartida, as medidas socioeducativas privativas de liberdade, também chamadas de em meio fechado, ocorrem nas modalidades de semiliberdade ou internação, consoante o disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu Art. 112, incisos V ao VI. Tais medidas serão impostas quando as outras modalidades de intervenção (meio aberto) caracterizarem insuficientes e/ou inapropriadas para impulsionar a reeducação do adolescente.
A primeira modalidade, enquanto prevista no Art. 120, do ECA, implica privação parcial de liberdade do adolescente. Assim, o jovem é liberado para atividades externas durante o dia, enquanto à noite é recolhido em uma instituição que simula uma residência. Ela é aplicada diretamente ou como parte da fase de transição para o meio aberto, e tem o intuito de criar um ambiente socioeducacional que ajude o infrator a adotar um novo comportamento social, enquanto oferece garantias de segurança pessoal. O prazo da medida, conforme o parágrafo 2º do Art. 120, não é fixo, sendo determinado pela resposta do adolescente à intervenção, no entanto, deve ser reavaliada no máximo a cada 06 (seis) meses e não pode ultrapassar 03 (três) anos.
No que tange à internação, trata-se de medida mais gravosa que priva a liberdade do socioeducando e deve ser aplicada quando preenchidas uma das hipóteses do Art. 122, do ECA, são elas, o cometimento de ato infracional de grave ameaça ou violência à pessoa, quando houver reincidência no cometimento de infrações ou por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta. Segundo Bandeira, a internação, “É sem dúvida a forma mais drástica de intervenção estatal na esfera individual do cidadão, pois o poder sancionatório do Estado alcança o jus libertatis do adolescente, o maior bem que se possui, depois da vida.” A medida em questão, “[…] somente será aplicada quando o ato infracional for cometido mediante violência ou grave ameaça à pessoa, bem como quando reiterados os cometimentos de outros atos infracionais”.
Outrossim, a duração da medida pode variar de 6 (seis) meses até 3 (três) anos, conforme o princípio da brevidade, da excepcionalidade e do respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Destaca-se que a restrição ou privação da liberdade dos adolescentes andam em harmonia com o compromisso com a escolarização e profissionalização compulsória.
4 PRINCÍPIOS DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E SEUS REFLEXOS NA APURAÇÃO DE ATO INFRACIONAL
Do mesmo modo que o Processo Penal, onde é necessário um procedimento de apuração para uma vez comprovada a autoria e a materialidade do crime, seja proferida sentença, para a aplicação de quaisquer medidas socioeducativas previstas na legislação especial, requer-se um procedimento de apuração do ato infracional análogo ao crime.
E, apesar do Código de Processo Penal ser aplicado a adultos que cometem crimes e o Estatuto da Criança e do Adolescente regular os adolescentes em conflito com a lei, por força do art. 152 do ECA, o legislador optou pela aplicação subsidiária e supletiva do Código de Processo Penal, com as devidas adaptações, e ambos compartilham princípios orientadores que asseguram a proporcionalidade, o respeito e a eficácia das medidas adotadas. A seguir, exploraremos essa relação mais detalhada.
4.1 Princípio do “in dubio pro reo”
O princípio do “in dubio pro reo” diz respeito à apreciação das provas processuais, cabendo à parte acusatória o ônus probatório capaz de demonstrar a culpabilidade do acusado. Logo, na presença de dúvidas sobre fato relevante para a decisão do processo, deverá ser interpretado em benefício do réu. Nas palavras de Renato Brasileiro:
O in dubio pro reo não é, portanto, uma simples regra de apreciação das provas. Na verdade, deve ser utilizado no momento da valoração das provas: na dúvida, a decisão tem de favorecer o imputado, pois não tem ele a obrigação de provar que não praticou o delito. Enfim, não se justifica, sem base probatória idônea, a formulação possível de qualquer juízo condenatório, que deve sempre assentar-se- para que se qualifique como ato revestido de validade ético-jurídica – em elementos de certeza, os quais, ao dissiparem ambiguidades, ao esclarecerem situações equívocas e ao desfazerem dados eivados de obscuridade, revelam-se capazes de informar, com objetividade, o órgão judiciário competente, afastando, desse modo, dúvidas razoáveis, sérias e fundadas que poderiam conduzir qualquer magistrado ou Tribunal a pronunciar o non liquet.
No contexto infracional, o princípio do in dubio pro reo também é aplicado. Isso porque, para a imposição de uma medida socioeducativa, é necessária a “existência de provas suficientes da autoria e da materialidade da infração”, conforme estipulado pelo Art. 114 do Estatuto da Criança e do Adolescente. A definição de provas suficientes é fundamental, uma vez que o indivíduo tem o direito à presunção de inocência até que se prove sua culpa além de qualquer dúvida razoável.
É pacífico o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), conforme a interpretação da Súmula 342, que a mera confissão do adolescente não é suficiente para embasar a aplicação de qualquer medida socioeducativa: “Súmula no 342 – No procedimento para aplicação de medida socioeducativa, é nula a desistência de outras provas em face da confissão do adolescente”.
Portanto, ao confessar, a palavra do jovem deve ser respaldada por provas materiais que corroboram a veracidade da alegação, visto que, por ser inimputável, indivíduos maiores de idade podem explorar a sua vulnerabilidade para que eles confessem os ilícitos em seu lugar, buscando, assim, se beneficiar ou escapar de suas responsabilidades criminais. Na prática, a aplicação rigorosa deste princípio pode suscitar críticas, pois, de um lado, tem-se a necessidade de salvaguardar o jovem infrator contra uma responsabilização injusta, evitando erros judiciais e medidas desproporcionais. Mas, por outro lado, a aplicação equivocada do princípio pode resultar em uma proteção excessiva que, em alguns casos, prejudicará a capacidade do sistema de responder adequadamente a comportamentos delituosos.
Deste modo, embora o princípio do “in dubio pro reo” seja crucial para a proteção dos direitos dos adolescentes, é fundamental que sua aplicação seja equilibrada e contextualizada, certificando que não apenas se preserve os direitos dos adolescentes, como também a eficácia das medidas impostas.
4.2 Princípio do contraditório
O princípio do contraditório encontra-se previsto no Art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal, e assegura “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Isso significa que o réu tem o direito de ser informado sobre as acusações as quais lhe são imputadas, de acessar as provas e se manifestar sobre elas.Desta forma, não há processo penal eficaz e justo sem que a parte adversa seja cientificada da existência da demanda ou dos argumentos da parte contrária. A falta dessas informações constitui nulidade absoluta, consoante a súmula 707 do Supremo Tribunal Federal, vejamos: “Constitui nulidade a falta de intimação do denunciado para oferecer contrarrazões ao recurso interposto da rejeição da denúncia, não a suprindo a nomeação de defensor dativo.”
Semelhantemente, a falta de intimação do adolescente e do seu representante legal, para comparecer à audiência e demais atos judiciais, implica em nulidade absoluta insanável com o decurso do tempo, pois infringe o princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa. De acordo com Nucci:
(…) a citação do adolescente e de seus pais ou responsável legal deve ser pessoal, feita por mandado. O ato deve abranger a ciência da ação ajuizada e o dever de comparecimento em juízo na audiência designada. Equivale, como no antigo procedimento do processo penal, à audiência de interrogatório do acusado como primeiro ato do processual; hoje, é o último ato, no final da instrução. Além disso, no mandado, deve estar clara a necessidade de estarem acompanhados de advogado; constará também, o aviso de que, não tendo condições de arcar com o custo do defensor, o Estado nomeará quem o faça. Uma ressalva importante: diferentemente do direito de audiência do maior, quando criminalmente processado, o menor deve comparecer (se sumir do local, expede-se mandado de busca e apreensão, se citado, não comparecer, será conduzido coercitivamente). O mesmo será feito no tocante aos pais quando forem intimados e não comparecerem (…). (Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, Editora Forense, pág. 581/583). (Nucci, 2018).
Pode-se concluir pela necessidade rigorosa da observância ao princípio do contraditório, por se tratar de elemento essencial para garantir a equidade e a eficácia dos processos judiciais e administrativos, evitando, assim, o comprometimento da nulidade absoluta. Como uma manifestação do princípio do contraditório, é consolidado em nossa jurisprudência, bem como no Art. 155 do Código de Processo Penal, que os elementos colhidos na fase investigativa não são suficientes para embasar uma condenação, devendo o juiz formar sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial. Apesar disso, na prática da apuração dos atos infracionais, observa-se a grande perspectiva na obtenção da confissão, que pode ser obtida de maneira forçada diante das autoridades policiais, seja para fundamentar posterior sentença condenatória ou para agilizar a conclusão da investigação.
Além disso, outro desafio na implementação do contraditório diz respeito à falta de contato prévio entre o defensor público e o adolescente antes da audiência de apresentação. De acordo com o Art. 184 do ECA, uma vez oferecida a representação, a autoridade judiciária deve marcar a audiência de apresentação do adolescente, momento em que o menor, junto com seus responsáveis legais, é ouvido para fornecer esclarecimentos sobre o ato infracional que lhe é atribuído. Todavia, habitualmente, é nomeado defensor público para representar os interesses do adolescente apenas na audiência, ficando ciente das particularidades do caso apenas nesse momento, impossibilitando de oferecer uma defesa técnica adequada. Sendo assim, em que pese a existência do princípio, ainda há a necessidade de seu aperfeiçoamento na prática jurídica para enfrentar desafios que comprometem sua efetividade.
4.3 Princípio da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos
O princípio da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos é um pilar fundamental tanto no processo penal quanto no processo de apuração de atos infracionais e está previsto na Constituição Federal, em seu Art. 5º, LVI. Ele corresponde à teoria do “fruto da árvore envenenada”, assegurando que as provas obtidas de forma ilegal contaminarão todas as demais provas produzidas a partir daquela, logo, não podem ser utilizadas para fundamentar decisões judiciais ou administrativas.
No procedimento de apuração de ato infracional, a aplicação deste princípio é igualmente essencial, posto que a coleta de provas deve respeitar os direitos fundamentais dos adolescentes, protegendo-os de abusos das autoridades competentes. Deste modo, quaisquer provas obtidas violando esses direitos não podem serão admitidas, assim como não podem influenciar a imposição de medidas socioeducativas.
À título de exemplo, considere que a polícia militar, sem estar diante de uma situação de flagrante delito, desastre, necessidade de prestar socorro ou sem uma determinação judicial que autorize a entrada durante o dia (Art. 5º, XI, da Constituição Federal), invade a residência de um suspeito e o encontra na posse de materiais ilícitos, como entorpecentes e armas de fogo. Nesse cenário, é registrado o boletim de ocorrência e elaborado o auto de prisão em flagrante, iniciando o procedimento penal. De acordo com a teoria do “fruto da árvore envenenada,” as provas encontradas durante a invasão ilegal (drogas e armas) serão inadmissíveis no processo, assim como quaisquer outras provas derivadas dessa ação inicial. Logo, mesmo que uma situação de flagrância seja estabelecida posteriormente, ela não convalida o ato e essas provas não podem ser utilizadas no processo devido à ilegalidade da busca que as revelou.
4.4 Princípio da proporcionalidade
Inicialmente, é necessário registrar que o princípio da proporcionalidade não está previsto expressamente na Constituição Federal. Apesar disso, sua presença está implícita no texto constitucional, especialmente no que se refere à individualização da pena (Art. 5º, XLVI). Além disso, o princípio é refletido em diplomas internacionais, como por exemplo, no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) que, em seu Art. 7º, proíbe penas e tratamentos cruéis e desumanos, assegurando que as punições respeitem a dignidade humana e sejam justos e adequados à gravidade dos crimes praticados. Com esse entendimento, Prado (2008), em sua obra Curso de Direito Penal Brasileiro, afirmou:
Desse modo, no tocante à proporcionalidade entre os delitos e as penas (poena debet commensurari delicto), salienta-se que deve existir sempre uma medida de justo equilíbrio – abstrata (legislador) e concreta (juiz) – entre a gravidade do fato ilícito praticado, do injusto penal (desvalor da ação e desvalor do resultado), e a pena cominada ou imposta. Em suma, a pena deve estar proporcionada ou adequada à intensidade ou magnitude da lesão ao bem jurídico representado pelo delito e a medida de segurança à periculosidade criminal do agente.
Por outro lado, o Art. 112, § 1º, do ECA indica a aplicação clara do princípio ao afirmar que “a medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração”. Isto é, a imposição de medidas socioeducativas deverá respeitar a individualidade e a situação específica do adolescente, promovendo uma resposta adequada e equilibrada. Sendo assim, medidas consideradas excessivas ou inadequadas à infração cometida são contrárias às determinações do Estatuto.
Exige-se proporcionalidade na conformidade entre a sanção e o fato, cabendo ao juiz de direito da infância e da juventude estabelecer na sentença a resposta jurídica adequada ao ato cometido. A proteção é mais abrangente ao conferir direitos específicos, dado a condição especial do adolescente, isto é, indivíduo vulnerável e hipossuficiente que se encontra em uma condição de pessoa em desenvolvimento. Assim sendo, a proteção legal proporcionada é não somente mais ampla, mas também adaptada às suas particularidades, garantindo que a resposta ao ato infracional seja equilibrada.
MATERIAL E MÉTODO
O levantamento de dados baseou-se em fontes bibliográficas e documentais. A pesquisa bibliográfica permite o aprofundamento teórico e norteia a pesquisa ao colocar o investigador em contato com o material sobre o tema. Segundo Gil (2002, p.44), “a pesquisa bibliográfica é desenvolvida com base em material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos”.
Quanto à pesquisa documental, esta é uma fonte rica de dados, não implica em altos custos, não exige contato com os sujeitos da pesquisa e possibilita uma leitura aprofundada das fontes. Para Pádua (1997, -.62), “pesquisa documental é aquela realizada a partir de documentos, contemporâneos ou retrospectivos, considerados cientificamente autênticos (não fraudados)”. Neste ponto, nesta pesquisa, a metodologia utilizada foi a revisão de literatura e fontes documentais públicas, como legislações vinculadas ao tema, com o objetivo de investigar como as garantias processuais sofrem as devidas adaptações para atender às necessidades de um sistema com caráter educativo.
A coleta de dados constou na seleção de bibliografia nos portais eletrônicos SciELO (Scientific Eletronic Library Online), doutrinas físicas, Diretório Portal STF, Google Acadêmico e Biblioteca Digital da OAB Nacional, contemplando os seguintes descritores: “Aplicação do CPP em atos infracionais”, “ECA x atos infracionais”, “culpabilidade do menor”, “responsabilização e caráter pedagógico”. Os critérios de inclusão foram: artigos publicados em periódicos nacionais, em língua portuguesa, disponíveis na íntegra online; teses, dissertações, livros e fontes documentais públicas, como legislações vinculadas ao tema. Os achados incluem referências de 2000 a 2024.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A imposição das medidas socioeducativas aos jovens em conflito com a lei apresenta desafios em atender as necessidades de responsabilizar o jovem e respeitar o caráter educativo da medida e do Estatuto. Isso porque, por um lado, a responsabilização visa garantir que o adolescente compreenda a gravidade do ato cometido, enquanto o aspecto pedagógico busca a promoção do seu desenvolvimento pessoal, social e moral. O desafio reside, portanto, em garantir que o caráter punitivo não predomine, criando um ambiente que favoreça seu aprendizado e reintegração.
Além disso, é imprescindível que a intervenção estatal não apenas se ajuste ao tipo de infração e às características pessoais do jovem, mas também ofereçam suporte suficiente para a mudança de comportamento e o desenvolvimento de suas habilidades. Há de se ressaltar, ainda, que a aplicação de uma medida rigorosa pode desviar sua função essencial de caráter educativo, culminando em sanções que não satisfazem as necessidades dos jovens, tampouco refletem na gravidade de seu comportamento. Parte inferior do formulário
A aplicação dos princípios do Código de Processo Penal (CPP) na apuração de atos infracionais revela-se uma questão complexa e fundamental para o equilíbrio entre a responsabilização e o caráter pedagógico inerente ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Ao longo deste trabalho, foi possível observar que, embora os atos infracionais tenham natureza distinta dos crimes cometidos por adultos, os princípios processuais penais, como o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório, e o princípio da presunção de inocência, são amplamente aplicáveis. Esses princípios asseguram a proteção dos direitos fundamentais dos adolescentes em conflito com a lei, alinhando-se ao objetivo do ECA de promover a responsabilização sem perder de vista a função pedagógica.
Entretanto, a aplicação desses princípios deve ser feita de maneira adaptada, levando em conta as particularidades do adolescente e o objetivo primordial de reintegração social. A responsabilidade atribuída ao menor infrator não pode se equiparar à pena imposta aos adultos, mas deve ser acompanhada de medidas socioeducativas que promovam o desenvolvimento pessoal e a prevenção de reincidências.
Portanto, a aplicação dos princípios do CPP na apuração de atos infracionais é possível e necessária, desde que seja interpretada à luz dos objetivos do ECA, promovendo um sistema de justiça equilibrado que combina responsabilização e reeducação. Esse equilíbrio é crucial para o cumprimento das diretrizes constitucionais de proteção integral à criança e ao adolescente, garantindo que a responsabilização seja sempre acompanhada de um olhar voltado para o futuro, com foco na reinserção social e na construção de novos caminhos.
REFERÊNCIAS
BANDEIRA, M. Atos infracionais e medidas socioeducativas: uma leitura dogmática, crítica e constitucional. Ilhéus: Editus, 2006, 35p.
BRAGA, Leonora Priscilla Mollás. Teorias do Crime: Análise e Reflexões. 2018. 68 p. Trabalho de Conclusão de Curso em Pós Graduação Lato Sensu (Pós Graduação em Direito Penal). Faculdade de Direito Damásio de Jesus, São Paulo: 2018. Disponível em <https://leonorapmb.jusbrasil.com.br/artigos/587665863/teorias-do-crime>. Acesso em: 07 de agosto de 2024.
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Brasília: Senado Federal, 2000.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei federal nº 8069, de 13 de julho de 1990. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 2002.
BRASIL. Lei do SINASE. Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Brasília: Senado Federal, 2012.
BRITO, Valteir Marcos de. Sistemas de Justiça Criminal: Brasil e Alemanha / Valteir Marcos de Brito.– Rio de Janeiro: UCAM, 2005. ix f.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal– Volume Único. 12.ed., rev., atual. e ampl.- São Paulo: Editora JusPodivm, 2023. 1.696 p.
LIBERATI, Wilson Donizeti. Adolescente e o ato infracional: medida socioeducativa é pena? São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002.
MACHADO, M. T. (2003). Apanhado histórico-filosófico das concepções que orientam o direito da criança e do adolescente (pp. 25-54). Em A proteção constitucional de crianças e adolescentes e os direitos humanos São Paulo: Manole.
MARQUES, Fernando Tadeu; TASOKO, Marcelle Agostinho. O princípio da proporcionalidade em Direito Penal e Direito Processual Penal. Jus Humanum – Revista Eletrônica de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, v. 1, n. 3, p. 1-9, jan./jun. 2014.
MASSON, Cleber. Direito penal: parte geral, (arts. 1º a 120), v. 1. 16. ed. Rio de Janeiro: Método, 2022.
NUCCI, Guilherme de Souza. Estatuto da criança e do adolescente comentado: em busca da Constituição federal das crianças e dos adolescentes. 4. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008
VITAL, Luis Fernando Camargo de Barros. A irresponsabilidade penal do adolescente. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: IBCCrim, n. 18, vol. 5, p. 87-92, 1997.
1Acadêmica em Direito, Faculdade de Ensino Superior de Linhares- FACELI
E-mail: brendamferraarii@gmail.com
2Docente do Curso Superior de Direito da Faculdade de Ensino Superior de Linhares
Mestre em Ensino na Educação Básica (PPGEEB/UFES)
Doutorando em Educação em Ciências e em Matemática (PPGECM/UFPR) E-mail: rodrigodavitoriagomes@gmail.com