ANEMIA HEMOLÍTICA SECUNDÁRIA A INFECÇÃO POR BABESIOSE SPP EM CÃO- RELATO DE CASO

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202412170104


Sarah Adriana Gomes de Oliveira¹,
Zayra Siqueira Chegas²


RESUMO

A anemia hemolítica imunomediada (AHIM) é um distúrbio que desencadeia a destruição de eritrócitos por anticorpos do sistema complemento ou pela ação do sistema monocítico fagocitário, resultando na redução do número de células vermelhas circulantes. Ela pode ser classificada como primária, no qual é idiopática, ou secundária quando há uma causa base. As doenças infecciosas podem ser uma importante causa secundária desta afecção. A Babesiose canina é uma doença infecciosa transmitida principalmente pelo repasto sanguíneo do carrapato Rhipicephalus sanguineus, causada pelos protozoários intracelulares de hemácias, Babesia canis ou Babesia gibsoni. O diagnóstico dessas afecções inclui o hemograma e exames específicos, além de sinais clínicos como apatia, anorexia, hipertermia, distúrbios vasculares, mucosas pálidas, icterícia, perda de peso e cansaço fácil. O objetivo deste trabalho é relatar um caso em que a infecção por Babesiose spp. desencadeou uma anemia hemolítica imunomediada secundária arregenerativa. Um canino, fêmea não castrada, sem raça definida, com 5 anos de idade, pesando 2,8 kg, foi diagnosticada com Babesiose canina, que evoluiu posteriormente para anemia hemolítica imunomediada secundária e arregenerativa. O tratamento consistiu em transfusões sanguíneas, doxiciclina, dipropionato de imidocarb e a associação dos imunossupressores prednisolona e ciclosporina.

Palavras-Chaves: Babesia spp, hemólise, anemia arregenerativa, recidiva.

1 INTRODUÇÃO

A anemia hemolítica imunomediada (AHIM) é uma afecção que determina uma reação de hipersensibilidade do tipo II. Nesta condição há a produção de anticorpos contra, principalmente, glicoproteínas e glicolipídios que compõem a membrana das hemácias, ocasionando sua hemólise. Em sua forma intravascular, há a ruptura da parede desta célula sanguínea no interior dos vasos sanguíneos, resultando na liberação de hemoglobina (GARDEN et al., 2019).

A maior parte dos casos de AHIM são secundários, ou seja, desencadeados por infecções, medicamentos, processos neoplásicos, transfusões de sangue incompatíveis, vacinações entre outros motivos capazes de provocarem uma resposta imunológica do corpo contra suas próprias hemácias (GARDEN et al., 2019; MARTINATO, 2020).

Há evidências de que cães infectados pelas diferentes espécies de Babesia possuem um fator imunomediado no desenvolvimento da anemia identificada durante a doença. Por serem protozoários intracelulares das hemácias, os anticorpos produzidos em sua resposta podem causar uma destruição eritrocitária sem necessariamente terem como alvo primário a célula infectada. Porém, há indícios de que lesões oxidativas à membrana eritrocitária e exposição de epítopos aumentam as chances do desenvolvimento de anticorpos anti-eritrocitários (GARDEN et al., 2019).

Com relação a epidemiologia a AHIM pode afetar cães de ambos os sexos, entretanto, há estudos que mostram uma maior predisposição de fêmeas adultas em relação a machos da mesma faixa etária. Em filhotes com menos de um ano de idade, esta proporção se inverte tendo um maior números de machos do que fêmeas. A média de idade para o desenvolvimento da doença é por volta dos 6 anos, mas cães de qualquer idade podem ser acometidos. Em relação à raça, cães das raças Poodle, Golden Retriever, Collies, Cocker Spaniel, Spitz Alemão, Bichon Frisé e Spitz Alemão apresentam uma predisposição genética para o desenvolvimento deste tipo de anemia (MARTINATO, 2020).

O diagnóstico é baseado no histórico, sintomas e sinais clínicos correlacionados com exames laboratoriais que evidenciam uma anemia originária de hemólise intra ou extra vascular. Em casos de AHIM secundária, exames específicos são necessários para identificar a causa base e ditar o prognóstico (GARDEN et al., 2019; MARTINATO, 2020).

O tratamento é baseado na realização de transfusões sanguíneas, no uso de medicamentos imunossupressores e na eliminação da causa base, quando possível (SWANN et al., 2019).

O objetivo deste trabalho é relatar um caso em que a infecção por Babesiose spp. desencadeou um quadro de anemia hemolítica imunomediada secundária arregenerativa, além de discutir as formas de diagnóstico e terapêutica.

2 DESCRIÇÃO DE CASO

Foi atendida em uma Clínica Veterinária particular na cidade de Divinópolis- MG, em 15 de julho de 2024, um canino, fêmea não castrada, sem raça definida, com 5 anos de idade, pesando 2,8 kg. Segundo a tutora ela apresentava além de perda de peso progressiva, prostração, tremores, ataxia de membros pélvicos, hiporexia e cansaço fácil há 2 dias. 

Ao exame físico observou-se desidratação de 5%, mucosa gengival perlácea com fundo amarelado, linfonodos não aumentados, frequência respiratória aumentada com 72 movimentos respiratórios por minuto. À ausculta cardíaca havia arritmia, sopro grau III e taquicardia com 144 batimentos por minuto. Ela apresentava abdominalgia mesogástrica moderada, temperatura retal de 37,6°C, ECC 2/9, pulso jugular positivo, estado de consciência deprimido e paresia de membros pélvicos. 

Foi solicitado como exames complementares iniciais hemograma, creatinina, ALT e pesquisa de hematozoários. O hemograma evidenciou grave anemia microcítica hipocrômica, arregenerativa, neutrofilia com desvio a esquerda, presença de neutrófilos tóxicos e trombocitopenia. A creatinina estava abaixo do valor de referência, a enzima ALT estava aumentada e não foram visibilizados hematozoários na amostra. (Tabela 1)

Diante dos resultados solicitou-se a sorologia para doenças transmitidas pelo carrapato e transfusão sanguínea. A paciente foi admitida na internação, onde poucas horas depois recebeu a primeira transfusão de sangue total, após o teste de compatibilidade ser não reagente. Iniciou-se o tratamento suporte com dipirona 25mg/kg BID e dexametasona 0,14mg/kg SID.

Passadas 24 horas da primeira transfusão realizou-se um novo hemograma, no qual revelou um ínfimo aumento na contagem de hemácias, hematócrito, hemoglobina e plaquetas (Tabela 1). A paciente agora apresentava melena, dificuldade em manter a temperatura corporal, permanecendo ictérica, deprimida e ofegante. Diante da piora clínica optou-se por realizar o diagnóstico terapêutico previamente ao resultado sorológico para as doenças transmitidas pelo carrapato com a administração de dipropionato de imidocarb 6,6mg/kg por via subcutânea após a aplicação de 0,022mg/kg de sulfato de atropina por via subcutânea e doxiciclina 7,5 mg/kg BID por via oral.

Tabela 1: Resultados do hemograma e trombograma pré e pós transfusão realizados em 15/07/24 e 16/07/24, respectivamente.

Fonte: do autor (2024).

Em 17 de julho realizou-se a segunda transfusão sanguínea usando sangue total, posteriormente ao resultado negativo do teste de compatibilidade. No hemograma, a observação de anisocitose, metarrubrícitos, esquisócitos e esferócitos, reforçaram o diagnóstico presuntivo de anemia hemolítica imunomediada, o que motivou a administração de dexametasona na dose imunossupressora de 0,4 mg/kg SID por via endovenosa. (Tabela 2)

No dia seguinte (18/07) a paciente encontrava-se alerta, em normofagia, ainda ictérica e com melena. O hemograma após a segunda transfusão apresentou um aumento nas células vermelhas, no hematócrito e na hemoglobina, contudo as plaquetas continuavam reduzindo (Tabela 2). Neste dia, incluiu-se na prescrição da paciente Hemolitan Gold® 0,1 ml/kg BID por via oral e substituiu-se a dexametasona pela prednisolona 3mg/kg SID por via oral. 

Tabela 2: Resultados do hemograma e trombograma pré e pós transfusão realizados em 17/07/24 e 18/07/24, respectivamente.

Fonte: Do autor (2024)

Nos dias que se sucederam a paciente apresentou evolução clínica negativa com prostração, hipofagia, taquipneia, dispneia e efusão abdominal, sendo necessária a realização de abdominocentese, onde houve a drenagem de 340 ml de transudado. O hemograma evidenciava redução progressiva do hematócrito e da hemoglobina (Tabela 3). Nos exames bioquímicos havia hiperbilirrubinemia indireta, hipoalbuminemia, aumento das enzimas ALT, AST e FA. Neste ponto, as sorologias para Babesiose IgM e IgG e para Erliquiose IgG desvelaram resultado reagente, concluindo o diagnóstico de doença do carrapato. A suplementação de albumina em pó foi acrescida a terapêutica.

Tabela 3: Valores de hemácias, hemoglobina, hematócrito e plaquetas entre 19/07 e 23/07

Fonte: Do autor (2024)

Em 24 de julho a paciente mostrava sinais significativos de piora clínica somado a um declínio progressivo do número de hemácias, hematócrito e hemoglobina, sem a presença de reticulocitose (Tabela 4). Desta forma, uma terceira transfusão sanguínea foi necessária. Solicitou-se o exame mielograma a fim de se confirmar a anemia hemolítica e determinar o grau de regeneração eritroide, contudo não foi autorizado pelos tutores. Assim, optou-se por iniciar o uso da ciclosporina na dose de 5mg/kg BID por via oral.

Após 2 dias da terceira transfusão e introdução da ciclosporina a paciente apresentou um aumento considerável na contagem de hemácias, hemoglobina e hematócrito, associado ao retorno do apetite e aumento no nível de interação e atividade (Tabela 4). Ela recebeu alta hospitalar em 25 de julho, onde seu tratamento medicamentoso foi continuado com doxiciclina 7,5 mg/kg BID por via oral por mais 20 dias, prednisolona 3mg/kg SID por via oral até estabilização do hematócrito em 35%, ciclosporina na dose de 5mg/kg BID por via oral até estabilização do hematócrito, suplementação com albumina em pó durante 15 dias. A segunda administração dos medicamentos dipropionato de imidocarb 6,6mg/kg e sulfato de atropina 0,022mg/kg, foi realizada em 30 de julho.

Recomendou-se retornos semanais para acompanhamento do hemograma e do quadro clínico da paciente, o que ditaria o momento ideal para redução das doses dos imunossupressores, e, para o recálculo de doses até lá. E embora, a frequência estabelecida não tenha sido rigorosamente seguida, os hemogramas mostravam melhora progressiva e contínua. Assim em 12 de agosto iniciou-se a redução da dose da prednisolona em 25% a cada 3 semanas. A ciclosporina na dose de 5mg/kg BID foi mantida. 

Tabela 4: Valores de hemácias, hemoglobina, hematócrito e plaquetas entre 24/07 e 09/08

Fonte: Do autor (2024)

Em 10 de setembro a paciente voltou a apresentar uma leve anemia normocítica, normocrômica, sem reticulocitose e trombocitose (Tabela 5). Clinicamente ela estava bem, em normofagia, normodipsia, alerta e havia ganhado 0,5 kg de peso. A vista disso, a ciclosporina foi mantida na dose inicial de 5mg/kg BID e retornou-se com a prednisolona na dose de 3mg/kg SID. 

No dia 25 de setembro, a paciente retornou com claros sinais de piora clínica: deprimida, com hipofagia e apetite seletivo. Ao hemograma o hematócrito havia caído de 35,8% para 30,7% e a hemoglobina foi de 12,5g/dL para 10,8g/dL em 15 dias (Tabela 5), o que foi decisivo para iniciar o segundo ciclo de tratamento para as doenças Erliquiose e Babesiose, com o uso de doxiciclina 7,5mg/kg BID por via oral durante 28 dias e duas doses de dipropionato de imidocarb 6,6mg/kg, após a administração de sulfato de atropina 0,022mg/kg, com intervalo de 15 dias. Reforçou-se a necessidade da realização de hemogramas seriados a cada 2 semanas, para acompanhar a evolução da anemia e resposta ao tratamento.

Em 21 de outubro de 2024, o hemograma da paciente mostrava grande melhora com ausência de anemia e reticulocitose (127.000 cel/mm³); (Tabela 5). Clinicamente ela estava bem, alerta, em normofagia, nomodipsia e havia ganhado mais 400 gramas de peso.

O último hemograma até esta data foi realizado em 25 de novembro de 2024. A contagem de hemácias, o hematócrito e a hemoglobina seguiam dentro dos valores de referência, assim como o trombograma (Tabela 5). Neste dia, iniciou-se a redução da prednisolona em 25% da dose a cada 2 semanas sendo mantida a dose de ciclosporina em 5mg/kg BID. Até o presente momento a paciente apresenta-se clinicamente bem, sem alterações em exames complementares e não demonstrando efeitos colaterais à terapia imunossupressora. Tabela 5: Valores de hemácias, hemoglobina, hematócrito e plaquetas entre 10/09 e 25/11

Fonte: Do autor (2024).

3 DISCUSSÃO

Os sinais clínicos da AHIM são inespecíficos e associados a intensidade da anemia, que determina uma menor taxa de oxigenação dos tecidos do organismo. O quadro clínico se caracteriza por apatia, vômitos, diarreia, fraqueza, aumento das frequências respiratória e cardíaca, mucosas pálidas, sopro cardíaco sistólico, dor abdominal e petéquias. Animais com maior grau de hemólise também podem apresentar icterícia pré-hepática. Diante disso, nota-se que os sintomas apresentados pela paciente na admissão e durante a internação foram semelhantes com àqueles relatados na literatura (GARDEN et al., 2019; MARTINATO, 2020).

Associados aos sinais clínicos, é possível ver nos exames laboratoriais anemia e alterações no leucograma. A paciente não apresentava reticulocitose, o que a enquadra entre 1/3 dos casos em que a AHIM é arregenerativa. Neste tipo de anemia é importante a realização do exame mielograma para avaliar a funcionalidade e possíveis processos de destruição da medula óssea, porém, sua realização não foi possível por restrição dos tutores (MARTINATO, 2020; DIONNE et al., 2023).

A identificação de esferócitos no hemograma da paciente foi um forte indício de destruição imunomediada de hemácias. Além dessa alteração laboratorial, o teste de aglutinação em solução salina positivo e a demonstração de anticorpos anti-eritrocitários pelo Teste de Coombs ou por citometria de fluxo também são recomendados para a identificação deste processo autoimune (GARDEN et al., 2019; DIONNE et al., 2023).

Na AHIM, a hemólise é ocasionada quando a ação do componente hemolítico desfaz a conexão entre o estroma da hemácia e a hemoglobina, o que possibilita seu extravasamento através desta célula (LOPES et al., 2007).

Um indício importante de hemólise é a hiperbilirrubinemia, principalmente quando se descarta a insuficiência hepática ou processos obstrutivos de suas vias. O aumento dos valores da bilirrubina indireta na destruição eritrocitária anormal, faz com que grande volume de hemoglobina seja liberada no plasma, sendo degradada em fração heme e globina. Com isso, o aminoácido protoporfirina da fração globina é convertida em biliverdina, e está última é transformada em bilirrubina indireta por meio da enzima bilirrubina redutase. O acúmulo de bilirrubina no sangue é responsável pelo sinal clínico de icterícia. Ambas as alterações foram identificadas na paciente deste relato, o que reforçou a suspeita de hemólise intravascular (GARDEN et al., 2019; MARTINATO, 2020; LOPES et al, 2007).

Outro sinal de hemólise que pode ser citado é a modificação na coloração da urina, que pode ser desencadeada a partir da oxigenação do urobilinogênio ou pela presença de hemoglobina livre que passa por excreção renal e que nesta condição encontra-se em grandes concentrações no plasma (LOPES et al., 2007). A paciente apresentava urina de coloração alaranjada, alteração sugestiva de hemoglobinúria. Contudo, não foi possível ter a sua presença confirmada na urinálise pela indisponibilidade do exame no laboratório local.

Ela também apresentou aumento das enzimas ALT e AST, que poderiam ser explicados devido ao dano causado pela hipóxia tecidual no fígado. E após o início do tratamento com corticoides em altas doses, notou-se aumento significativo da fosfatase alcalina (MARTINATO, 2020, VILLALBA & SÁNCHEZ, 2021).

A hipoalbuminemia foi um achado em cerca de 30% dos cães infectados por Babesia spp. (FURLANELLO et al., 2005). Contudo, considera-se que a hipoalbuminemia da paciente tenha uma causa multifatorial podendo ser destacado a hiporexia, menor absorção intestinal de albumina frente à diarreia e uma menor produção hepática (LOPES et al., 2007; FURLANELLO et al., 2005). Somado a isso, a vasculite causada pelo dano endotelial devido a hemoparasitose, foram fatores causais para o desenvolvimento da ascite no presente relato.

O animal apresentou recaída no quadro de babesiose após 4 semanas do fim de seu tratamento para as hemoparasitoses. Esse fenômeno foi relatado em cerca de 11,8% dos cães infectados por B. gibsoni. Alguns fatores de risco para a recorrência foram identificados na paciente como a co-infecção por E. canis, uma vez existe uma sinergia entre sua patogenia e a da babesiose. Adicionalmente, o desenvolvimento de AHIM aumenta o risco de recaídas da doença pelo prejuízo causado na recuperação do paciente e seu tratamento imunossupressor pode interferir na eliminação do parasita (NEELAWALA et al., 2021). A contagem de hemácias menor do que 2 milhões/mm³ no dia da admissão (15 de julho) e o hematócrito abaixo de 13% no quinto dia de tratamento (20 de julho) também demonstram um quadro grave e um declínio imunológico que foi associado com maior risco de recaídas (NEELAWALA et al., 2021).

O tratamento para as hemoparasitoses identificadas foi a administração subcutânea de duas doses de dipropionato de imidocarb na dose de 6,6mg/kg com um intervalo de 15 dias entre elas com o objetivo de eliminação completa do hemoparasita. Paralelamente usou-se a doxiciclina 7,5mg/kg BID durante 4 semanas para auxiliar no controle da infecção pela Babesia spp. e pela E. canis (DIAS & FERREIRA, 2016; NEELAWALA et al., 2021).

O tratamento da AHIM secundária é baseado no tratamento da causa base, no uso de imunossupressores e, se necessário, transfusões sanguíneas.

A transfusão sanguínea deve ser considerada levando em conta a gravidade dos sinais clínicos, o hematócrito para a raça, progressão da doença, concentração do lactato em repouso e limitações impostas à monitoração e internação do paciente. Quando não há sinais clínicos importantes alguns autores recomendam a transfusão sanguínea caso o hematócrito esteja igual ou abaixo de 12% (SWANN et al., 2019). A paciente deste relato apresentava na consulta diversos sinais clínicos de progressão aguda, além de seu primeiro hemograma evidenciar a contagem de 5,3% de hematócrito e 1,9g/dL de hemoglobina, o que a incluiria em ao menos quatro critérios para a realização da transfusão de sangue, conforme diz o consenso de 2019. E devida a necessidade de restaurar parcialmente o número de hemácias, plaquetas e fatores de coagulação optou-se pela infusão de sangue total. 

Mesmo após a primeira transfusão, a paciente seguiu apresentando alterações laboratoriais e clínicas relevantes persistindo com ausência de reticulocitose, sendo necessário então, outras duas transfusões sanguíneas com intervalo de 48 horas entre as duas primeiras e de sete dias entre a segunda e terceira.

Os corticoides são a primeira linha de tratamento nos casos de AHIM (SWANN et al., 2019). No tratamento instituído, iniciou-se o uso de dose anti-inflamatória da dexametasona 0,14mg/kg SID nos primeiros dois dias, onde não foram observados sinais clínicos e laboratoriais que indicariam o processo de destruição celular imunomediado. A partir do terceiro dia de internação (17/07), foi iniciado o tratamento com 0,4mg/kg SID de dexametasona por via intravenosa, dose indicada para o tratamento do AHIM de acordo com o último consenso de 2019. No quarto dia de internação (18/07), a dexametasona foi substituída pela prednisolona na dose 3mg/kg devido aos seus efeitos colaterais mais brandos (SWANN et al., 2019).

A associação de um segundo imunossupressor foi iniciada após 8 dias do início do tratamento da AHIM (em 22/07), devido à resposta insatisfatória a monoterapia com corticoide. O fármaco de escolha foi a ciclosporina, em virtude de sua fácil disponibilidade comercial, menor custo, baixo potencial de supressão medular e por ser uma boa escolha para quadros de AHIM arregenerativa (SWANN et al., 2019). 

Acredita-se que a babesiose foi o fator desencadeante para a AHIM na paciente deste relato em razão de ser uma associação amplamente relatada na literatura. As duas espécies mais comumente encontradas em cães infectados são a Babesia canis e a Babesia gibsoni (DIAS & FERREIRA, 2016). Ambas provocam hemólise durante o processo de multiplicação intracelular, produzindo mediadores inflamatórios que causam vasodilatação periférica e hipotensão, facilitando a interação entre as células infectadas e o tecido endotelial (GARDEN et al., 2019; BRAGA & SILVA, 2013). A sorologia pelo método de Ensaio Imunoenzimático (ELISA) foi escolhida em razão de seu baixo custo, sua alta sensibilidade e especificidade mesmo em infecções com baixa parasitemia (BRAGA & SILVA, 2013). Nesse caso, a presença de anticorpos IgM para babesiose na sorologia demonstra que houve exposição recente ao antígeno e que a doença estava na fase ativa (WALTER et al., 2002)

4 CONCLUSÃO

A Babesiose canina pertence ao grupo de doenças comuns na rotina clínica. Seu diagnóstico laboratorial precoce e a observância de complicações, como a AHIM, podem determinar o prognóstico do paciente. 

A AHIM, por sua vez, é um distúrbio imunológico que pode ou não estar associado a outras afecções, tornando seu diagnóstico complexo. Como sua evolução pode ser rápida e grave, o diagnóstico precoce torna-se decisivo para o início da terapia imunossupressora e para alcançar a cura. A AHIM requer exames específicos que podem ter alto custo e serem de difícil acesso para cidades do interior. A depender da gravidade do quadro, seu tratamento pode se estender por tempo indeterminado, exigindo um comprometimento do tutor e condições financeiras para a compra dos medicamentos imunossupressores, que podem ter custo elevado. Diante disso, a prevenção das hemoparasitoses se torna essencial para reduzir o risco de AHIM e outras complicações, como aconteceu no caso relatado.

5 LITERATURA CONSULTADA

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MARTINATO, Fernanda. Alterações laboratoriais em cães com anemia hemolítica imunomediada secundária (AHIM) responsiva e não responsiva. 2020. p.30. Mestrado em Medicina Veterinária – Universidade Estadual Paulista, Jaboticabal, 2020.

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VILLALBA, Ignacio López e SÁNCHEZ, Ignacio Mesa. Guia prático de interpretação laboratorial e diagnóstico diferencial de pequenos animais: hematologia e bioquímica. São Paulo: MedVet. 1 ed. 2021.

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¹Médica Veterinária autônoma, pós-graduanda em clínica médica de cães e gatos pela ANCLIVEPA-SP
contato: sarahagovet@gmail.com

²Médica Veterinária autônima, especializada em neurologia veterinária pela ANCLIVEPA-SP.