ANÁLISE SOBRE HERANÇA DIGITAL E A IMPORTÂNCIA DA REGULARIZAÇÃO JURÍDICA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202411110753


Johabe Ferreira Pantoja1;
Orientador Prof. Wellington Martins da Silva2


RESUMO

O legado digital, constituído pelos dados e ativos digitais que os indivíduos deixam após a sua morte, é um tema que se torna cada vez mais relevante na era digital. Este artigo fornece uma análise da importância da sucessão de ativos digitais intangíveis. São discutidos aspectos como a definição e o significado da herança digital, a sua ausência legislativa e questões relevantes relativamente à sua aplicabilidade, considerando tanto os defensores como os opositores da herança digital. Explicamos também o que é sucessão hereditária no Brasil e como ela ocorre, decisões judiciais e precedentes, bem como a forma como são resolvidos atualmente os casos que envolvem sucessão de ativos digitais. Contribuindo assim para uma melhor compreensão da aplicação das regras sucessórias aos casos concretos de herança digital e aos projetos legislativos em apreciação na Câmara dos Deputados para alteração do Código Civil de 2002.

Palavras-chave: digital herança, herança sucessão, digital atividade, legislativo projetos, Civil Código.

ABSTRACT

The digital legacy, consisting of the data and digital assets that individuals leave after their death, is a topic that is becoming increasingly relevant in the digital age. This article provides an analysis of the importance of the succession of intangible digital assets. Aspects such as the definition and meaning of digital inheritance, its absence in legislation and relevant issues regarding its applicability are discussed, considering both supporters and opponents of digital inheritance. We also explain what hereditary succession is in Brazil and how it occurs according to court, decisions and precedents, as well as how cases involving the succession of digital assets are currently resolved. Thus, contributing to a better understanding of the application of inheritance rules to specific cases of digital inheritance and to legislative projects under consideration in the Chamber of Deputies to amend the 2002 Civil Code.

Keywords: digital inheritance, inheritance succession, digital activity, legislative projects, Civil Code.

INTRODUÇÃO

Com o avanço da tecnologia e o domínio do mundo digital nas nossas vidas, as questões relacionadas com a proteção dos dados digitais e a sucessão das coleções digitais tornaram-se cada vez mais relevantes. “Legado digital” significa o conjunto de informações digitais, contas, arquivos e dados que uma pessoa deixa após sua morte. Contudo, a gestão e proteção destes ativos digitais tem representado um desafio para muitas famílias e para o próprio sistema regulatório legal.

A importância do patrimônio digital reside na quantidade crescente de informação e recursos digitais que acumulamos ao longo das nossas vidas. Esses bens geralmente têm valor emocional, sentimental e até financeiro, como é o caso de contas nas redes sociais, como Instagram, Youtube, etc., além das moedas virtuais. No entanto, a ausência de regulamentação adequada pode levar a disputas familiares, perda irreparável de dados e até dificuldades legais no acesso e administrar esses ativos após a morte do proprietário.

O acervo digital enfrenta uma lacuna regulatória significativa, pois nem o Marco Civil da Internet, nem a Lei Em geral de Proteção de Dados, o Código Civil nenhum deles, de forma claro e especifica a questão dos ativos digitais deixados para trás após a morte de uma pessoa. Isto realça a urgência de estabelecer legislação que regule a transmissão e gestão destes bens no contexto da sucessão.

Existem tendências a favor da regulamentação da herança digital que visam garantir o acesso dos herdeiros aos ativos digitais do falecido, proteger a privacidade e os direitos de propriedade intelectual e evitar conflitos jurídicos. Por outro lado, existem correntes opostas que discutem os desafios técnicos e éticos envolvidos na gestão póstuma de dados digitais, bem como as preocupações com a privacidade e segurança das pessoas.

Portanto, a sua regulamentação é essencial para garantir a proteção dos direitos dos herdeiros, preservar os dados e o patrimônio digital do falecido e evitar conflitos jurídicos. O debate sobre esta questão continua em curso e é essencial que a legislação evolua para enfrentar adequadamente os desafios e oportunidades apresentados pela era digital.

1. A SUCESSÃO DIGITAL

Importante destacar que os “Ativos digitais incluem uma variedade de ativos digitais, como contas de mídia social, e-mails, fotos e documentos armazenados na nuvem, deixados por uma pessoa após sua morte”. Pereira e Costa (2019).

Para compreender o que é o património digital é preciso entender o que são os ativos digitais e a sua classificação. Segundo a compreensão De Giancarlo Barto Giotti e Anão Lúcia De Camargo (2017) bens digitais são “aqueles que não podemos ver a olho nu, que precisam ser processados com dispositivos eletrônicos, como músicas, fotos, filmes, etc”.

Além disso, Isis Pontual Gomes Laboredo explica os recursos digitais de forma técnica ao afirmar que:

Por bens digitais entendemos aqueles intangíveis que podem ser representados por instruções codificadas e organizadas virtualmente, nas quais é utilizada linguagem técnica informática, bem como onde são armazenadas digitalmente no dispositivo do utilizador ou em serviços externos, vulgarmente designados por “nuvem”. (Laboredo, 2021, p. 31).

Nesse sentido, os bens digitais “são inseridos progressivamente na Internet por um usuário, consistindo em informações pessoais que trazem determinada utilidade a esse usuário, independentemente de terem ou não conteúdo econômico” Zampier (2021, p. 94-95). Podemos, portanto, observar que os bens digitais podem ser classificados em bens digitais capazes de ter valor económico e bens digitais com valor sentimental. Ativos digitais com valor econômico podem ser explicados como:

Nomes de domínio altamente valiosos para manutenção de uma marca; contas de determinados comerciantes que usam o eBay ou mercado Livre; e-books, moedas virtuais, dados de jogos virtuais durante o horário de trabalho; músicas para download, fotos digitais, blogs e textos publicados por famosos, vídeos digitais, aplicativos, nuvens digitais, entre outros. (Silva, 2021, p.35).

Outro ativo digital passível de herança digital, uma vez que possui valoração econômica, é o Instagram, conforme sugere Gonçalves (2019, p. 6):

O Instagram, por exemplo, mais do que um aplicativo de compartilhamento de imagens, tornou-se uma plataforma para o desenvolvimento de novos modelos de negócios, quando os usuários criaram novas formas de monetizar seus perfis, principalmente com a divulgação dos chamados influenciadores digitais. O aplicativo permite que os usuários criem um perfil comercial, por meio do qual podem acessar métricas que fornecem informações sobre o perfil dos seguidores e quais postagens “têm melhor desempenho”. Já é possível observar um mercado que gira em torno da venda de contas do Instagram.

Por outro lado, bens com valor sentimental são aqueles “que constituem aquela parte do acervo com valor existencial, tanto para o proprietário como para terceiros com quem se relacionou”. (Honorato; Leal, 2020, p. 380-381). Portanto, a gestão destes dados após a morte, levanta questões legais e éticas sobre quem tem o direito de aceder, gerir ou eliminar estas informações. Embora não existam atualmente regulamentações específicas sobre o tema que protejam ou definam o patrimônio digital, ele merece proteção constitucional, independentemente de sua classificação, explicam Augusto e Oliveira:

Diante do observado, os arquivos digitais, que cada vez mais fazem parte do cotidiano das pessoas, não dependem de maior regulamentação específica para serem admitidos na legislação brasileira, uma vez que encontram refúgio como uma subespécie de bens intangíveis, e como tal devem receber a exata proteção que recebem, que pode ser objeto de negociação entre as pessoas e defesa do Estado, contra ataques internos, o que confirma a hipótese apresentada anteriormente. (Augusto; Oliveira, 2015, p.8).

Ademais, ainda em crescente popularização é a utilização de criptomoedas, diante de seu valor econômico, entre elas Bitcoins, Ethereum, considerada por muitos a moeda do futuro, onde sua descentralização gera uma série de incertezas e inseguranças jurídicas, para melhor compreensão, vejamos o conceito de criptomoedas:

Criptomoeda é o nome genérico para moedas digitais descentralizadas, criadas em uma rede blockchain a partir de sistemas avançados de criptografia que protegem as transações, suas informações e os dados de quem transaciona. 

Não entendeu nada? Sem problemas, vamos explicar ponto por ponto.

Criptomoedas são moedas digitais porque, diferentemente do real, do dólar e de outras moedas que podem ser tocadas, elas só existem na internet. Ou seja, você sabe que elas são verdadeiras, mas não consegue pegá-las com as mãos – ou guardá-las na carteira, no cofre ou embaixo do colchão.

Descentralizadas porque não existe um órgão ou governo responsável por controlar, intermediar e autorizar emissões de moedas, transferências e outras operações. Quem faz isso são os próprios usuários.

Criadas em uma rede blockchain porque é essa tecnologia que está por trás das criptomoedas. Basicamente, blockchain é um sistema que permite o envio e o recebimento de alguns tipos de informação pela internet. Ela funciona como um grande banco de dados em que pedaços de código carregam informações conectadas, como blocos que formam uma corrente – por isso o nome “corrente de blocos”.

E em sistemas de criptografia porque é essa camada de segurança, garantida pela blockchain, que possibilita a emissão e a transação de moedas virtuais de forma mais segura. É dessa tecnologia, inclusive, que vem o nome criptomoeda – moeda criptografada.

NUBANK. O que é criptomoeda? Entenda de uma vez. Disponível em https: //blog.nubank.com.br/o-que-e-criptomoeda/. Acessado em 25 de outubro 2024

Vale ressaltar que atualmente as decisões judiciais sobre a matéria utilizam os princípios gerais do direito sucessório, a analogia e a interpretação ampla para definir a resolução do caso específico relativo à herança digital. Portanto, independentemente de sua classificação, alguns autores, ao não permitirem aos herdeiros o acesso ao acervo digital deixado pelo falecido, descrevem uma violação do direito sucessório. Assim surgiram duas teorias sobre o assunto.        

De um lado, há aqueles que defendem a proteção dos direitos dos herdeiros e o acesso aos ativos digitais do falecido. Por outro lado, levantam-se preocupações sobre os desafios técnicos e éticos envolvidos, além de questões ligadas à privacidade e segurança dos dados.

Uma condição inerente do convívio em sociedade é a constante mudança, uma necessidade de evoluir. Hoje, a conectividade, o acesso ilimitado de informações, o uso de ferramentas digitais permeia todas as atividades cotidianas.

Nesse sentido, cabe ao direito regulamentar os avanços que decorrem do avanço tecnológico. A advogada Patrícia Peck (apud LIMA, 2013, p.23), preconiza:

Estamos quebrando paradigmas. (…) O arquivo original não é mais o papel, mas o dado, que deve ser guardado de modo adequado à preservação de sua autenticidade, integridade e acessibilidade, para que sirva como prova legal. Nessa nova realidade, a versão impressa é cópia, e as testemunhas são as máquinas. (…) Logo, no decorrer de nossas vidas fomos educados nos conceitos de ‘certo’ e ‘errado’, dentro dos valores sociais estabelecidos e das normas vigentes. No entanto, a tecnologia trouxe novos comportamentos e condutas que precisam de orientação e treinamento para poderem estar também alinhados com os mesmos preceitos que já aprendemos, garantindo assim a segurança jurídica das relações.

Seguindo este raciocínio é imprescindível que o direito também evolua e se adeque a nova realidade, de modo que acompanhe a população atual, garantindo a segurança jurídica nas relações, assim como na sucessão, onde o acervo digital em um futuro não muito distante será todo o patrimônio de um indivíduo.  

A lei n. 12.965/14, amplamente reconhecida como o “Marco Civil da Internet”, é uma lei que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Embora aborde questões como a neutralidade da rede, a privacidade e a responsabilidade do ISP, (provedor de serviços de internet), não abordam especificamente o património digital. Alguns artigos relevantes incluem art. 7º da referida lei:

Art. 7º O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:

I – inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

II – inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei;

III – inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial;

IV – não suspensão da conexão à internet, salvo por débito diretamente decorrente de sua utilização;

V – manutenção da qualidade contratada da conexão à internet;

VI – informações claras e completas constantes dos contratos de prestação de serviços, com detalhamento sobre o regime de proteção aos registros de conexão e aos registros de acesso a aplicações de internet, bem como sobre práticas de gerenciamento da rede que possam afetar sua qualidade;

Ademais, trata dos direitos dos internautas, como a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, em seu artigo 10º, senão vejamos:

Art. 10. A guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas.

§ 1º O provedor responsável pela guarda somente será obrigado a disponibilizar os registros mencionados no caputde forma autônoma ou associados a dados pessoais ou a outras informações que possam contribuir para a identificação do usuário ou do terminal, mediante ordem judicial, na forma do disposto na Seção IV deste Capítulo, respeitado o disposto no art. 7º.

Assim, o Marco Civil da Internet embora seja uma lei importante para a proteção de dados e a governança da Internet, não aborda diretamente a questão da herança digital. Isto realça a necessidade de legislação mais específica e abrangente para disciplinar esta questão emergente e complexa.

2. DAS JURISPRUDÊNCIAS E LEGISLAÇÃO BRASILEIRA 

No Brasil, apesar da disposição de leis em sentido amplo acerca de sucessão do patrimônio digital, ainda inexiste lei que disponha acerca da transmissão da herança de bens digital causa mortis.

A falta de legislação específica sobre herança digital tem levado os tribunais a decidirem os casos com base em princípios gerais do direito sucessório, analogia e interpretação ampla. Isso porque o juiz tem o dever de julgar e não a faculdade, mesmo que haja lacuna na lei.

Neste sentido, o artigo 140 do CPC dispõe que ” O juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico”.

Em 2022, o E. Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em decisão de improcedência, indeferiu o pedido ao acesso de informações digitais privadas do falecido, sob o entendimento de violação ao direito à intimidade. 

EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. HERANÇA DIGITAL. DESBLOQUEIO DE APARELHO PERTECENTE AO DE CUJUS. ACESSO ÀS INFORMAÇÕES PESSOAIS. DIREITO DA PERSONALIDADE. A herança defere-se como um todo unitário, o que inclui não só o patrimônio material do falecido, como também o imaterial, em que estão inseridos os bens digitais de vultosa valoração econômica, denominada herança digital. A autorização judicial para o acesso às informações privadas do usuário falecido deve ser concedida apenas nas hipóteses que houver relevância para o acesso de dados mantidos como sigilosos. Os direitos da personalidade são inerentes à pessoa humana, necessitando de proteção legal, porquanto intransmissíveis. A Constituição Federal consagrou, em seu artigo 5º, a proteção constitucional ao direito à intimidade. Recurso conhecido, mas não provido.

(TJ-MG – AI: 10000211906755001 MG, Relator: Albergaria Costa, Data de Julgamento: 27/01/2022, Câmaras Cíveis / 3ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 28/01/2022).

Dessa forma, é possível identificar que a ausência de legislação específica para tratamento da sucessão de direitos digitais é necessária, com finalidade de garantir com efetividade o direito dos herdeiros e fomentar segurança jurídica no ordenamento pátrio.

Em outro julgado, já no ano de 2024, o E. Tribunal de Justiça de Minas Gerais, sob relatoria do Desembargador Delvan Barcelos Júnior, sob o mesmo entendimento de violação ao direito de personalidade e imagem do falecido, vejamos:

EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. HERANÇA DIGITAL. BENS DIGITAIS EXISTENCIAIS. DESBLOQUEIO DE ACESSO APPLE PERTECENTE AO DE CUJUS. PEDIDO DE ACESSO ÀS INFORMAÇÕES PESSOAIS DO FALECIDO. ACERVO FOTOGRÁFICO E CORRESPONDÊNCIAS GUARDADOS EM NUVEM. INDEFERIMENTO. VIOLAÇÃO A DIREITO DA PERSONALIDADE E DA IMAGEM DO FALECIDO. PROTEÇÃO À INTIMIDADE E A VIDA PRIVADA DO DE CUJUS. AUTONOMIA EXISTENCIAL. NECESSIDADE DE GARANTIA. RECURSO NÃO PROVIDO. – A Constituição Federal consagrou, em seu artigo 5º, a proteção constitucional ao direito à intimidade (são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação) – A herança defere-se como um todo unitário, o que inclui não só o patrimônio material do falecido, como também o imaterial, em que estão inseridos os bens digitais de vultosa valoração econômica, denominada pela doutrina de “herança digital”, desde que tenham valor econômico – Os bens digitais patrimoniais poderiam ser, assim, objeto de sucessão, devendo ser arrolados no inventário, para que se opere a transmissão causa mortis, enquanto em relação aos bens digitais existenciais (fotos, arquivos, vídeos e outros guardados em nuvem com senha), não seria possível dispensar tal tratamento, por se tratarem de questões vinculadas aos direitos da personalidade, intransmissíveis e de caráter eminentemente pessoal do falecido – Eventual transmissão sucessória de acervos digitais particulares poderá acarretar violação dos direitos da personalidade, que são, via de regra, intransmissíveis e se perpetuam, mesmo após a morte do sujeito – A autorização judicial para o acesso às informações privadas do usuário falecido deve ser concedida apenas nas hipóteses em que houver relevância econômica, a justificar o acesso aos dados mantidos como sigilosos, pelo próprio interessado, através de senha ou biometria, sem qual quer menção a possibilidade de sucessão ou de compartilhamento – Os dados pessoais do de cujus são merecedores de proteção jurídica no âmbito da Internet – Se o falecido quisesse que outras pessoas tivessem acesso a seu acervo fotográfico, disponível apenas em “nuvem” digital, teria compartilhado, impresso, feito backup ou realizado o salvamento em algum lugar de livre acesso por terceiros (sem senha), repassado ou anotado a mesma em algum lugar – Deve-se considerar a vontade manifestada pelo usuário em vida a respeito do destino dos conteúdos inseridos por ele na rede, no que for compatível com o ordenamento jurídico interno e com os termos de uso dos provedores, como forma de consagração de sua autonomia existencial. Na ausência de disposição de vontade, devem ser aplicadas as previsões contidas nos termos de uso dos provedores – Recurso conhecido, mas não provido.

(TJ-MG – Agravo de Instrumento: 17438143020248130000 1.0000.24.174340-0/001, Relator: Des.(a) Delvan Barcelos Júnior, Data de Julgamento: 22/05/2024, 8ª Câmara Cível Especializada, Data de Publicação: 28/06/2024

Destarte, é possível vislumbrar que o entendimento jurisprudencial correlacionado, destaca o desprovimento de definição legislativa, e somente se tem a autorização judicial para o acesso às informações privadas do usuário falecido concedida nas hipóteses que houver relevância patrimonial para o acesso de dados mantidos como sigilosos pelo de cujus.

Seguindo o entendimento de que deve haver a relevância patrimonial e econômica, para que aja a autorização judicial para a transferência de informações privadas, recentemente o E. Tribunal de São Paulo, deferiu a transferência de dados da falecida, sob o entendimento de integrar o espólio da falecida, senão vejamos:

ALVARÁ JUDICIAL. Sentença de improcedência. Insurgência da autora. Pretensão da herdeira de acesso a arquivos digitais da filha falecida. Patrimônio digital da pessoa falecida pode integrar o espólio e, assim, ser objeto de sucessão. Enunciado 687 CJF. Memória digital de interesse afetivo da herdeira. Garantia ao direito de herança. Precedentes. Reforma da sentença para determinar a transferência à autora de acesso ao “ID Apple” da falecida, observada a necessidade de fornecimento dos dados solicitados pela ré. RECURSO PROVIDO.

(TJ-SP – Apelação Cível: 1017379-58.2022.8.26.0068 Barueri, Relator: Carlos Alberto de Salles, Data de Julgamento: 26/04/2024, 3ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 26/04/2024)

Por conseguinte, observa-se que, é uníssono o entendimento de que, havendo valor econômico, patrimonial, é possível o acesso e a transferência dos bens digitais deixados pelo falecido, mesmo diante da lacuna na lei quanto ao tema.

Todavia, é importante mencionar a perspectiva defendida por alguns doutrinadores, como Flávio Tartuce, que entende que o patrimônio digital é exclusivo de seu titular, e portanto, deve ser extinto com seu falecimento, sem que haja sucessão de seu acervo digital.

Entendo que os dados digitais que dizem respeito à privacidade e à intimidade da pessoa, que parecem ser a regra, devem desaparecer com ela. Dito de outra forma, a herança digital deve morrer com a pessoa.

Ademais, se encontra em tramitação na câmara dos deputados o Projeto de Lei n. 3050/20, propondo como mudança a alteração do art. 1.788 do Código Civil de 2022, instituindo a transmissão de todos os conteúdos de qualidade patrimonial contas ou arquivos digitais de titularidade do autor da herança.

Art. 2.º. O art. 1.788 da Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único: “Art.1.788………………………………………………………………. Parágrafo único. Serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de qualidade patrimonial contas ou arquivos digitais de titularidade do autor da herança.” (NR).

O referido Projeto de Lei se encontra aguardando o parecer do Relator na Comissão de Comunicação (CCOM), sob o regime de tramitação ordinária.

Além do referido Projeto de Lei, ainda mais recente o PL n. 2.664/2021, apensado ao PL n. 3050/20, propõe também o acréscimo do artigo 1857-A do também do Código Civil, passando a vigorar da seguinte forma:

“Art. 1857-A. Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento ou qualquer outro meio no qual fique expressa a manifestação de vontade, sobre o tratamento de dados pessoais após a sua morte.

 § 1° São nulas quaisquer cláusulas contratuais voltadas a restringir os poderes da pessoa de dispor sobre os próprios dados.

 § 2° Salvo manifestação expressa em contrário, os herdeiros têm o direito de:

 I – acessar os dados do falecido a fim de organizar e liquidar os bens da    herança, identificando informações que sejam úteis para o inventário e a partilha do patrimônio;

II –obter os dados relacionados às memórias da família, tais como fotos, vídeos e áudios;

III – eliminar, retificar ou comunicar os dados;

IV – tratar os dados na medida necessária para cumprir obrigações pendentes com terceiros bem como para exercer os direitos autorais e industriais que lhe tenham sido transmitidos;

§ 2°As disposições do presente artigo aplicam-se, no que couber, aos declarados incapazes.

Importante mencionar ainda que a justificativa que do Projeto de Lei é justamente o acompanhamento da legislação com os novos tempos, citando ainda os termos de adesão do Facebook, que permite e autoriza um membro da família do falecido a optar pela exclusão dos dados pessoais, ou a transformação do perfil existente em um perfil memorial.

Por conseguinte, é possível vislumbrar a necessidade de atualização na legislação brasileira, adaptando nosso ordenamento jurídico, principalmente o Código Civil, de modo que acompanhe a sociedade hipermoderna, sendo imprescindível normas claras e eficazes acerca do tema. 

CONCLUSÕES

Ante ao exposto, o presente trabalho trouxe à pauta a discussão acerca de necessidade de atualização na legislação brasileira, em relação à herança digitais, sendo inegável o avanço da sociedade hipermoderna.

Dessa forma, patrimônio digital é uma realidade em constante crescimento, impulsionada pelo avanço muito rápido da tecnologia, que permeia nossas vidas com uma vasta gama de bens e informações digitais. No entanto, a gestão desses bens após a morte ainda se tem a carência de regulamentação adequada, o que gera desafios significativos em relação ao acesso aos dados e ao patrimônio digital deixado pelo falecido.

A evolução digital, que transformou a realidade global ao conectar as pessoas direta ou indiretamente, tornou-se necessária a adaptação do setor jurídico ao novo universo virtual. Nesse sentido, considerando que a evolução é uma marca essencial do ser humano, é claro que o Direito, ciência concebida para instituir normas, regras e leis, muda para garantir a convivência social e a harmonia nas interações humanas, também precisa se transformar conforme o contexto histórico experimentado pela sociedade

A complexidade do legado digital reside em sua natureza multifacetada, abrangendo desde contas em redes sociais até propriedade intelectual digital e criptomoedas. Essa diversidade de ações digitais impõe desafios adicionais tanto aos legisladores quanto ao sistema jurídico, que precisam encontrar soluções, amenizando as inseguranças jurídicas quanto ao tema. 

Nesse contexto, surgem posições divergentes sobre a regulamentação da herança digital. De um lado, há aqueles que defendem a proteção dos direitos dos herdeiros e o acesso aos ativos digitais do falecido. Por outro lado, levantam-se preocupações sobre os desafios técnicos e éticos envolvidos, além de questões ligadas à privacidade e segurança dos dados.

Atualmente, há projetos de lei tramitam na Câmara dos Deputados com o objetivo de solucionar essa questão. Esses projetos propõem a inclusão de dispositivos no Código Civil para estabelecer diretrizes claras sobre como os ativos digitais devem ser tratados após a morte do proprietário, além de definir responsabilidades e procedimentos para os assuntos de serviços digitais.

Assim, foi possível constatar que o patrimônio digital é uma realidade inegável em uma sociedade cada vez mais digitalizada. A ausência de regulamentação específica pode gerar conflitos jurídicos, perdas irreparáveis ​​de dados e dificuldades para os herdeiros na administração dos ativos digitais do falecido. Por isso, é fundamental que a legislação evolua para enfrentar os desafios e oportunidades da nova era digital, garantindo a proteção dos direitos de sucessão.

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1Acadêmico do Curso de Direito da FIMCA – JARU-RO. johabeferreirapantoja@gmail.com

2Mestre em Direito e Sociologia, Bacharel em Direito e Ciências Contábeis, Bacharelando em Teologia.