ANÁLISE DA PERSONALIDADE E CONDUTA SOCIAL NA DOSIMETRIA DA PENA.

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7926844


Álvaro Amorim Dourado Lavinsky¹


RESUMO

O artigo apresenta contribuições para reflexão sobre o atual procedimento brasileiro de dosimetria da pena, consideradas, especialmente, as circunstâncias judiciais personalidade e conduta social do acusado. A partir do método lógico-dedutivo, pesquisa bibliográfica, análise de legislação, doutrina e jurisprudência, abordam-se noções introdutórias sobre a influência da personalidade e conduta social na formulação da decisão judicial. Ao final, ilustram-se exemplos de práticas utilizadas na doutrina e jurisprudência e sua possível compatibilização com os princípios e garantias fundamentais inerentes à fixação da pena e contribuição proveniente da psicologia, psicanálise e psiquiatria.

Palavras-chave: Dosimetria da pena, personalidade, conduta social, direitos e garantias fundamentais.

ABSTRACT

The article presents contributions for reflection on the current Brazilian procedure of dosimetry of the sentence, considering, especially, the judicial circumstances, personality and social conduct of the accused. Based on the logical-deductive method, bibliographical research, comparative legislation and doctrine and national jurisprudence, introductory notions about the three-phase system of penalty application and about the influence of personality and social conduct in the formulation of the judicial decision are approached. At the end, examples of practices used in comparative doctrine and national jurisprudence are illustrated, as well as their possible compatibility with the fundamental principles and guarantees inherent in the setting of the penalty

Keywords: Punishment dosimetry, personality, social conduct, fundamental rights and guarantees.

INTRODUÇÃO

O procedimento de cominação, aplicação e execução de pena é sempre imbuído de indeterminação e ineditismo, afinal não se sabe quais condutas praticadas serão efetivamente objeto da coerção estatal, qual o tipo e quantidade da pena a ser aplicada (considerados os princípios da proporcionalidade e equidade) e qual será a pena cumprida, considerando-se eventuais castigos ou benefícios aplicados na fase de execução.

O sistema penal tem como funções declaradas, prevenir o crime, punir os agentes realizadores de condutas delituosas e ressocializá-los. O direito penal se destina a proteger a vítima ao exercer a prevenção geral dos delitos, o criminoso durante o processo e o preso na fase de execução da pena, os princípios constitucionais penais e processuais estão interligados e constituem pressuposto obrigatório para o devido processo legal1.

Entretanto, não é isso que se observa na prática, há muito é reconhecido que a população carcerária é formada de maneira seletiva, preponderantemente pelos segmentos economicamente frágeis da sociedade2.

Constatada a impossibilidade de o direito penal exercer a sua função primordial de limitação do poder do Estado e dirimir os conflitos da sociedade atual3, se mostra necessária na mensuração das penas a utilização de estratégias que se adequem aos princípios constitucionais penais, à natureza específica da atividade jurisdicional, sem abdicar da aplicação de conhecimentos interdisciplinares de direito, psicologia, psicanálise e psiquiatria.

A personalidade e conduta social na dosimetria da pena.

A dosimetria da pena não se submete a critério matemático previamente determinado, tanto em razão da ausência de previsão legal (artigos 59 e 68 do Código Penal) quanto, principalmente, pelo natural grau de indeterminação do texto legal e de sua relação com a conduta criminosa e pena a ser aplicada. A respeito do tema, aponta Luigi Ferrajolli (2004; p. 372):

O segundo problema é de natureza epistemológica e refere-se à natureza das circunstâncias ou caracteres relevantes para os fins da valorização da gravidade do delito concreto e da determinação da pena adequada à mesma. Uma vez aceita conforme certas interpretações e provas a verdade jurídica e fática de uma determinada imputação, quais são os critérios pragmáticos aos quais o juiz deve-se ater na decisão sobre a qualidade (se, não obstante a reserva antes formulada, a lei prevê alternativamente vários tipos) e sobre a quantidade (se a lei estabelece um limite máximo e um mínimo, ou se, inclusive, não necessita de limite algum) da pena? No parágrafo 11 caracterizou-se o princípio de equidade como uma regra semântica que- correlativamente com o princípio de legalidade, definido como uma regra semantica que preside o enquadramento do fato permitindo sua verificação ou prova – preside a conotação do mesmo fato fazendo possível sua interpretação. Á diferença da denotação, que permite uma comprovação empírica capaz de fundar decisões sobre a verdade ou sobre a falsidade, a conotação requer, no entanto inevitavelmente, juízos de valor: enquanto baseados em referências empíricas, os juízos de “gravidade” ou de “insignificância” de um fato supõem sempre como se disse, valorações subjetivas não verificáveis nem refutáveis. É claro que os critérios de valoração que presidem a conotação e a interpretação são inumeráveis e variados.

No âmbito da doutrina penal brasileira, a personalidade é comumente entendida como indicativa do caráter, valores morais externalizados pelo indivíduo na sua atuação social e principalmente durante a prática criminosa. Nesse sentido, destaca Guilherme de Souza Nucci que devem ser analisados como fatores indicativos da personalidade do acusado (2007, p. 187-188):

a) aspectos positivos: bondade, alegria, persistência, responsabilidade nos afazeres, franqueza honestidade, coragem, calma, paciência, amabilidade, maturidade, sensibilidade, bom-humor, compreensão, simpatia; tolerância, especialmente à liberdade de ação, expressão e opinião alheias; b) aspectos negativos: agressividade, preguiça, frieza emocional, insensibilidade acentuada, emotividade desequilibrada, passionalidade exacerbada, maldade, irresponsabilidade no cumprimento das obrigações, distração, inquietude, esnobismo, ambição desenfreada, insinceridade, covardia, desonestidade, imaturidade, impaciência, individualismo exagerado, hostilidade no trato, soberba, inveja, intolerância, xenofobia, racismo, homofobia, perversidade. Naturalmente, muitos desses fatores, quando isoladamente considerados ou mesmo quando não repercutem no desrespeito ao direito de terceiros, devem ser concebidos como frutos da liberdade de ser e de se expressar do indivíduo. Porém, ao cometer um crime, especialmente se a característica negativa de sua personalidade for o móvel propulsor – como a inveja incontrolável ou o desejo de praticar maldade – deve ser levada em conta para o estabelecimento da pena. Esta no entanto, não será aumentada se não houver nexo de causalidade entre o delito e o elemento negativo da personalidade do agente. Evidentemente, não é porque alguém é egoísta ou exageradamente individualista que merecer pena exacerbada quando cometer um homicídio, v. g., por razões outras que não se ligam a tais fatores.

A partir da delimitação conceitual surge a primeira dificuldade, não se pode ignorar que qualquer definição revela os vieses cognitivos do criador do conceito, moldados pelas experiências infantis, gênero, educação e relações interpessoais. O que não impede que dois teóricos com visões opostas de humanidade possam ser igualmente científicos em sua reunião dos dados e construção de teorias sobre a personalidade.

Mas diante das inúmeras dimensões possivelmente consideradas, por exemplo, determinista ou adepta do livre-arbítrio, pessimista ou otimista, causalidade ou teologia, determinantes conscientes ou inconscientes do comportamento, influências biológicas ou sociais, singularidades ou semelhanças (Cf. FEIST, 2015), como imprimir o mínimo de previsibilidade e segurança jurídica na aplicação da pena?

Além disso, como considerar a título de personalidade, os valores morais externalizados pelo indivíduo na sua atuação social sem incorrer em bis in idem, se a conduta social para fins penais, em síntese, se refere justamente aos fatos da vida do agente no ambiente em que inserido?

Abstraindo-se a dificuldade de mensurar, sem incidir em mero subjetivismo ou preconceito, a conduta social de qualquer pessoa – circunstância que em nada contribui para a aferição objetiva da gravidade da conduta criminosa e grau de lesão ao bem jurídico tutelado – como analisar os valores morais externalizados pelo indivíduo durante a prática criminosa sem incorrer em “bisinidem”no tocante às circunstâncias judiciais “motivos” e “circunstâncias e consequências do crime”?

A conduta anterior do criminoso poderia ser objetivamente aferida pela análise dos maus antecedentes e reincidência, sendo que os motivos do crime são também agravantes e o modo de agir durante a prática criminosa e extensão do resultado danoso, não raro são agravantes ou atenuantes, causas de diminuição ou aumento, ou ainda qualificadoras ou causas de privilégio, vide, v.g.os artigos 61, inciso II, 62, 65, inciso III, 66, 121, § § 1º 2º e 157, § 2º, do Código Penal, a dispensar a utilização de termos indeterminados como “personalidade” e “conduta social” na fixação da pena base.

A indeterminação conceitual decorrente da pluralidade de significados relativos à conduta social e personalidade acarreta também adoção de conceituação excessivamente genérica, moralista e contraditória na jurisprudência.

Segundo o Relatório de Dosimetria da Pena produzido pelo Conselho Nacional de Justiça, pode-se destacar da sistematização de precedentes jurisprudenciais sobre conduta social e personalidade:

I- não se admite valoração a título de conduta social: dos antecedentes criminais (Tema 1077 do STJ); alusão genérica a envolvimento com tráfico de drogas; cargo ocupado pelo réu (valorado nos termos do 327, §2º, do CP) II – admite- se: análise do comportamento familiar; o temor da comunidade; ingestão excessiva álcool ou outras drogas e comportamento violento no âmbito familiar; comportamento inadequado na vizinhança; fraude processual.

No tocante à personalidade: I- não se admite valoração: de atos infracionais, dos antecedentes (Tema 1077 do STJ); alusão genérica de personalidade voltada ao crime sem indicar particularidades do caso concreto; menção a fato posterior ao apurado nos autos; mentira por parte do acusado; II– admitem valoração: atos infracionais, liderança criminosa; comportamento violento no âmbito familiar; abuso de bebidas alcoólicas e comportamento agressivo; omissão da genitora em crimes sexuais cometidos contra os filhos; planejamento da ação criminosa; distúrbio anti-social; a frieza e a menor sensibilidade ético-moral ao comentar os homicídios praticados.” 4

O problema acerca da existência de personalidade ou conduta social esperadas ou ideais a serem valoradas durante a fixação da pena pode obter solução completamente diversa se questionarmos: ideais para quem? O crime é essencial ao Estado e até mesmo, em diversos aspectos, fomentado pelo poder estatal, de modo que é imprescindível uma postura crítica acerca dos ilegalismos estatais, que integram um sistema simultaneamente punitivo, político e econômico. Nesse sentido, Michel Foucault inAlternativas à Prisão(2022; p.50) destaca:

É preciso dizer ao poder: parem com suas conversinhas sobre a lei, parem com seus supostos esforços para fazer respeitar a lei, mas nos falem sobre o que vocês fazem com os ilegalismos? O verdadeiro problema é: quais são as diferenças que vocês, as pessoas no poder, estabelecem entre os ilegalismos? Como tratam os seus e como tratam os dos outros? Para que servem os diferentes ilegalismos que vocês administram? Que lucros tiram destes e daqueles? São essas questões, questões sobre a economia geral dos ilegalismos, que devem ser feitas ao poder, mas como, é claro, não devemos esperar que ele responda, são essas questões que devemos tentar analisar. E todo questionamento da lei penal, todo questionamento da penalidade que não levar em conta esse gigantesco contexto econômico-político que é o funcionamento dos ilegalismos em uma sociedade, será necessariamente uma maneira abstrata de questionar.

Por óbvio, a prátiva criminosa não se limita a um grupo econômico, étnico, racial ou qualquer outro critério específico. A teoria da anomia encara o delito como fenômeno normal, até esperado, que pode inclusive contribuir para o avanço social, “as condutas desviantes permitem à sociedade definir com mais precisão sua ordem moral (a chamada ciência coletiva) e, de outra parte, fortalecê-la, por meio do aprendizado em da violação da lei. Esta reação revigora a solidariedade social e confirma os valores éticos tão necessários a um bom convívio social.” 5.

Algumas condutas criminosas decorrem do livre-arbítrio do criminoso, não se podendo entender que o agente atue em razão de necessidades financeiras ou que ele padeça de algum distúrbio psicológico incapacitante, veja-se, por exemplo, que os crimes de colarinho branco são cometidos por sujeitos inteligentes, de alto poder aquisitivo e que gozam de alto prestígio no meio social em que inseridos. Conforme bem apontado por Loic Waquant (2007, p. 17):

para a classe superior e a sociedade em seu conjunto, o ativismo incessante e sem freios da instituição penal cumpre a missão simbólica de reafirmar a autoridade do Estado e a vontade reencontrada das elites políticas de enfatizar e impor a fronteira sagrada entre os cidadãos de bem e as categorias desviantes, os pobres “merecedores” e os “não merecedores”, aqueles que merecem ser salvos e “inseridos” (mediante uma mistura de sanções e incentivos) no circuito do trabalho assalariado instável e aqueles que, doravante, devem ser postos no índex e banidos, de forma duradoura.”

Também não se ignora que alguns crimes podem ser cometidos em decorrência de uma patologia, como na hipótese de crimes praticados por inimputáveis. Nesses casos, de que maneira se pode analisar a personalidade de alguém sem considerar uma conduta exteriorizada e, sobretudo, como valorar negativamente a personalidade sem incorrer em indevido direito penal do autor? Afinal, se o indivíduo é inimputável, evidentemente, não conseguiria se portar de forma a evitar o comportamento criminoso realizado.

E mais, se o crime é entendido pelo legislador como resultado de conduta e/ou personalidade anormais, sob a perspectiva da psicanálise o distúrbio (fato criminoso) é consequência de pulsões inconscientes ou produto de anterior experiência traumática, que demandam uma necessidade de autopunição, e está fadado a ser repetido indefinidamente enquanto não significado pelo paciente através da terapia6.

Finalmente, alguns crimes podem ser produto do meio social em que inserido o agente, Sebastian Scheerer (2021, p.28) descreve como

os ambientes de subcultura se desenvolvem por meio do contato frequente entre pessoas que seguem os mesmos interesses, necessidades e preferências. Eles são o mundo da vida que proporciona a sustentação social da sua própria visão de mundo e sua forma de viver. Frequentemente estão ancorados localmente e geralmente são bem perceptíveis: zona do meretrício, prostituição de rua, ambiente de drogas, esquinas, determinados bares que funcionam como ponto de encontro de ladrões e receptadores, clubes industriais etc. Mas, podem perfeitamente também ser geograficamente fluidos e pontualmente dispersos, especialmente sob a pressão da ilegalidade, sem perder sua conexidade: prostituição de apartamento, jogos de azar, agiotagem, redes de pedofilia, grupos terroristas, grupos de traficantes de armas etc.

Note-se ainda que a personalidade e conduta social constituem também fatores a serem observados na substituição das penas (art. 44, III do CP), nas hipóteses de crime continuado e suspensão condicional (artigos 71, parágrafo único e 77, II, do CP). Além disso, a personalidade é considerada predominante no concurso entre agravantes e atenuantes (art. 67 do CP) conferindo o legislador especial importância a uma circunstância subjetiva que sequer é atenuante ou agravante, sendo o critério personalidade entendido pela jurisprudência como critério de idade (menoridade ou acusado septuagenário), enquanto seria simples excluir a personalidade e considerar apenas critérios objetivos (confissão e idade).

Conforme a Lei de Execução Penal, os indivíduos devem ser “classificados” segundo antecedentes e personalidade, para fins de individualização da pena (art. 5º). A Lei de Drogas também considera a personalidade circunstância preponderante na aplicação da pena (art. 42), ao passo que a Lei de Organizações Criminosas prevê que a personalidade deve ser considerada para concessão de acordo de colaboração (artigo 4º, §1º).

Fixadas tais premissas, pertinente investigar a razão de tamanha insistência do legislador brasileiro em considerar a conduta social e personalidade como determinantes do crime, a constituir verdadeiro fetiche7, em evidente recalque dos reais motivos que justificaram e justificam a permanência de tais conceitos no ordenamento penal brasileiro.

As penas são produto de um processo histórico8 concernente à evolução dos institutos punitivos, trazendo como características essenciais a distribuição dos indivíduos em espaços individualizados, classificatórios, combinatórios, isolados, hierarquizados, capazes de desempenhar funções diferentes segundo o objetivo específico que deles exige. Estabelecem uma sujeição do indivíduo ao tempo, com o intuito de ampliar a produção com o máximo de rapidez e eficácia.

A apreciação de aspectos subjetivos, isto é, relativos ao agente criminoso, (motivação, personalidade, conduta social) na dosimetria da pena e espalhados pelo ordenamento penal brasileiro são herança dos movimentos Positivista Criminológico e de Defesa Social que partindo de premissas deterministas, inicialmente biológica e posteriormente psicológica e social, rejeitaram o livre-arbítrio e priorizaram o estudo do delinquente em detrimento do sistema legal. Gabriel Initua ( 2019. p. 279-280) descreve como o racismo científico foi essencial na construção das categorias de delinquência e periculosidade:

Gobineau, Vacher de Lapouge e Chamberlain afirmavam também que qualquer tipo de mestiçagem aumentava a degeneração. Por esse motivo, dizia Gobineau, que os valores, por exemplo, da Grécia clássica, não poderiam surgir hoje, por culpa da mestiçagem continuada. Esta teoria da “degeneração” alcançaria grande aceitação entre os racistas, entre os quais se tem de incluir os autores da primeira psiquiatria francesa, surgida especificamente da observação e medição das pessoas encarceradas em manicômios e presídios. Essas pessoas observadas seriam, daí em diante, a personificação das distintas “degenerações” dos seres humanos. Essas colocações permitiam, por um lado, converter o “bom selvagem” das terras que estavam sendo conquistadas na fase imperialista do capitalismo em “bárbaro”, “degenerado”, “corrupto”, “atávico”. O mesmo devia ser aplicado, por outro lado, a quem era considerado delinquente nas próprias sociedades capitalistas europeias e, de forma generalizada, a suas classes marginais, obrigadas, por sua vez, a emigrar também para aquelas terras “novas” – desde 1850, cerca de 60 milhões de europeus emigram, sobretudo para os Estados Unidos, Canadá, Argentina e Brasil.

Na acepção do legislador nacional, o criminoso é considerado anormal, doente. O crime é o sintoma que denota a personalidade e conduta perigosas de determinados indivíduos, que devem ser classificados e submetidos a vigilância constante, sendo a pena a resposta necessária para defesa do Estado e tratamento curativo do infrator. E Cristina Rauter (2021, p. 37) pressiona o dedo na ferida, ressaltando que no Brasil a ideia de crime sempre esteve atrelada à miscigenação, que implicaria em degeneração moral e atraso, confira-se:

o olhar dos criminólogos se volta para os costumes brasileiros: o carnaval, os sambas, os cangaceiros nordestinos, a miscigenação. Todos estes são indícios de uma incapacidade para o controle moral, que explica também a indolência para o trabalho, a tendência para o desrespeito à autoridade e finalmente para o crime.

Não obstante, as circunstâncias subjetivas não devem ser rejeitadas de modo absoluto, sendo relevantes ao menos para fins de prevenção especial positiva (evitar a dessocialização do agente) sendo mais recomendável que se separe definitivamente a lesão ao bem jurídico das consequências pessoais ou sociais do crime.9

Na fase de execução penal, o estudo da conduta social e personalidade do encarcerado é também imprescindível, conforme exemplarmente definido por Alvino Augusto de Sá ( 2015, p. 358):

a criminologia clínica é uma atividade complexa de conhecimentos interdisciplinares predominantemente científicos, que se alimenta a partir de teóricos do serviço social, da psicologia, psiquiatria, medicina, criminologia geral e sociologia, e também se vale das contribuições da ciência jurídica. Tem como objeto de estudo o paradigma das inter- relações sociais. Como um de seus objetivos, procura analisar o complexo contexto em que ocorreu o comportamento problemático do encarcerado, o chamado cenário do crime, a malha paradigmática das inter-relações sociais, e assim melhor compreender o comportamento problemático, não como crime, não como conduta negativa, propriamente, mas como uma resposta que o condenado deu a uma situação problemática que enfrentou na vida.

Deve ser levado em consideração que nem todos os que cometem crimes são processados e nem todos os que são atingidos pelo sistema penal assumem subjetivamente o estereotipo e se comportam de acordo com as demandas do papel correspondente, ressalvando Zaffaroni (2012, p. 275):

Na prática, verifica-se que o labeling não opera mecanicamente, uma vez que o poder punitivo lança a sua rede sobre um cardume de estereotipados, causadores ou não de dano social, pescando sujeitos com personalidades, vivências, traumas e graus de saúde mental muito diferentes. Entre eles, alguns são candidatos ideais para assumir o label e alterar toda a sua auto-percepção e projeto de existência, mas outros não são tão ideais assim, ou não são nada ideais, e, nesses casos, o labeling fracassa porque a pessoa não o assume nem o introjeta. Nem todos assumem a etiqueta. Embora seja inegável que o etiquetamento tende a provocar uma mudança no rotulado, como demonstram as cerimônias de degradação que Garfinkel assinalou e as invasões de Goffman, a verdade é que nem todas as pessoas atendem da mesma maneira, nem com a mesma intensidade a esse condicionamento negativo. É óbvio que apenas pouquíssimas pessoas dos extratos sociais que fornecem criminalizados o são efetivamente (exceto, talvez, a atual criminalização racista estadunidense), da mesma forma que tampouco todos os presos se deterioram, ficam deprimidos e cometem suicídio, tornam-se psicóticos ou empreendem carreiras criminosas. Em síntese, a experiência ensina que nem todos os estereotipados são criminalizados e nem todos os criminalizados assumem subjetivamente o estereotipo e se comportam de acordo com as demandas do papel correspondente.

Portanto, os avanços dos estudos relativos à psiquiatria, psicanálise e psicologia não devem ser simplesmente descartados, possuindo utilização válida tanto em relação aos criminalizados quanto no tocante aos agentes que exercem o poder punitivo:

O espaço psi na criminologia da reação social dilata-se em diversos sentidos e o efeito da própria criminalização não poderá ser ignorado pela clínica futura. O que significa pro sujeito concreto saber de antemão que sua conduta estava criminalizada? Que efeito a criminalização secundária provocou em sua autopercepção? Como os rituais de degradação afetaram sua autoestima? Como reage à estigmatização social e à proibição de coalizão? (A clínica se ocupará também das condutas dos que exercem o poder) Por outro lado, não se pode ignorar que já não se trata apenas de atentar para as condutas dos criminalizados, mas também para as de todos que interagem na questão criminal. A reação social revela a interação entre as condutas de criminalizados, vitimizados, aprisionados, vigiados e dos que exercem o poder punitivo. Desse modo, o universo de condutas em uma criminologia da reação social aumenta enormemente e, sem a ajuda da psicologia, não podemos nos aproximar de todas elas quando abordamos os sujeitos concretos para resolver ou prevenir conflitos. Todas essas condutas têm condicionamentos sociais, mas nem todas as pessoas respondem da mesma maneira a eles. Os operadores do poder punitivo, assim como os criminalizados, também não atuam do mesmo modo frente aos condicionamentos institucionais. (ZAFFARONI, 2012, p. 282).

CONCLUSÃO

O descompasso entre teoria e prática do discurso penal está longe de ser acidental. Embora a aplicação da personalidade e conduta social não venha cumprindo as suas funções declaradas de necessidade e suficiência para reprovação do crime (artigo 59 do Código Penal), cumprem com maestria as suas funções implícitas ou simbólicas.10

A aceitação do arbítrio judicial decorrente da utilização de termos excessivamente abertos pode impedir o acompanhamento do processo mental decisório do julgador, flexibilizando garantias historicamente conquistadas, como princípio da legalidade, motivação, humanidade das penas, proporcionalidade das penas etc.

Entretanto, a realidade social somente pode ser modificada através da ação, “não somosaquilo que fizeram de nós, mas o que fazemos com o que fizeram de nós” (Jean Paul Sartre). De nada adianta a crítica que apenas aponta os já conhecidos problemas do sistema punitivo sem apontar possíveis soluções.

Existe sempre um espaço de possibilidades para o juiz determinar a entidade da culpabilidade que se adequa ao crime em particular. Dentro do “espaço de jogo” o juiz deve fixar a quantidade de pena específica considerando a culpabilidade pelo fato dentro dos limites legais. Na margem fornecida pela culpabilidade, incidem elementos relacionados à prevenção.

As premissas de ordem econômica, psicológica, social, que efetivamente motivam a decisão judicial devem ser justificadas, constituindo alternativa para investigar o modo que se chegou à conclusão. Em suma, não se pretende delimitar como o juiz deve decidir, mas como, de fato, ele decide11.

Sem perder de vista que as normas criminais, considerada a sua dimensão ética e valorativa, devem representar fator potencializador dos direitos e garantias fundamentais, atuando como limite ao poder de punir estatal12.

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¹ “Quanto ao prisma processual, cria-se um espectro de garantias fundamentais para que o Estado apure e constate a culpa de alguém, em relação à prática de crime passível de aplicação de sanção. Eis por que o devido processo legal coroa os princípios processuais, chamando a si todos os elementos do processo penal democrático, valendo dizer, a ampla defesa, o contraditório, o juiz natural e imparcial, a publicidade, dentre outros, como forma de assegurar a justa aplicação da força estatal na repressão dos delitos existentes […] A comunhão entre os princípios penais (legalidade, anterioridade, retroatividade benéfica, proporcionalidade etc.) e os processuais penais (contraditório, ampla defesa, juiz natural e imparcial, publicidade, etc.) torna efetivo e concreto o devido processo legal.” (NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios constitucionais penais e processuais penais 4. ed, São Paulo: RT, 2015, p. 69.)
² Alessandro Baratta afirma: “a teoria das carreiras desviantes e do recrutamento dos ‘criminosos’ nas zonas sociais mais débeis encontra uma confirmação inequívoca na análise da população carcerária, que demonstra a extração social da maioria dos detidos dos estratos sociais inferiores e o elevadíssimo percentual que, na população carcerária, é representada pelos reincidentes.” (BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica ao Direito Penal. Ed. Freitas Bastos, 2002, p. 179-180).
³ “O direito penal – ou seja, a programação doutrinária da jurisprudência e o treinamento dos juristas para esta tarefa de contenção e redução do poder punitivo – não pode pretender que o poder jurídico impeça a passagem deste, em sua totalidade (ou em sua maior parte), porque o poder jurídico é sempre limitado e, por conseguinte, carece em absoluto de qualquer possibilidade de produzir uma mudança total da sociedade e da cultura nas dimensões e na profundidade que isso implicaria. Uma mudança ou redução radical do poder punitivo é extremamente problemática e de modo algum deve ser tarefa do direito penal, dada a limitação do poder jurídico de contenção que este planeja e, portanto, não pode fazer nada além de propor a administração otimizada do poder de contenção reduzido, de forma que permita apenas a passagem do poder punitivo menos irracional, erigindo-se em barreira para o de maior irracionalidade” ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2019, p. 170-171. (Coleção Pensamento Criminológico).
⁴ BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. RelatóriodeDosimetriadaPena2022.Dados acessíveis em: [https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/09/relatorio-gt-dosimetria-da-pena-v5.pdf]
⁵ SHECAIRA, Sergio Salomão. Criminologia,p. 203.
⁶ “Nesse sentido, lembremos um dos princípios mais importantes da psicanálise: o distúrbio que não tem significação na cabeça do paciente sempre retorna em seus atos; e, inversamente, o distúrbio que encontrou sua significação para de retornar. Mas o que significa para o terapeuta dar um significado ao distúrbio? A significação de um distúrbio não passa da resposta à pergunta: por que esse distúrbio é necessário? Qual foi o encadeamento dos eventos psíquicos que o tornou necessário? De que problema ele é a solução? Eu deveria acrescentar, a solução errada. Se o psicanalista consegue responder a tais questões, já terá dado um passo importante em sua procura da causa da doença e, mais que isso, um passo na direção da cura do paciente.” ( NASIO, Juan-David. Por que repetimos os mesmos erros; tradução André Telles.-2.ed rev- Rio de Janeiro: Zahar, 2014. p. 14)
⁷ “A idéia de fetiche é comum a todos os campos do saber. Nessa condição, tornou-se móbil e objeto de múltiplas controvérsias para a antropologia, a filosofia, a economia política, a sociologia, a religião, a psiquiatria, a literatura e a psicanálise.” (Roudinesco, Elisabeth. Dicionáriode psicanálise/; tradução Vera Ribeiro, Lucy Magalhães; supervisão da edição brasileira Marco Antonio Coutinho Jorge.-Rio de Janeiro: Zahar, 1998; p. 235)
⁸ Ao estudar o nascimento da prisão, Foucault observa que “a forma-prisão preexiste à sua utilização sistemática nas leis penais, ela se constitui fora do aparelho judiciário, quando se elaboraram, por todo o corpo social, os processos para repartir os indivíduos, fixá-los e distribuí-los espacialmente, classificá-los , tirar deles o máximo de tempo, e o máximo de forças, treinar seus corpos, codificar seu comportamento contínuo, mantê-los numa visibilidade sem lacuna, formar em torno deles um aparelho completo de observação, registros e anotações, constituir sobre eles um saber que se acumula e se centraliza. A forma geral de uma aparelhagem para tornar os indivíduos dóceis e úteis, através de um trabalho preciso sobre o seu corpo, criou a instituição prisão, antes que a lei a definisse como pena por excelência. (FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 26. ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 195.)
⁹ Stoco, Tatiana de Oliveira. Personalidadedo agentenafixaçãoda pena.p.135.
¹⁰ Cirino dos Santos apud Vera Regina Pereira de Andrade afirma que “se as funções declaradas da pena se resumem numa dupla meta, a repressão da criminalidade e o controle (e redução do crime); as funções reais da prisão aparecem em uma dupla reprodução: reprodução da criminalidade (recortando as formas de criminalidade das classes dominadas e excluindo a criminalidade das classes dominantes) e reprodução das relações sociais.”. (ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Ilusão de Segurança Jurídica. Editora Livraria do Advogado, 2003, p. 291.)
¹¹ A respeito da análise interdisciplinar: “quer se goste ou não, ponderações sobre as prováveis consequências fáticas de determinadas normas jurídicas antes consideradas dados extrajurídicos que interessariam somente a áreas correlatas (sociologia, economia, psicologia etc)-hoje se fazem cada vez mais presentes na interpretação do direito no Brasil. Isso principalmente porque o caráter teleológico dos princípios jurídicos exige, para a sua melhor aplicação, juízos sobre a adequação entre meios e fins – juízos estes que necessariamente dependem de ilações sobre os efeitos concretos de um ou outro regime jurídico.”. (PARGENDLER, Mariana; SALAMA, Bruno. Direito e consequência no Brasil: em busca de um discurso sobre o método. In Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, v. 262. p. 99-100, jan./abr. 2013).
¹² No modelo garantista de Luigi Ferrajoli as garantias penais e processuais penais atuam dialeticamente: “Graças a esse dúplice nexo, cada modelo de legitimação interna dos pressupostos da pena remete ao modelo de legitimação de seus meios de investigação no processo penal. E, inversamente, cada modelo de processo penal, seja considerado sob o ponto de vista normativo, seja sob o da efetividade, assinala sempre, por sua vez, um correlativo sistema normativo ou efetivo de direito substancial. Esquemas e culturas penais e processuais penais, como tenho dito muitas vezes, são sempre conexos entre si. E a conexão é histórica muito mais do que teórica, dado que os acontecimentos do direito penal substancial e da doutrina do delito sempre tiveram por modelo as experiencias das instituições judiciárias”.


¹Aluno do programa de Pós-graduação stricto sensu – mestrado em Direito – na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Brasil), e juiz vinculado ao Tribunal de Justiça de São Paulo (São Paulo, Brasil) – E-mail:aamoriml@tjsp.jus.br.