ANÁLISE DA EQUIDADE ENQUANTO JUSTIÇA NA VISÃO DE ARISTÓTELES E SEUS IMPACTOS NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ma10202407300918


Paulo Ubiratan Morais Aguiar


RESUMO: O presente trabalho trata-se do estudo analítico da equidade enquanto justiça na visão de Aristóteles e seus impactos na legislação brasileira. Sua análise expõe a dinamicidade do tema no ordenamento jurídico. Ocorre que na busca por uma justiça justa, em muitos casos haverá a colisão entre princípios ou mesmo leis, porque derivará estas possíveis colisões dos casos concretos que nunca poderão ser exauridos pela capacidade preditiva das legislações ou códigos. Desta feita, o princípio da equidade surge como elemento pendular para decisões em casos concretos. Em outras palavras, mesmo o princípio da equidade não sendo fonte do Direito, acaba se tornando fonte para a fonte do Direito na medida em que possibilita a criação de julgados que podem ou não ter repercussão geral

Palavras-chave: Equidade. Aristóteles. Integração. Lacunas.

ABSTRACT: This paper deals with the analytical study of equity as justice in Aristotle’s view and its impacts on Brazilian legislation. This analysis shows great relevance to the academic environment, providing a better understanding of its application in the national territory. His analysis exposes the dynamics of the theme in the legal system. Thus, there are occasions when there is the incidence of standards that enable the application. Thus, in a legalistic aspect will be shown the legal foundations that justify its application in the resolution of a dispute. Finally, we intend to analyze the theme about the historical, legal and social aspect, commenting on its social impact.

Keywords: Equity. Aristóteles. Integration. Gaps.

INTRODUÇÃO

Para análise da equidade enquanto justiça, faz-se necessário expor alguns aspectos introdutórios, como sua origem e termos correlatos ao tema objeto de estudo.

A palavra equidade tem origem no latim aequitas, que possui o significado de igualdade, simetria, retidão, imparcialidade, conformidade. Tendo sua origem no pensamento de Aristóteles, sendo conhecido como fonte de direito e como instrumento de integração no ordenamento jurídico nacional.

Conceitualmente, o jurista De Plácido e Silva (2008), ao analisar o significado de equidade infere que a mesma se estrutura na situação especial do caso concreto, concernente ao que se considera justo e razoável. Nesse caso, quando a lei se expressa injusta, o que se poderá admitir, é que a equidade corrija seu rigor, usando o princípio em que surge do Direito Natural, em face da verdade sabida ou da razão absoluta.

Conforme exposto com a equidade pretende-se moderar ou modificar a aplicação da lei, quando se transparece de excessivo rigor de sua aplicação. Dessa forma, busca-se evitar o que seria injusto. Dessa forma, compreende-se que a equidade acompanha a lei, ou seja, aequitas sequitur legem, nunca podendo se opor a norma legalmente instituída.

Seguindo este entendimento, o Código de Processo Civil Brasileiro (Brasil, 2015), em seu artigo 140, parágrafo único, institui o princípio de que o magistrado, quando aplicar a equidade, deverá respeitar os limites legais, ou seja, só o fará nos casos previstos em lei. Dessa forma, transparece que a legislação pátria não faz menção genérica ao uso da equidade, seja como fonte de direito, seja como instrumento integrador.

Ainda, percebemos a situação de limitação da aplicação da equidade no artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Brasil, 1942), haja vista que não prevê a possibilidade do uso da equidade em casos de omissões legislativas, restringindo-se ao uso da analogia, costumes e princípios gerais de direito. Já o artigo 5º da referida lei diz que, “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Isto posto, o legislador, de maneira tácita, ao criar norma, conduz o magistrado a proferir de decisões equitativas.

Dessa forma, busca-se o bem comum e atender fins sociais pretendidos na criação da norma, viabilizando o uso da equidade como parâmetro válido para uma decisão razoável.

Após exposto a análise conceitual e demonstrado a aplicação da equidade no Brasil faz-se necessário entender a equidade para o Filósofo Aristóteles. Assim sendo, introdutoriamente pode-se expor que a equidade está concernente à justiça, sendo esta última considerada pelo filósofo como a principal das virtudes. Dessa forma, vindo a se manifestar na relação com o próximo, por meio de práticas reiteradas de ações consideradas justas.

Para uma melhor análise do tema, será necessário abordar a teoria aristotélica da ética, bem como a teoria das virtudes e da justiça. Assim sendo, iniciaremos pelo estudo da virtude, que é o ponto chave de toda a teoria da ética em Aristóteles (1991), partindo do conceito de teleologia, no sentido de que todas as formas existentes tendem a uma finalidade (thélos). Nesse sentido, toda ação e todo propósito tem como objetivo um bem.

Desta feita, infere-se que as ações humanas são voltadas, por meio da razão, visando atingir um fim, que é a busca pelo bem supremo (summum bonum).

A referida busca trata-se de um bem que deve ser considerado em si mesmo. Dessa forma, fica evidente que a finalidade deve ser conseguir chegar ao bem e ao melhor dos bens. Portanto, constitui a vida humana na busca de uma situação possível, o que Aristóteles acredita ser a felicidade (eudaimonia) pois, conforme Bittar (2015), a noção de felicidade é criação humana, sendo plenamente alcançável e obtida pela razão teleológica.

A felicidade é a atividade conforme a excelência, e é esta que torna o homem capaz de praticar ações nobilitantes. Já a excelência se liga em excelência intelectual e moral. Em seus próprios dizeres: certas formas de excelência são intelectuais e outras são morais. A sabedoria, a inteligência e o discernimento são intelectuais, e a liberalidade e a moderação, são exemplos de formas de excelência moral.

A excelência intelectual advém tanto do nascimento quanto do crescimento à instrução (experiência e tempo), enquanto a moral é produto do hábito (ethos). Dessa forma, entende-se que ninguém é virtuoso por natureza, haja vista que é resultado de práticas reiteradas de ações consideradas moralmente boas e do consequente desenvolvimento de uma disposição da alma para se agir de forma excelente, e não do aprimoramento das habilidades naturais.

Para que o homem se guie pelos caminhos do meio, o mesmo usa a razão teleológica, que se encontra entre dois extremos, o do excesso e o da falta, considerados pelo Filósofo como deficiências morais. De maneira equidistante entre os extremos se encontram as virtudes (areté). Cabe à razão discernir e optar pelo meio-termo de forma habitual, que cuja prática contínua e reiterada das virtudes leva à excelência moral, e por conseguinte, se atinge a felicidade.

A justiça, no pensamento aristotélico, é compreendida como uma virtude, e como tal, localiza-se no meio-termo (mesotés). Ela se difere das demais virtudes e se coloca em posição superior por ser uma virtude que manifesta na aplicação da excelência moral em relação às outras pessoas, não em relação a si mesmo.

Aristóteles (1991), na obra Ética a Nicômaco, faz referência a dikayosyne (justiça) e da aidikía (injustiça). Estabelece que a alma tem relação com o que é justo, nos fazendo a agir justamente e a desejar o que é justo; de maneira idêntica, diz que a injustiça é a disposição da alma de graças à qual elas agem injustamente e desejam o que é injusto.

A EQUIDADE ENQUANTO JUSTIÇA PARA ARISTÓTELES

Conforme anteriormente descrito, a justiça é tida como a maior das virtudes, estando ligada ao “bem do outro”, neste diapasão relacionando-se com o próximo. Aristóteles (1991, p. 195), argumentando sobre as Elegias de Têognis, diz que “nem a estrela vespertina nem a matutina é tão maravilhosa (…); na justiça se resume toda excelência”, demonstrando assim a grande valoração que o filósofo atribui.

Nas palavras de Aristóteles (1991), a justiça seria uma perfeita excelência moral pois nela se idealiza a excelência da moral perfeita. Ela é perfeita, e nesta senda quem a pratica possui o sentimento de justiça, atingindo não só a si, mas também o próximo.

Ao contraponto da ação justa, correlaciona-se a reconhecida ação injusta, pois, “muitas das vezes se reconhece uma disposição da alma graças a outra contrária, e muitas vezes as disposições são idênticas por via das pessoas nas quais elas se manifestam” (Aristóteles, 1991, p. 193).

Assim, Aristóteles faz uma divisão da justiça, sendo essa de forma alargada, podendo ser contabilizada em duas classes: a justiça universal e a justiça particular.

Pelo comparativo dos contrários, Aristóteles conclui que o termo injusto se aplica tanto às pessoas que infringem a lei quanto às pessoas ambiciosas (no sentido de quererem mais do que aquilo a que têm direito) e iníquas, de tal forma que as cumpridoras da lei e as pessoas corretas serão justas. O justo, então, é aquilo conforme à lei e correto, e o injusto é o ilegal e iníquo.

Aristóteles conceitua o justo universal, nele há a compreensão que o cidadão cumpridor da lei. Trata-se de uma correspondência dos costumes preponderantes de uma determinada comunidade, nesta seara há a observância ao nomos, ou seja, ao ordenamento jurídico expresso pelas normas, englobando também os costumes e princípios preponderantes em uma determinada comunidade.

Como elucidado por Bittar (2015), a lei é uma disposição de caráter genérico e que vincula a todos, estando encerrada na realização do Bem da comunidade, e assim do Bem Comum. A obediência da norma dirigida a todos, está vinculada a uma ação, como tal, corresponde a ideia de justo legal e a forma de justiça, sendo denominada justiça legal.

Bittar (2015) argumenta ainda que esse é o conceito de justiça em sentido amplo, o qual, de todos os sentidos é o mais genérico, daí ser também denominado de justiça total ou integral, haja vista que tem aplicação mais abrangente e extensa, pois as leis valem para o bem de todos, para um bem comum.

A justiça particular é uma espécie de justiça que, ao contrário do que ocorre com a justiça universal (díkaion nominon), se corresponde a apenas uma parte da virtude e não à virtude total. É preciso portanto entender que existe o justo particular sendo este então uma espécie do gênero justo total (Bittar, 2015). Essa classificação pode ser dividida em duas categorias, a saber: justiça distributiva e justiça corretiva.

O Estado, neste sentido, tem o dever de distribuir bens, honrarias, cargos, bem como responsabilidades, assim denominamos tal ato como “justiça distributiva”, conforme dito pelo próprio Filósofo, na Ética (Aristóteles, 1991).

Sob esse olhar, seria injusto e desigual quando há o recebimento de benefícios e encargos em quantia menor ou maior ao que lhe é devido (Bittar, 2015).

Nesta concepção, justo é, portanto, o simétrico, e o injusto é o que viola a proporcionalidade. Neste último caso, uma cota se torna muito grande e em contrapartida a outra muito pequena, observa-se, o que na prática de fato acontece, pois a pessoa que age injustamente fica com a maior parte e a pessoa que é injustiçada fica com a parte menor. O inverso acontece no caso do mal, pois o mal maior, já que o mal menor deve ser escolhido em preferência ao maior, e o que é digno de escolha é um bem, e o que é mais digno de escolha é um bem ainda maior.

Em suma, a justiça distributiva é um meio acessório com quatro termos na relação: dois sujeitos comparados entre si e dois objetos. Será justo, portanto, se atingir a finalidade de dar a cada um aquilo que lhe é devido, na medida de seus méritos.

A justiça corretiva se difere da distributiva no sentido de que esta utiliza como critério de justa repartição aos indivíduos os méritos de cada um, enquanto aquela visa o restabelecimento do equilíbrio rompido entre os particulares: a igualdade aritmética.

Aristóteles (1991) acrescenta que a justiça corretiva é a que exerce mister corretiva nas relações entre as pessoas. Esta última se fraciona em duas: algumas relações são voluntárias e outras são involuntárias; são voluntárias a venda, a compra, o empréstimo a juros, o penhor, o empréstimo sem juros, o depósito e a locação (estas relações são chamadas voluntárias porque sua origem é voluntária); das involuntárias, algumas são sub-reptícias (como o furto, o adultério, o envenenamento, o lenocínio, o desvio de escravos, o assassino traiçoeiro, o falso testemunho), e outras são violentas, como o assalto, à prisão, o homicídio, o roubo, a mutilação, a injúria e o ultraje.

A aplicabilidade da justiça corretiva fica a obrigação do juiz (dikastés), que é o moderador de todo o processo. O juiz é tido, para Aristóteles, como a expressão da justiça.

A justiça política acontece na esfera das relações dos indivíduos na polis, pertinente ao status civitatis do cidadão ante seus iguais. Bittar (2010, p. 140) explica que “existente no meio social, é a justiça que organiza um modo de vida que tende à autossuficiência da vida comunitária (autárkeian), vigente entre homens que partilham de um espaço comum”.

Conforme se extrai dos escritos de Aristóteles (1991), o justo político se mostra entre as pessoas que vivem juntas com o objetivo de assegurar a autossuficiência do grupo, pessoas livres e iguais. Por cúmulo, entre pessoas que não se enquadram nesta condição não há justiça política, e sim a justiça em um sentido especial e por analogia.

Os cidadãos na polis formavam uma agregação restrita, estando excluídos os estrangeiros, mulheres, escravos, menores e aqueles que não são livres, não se aplicando a justiça política sobre os demais membros, atingindo-os apenas obliquamente.

Assim podemos dizer que essa justiça é uma espécie de justiça ligada ao âmbito doméstico, nele se incluía os assuntos referentes aos filhos, escravos e a mulher. Assim sendo, dividimos a justiça doméstica em justiça para com a mulher, com os filhos e para com os escravos.

Aristóteles apoia que a justiça do senhor para com o escravo e a do pai para com o filho, é a mesma política, mas apesar de se lhe assemelhem há de se ressaltar que, na realidade, para Aristóteles, não haveria injustiça no trato em relação aos filhos até uma certa idade e os escravos são pertenças do pai, assim sendo nesta ótica não teria injustiça contra si mesmo.

Por conseguinte, nestes casos a injustiça estaria afastada, pois nenhuma pessoa é capaz de fazer mal a si, como justifica Aristóteles traduzindo nesta ideia o poder irrestrito do pai e senhor em relação ao filho e seu escravo.

Prosseguindo no pensamento aristotélico, a justiça está bipartida em legal e natural, sendo tais divisões do gênero de justiça política. Bittar (2015) esclarece a diferenciação aristotélica entre o justo legal (díkaion nomikón) e o justo natural (díkaion physikón) no sentido de que aquele corresponde aos cânones derivados do nomos, isto é, das regras vigentes entre os cidadãos políticos, e este, encontra razão na própria natureza.

Em Aristóteles (1991) a justiça política se divide em natural e parte legal; naturais são as coisas que em todos os lugares têm a mesma força e não dependem de as aceitarmos ou não, já a legal é aquilo que a princípio pode ser definido indiferentemente de uma maneira ou de outra, mas depois de determinado já não é indiferente.

A justiça legal está alicerçada na lei, e esta é definida pelo arbítrio do legislador. Não possui ímpeto natural, e é constituída na convenção, pois a vontade do órgão que emana o ato legislativo é soberana e pressupõe consenso de todos os súditos; uma vez vigente a lei adquire obrigatoriedade e vincula todos os cidadãos.

Ensina Bittar (2015) que a justiça natural consiste na mescla de todas os regramentos que encontram aplicação, validade, força e aceitação universais. Assim há de se entender que respaldado na natureza humana, o justo natural é parte do justo político, e não depende do arbítrio volitivo do legislador, sendo por consequência, de caráter universalista.

À vista disso, a força da justiça natural rompe as barreiras políticas, transcendendo assim a vontade humana sendo imutável, e tem a mesma forma em todo lugar, “como o fogo que queima aqui e na Pérsia” (Aristóteles, 1991).

No livro VI da Ética à Nicômaco, Aristóteles trata da prudência como uma das virtudes dianoéticas, associando-a à circunspecção. Conforme Hordones (2007) expõe em sua dissertação, para Aristóteles as virtudes se repartem em éticas e dianoéticas, sendo as primeiras responsáveis pelo caráter, e as segundas pelo intelecto. A estaria composta em duas partes, uma de condição irracional e a outra racional, se subdividindo em duas uma é chamada de razão teorética ou científica, pela qual o homem contempla as coisas invariáveis, e a outra parte, chamada de razão prática, calculativa ou opinativa, pela qual o homem percebe as coisas passíveis de variação. Cada uma dessas partes têm sua respectiva virtude: a razão teorética tem como virtude a sabedoria (sophia), enquanto que a razão prática tem como virtude a phronesis.

No afã pela definição de phronesis, Aristóteles acaba por considerar as pessoas que são dotadas dessa forma de excelência.

Pressupõe que é bem particular de uma pessoa de bom entendimento ser capaz de assentar acerca do que é bom e adequado para si, não em relação a um aspecto particular, por exemplo, quando se quer saber quais as espécies de coisas que concorrem para a saúde e para o robustez físico, e sim acerca das espécies de coisas que nos instigam a viver de um modo geral. O vestígio disso é o fato de falarmos que uma pessoa é dotada de esclarecimento em relação a algum aspecto particular quando ela calcula bem com vistas a algum objetivo bom, diferente daqueles que são objetivo de uma arte qualquer.

A phronesis está associada a guia de todas as escolhas, tendo como finalidade a concretização da felicidade através das boas práticas. O exercício das virtudes éticas está ligado à prudência, considerada então uma virtude dianoética sem a qual não se pode exercer as demais virtudes éticas, incluídas a estas a justiça. Uma ação só poderá ser considerada justa se for phronética. Assim, não é plausível subsistir um ato justo sem que ele seja antecedido por um propósito e uma escolha, que dê a justificação racional do ato que se pretende justo.

Destarte, considera-se a phronesis como a súpero das virtudes, inclusive do que a própria justiça, entendendo que o ser humano traz uma qualidade nata, que o faz guiar-se pelos caminhos retos, na prática de virtudes e observância da justiça em suas ações. Portanto, a ação justa e equitativa é fruto de deliberação da faculdade phronética.

Ao tratar da equidade, Aristóteles (1991, p. 212) a compara com justiça, e conclui que são “a mesma coisa, embora a equidade seja melhor. O que cria o problema é o fato de o equitativo ser justo, mas não justo segundo a lei, e sim um corretivo da justiça legal”.

No impedimento de um prognóstico pelo legislador de todos os casos que poderão surgir na realidade, o aplicador das leis deve se ater às peculiaridades do fato concreto, dizendo o que o próprio legislador se estivesse presente, e o que teria incluído em sua lei se houvesse previsto o caso em questão.

A adequação da Lei ao caso concreto denominamos, como equidade, respeitadas suas particularidades, tendo em vista o caráter genérico e abstrato da atividade do legislador, atribuindo ao juiz a ponderação proporcional da norma à situação fática. Frisa-se que equidade se liga justo legal e não ao particular.

A EQUIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Ao conjunto de normas que têm o poder de regular a vida dos indivíduos, damos o nome de Direito, sendo esse conjunto de normas denominamos ordenamento jurídico, que é estruturado de forma hierárquica nas várias espécies de normas jurídicas.

A lei é a fonte de direito principal do ordenamento jurídico. Diante da suposta completude do ordenamento jurídico, amparada pelos positivistas, e, por outro lado, diante da impossibilidade do legislador em prever todos os casos concretos que poderão surgir na realidade fática, surge a complexidade do tema relativo às lacunas no Direito, isto é, ausência de norma reguladora para um caso concreto específico, ou quando a aplicação de uma norma existente na ordenamento se mostrar indesejável.

O togado, no ato da aplicação do Direito, em certos casos, se esbarra com a falta de norma reguladora que normatize tal conduta concreta posta sob sua apreciação, ou talvez considera a aplicação da norma existente como indesejável, isto é, se aplicada, poderia dar-se em decisão não razoável. Assim, defronte da proibição do non liquet, o magistrado se vê obrigado a recorrer aos instrumentos que a lei dispõe para supressão e colmatação destas, como está previsto no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil (Brasil, 1942), estabelecendo que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de Direito”.

Com o disposto, há de considerar-se a equidade como um instrumento de integração de lacunas no Direito brasileiro, tendo em vista a ausência de alusão expressa a esse instrumento no dispositivo legal anteriormente citado.

Como hipótese, tem-se que o próprio legislador admite o sistema jurídico como lacunoso, fornecendo ele mesmo os meios de integração das lacunas. Dessa forma, a analogia, os costumes e princípios gerais de Direito são instrumentos fornecidos pelo próprio legislador ao juiz para a solução de lacunas. Vislumbra-se a omissão legislativa em relacionar a equidade como instrumento integrador de forma expressa, mencionando, contudo, tacitamente, seu uso no artigo 5º, também da Lei de Introdução ao Código Civil, dispondo que “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum” (Brasil, 1942, art. 5°). Ou seja, dispondo de forma ampla, o legislador permite ao juiz, quando da aplicação da lei, recorrer à equidade, de modo a adequar a norma ao caso concreto conforme seus fins sociais e a exigência do bem comum. Além disso, é recorrente a menção ao uso da equidade em legislação esparsa no ordenamento pátrio, além de constantes decisões do Supremo Tribunal Federal no sentido de garantir o seu uso.

É importante realçar que a equidade se liga ao justo como lei universal, e não ao justo particular, ou seja, à igualdade. O justo particular visa reatar a proporção contrariada num negócio jurídico, em que uma das partes recebeu mais que deveria e a outra perdeu mais do que deveria. Exemplificativamente o juiz deve tirar 20 do que ganhou injustamente 100 e os dar ao que ficou sem nada, objetivando igualá-los, dando a cada um o que é devido. A equidade, por sua vez, está ligada ao justo legal, corrigindo a lei em sua aplicação ao caso em concreto, porque foi pensada para situações abstratas que não coincidem plenamente com o caso concreto.

A equidade, então, se liga à lei no sentido de corrigir a Lei quanto a sua generalidade e abstração. Por conseguinte, a lei só atinge sua finalidade social se for aplicada de forma acautelada pelo magistrado, este guiado pela equidade, aspirando o amoldamento da norma ao caso específico.

Portanto, a Lei é concretizada através do processo de sua aplicação a partir do caso, sob o pano de fundo inquestionado das tradições éticas da pólis que são representadas pela própria lei a aplicar. Isto é, a lei só se torna material quando da sua aplicabilidade na realidade fática, imprescindindo, contudo, das convenções éticas de determinada comunidade, pois deduz-se que as leis derivadas pelo poder instituído para tal finalidade, são manifestações destas convenções.

Ou seja, quando a lei se verifica como sendo insuficiente para gerar um julgamento justo, o juiz, por meio de phronesis, deve partir do entendimento de que a cada um deve ser dado aquilo que mais seja adequado.

Nos dias que correm, a equidade ainda é tida como controversa como instrumento de integração do Direito, sendo que seu uso é, conforme Amaral Neto (2004), excepcional, aplicável apenas nas hipóteses expressas em lei.

Seu conceito atual é multifacetário, tendo vários sentidos. Amaral Neto (2004, p. 17) aponta a existência de uma equidade interpretativa “quando o juiz, perante a dificuldade de estabelecer o sentido e o alcance de um contrato, por exemplo, decide com um justo comedimento”; uma equidade corretiva “que contempla o equilíbrio das prestações, reduzindo, por exemplo, o valor da cláusula penal”; uma equidade quantificadora, “que atua na hipótese de fixação do quantum indenizatório”; uma equidade integrativa, na qual:

“[…] a equidade é fonte de integração, e ainda a equidade processual, ou juízo de equidade, conjunto de princípios e diretivas que o juiz utiliza de modo alternativo, quando a lei autoriza, ou permite que as partes a requeiram, como ocorre nos casos de arbitragem”.

Já Maria Helena Diniz (2019) faz três acepções correlatas: latíssima, princípio universal da ordem normativa a qual todos devem obediência; lata, no sentido de justiça absoluta ou ideal, que acaba por se confundir com o próprio conceito de direito natural.

Na definição de Ferraz Junior (2003, p. 304), tem-se por equidade:

“o sentimento do justo concreto, em harmonia com as circunstâncias e adequado ao caso. O juízo por equidade, na falta de norma positiva, é o recurso a uma espécie de intuição, no concreto, das exigências da justiça enquanto igualdade proporcional”.

O juízo de equidade é voltado ao caso particular, livre de tendência generalizante, pois opera apenas ao caso concreto, de onde se capta que a equidade não pode ser considerada como fonte primária do direito, mas sim como fonte complementar, em especial quando do exercício hermenêutico.

Contudo, quando o mesmo diploma legal, no art. 5º, estabelece que “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”, o legislador dá terreno a uma interpretação mais flexível, valorizando o fim social da norma em contraposição ao rigorismo hierárquico das fontes supletivas das lacunas.

A equidade pode assim ser considerado como um componente integrativo, pois, sua utilização, apesar de não ser usada para aplicação da Lei, fornece ao julgador balizas morais, ou melhor, balizas que tendem à moralidade, ou bem comum, ou ainda, a uma decisão mais aproximada do que poderia ser compreendido como este bem comum pretendido

Maria Helena Diniz (2018) defende o uso da equidade em duas hipóteses: quando há previsão legal para seu uso, ou na hipótese de se verem esgotados o uso da analogia, costumes e princípios gerais de direito, por imposição do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil (Brasil, 1942).

Nunes (2006) diz que haverá situações em que o caso concreto apontará um real conflito entre normas ou entre princípios ou entre estes e as normas e a equidade, então, surgiria como elemento de desempate para a questão em vértice.

De forma diversa de Maria Helena Diniz (2018), Nunes (2002, p. 264) afirma que “a equidade implica um modo de avaliação do ato interpretativo mais amplo do que apenas o de ser a última alternativa para a colmatação”(p. 265).

Também o artigo n° 108 do Código Tributário Nacional (Brasil, 1966) dispõe que “na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada: I – a analogia; II – os princípios gerais de direito tributário; III – os princípios gerais de direito público; IV – a equidade”.

O Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é a salvaguarda do texto constitucional, também por isso lhe cabendo eventuais análises interpretativas, constantemente lança mão do princípio da equidade como régua para decisões em casos concretos com repercussão geral.

Contudo, conforme ensina o doutrinador Carlos Maximiliano (2011), a equidade tem como objetivo atenuar o rigor de um texto legal, interpretando de modo compatível com o progresso e a solidariedade humana. Em tempo algum devendo ser invocada para se agir, ou decidir, contra determinação positiva clara e estabelecida em lei.

CONCLUSÃO

O direito possui duas características primordiais. A primeira é a pacificação da sociedade através da imposição de um ente que se supõe, quanto sua atuação, imparcial e apolítico, e que detém o império da força e o arbítrio de contendas geradas e possíveis.

O segundo ultrapassa ao primeiro posto que deriva justamente da pretensão deste ente imparcial e apolítico, extrapolando na verdade a pacificação social pretendida, no momento em que passa a compreender como sendo necessária a sua confiabilidade para servir à sociedade que regula.

Em outras palavras, a única maneira de a justiça ser confiável é sendo, ou buscando ser justa, posto que sem tal justiça, o entendimento sobre a justiça enquanto instituição seria justamente o oposto, ou seja, de injustiça.

Ocorre que na busca por uma justiça justa, em muitos casos haverá a colisão entre princípios ou mesmo leis, porque derivará destas possíveis colisões dos casos concretos que nunca poderão ser exauridos pela capacidade preditiva das legislações ou códigos.

Desta feita, como auxiliar para o atingimento dessa justiça justa, fundamental para o enquadramento da justiça como elemento de pacificação social, o princípio da equidade surge como elemento pendular para decisões em casos concretos. Em outras palavras, mesmo o princípio da equidade não sendo fonte do Direito, acaba se tornando fonte para a fonte do Direito na medida em que possibilita a criação de julgados que podem ou não ter repercussão geral.

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