ALIENAÇÃO PARENTAL E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: UM ESTUDO SOCIOJURÍDICO DA LEI 12.318/10

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7986096


Maria Diva Nunes Feitosa Monteiro
Ana Letícia Anarelli Rosati Leonel


RESUMO

No presente artigo objetivou-se a análise da lei de Alienação parental, com o enfoque de refletir sobre a sua efetividade, essencialmente no que diz respeito ao tratamento desigual de gênero que o dispositivo apresenta, contribuindo para a consolidação da violência doméstica na sociedade. Para isso, tornou-se imprescindível o percurso de conceituação do fenômeno, com a breve contextualização histórica do seu surgimento e a sua distinção para com a Síndrome de Alienação Parental. Sequencialmente, pretendeu-se estudar os fatos que embasam a teoria de que o dispositivo legal tende a tratar as mulheres de forma pejorativa, prejudicando o alcance dos seus objetivos, qual seja, a proteção da família e dos menores. Após a realização do estudo, pode- se perceber que muito embora a lei aparente neutralidade, traz em seu conteúdo um tratamento desigual entre os gêneros, contribuindo para a perpetuação da violência doméstica, demandando, pois, de modificações para que possa de fato atingir com eficiência os fins para os quais foi criada, qual seja, essencialmente o de garantir o desenvolvimento saudável das crianças e adolescentes e proteger de forma geral, o núcleo familiar.

Palavras-Chave: alienação parental; violência doméstica; lei 12.318; desigualdade de gêneros.

ABSTRACT

This article aims to analyze the law of Parental Alienation, with the focus of reflecting on its effectiveness, essentially with regard to the unequal treatment of gender that the device presents, contributing to the consolidation of domestic violence in society. For this, it was essential to conceptualize the phenomenon, with a brief historical contextualization of its emergence and its distinction from the Parental Alienation Syndrome. Sequentially, it was intended to study the facts that support the theory that the legal device tends to treat women in a pejorative way, harming the achievement of its objectives, i.e., the protection of the family and minors. After the study, it can be seen that although the law appears neutral, it brings in its content an unequal treatment between genders, contributing to the perpetuation of domestic violence, requiring, therefore, changes so that it can actually antagonize with efficiency the purposes for which it was created, which is, essentially, to ensure the healthy development of children and adolescents and protect in general, the family nucleus.

Keywords: parental alienation; domestic violence; law 12.318; gender inequality.

INTRODUÇÃO

A aludida pesquisa tem como principal objetivo analisar a Alienação Parental, a efetividade da lei que regulamenta o fenômeno e a sua relação com a Lei Maria da Penha, no que concerne à violência doméstica. Ou seja, pretende-se verificar de qual forma a lei de Alienação Parental contribui para o aumento da violência, proporcionando ainda, uma reflexão acerca do possível tratamento de gênero desigual que o dispositivo proporciona. Tem-se ainda como intuito perceber como esta problematização reflete na educação das crianças e adolescentes submetidos ao lar litigioso (marcado pelo conflito constante entre os genitores) e, portanto, suscetível a inúmeros danos, como por exemplo, a violência psicológica.

Ressalte-se inicialmente que todos esses fatores possuem uma base histórica, que evoluiu ao longo dos anos, até alcançar a configuração do diploma legal vigente atualmente. As convicções acerca da temática tiveram origem com os estudos do professor e médico Richard Gardner (2002), que denominou a alienação parental como um embate entre os genitores, mais especificamente daquele que detém a guarda da criança ou adolescente e induz nestes, a criação de sentimentos negativos em relação ao outro genitor, desencadeando uma série de complicações, que possuem efeitos severos no desenvolvimento do menor.

Vale lembrar, que até o ano de 2010, não havia um respaldo jurídico para o tratamento acerca da Alienação Parental, que foi devidamente regulamentada com a edição da Lei 12.318/10. A partir disso os alienadores passaram a ser punidos no âmbito jurídico. De modo geral, a lei visa possibilitar que o guardião da criança, ou seja, aquele que detém a guarda do menor, afete negativamente o seu vínculo com o outro genitor, resguardando dessa forma, tanto o filho, quanto o genitor alienado.

Por outro lado, na realidade fática nacional, percebe-se o aumento cada vez mais crescente dos índices de violência contra a mulher, mesmo diante da existência de uma legislação específica para coibir tal algoz, qual seja, a Lei Maria da Penha. Um dos mecanismos de defesa trazidos pela Lei 11.340/2006 foi a possibilidade de decretação de medidas protetivas, visando, sobretudo, proteger as vítimas das agressões. Um exemplo de medida trazida pela lei é a imposição do afastamento do lar pelo agressor, ou seja, o impedimento de convívio com a ex-companheira.

Havendo, pois, tal decretação, como ficará o convívio do agressor com as crianças, fruto da relação? A tentativa da mãe de proteger os filhos, mantendo-os distantes do genitor, poderá/deverá ser enquadrada como conduta de alienação parental? Qual a previsão legal cabível nessas situações (ou a lei 12.318/10 é omissa em relação a isso?).

Desse modo, o presente trabalho busca realizar uma análise sócio jurídico da Lei de Alienação Parental, tendo como propósito identificar a eficácia e aplicabilidade da norma jurídica, buscando também refletir sobre o seu enquadramento no caso de Violência Doméstica. Questiona-se, pois, se a tipificação da Lei 12.318/10 é suficiente para resguardar a proteção das crianças, adolescentes e mães vítimas de violência doméstica e psicológica, tal qual deveria ser.

Diante de tal questionamento, é de suma importância destacar a atuação do Ministério Público nos casos de Alienação Parental, pois este órgão, além de exercer uma função de fiscal da lei e da ordem jurídica, também pode atuar como parte no processo. Dessa forma, dentro de um cenário de Alienação Parental, é possível (e necessário) que este atue das duas maneiras, pois em se tratando de violação aos direitos da mulher, crianças e adolescentes, torna-se de total interesse e legitimidade a atuação do órgão ministerial.

O objeto do presente estudo constrói um percurso de conceituação e descrição da Alienação Parental, fazendo uma análise e diferenciação desta para com a Síndrome da Alienação Parental, traçando, logo em seguida, um paralelo entre os temas de Violência Doméstica sob o crivo da Alienação Parental, que constitui o objeto de estudo da aludida pesquisa.

A complexidade desses temas é gigantesca, pois abarca não somente uma situação de litígio familiar, mas também outras situações que são geradas através desse cenário e que geram desgastes emocionais e físicos para a criança ou adolescente, tornando essencial a ciência de que o melhor interesse da criança é primordial para o desenvolvimento e crescimento saudável desse indivíduo, fator preponderante para guiar a presente discussão.

1.  ALIENAÇÃO PARENTAL E A SÍNDROME DA ALIENAÇÃO PARENTAL

A Lei de Alienação Parental (nº 12.318) foi inserida no ordenamento jurídico brasileiro no ano de 2010. Apesar de ser um dispositivo legal relativamente recente, a prática da alienação parental já podia ser observada na sociedade e constatada em diversas famílias, antes mesmo da promulgação da lei. Este fenômeno que, infelizmente, se tornou tão habitual no ambiente familiar, foi ganhando destaque e tornando-se objeto de diversos estudos.

Diante deste cenário, atitudes aparentemente inofensivas que tinham como objetivo dificultar o convívio da criança ou adolescente com o outro genitor, praticadas pelo guardião do menor, passaram a ser reprimidas e criminalizadas, surgindo, pois, uma preocupação maior com as consequências que essas ações poderiam representar para o desenvolvimento infantil e violação dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes.

A edição da lei se justifica essencialmente diante do atual cenário nacional, marcado pelo crescente número de divórcios e consequentes disputas pela guarda dos menores, fazendo com que a prática de Alienação Parental se torne cada vez mais frequente na sociedade.

Muito embora a Constituição Federal concede liberdade para a composição dos núcleos familiares, no sentido de deixar a cargo dos pais a escolha de como educar seus filhos, a Carta Magna zelar, sobretudo, pela proteção dos menores, podendo, portanto, excepcionalmente interferir, desde que para fazer prevalecer o melhor interesse da criança ou adolescente.

Conforme se verá adiante, foi constatado que a prática de Alienação Parental acarreta inúmeros prejuízos para o desenvolvimento dos menores, afetando diversos aspectos de sua vida. Diante disso, denota-se a necessidade de um dispositivo capaz de reprimir tais condutas, de modo a efetivar a proteção dos direitos da criança e do adolescente, de possuírem condições mínimas para um desenvolvimento saudável.

A lei, redigida de forma didática, pretende que não seja ferido o direito fundamental da criança ou do adolescente de convivência familiar saudável, nem que haja prejuízo nas relações de afeto com genitor e com o grupo familiar. Considera que tais atos constituem abuso moral contra a criança ou o adolescente, além de descumprimento dos deveres inerentes à autoridade parental ou decorrentes de tutela ou guarda. Quando é declarado o indício de

ato de alienação parental, o processo terá tramitação prioritária e o juiz determina, urgentemente, ouvido o Ministério Público, as medidas necessárias para que seja preservada a integridade psicológica da criança ou do adolescente. Com isso, pretende-se assegurar a convivência com genitor ou viabilizar a efetiva reaproximação entre ambos, se for o caso. (NORONHA; ROMERO, 2012, p. 4).

Em outras palavras, o dispositivo foi criado com o intuito principal de garantir que o rompimento do seio familiar não viesse a prejudicar o relacionamento dos filhos com ambos os genitores. É por esse motivo, que a tendência do judiciário é a determinação da guarda compartilhada, que oportuniza o convívio do filho com os dois pais, por se entender que é a melhor opção para garantir um desenvolvimento saudável, tal qual determina o texto constitucional.

Vale lembrar que existe uma ampla legislação voltada especificamente para proteger a criança e o adolescente, quais sejam, a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, como também a lei de Alienação Parental. Entretanto, conforme se verá, são necessários esforços para trazer maior efetividade para os aludidos dispositivos, posto que diversas incoerências podem ser encontradas, e que de forma expressiva podem corromper os intentos da legislação, qual seja, essencialmente a proteção dos menores.

1.1  Origem e Conceituação

O termo Alienação Parental surgiu nos Estados Unidos em 1985, nos estudos do psiquiatra infantil Richard Alan Gardner, como resposta ao grande número de denúncias de abuso infantil que surgiam nos tribunais daquela época. (SOTTOMAYOR, 2011).

O autor, descreveu a prática como um distúrbio que acomete, principalmente, menores de idade envolvidos em situações de divórcio, separação e disputas de guarda/custódia, afirmando, ainda, que a síndrome seria desenvolvida a partir da “programação” ou ainda “lavagem cerebral” realizada por um dos genitores (ou terceiro que desempenhasse poder sobre o menor), para que o filho viesse a rejeitar o outro responsável, ou seja, aquele que é alienado.

De acordo com Gardner:

A Síndrome de Alienação Parental (SAP) é um distúrbio da infância que aparece quase exclusivamente no contexto de disputas de custódia de crianças. Sua manifestação preliminar é a campanha denegritória contra um dos genitores, uma campanha feita pela própria criança e que não tenha nenhuma justificação. (GARDNER, 2002, p. 2).

Nesse sentido, tem-se que a alienação parental é compreendida como a ação de um dos responsáveis pelo menor, de expô-lo a falsas narrativas envolvendo o outro genitor, costumeiramente envolvendo falsas denunciações de maus tratos, abandono afetivo ou até mesmo falta de suporte financeiro, fazendo com que ele entre em conflitos com o genitor que é acusado de tais maus tratos e o veja de uma forma negativa, prejudicando assim a relação de ambos.

Segundo Moreira (2013), a alienação é um processo de esvaziamento da relação parental, que traz graves consequências ao desenvolvimento psíquico do filho, que além de possuir problemas advindos da quebra do vínculo afetivo dos pais ou responsáveis, ainda sofre com os ataques direcionados entre estes.

1.2   Diferenciação entre Alienação Parental e SAP

É de suma importância destacar que a Alienação Parental e a Síndrome da Alienação Parental, apesar de possuírem semelhanças, não podem ser confundidas, pois são situações que em certos pontos se divergem. De acordo com Gardner, a alienação parental possui um significado genérico e abrange todos os casos em que uma criança ou adolescente se encontra em situação de Alienação por um dos genitores ou pessoa a quem detém a guarda ou vigilância da criança ou adolescente. Por sua vez, a Síndrome da Alienação Parental é definida como um subtipo da Alienação Parental em si, que resulta da “lavagem cerebral” realizada sobre a criança com o intuito de desmoralizar o outro genitor, sendo o filho usado como um instrumento de agressividade face ao outro responsável. Ou seja, a Síndrome da AP, é a prática dos atos alienantes em propagar informações em desfavor do alienado, ou seja, é a consequência da absolvição feita pela criança ou adolescente.

Assim, na mesma linha de diferenciação da Alienação e da Síndrome, o presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) Rodrigo da Cunha Pereira expressa que:

Na verdade, a síndrome pode ser a consequência da alienação parental, quando atingida em um grau mais elevado. Mas nem sempre há uma síndrome, embora possa estar presente a alienação parental. […] A Alienação parental se expressa no âmbito jurídico como uma forma de violência contra a criança ou adolescente, praticada, geralmente, pelo guardião. (PEREIRA,2017, p.75).

Dessa forma, de acordo com a Lei 12.318/10, para a caracterização da AP e consequentemente da Síndrome, é necessário que estejam presentes os seguintes aspectos:

Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação parental, além dos atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados diretamente ou com auxílio de terceiros:

I  – realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade;

II  – dificultar o exercício da autoridade parental;

III  – dificultar contato de criança ou adolescente com genitor;

IV  – dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar;

V  – omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço;

VI – apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente;

VII – mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós.

Segundo Gardner (2002), as crianças ou adolescente que sofrem de SAP, geralmente vivenciaram mais de um desses atos ou até mesmo todos eles, o que poderá classificar a síndrome em leve, moderada ou severa, levando ainda em consideração o grau de intensidade das ações do alienador e consequências específicas de cada situação.

Dito isso, é cristalino que a Alienação Parental merece atenção do operador do Direito, pois se trata de um comportamento doentio que gera consequências devastadoras para toda a família, em especial, para os genitores alienados e crianças/adolescentes. Diante disso, torna-se, pois, essencial a atuação de profissionais competentes para evitar o desenvolvimento da síndrome, ou no mínimo amenizar os efeitos das práticas de Alienação Parental.

2.  A DISCRIMINAÇÃO DA LAP COM AS MULHERES

Há de se considerar inicialmente, que a Lei de Alienação Parental foi criada como instrumento de repressão às ações que possam representar risco ao desenvolvimento das crianças e adolescentes, como uma das formas de materialização do princípio do melhor interesse do menor, estabelecido constitucionalmente.

Entretanto, em apertada síntese, tem-se percebido o que a doutrina moderna tem denominado de desvirtuamento da Lei, no sentido que o dispositivo legal tende a possuir um tratamento desigual de gêneros, contribuindo para perpetrar a violência doméstica.

No ano de 2020, o Instituto Brasileiro de Direito de Família (ÎBDFAM), por meio da Portaria nº 002/2020, instituiu a criação do Grupo de Estudo e Trabalho sobre Alienação Parental com o intuito de desenvolver uma pesquisa para tratar dos principais pontos de controvérsia da referida lei. Faz-se necessária, a menção de alguns dados obtidos pela pesquisa, a fim de embasar os argumentos do dito tratamento desigual que o dispositivo apresenta em relação aos gêneros.

Um dos questionamentos realizados aos integrantes da pesquisa, foi relacionado à existência de isonomia do poder familiar, ou seja, se a norma traria em seu conteúdo tratamento igual entre os gêneros, no que concerne a possibilidade de enquadrá-los indistintamente como alienadores e alienados. Neste quesito, parte dos entrevistados opinaram no sentido de que a lei não protegeria tal isonomia, entendendo, pois, pela necessidade de um aperfeiçoamento do dispositivo. (IBDFAM, 2020).

Muito embora não tenha sido elaborado um quesito voltado especificamente para analisar a influência da lei nos casos de violência doméstica, no espaço destinado para a livre manifestação, alguns participantes abordaram sobre a necessidade de uma atenção especial ao quesito, pelo fato de entenderem que do modo como está esquematizado atualmente, o dispositivo legal pode representar uma forma de perpetuação dos abusos, contribuindo, pois, para o aumento de casos de violência. (IBDFAM, 2020).

Inclusive, o IBDFAM, ao sistematizar as recomendações e conclusões, estipulou a necessidade da participação da comissão de gênero e combate à violência doméstica contra a mulher, de modo a contribuir para o aperfeiçoamento da lei,

demonstrando, deste modo, incontroversamente a existência da dita desigualdade de gêneros, emergindo, pois, a necessidade de esforços para superá-la.

Diante disso, percebe-se que em tese a Lei de Alienação Parental traz igualdade formal no tratamento entre homens e mulheres, podendo ser aplicada para ambos os gêneros insdistitamente. Entretanto, apesar de aparentemente ser neutra, na prática, a referida lei possui um efeito discriminatório contra as mulheres por inobservar as desigualdades já pré-existentes.

Tal discriminação indireta pode ser entendida como uma norma aparentemente neutra, mas que na prática provoca efeitos diferenciados para um determinado grupo. Essa situação é observável na Lei de Alienação Parental, que vem surtindo efeitos discriminatórios em relação às mulheres, no sentido de contribuir para que as denúncias de violência doméstica (moral, psicológica e/ou física), cometidas pelos agressores, genitores dos seus filhos, possam ser vistas como falsa denúncia, configurando então, ato de alienação parental pelo artigo 2°, inciso VI, da lei 12.318/2010.

Mas na prática, como essas falsas denúncias podem ser utilizadas pelos agressores? Geralmente, os homens genitores utilizam as denúncias de alienação parental para coagir as ex-companheiras, no sentido de manipular regime de visitas ou prestação de alimentos; chantagear as genitoras, para manter um convívio forçado com estas; ou ainda para violentar (na grande maioria das vezes, psicologicamente) as mulheres, afetando não somente estas, mas como também o núcleo familiar completo.

Para além dessa possível atribuição de falsa denúncia, deve-se refletir ainda acerca da tentativa de afastamento dos menores e do agressor, por parte da genitora: tal ato deverá ser considerado proteção materna ou enquadrado como prática de alienação parental?

Desse ponto de vista, é perceptível que da forma como está estruturada, a LAP não protege o núcleo familiar como deveria. Isso porque, socialmente enxerga-se a mulher como a alienadora, dada a construção histórica que remete ao patriarcado. Ou seja, muito embora o dispositivo não aponte gêneros específicos, observa-se a tendência do judiciário em associar a alienação parental às genitoras, diante da dita sujeição destas à necessidades de vingança perante o rompimento do núcleo familiar.

A discriminação é tão evidente, que segundo a própria justificativa apresentada para a criação da Lei o legislador determinou que:

No entanto, muitas vezes a ruptura da vida conjugal gera na mãe sentimento de abandono, de rejeição, de traição, surgindo uma tendência vingativa muito grande; ou seja, tem, em sua justificativa para implementação, a atitude “vingativa” da MÃE em decorrência do final do relacionamento. Afirmação que não está de acordo com a realidade, visto que: (i) no Brasil, as proposituras de ações de dissoluções de uniões estáveis e divórcios são em sua maioria, realizadas por mulheres; (ii) o ciclo da violência dos relacionamento abusivos recai majoritariamente sobre as mulheres; (iii) o Brasil é o 5º país no ranking mundial no número de feminicídios. (SASSO, 2021, p. 1).

Como supramencionado, a justificativa apresentada não encontra respaldo diante do atual cenário brasileiro, pelos motivos elencados pelo jurista, quais sejam, o fato de que as proposituras das ações são em sua grande maioria realizadas por mulheres, sobre as quais recai majoritariamente o ciclo de violência de relacionamentos abusivos, que resulta em um grande número de feminicídios (colocando o Brasil em posição de destaque).

Pergunta-se, pois: por quais razões está fundamentada a ideia de que a prática de Alienação Parental resultaria de um sentimento de vingança feminina? Não existem motivos lógicos para justificar tal afirmação, senão o preconceito e discriminação de gênero que lamentavelmente perpetruam até os dias de hoje na sociedade. Seria cômico, se não fosse ultrajante.

Nessa mesma perspectiva de utilização da LAP, também é possível identificar o reforço a estereótipos de gênero. Mais uma vez, fundamental se faz a menção do Projeto de Lei n° 4.053 de 2008, elaborado pelo Deputado Regis de Oliveira. Neste documento, o deputado que propôs a legislação para coibir a “alienação parental” referência o artigo de Maria Berenice Dias, grande doutrinadora no âmbito das Famílias, intitulado como “ Síndrome da Alienação Parental, o que é isso?”

Como mencionado anteriormente Maria Berenice Dias traz, no artigo, a compreensão de que o divórcio gera nas mulheres um sentimento de abandono e vingança e de maneira irresponsável levanta a suposição de que estas se utilizam de falsas denúncias de abusos sexual ou de outras condutas enquadradas como alienação parental para atingir os seus cônjuges ou companheiros.

Partindo desse ponto, é evidente a predisposição da Lei de Alienação Parental em posicionar a mulher/mãe à figura de alienadora.

À vista disso, tem-se que a utilização da Lei de Alienação Parental, gera grandes riscos para as mulheres. Uma vez que sua utilização deveria ser voltada para a proteção das crianças e adolescentes, mas vem sendo utilizada como uma forma de defesa para os abusadores acusados de violência doméstica contra as mulheres e consequentemente causando prejuízos ao combate de violência doméstica e familiar contras as crianças e adolescentes.

3.    A LEI 12.318/10 COMO INSTRUMENTO DE REFORÇO PARA A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

A Lei de Alienação Parental foi editada com o objetivo de trazer segurança jurídica às crianças ou adolescentes diante de situações que poderiam prejudicar o seu desenvolvimento, sendo os pais, os responsáveis pelos danos físicos ou psicológicos causados aos menores, decorrentes de cenários que configuram Alienação Parental.

A princípio, não é notório a conexão entre a Lei de Alienação Parental e a Lei Maria da Penha, contudo, em um olhar mais aprofundado se percebe que a grande maioria dos “manejos” para a Alienação Parental é um meio para o cometimento de violência doméstica.

Essa afirmação é observada quando existem situações em que a mulher sofre determinado tipo de violência doméstica, porém fica receosa ou com medo que aquela situação seja espelhada e cometida com seus filhos, dessa forma, acabam por distanciá-los do agressor e até a comprovação de violência doméstica, podendo desta forma, serem acusadas de praticar alienação parental.

Segundo Dias (2012) para que essas situações sejam evitadas é necessário que ambos os genitores selam um acordo, pois a saúde mental da criança ou adolescente é de suma importância, priorizando os (as) filhos (as) para que não venham ocorrer desgastes psicológicos.

Por esse viés observa-se a inefetividade da Lei de Alienação Parental quando inexistem ações que podem ser tomadas diante de situações de agressões, ou seja, a aplicação de medidas que possam ser tomadas em detrimento da criança e de sua genitora, desde a oferta de um acompanhamento psicossocial, bem como o monitoramento eletrônico.

No que tange a Lei Maria da Penha, o doutrinador Urra (2020) assegura em sua pesquisa realizada com grupos de homens que sofreram condenação pela Lei, onde demonstram que é muito comum por parte desses homens a desqualificação da Lei Maria da Penha. Assim, o autor afirma que a Lei de Alienação é mais um instrumento usado por homens para a prática de violência doméstica.

Observamos nos grupos homens que exerceram dominação contumaz sobre a mulher, e que, quando confrontados com um movimento de tomada de consciência da mulher e consequente movimento de busca de liberdade, utilizam meios jurídicos para conseguir a guarda das crianças ou ter o direito a visitas pela Lei de Alienação Parental (URRA, 2020, p. 25).

Ressalte-se ainda a deficiência de atuação do Ministério Público na referida situação fática. Como bem se sabe, o Parquet tem o papel de zelar pelos direitos das crianças e adolescentes como também proteger as vítimas de violência doméstica. No que tange a alienação parental que envolve violência doméstica, este órgão possui um papel muito importante e pode (deveria) atuar de diversas formas para proteger a vítima e garantir o bem estar da criança envolvida, seja na investigação, no ajuizamento da ação, bem como em conjunto com outros órgãos.

Entretanto, observa-se uma atuação mecânica, vazia de uma verdadeira apreciação dos fatos, o que ocasiona um posicionamento genérico, o que contribui para o agravamento do problema. Embora muitas vezes o Ministério Público tenha agido de forma eficiente, na maioria dos casos a atuação desse órgão tem sido insuficiente.

Diante dessa realidade, é evidente que o fenômeno da alienação parental e o mal uso da Lei é preocupante, principalmente no que concerne às famílias, mais especificamente em relação a violência estrutural contra as genitoras e seus filhos, pois acaba se tornando um cenário onde de um lado existe uma Lei que serve para trazer segurança ao menor e de outro lado a figura do genitor que passa ser um alienador/agressor tentando utilizar esse instrumento normativo como forma de controlar, coagir e intimidar a genitora, ou seja, torna-se um cenário de inefetividade e violência que acabam se misturando e se sobressaindo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dos estudos desempenhados, pode-se verificar, portanto, que a Lei de Alienação Parental possui uma grande lacuna no que se refere a sua efetividade, essencialmente no que diz respeito à sua utilização como forma de defesa pelos agressores denunciados por violência doméstica e familiar contra a mulher e crianças e adolescentes.

Para isso, foi dedicado um tópico exclusivo para conceituar a alienação parental e como ela é inserida após o rompimento dos laços conjugais, além de sua origem, até a chegada do instrumento normativo que veio para disciplinar a ocorrência do fenômeno, qual seja, a Lei 12.318/10.

Sob outra perspectiva, foi constatado que a Lei de Alienação Parental, desenvolve uma discriminação de forma “indireta” contra as mulheres, pois enquanto deveria ser aplicada indistintamente para homens e mulheres, na prática, vem gerando efeitos danosos para as mulheres, reforçando o estereótipo misóginos de gênero e desse modo, contrariando a pretensão protetiva do Estado para com as mulheres.

Contudo, fora constatado que a grande maioria dos agressores se consideram amparados pela referida Lei e por isso criam “manejos” para tentar coagir, controlar ou intimidar a ex-companheira, usando os filhos para tal, desencadeando a violência doméstica que logo mais acabará se estendendo aos filhos, pois como bem assegura Urra (2020), cerca de 23% dos filhos (as) de genitoras agredidas, também foram vítimas da violência.

Dessa maneira, conclui-se que apesar da Lei servir como um instrumento de proteção diante de casos de alienação parental, ainda não é considerada um meio totalmente inibidor, justamente por ser usada de forma prejudicial, eclodindo em outras situações tão prejudiciais quanto a Alienação, que é a Violência Doméstica, sendo inviável a conclusão de que a lei está sendo operante e eficaz, tornando-se apenas um meio simbólico para o legislador e uma facilidade para o alienador.

Denota-se ainda pela necessidade de uma atuação mais massiva do Ministério Público, no sentido de cumprir de fato com o seu papel de fiscal da lei e da justiça, especialmente em se falando de direitos das crianças/adolescentes e mulheres que

merecem especial tratamento, a fim de reparar as desigualdades sociais perpetradas ao longo do tempo.

Tal aspecto, somado às alterações legislativas e interpretativas da lei de Alienação Parental são os primeiros passos necessários para se alcançar de fato maior efetividade do dispositivo legal no seu propósito principal, qual seja, o de proteger o menor e a família, garantindo-lhes um desenvolvimento saudável e sem máculas.

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