AGRICULTURA URBANA COMO RESISTÊNCIA: ANÁLISE ENTRE A REVOLUÇÃO VERDE E AS ALTERNATIVAS AGROECOLÓGICAS

URBAN AGRICULTURE AS RESISTANCE: ANALYSIS BETWEEN THE GREEN REVOLUTION AND AGROECOLOGICAL ALTERNATIVES

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/dt10202509081112


Anderson Luis Ferreira


RESUMO

A Agricultura Urbana tem se consolidado como prática multifuncional e de resistência diante das contradições históricas da Revolução Verde, que, apesar de aumentar a produtividade agrícola, aprofundou desigualdades sociais, homogeneizou cultivos e provocou graves impactos ambientais. O presente estudo teve como objetivo analisar a Agricultura Urbana como alternativa socioambiental ao modelo produtivista da Revolução Verde, destacando seu potencial transformador e sua vinculação com a agroecologia. Para tanto, adotou-se uma abordagem qualitativa, de caráter exploratório e descritivo, baseada em revisão bibliográfica e documental em fontes nacionais e internacionais, contemplando autores clássicos e contemporâneos, além de relatórios de organismos multilaterais como FAO e ONU-Habitat. A análise crítica permitiu identificar que, ao contrário do modelo agrícola hegemônico, a Agricultura Urbana valoriza a diversidade produtiva, fortalece a autonomia comunitária e promove novas formas de sociabilidade, englobando dimensões sociais, ambientais, econômicas e culturais. Os resultados evidenciam que experiências em diferentes contextos, que convergem no fortalecimento da soberania alimentar, na inclusão social e na sustentabilidade urbana. Conclui-se que a Agricultura Urbana, ao incorporar princípios agroecológicos, constitui-se em alternativa contra hegemônica capaz de enfrentar as fragilidades do modelo agrícola tradicional, contribuindo para a construção de cidades mais resilientes, inclusivas e sustentáveis.

Palavras-chave: Agricultura Urbana. Soberania. Revolução. Sustentabilidade.

1. INTRODUÇÃO

A agricultura, ao longo da história, tem ocupado papel central na organização das sociedades humanas, sendo responsável pela transformação de paisagens, pela produção de alimentos e pela sustentação de sistemas econômicos. No século XX, a Revolução Verde foi concebida como uma alternativa para enfrentar a fome global, a partir da difusão de pacotes tecnológicos baseados em sementes híbridas, mecanização, fertilizantes químicos e uso intensivo de agrotóxicos. Embora tenha gerado aumentos significativos na produtividade, seus efeitos colaterais tornaram-se evidentes, incluindo degradação ambiental, perda de biodiversidade, concentração fundiária e aprofundamento das desigualdades sociais, especialmente em países periféricos (MOURA et al., 2013).

As críticas a esse modelo foram se intensificando ao longo das últimas décadas. Shiva (2016) aponta que a Revolução Verde não eliminou a fome, mas aprofundou formas de dependência, subordinando pequenos agricultores à lógica das grandes corporações e fragilizando a autonomia dos territórios. Nesse cenário, surgem práticas alternativas que buscam ressignificar o uso do espaço e o acesso aos alimentos, entre as quais a Agricultura Urbana (AU) se destaca. Mougeot (2000) define a AU como a produção, transformação e distribuição de alimentos em áreas urbanas e periurbanas, articulada de forma direta com os ecossistemas urbanos e com a dinâmica social da cidade.

No Brasil, Santandreu & Lovo (2007) destacam que a Agricultura Urbana assume caráter multidimensional, englobando desde o autoconsumo até a comercialização em pequena escala, incluindo doações, trocas e serviços socioambientais. Aquino & Assis (2007) reforçam a necessidade de compreender a AU como prática vinculada à agroecologia, pois, quando baseada em princípios sustentáveis, promove conservação dos recursos naturais, diversificação produtiva e fortalecimento comunitário. Para Abramovay (2000), a AU representa a construção de novas territorialidades, ao ressignificar a ruralidade no espaço urbano e ao criar formas de sociabilidade que rompem com a dicotomia entre campo e cidade.

Diante desse contexto, o problema que norteia esta pesquisa consiste em compreender de que modo a Agricultura Urbana, fundamentada em princípios agroecológicos, pode se configurar como prática de resistência frente às contradições do modelo produtivista da Revolução Verde. A justificativa para o estudo encontra-se na relevância social e acadêmica do tema, uma vez que a AU contribui para a segurança alimentar, a inclusão social e a sustentabilidade das cidades, aspectos que dialogam diretamente com a Agenda 2030 e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, em especial os ODS 2, 11 e 12 (ONU, 2015).

Assim, o objetivo central do trabalho é analisar a Agricultura Urbana como forma de enfrentamento às limitações da Revolução Verde, destacando sua multifuncionalidade e seu papel na construção de alternativas agroecológicas.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA OU REVISÃO DA LITERATURA

2.1 A Revolução Verde e seus impactos

A Revolução Verde foi concebida, a partir da segunda metade do século XX, como resposta ao desafio da fome mundial. Segundo Borlaug (2002), seu idealizador, o uso de sementes de alto rendimento, fertilizantes químicos, mecanização e defensivos agrícolas representava a solução tecnológica capaz de elevar a produtividade e garantir o abastecimento alimentar em escala global. Contudo, os resultados alcançados foram ambíguos. 

Conforme Moura et al. (2013), no Brasil, a adoção desse modelo intensificou a concentração fundiária, favorecendo grandes propriedades e acelerando o êxodo rural, o que fragilizou modos de vida camponeses. Para Shiva (2016), a Revolução Verde não combateu a fome estrutural, mas produziu novas formas de dependência, ao impor monoculturas e vincular os agricultores a insumos controlados por corporações transnacionais. Ainda de acordo com a autora, a perda de biodiversidade e a degradação ambiental revelam que esse modelo não pode ser compreendido apenas como inovação técnica, mas como parte de um projeto político e econômico associado à modernização conservadora e à expansão capitalista no campo.

2.2 Agricultura Urbana: conceitos e multifuncionalidade

Em contraposição a essas contradições, a Agricultura Urbana (AU) consolidou-se como prática multifuncional e alternativa socioambiental. Segundo Mougeot (2000), a AU pode ser entendida como a produção, transformação e distribuição de alimentos em áreas urbanas e periurbanas, estabelecendo vínculos diretos com os ecossistemas urbanos e com a vida comunitária.                                                        

Conforme Santandreu & Lovo (2007), no Brasil, a Agricultura Urbana é caracterizada por sua natureza multidimensional, que inclui práticas de autoconsumo, comercialização, trocas e doações, além da oferta de serviços ambientais. Para Aquino & Assis (2007), quando fundamentada na agroecologia, a AU promove conservação do solo, manejo sustentável da água e valorização da biodiversidade, integrando objetivos ambientais, sociais e econômicos.    

De acordo com Abramovay (2000), a Agricultura Urbana também contribui para a construção de novas territorialidades no espaço urbano, ressignificando a ruralidade e superando a dicotomia entre campo e cidade. Em consonância com Lefebvre (2001), pode-se compreender a AU como prática que fortalece o direito à cidade, ao democratizar o uso dos espaços e ampliar as possibilidades de participação social.

2.3 Agroecologia e resistência

A agroecologia constitui o principal fundamento teórico e prático da Agricultura Urbana enquanto prática contra hegemônica. Segundo a Articulação Nacional de Agroecologia (2012), a agroecologia integra conhecimentos científicos e saberes tradicionais, promovendo sistemas agrícolas diversificados, sustentáveis e socialmente justos. Conforme Abramovay (2000), a Agricultura Urbana, ao dialogar com a agroecologia, ressignifica o espaço urbano, criando dinâmicas de solidariedade e fortalecendo redes comunitárias. Para Santos (2008), a produção do espaço é permeada por contradições, e nesse contexto a AU pode ser interpretada como forma de resistência às desigualdades impostas pelo agronegócio.

Em escala internacional, as experiências reforçam esse papel. Segundo Boukharaeva, Chianca & Marloie (2007), em Havana a AU foi incorporada como política de Estado após a crise dos anos 1990, promovendo autossuficiência alimentar. Em Detroit, de acordo com Mougeot (2000), hortas comunitárias surgiram como resposta à desindustrialização e à pobreza, atuando na revitalização urbana. Em Paris, conforme a ONU-Habitat (2020), projetos de Agricultura Urbana vêm sendo integrados às estratégias de mitigação, utilizando telhados e áreas subutilizadas para produção de alimentos.

3. METODOLOGIA 

A pesquisa desenvolvida enquadra-se no campo da abordagem qualitativa, de caráter exploratório e descritivo, por buscar compreender a Agricultura Urbana em sua complexidade e em múltiplas dimensões. Segundo Minayo (2012), a pesquisa qualitativa visa interpretar os significados atribuídos pelos sujeitos e contextos sociais aos fenômenos investigados, permitindo a apreensão de suas contradições e potencialidades. Já a perspectiva exploratória, conforme Gil (2019), possibilita ampliar o conhecimento sobre temas ainda pouco consolidados, enquanto a dimensão descritiva, de acordo com Severino (2007), permite detalhar características e relações identificadas ao longo da investigação.

Os procedimentos metodológicos adotados fundamentaram-se em um amplo levantamento bibliográfico e documental. Conforme Lakatos & Marconi (2017), a pesquisa bibliográfica constitui-se em etapa essencial para a construção de um quadro teórico consistente, uma vez que possibilita a análise de produções já publicadas em livros, artigos, dissertações, teses e relatórios técnicos. Para este estudo, foram consultadas bases de dados como SciELO, Google Scholar, CAPES Periódicos e FAO Document Repository, além de documentos normativos e relatórios oficiais, com destaque para a Lei nº 14.935/2024, que institui a Política Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana, e publicações de organismos multilaterais, como a FAO (2019) e a ONU-Habitat (2020).

A pesquisa teórica abrangeu autores clássicos e contemporâneos que discutem os impactos da Revolução Verde e as alternativas apresentadas pela Agricultura Urbana e Agroecologia. Nesse sentido, destacam-se as contribuições de Borlaug (2002), Moura et al. (2013) e Shiva (2016), que problematizam os efeitos sociais e ambientais do  modelo produtivista; de Mougeot (2000), Santandreu & Lovo (2007), Aquino & Assis (2007) e Abramovay (2000), que conceituam a multifuncionalidade da Agricultura Urbana; além de referenciais teóricos fundamentais da Geografia, como Lefebvre (2001) e Santos (2008), que oferecem subsídios para a interpretação socioespacial da prática.

Para o tratamento dos dados, optou-se pela análise de conteúdo, metodologia que,  segundo Bardin (2011), permite a sistematização de informações de forma a identificar categorias temáticas capazes de revelar sentidos subjacentes e recorrências no material analisado. Conforme Flick (2009), esse procedimento é adequado a estudos qualitativos por possibilitar a organização crítica de dados empíricos e bibliográficos em eixos analíticos coerentes. Assim, a análise deste trabalho foi organizada em três categorias: “impactos da Revolução Verde”, “multifuncionalidade da Agricultura Urbana” e “resistência agroecológica”, a partir das quais foi possível estabelecer articulações entre as experiências nacionais e internacionais.

Dessa maneira, a metodologia adotada conferiu a compreensão da Agricultura Urbana como fenômeno multifacetado e politicamente situado, que resiste às contradições estruturais do modelo agrícola hegemônico e aponta para novas racionalidades socioambientais no contexto urbano.

4. RESULTADOS E DISCUSSÕES OU ANÁLISE DOS DADOS

4.1 Contradições da Revolução Verde

Os resultados da análise permitem constatar que a Revolução Verde, concebida como solução tecnológica para a fome mundial, produziu efeitos ambivalentes que ainda reverberam. Para Borlaug (2002), a difusão de sementes híbridas e o uso intensivo de insumos químicos constituíram a base de um modelo agrícola altamente produtivo, responsável por evitar crises de abastecimento em diferentes países. Todavia, conforme Moura et al. (2013), no Brasil esse processo acentuou a concentração fundiária, favorecendo grandes proprietários e marginalizando agricultores familiares, ao mesmo tempo em que acelerou o êxodo rural e desarticulou comunidades tradicionais.

Do ponto de vista ambiental, as consequências também foram marcantes. Shiva (2016) enfatiza que a erosão da biodiversidade, a degradação do solo e a contaminação de mananciais foram resultados diretos da imposição de monoculturas em larga escala. A autora observa ainda que a promessa de combate à fome revelou-se contraditória, uma vez que ampliou a dependência de insumos controlados por corporações transnacionais, fragilizando a autonomia alimentar dos povos. Nas palavras de Shiva (2016):

“A Revolução Verde não resolveu a fome, mas criou novas formas de dependência e exclusão. Ao promover monoculturas, destruiu a biodiversidade agrícola e reduziu a resiliência das comunidades camponesas, submetendo-as à lógica do mercado global e à dominação de grandes corporações transnacionais” (SHIVA, 2016, p. 33).

Essa crítica converge com as reflexões de Abramovay (2000), para quem a Revolução Verde não pode ser entendida apenas como avanço técnico, mas como parte de um modelo de desenvolvimento orientado pela modernização conservadora.

“O padrão de modernização agrícola consolidado pela Revolução Verde ampliou desigualdades sociais e econômicas, beneficiando sobretudo os grandes produtores, ao mesmo tempo em que reforçou a dependência tecnológica e financeira dos agricultores familiares. Trata-se de um processo que, em vez de promover autonomia, consolidou mecanismos de subordinação ao mercado internacional e às grandes corporações de insumos” (ABRAMOVAY, 2000, p. 86).

É justamente nesse cenário de contradições estruturais que emergem práticas alternativas, como a Agricultura Urbana, que se configuram não apenas como resposta às limitações do modelo hegemônico, mas também como possibilidade concreta de construção de novas racionalidades socioambientais

4.2 Agricultura Urbana como resistência

Em contraposição ao paradigma da Revolução Verde, os resultados apontam para a Agricultura Urbana (AU) como prática contra hegemônica que articula dimensões sociais, econômicas, ambientais e culturais no espaço urbano. Segundo Mougeot (2000), a AU deve ser compreendida em sua multifuncionalidade, englobando a produção de alimentos, a geração de renda, a promoção da inclusão social e a construção de novas formas de sociabilidade:

“A agricultura urbana não deve ser vista unicamente como uma forma marginal de subsistência, mas como componente estratégico dos sistemas alimentares das cidades. Sua multifuncionalidade a conecta com questões de saúde pública, educação, emprego e sustentabilidade ambiental, exigindo políticas que reconheçam e fortaleçam seu papel nos ecossistemas urbanos” (MOUGEOT, 2000, p. 12).

No contexto brasileiro, Santandreu & Lovo (2007) identificam a Agricultura Urbana como fenômeno multidimensional, abrangendo desde o autoconsumo até a comercialização em pequena escala, passando por doações, trocas e iniciativas de caráter solidário.

“A agricultura urbana no Brasil não pode ser compreendida apenas como atividade econômica. Ela se manifesta em múltiplas dimensões, incluindo a geração de renda, a promoção da segurança alimentar, a conservação ambiental e a inclusão social. Essa diversidade de funções lhe confere um caráter estratégico para o desenvolvimento sustentável das cidades, especialmente em contextos de vulnerabilidade” (SANTANDREU & LOVO, 2007, p. 45).

A dimensão política da Agricultura Urbana reforça seu caráter de resistência. Conforme Abramovay (2000), essas práticas ressignificam a ruralidade no espaço urbano, instaurando novas territorialidades e rompendo com a dicotomia entre campo e cidade. Essa perspectiva é complementada por Lefebvre (2001), ao destacar que o direito à cidade implica a capacidade coletiva de transformar os espaços urbanos. Como afirma o autor:

“O direito à cidade vai além da simples presença física no espaço urbano. Ele significa o poder de moldar e reinventar a cidade de acordo com as necessidades humanas, culturais e sociais. Nesse sentido, práticas como a agricultura urbana devolvem aos cidadãos a possibilidade de apropriar-se do espaço e de redefini-lo como território de vida, solidariedade e emancipação” (LEFEBVRE, 2001, p. 102).

Sob essa ótica, a Agricultura Urbana não pode ser reduzida ao âmbito econômico, pois afirma-se como prática de resistência, de reapropriação do território e de fortalecimento das redes comunitárias.

4.3 Perspectivas nacionais e internacionais

A análise comparativa evidencia que a Agricultura Urbana (AU), tanto no Brasil quanto em outros países, tem se consolidado como estratégia de resistência socioambiental, de promoção da soberania alimentar e de enfrentamento das crises contemporâneas relacionadas à alimentação, ao meio ambiente e à exclusão social. Essa consolidação revela-se ainda mais significativa em contextos marcados por crises econômicas, ambientais ou urbanas, nos quais a AU assume protagonismo como alternativa viável de resiliência. Em Havana, segundo Boukharaeva, Chianca & Marloie (2007), a institucionalização da AU como política pública após a crise econômica da década de 1990 possibilitou elevados índices de autossuficiência alimentar e uma reorganização radical da relação entre cidade e campo.

“A agricultura urbana cubana não se limitou a resolver o problema emergencial do desabastecimento. Ela se consolidou como política de Estado, garantindo altos níveis de autossuficiência alimentar e criando uma nova racionalidade no planejamento urbano, em que o alimento é considerado parte da infraestrutura essencial da cidade” (BOUKHARAEVA; CHIANCA & MARLOIE, 2007, p. 57).

Nos Estados Unidos, Detroit tornou-se um exemplo emblemático de como a AU pode emergir em territórios marcados pela desindustrialização, pela pobreza e pela fragmentação social. De acordo com Mougeot (2000), as hortas comunitárias constituíram-se não apenas como espaços de cultivo, mas como ferramentas de resistência comunitária e revitalização urbana.

“As hortas urbanas de Detroit, ao ocupar terrenos abandonados pela indústria, transformaram-se em espaços de produção de alimentos, mas também em centros de solidariedade e reconstrução comunitária. Elas não apenas enfrentam a fome, mas restauram laços sociais, recuperam territórios degradados e recriam sentidos de pertencimento urbano” (MOUGEOT, 2000, p. 23).

Na Europa, Paris representa um caso paradigmático da incorporação da Agricultura Urbana às políticas ambientais e de mitigação climática. Conforme relatório da ONU-Habitat (2020), projetos de cultivo urbano em telhados, muros e terrenos baldios não apenas contribuem para a segurança alimentar, mas também integram estratégias de adaptação ecológica e de redução das emissões de carbono. O documento ressalta:

“O futuro das cidades dependerá, em grande parte, da capacidade de integrar práticas agroecológicas em seus territórios. Iniciativas de agricultura urbana em telhados, fachadas e terrenos baldios parisienses demonstram que o cultivo urbano não é apenas alternativa marginal, mas componente essencial de políticas de adaptação climática, de combate à insegurança alimentar e de regeneração dos espaços públicos” (ONU-HABITAT, 2020, p. 41).

No Brasil, a literatura evidencia um movimento de crescente valorização da AU, sobretudo em grandes centros urbanos. Santandreu & Lovo (2007) demonstram que, em São Paulo e Belo Horizonte, iniciativas comunitárias transformaram terrenos baldios em hortas produtivas, promovendo segurança alimentar e educação ambiental. Moura et al. (2013) reforçam que essas experiências, ao mesmo tempo em que contribuem para o abastecimento alimentar, também revelam limites estruturais, como a falta de políticas públicas consistentes e a dependência de iniciativas voluntárias. Essas iniciativas, ainda que locais, mostram-se alinhadas com a Lei nº 14.935/2024, que institui a Política Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana, representando um marco legal que reconhece a importância da AU na construção de cidades mais sustentáveis. Esses resultados dialogam diretamente com as reflexões de Santos (2008), para quem a produção do espaço urbano é resultado de disputas e contradições que refletem racionalidades conflitantes.

“O espaço não é apenas um palco onde se desenrolam as ações sociais, mas um produto social em si mesmo, permeado por contradições e conflitos. A agricultura urbana, nesse contexto, pode ser compreendida como prática que inscreve novas lógicas de uso, transformando o espaço em território de resistência e de construção de novas formas de vida” (SANTOS, 2008, p. 143).

Nessa mesma direção, Abramovay (2000) defende que a Agricultura Urbana constitui um caminho para a reinvenção das cidades, conciliando justiça social, sustentabilidade ecológica e democratização territorial.

“A agricultura urbana e periurbana oferece às cidades a possibilidade de repensar sua própria organização social e territorial. Ao incorporar o alimento como bem comum e não apenas como mercadoria, essas práticas permitem a construção de novas formas de sociabilidade, ampliam a autonomia comunitária e instauram uma racionalidade que concilia justiça social e sustentabilidade ecológica” (ABRAMOVAY, 2000, p. 112).

Essa perspectiva indica que a Agricultura Urbana, ao ser reconhecida e apoiada por políticas públicas, pode constituir-se não apenas em estratégia de abastecimento local, mas em fundamento de uma nova racionalidade urbana, capaz de superar os limites impostos pelo modelo produtivista da Revolução Verde.

5. CONCLUSÃO/CONSIDERAÇÕES FINAIS

A investigação demonstra que a Agricultura Urbana, quando orientada por princípios agroecológicos, configura-se como prática de resistência socioambiental às contradições estruturais da Revolução Verde. A análise confirma o alcance dos objetivos propostos ao evidenciar que a Agricultura Urbana transcende a função produtiva, assumindo papel estratégico na promoção da soberania alimentar, na requalificação de territórios urbanos e no fortalecimento de novas formas de sociabilidade. 

Constata-se que a multifuncionalidade da Agricultura Urbana integra dimensões econômicas, sociais, culturais e ambientais, articulando produção de alimentos, conservação dos recursos naturais e inclusão comunitária. A pesquisa identifica que tais práticas instauram racionalidades alternativas ao modelo agroindustrial hegemônico, redefinindo o uso do espaço urbano e ampliando as condições para o exercício do direito à cidade.

O estudo contribui teoricamente ao aprofundar a compreensão da Agricultura Urbana como fenômeno político e socioambiental e, em termos práticos, ao oferecer subsídios para a formulação de políticas públicas voltadas ao planejamento urbano e à segurança alimentar. Reconhece-se, entretanto, como limitação, a ausência de trabalho de campo junto a agricultores urbanos, o que restringe a dimensão empírica da análise.

Conclui-se que a Agricultura Urbana constitui alternativa necessária à superação das fragilidades do modelo produtivista da Revolução Verde, reafirmando-se como instrumento de transformação socioambiental e de construção de cidades mais justas, resilientes e sustentáveis.

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