ADOLESCÊNCIA E IMAGEM CORPORAL: UMA ARTICULAÇÃO A PARTIR DO CONCEITO DE NARCISISMO

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ch10202508121632


 Alex de Andrade Moura1
Dr. Eloy San Carlo Maximo Sampaio2


RESUMO

Este trabalho busca investigar o processo do adolescer em articulação com conceitos de narcisismo e imagem corporal a partir do referencial psicanalítico. Considera-se a adolescência como um período marcado por mudanças psíquicas, corporais e na maneira de se relacionar com as figuras parentais. Na contemporaneidade, a adolescência se constitui como um ideal cultural juntamente com o corpo que assume valor central em nossa sociedade. para sua construção, utilizou-se o método de pesquisa qualitativa de caráter exploratório-descritivo, a partir de revisão bibliográfica de obras publicadas nas plataformas Scielo (Scientific Electronic Library Online), Pepsic (Períodos eletrônicos em psicologia) e BDTD (Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações). Conclui-se que todo o processo de constituição psíquica, bem como o narcisismo, assume papel fundamental na elaboração que o sujeito realiza de sua própria imagem, o que equivale dizer que as transformações que ocorrem no âmbito da puberdade modificam a relação que o adolescente estabelece com a imagem que tem de si. 

Palavras-chaves: Adolescência, Imagem corporal, Narcisismo, Psicanálise

ABSTRACT

This work seeks to investigate the adolescent’s process in conjunction with concepts of narcissism and body image based on the psychoanalytic framework. Adolescence is considered a period marked by psychic changes, bodily and in the way of relating with parental figures. In contemporary times, adolescence is constituted as a cultural ideal along with the body that assumes a central value in our society. For its construction, a qualitative exploratory-descriptive research method was used, based on a bibliographical review of works published on the Scielo (Scientific Electronic Library Online), Pepsic (Electronic Periods in Psychology) and BDTD (Brazilian Digital Library of Psychology) platforms. Theses and Dissertations). It is concluded that the whole process of psychic constitution, as well as narcissism, assumes a fundamental role in the elaboration that the subject performs of his own image, which is equivalent to saying that the events that occur during puberty modify the relationship that the adolescent establishes with the image he has of himself.

Key-words: Adolescence. Self-image. Narcissism. Psychoanalysis.

INTRODUÇÃO

O adolescer e a imagem corporal são temas cruciais para teoria psicanalítica que juntos contribuem para que se avance acerca das discussões sobre os ideais e o mal-estar na atualidade. O objetivo deste trabalho é buscar investigar o papel que desempenha o narcisismo na reconstituição da imagem corporal no processo de adolescer. Freud não chegou a se debruçar especificamente sobre adolescência, mas tratou da puberdade como processo final da maturação psicossexual do sujeito em seu texto Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade. (Coutinho, 2009). 

Neste trabalho buscamos privilegiar os aspectos constitutivos do sujeito dando ênfase ao narcisismo e a imagem corporal para pensar como esse sujeito, se reconfigura diante das transformações que o corpo insere sob o psiquismo. Na adolescência, o corpo infantil já não se sustenta, é preciso que uma nova reconstrução da imagem de si seja realizada, agora um corpo estranho se faz presente e que produz angústia frente às exigências culturais da modernidade. Birman (2020) aponta que com os valores da modernidade em franca decadência, o corpo na contemporaneidade se tornou nosso bem supremo, fazendo deste o grande ideal a ser trabalhado, juntamente com a juventude e a estética que se impõem como imperativos na atualidade. 

Na contemporaneidade, a imagem de si assume valor central sem o qual muitas das pessoas não se reconhecem. A construção deste trabalho parte do problema de pesquisa: Qual o papel que desempenha o narcisismo na constituição da imagem corporal para a adolescência? 

As transformações que ocorrem na puberdade não se dão somente nos limites do corpo, mas incidem de um círculo restrito à família e estendem-se as identificações com outros grupos e pessoas na puberdade. Dessa forma buscamos realizar uma articulação entre os conceitos de narcisismo, instâncias ideais e a identificação, a saber em específico pela profunda relação que estes estabelecem com o processo de reelaboração que o sujeito efetua com si e em seus investimentos nesta fase da vida. Acredita-se que as contribuições que este tipo de estudo promove está relacionado à apropriação e aprofundamento teórico acerca do processo de constituição subjetiva do adolescente para a psicanálise, além disso permite tensionar a teoria psicanalítica com relação as novas formas de subjetivação e sofrimento advindas da contemporaneidade estabelecendo novos questionamentos para pesquisas futuras. 

Por fim, realizamos pesquisas em bases cientificas como Scielo (Scientific Eletronic library Online), Pepsic (Periódicos eletrônicos em Psicologia) e BDTD (Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações), também buscando referências na obra de Freud e Lacan para posteriormente realizar uma análise minuciosa de entrelaçamento das temáticas, ao final desenvolvemos alguns dos aspectos relativos à imagem corporal na intersecção com a adolescência, apontando a aquisição da própria imagem como fundamental para a identidade do sujeito e sua subjetivação nos processos relativos ao estar com o outro.

A constituição psíquica do adolescente para a psicanálise

A adolescência é um conceito que se concebe no seio da sociedade, decorrentes de processos históricos e culturais que estruturam o seu entendimento atualmente. De maneira concomitante, além da importância de se compreender os processos sociais que engendram essa vivência, tão crucial da vida humana, devemos lembrar que esta fase é atravessada por questões psíquicas de primeira ordem e que se nos detivermos mais detalhadamente acerca dessas vivências, chegaremos ao entendimento de que esta tem raízes na primeira infância. 

Freud em seu texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/1996), reconhece que a sexualidade humana está presente desde o começo da vida, diferente da ideia do senso comum de uma ausência da sexualidade na infância. Para ele, as manifestações da sexualidade na infância estariam relacionadas a manutenção da vida, como o chuchar, que é uma atividade prazerosa, que contribui para a alimentação, mas que estaria para além da saciedade no alimento. O argumento acerca da sexualidade infantil provocou diversos equívocos acerca da ideia, muitas vezes compreendida como referida à genitalidade, é comum que ainda hoje muitos leitores se confundam e reproduzam uma noção distorcida acerca da sexualidade infantil. Apesar disso, Freud em seu trabalho deixa evidente que existe uma diferença marcante entre sexualidade e genitalidade. 

A manifestação da sexualidade pelo exemplo do chuchar, pode ser entendida como a tentativa de repetição de uma experiência prazerosa, decorrente da amamentação, mas que a partir da pulsão sexual, busca satisfação no próprio corpo da criança. A boca como fonte de prazer, torna-se uma zona erógena e acaba por assinalar a sexualidade infantil como sendo essencialmente auto-erótica. Além disso, a pulsão tem característica de parcialidade, ou seja, são independentes entre si na busca por satisfação e possuem uma fonte, podendo esta ser oral, anal e genital. Sendo assim a pulsão tem a especificidade de buscar resolver as tensões internas do aparelho psíquico elegendo determinadas partes do corpo como alvo para a satisfação dessas tensões. Assim como o chuchar tendo a boca como fonte de prazer, outras partes do corpo também poderiam vir a ser potencialmente zonas erógenas, oferecendo a criança a possibilidade de satisfação a partir do estímulo adequado destas zonas. 

Freud identifica na sexualidade infantil diferentes fases de desenvolvimento, sendo que a primeira fase desse processo estaria relacionada aos caracteres orais, a partir da primeira fonte de prazer, que seria a amamentação. 

É fácil adivinhar também em que ocasiões a criança teve as primeiras experiências desse prazer que agora se esforça para renovar. A primeira e mais vital das atividades da criança – mamar no seio materno (ou em seus substitutos) – há de tê-la familiarizado com esse prazer. Diríamos que os lábios da criança comportaram-se como uma zona erógena, e a estimulação pelo fluxo cálido de leite foi sem dúvida a origem da sensação prazerosa. (Freud, 1905/1996, p.171.)

É a partir da perda desta primeira experiência alucinatória de completude entre mãe e bebê proporcionada a partir do seio materno que o sujeito vai buscar reencontrar em outros objetos essa mesma experiência.  Na perda do objeto, o sujeito se depara com a experiência que remete a um momento mais primitivo, uma condição de falta do objeto, que vai demandar um trabalho de elaboração que seja capaz de simbolizar o seio materno como signo de satisfação (SANTOS, 2014). Ao exemplo da perda do seio materno, o bebê busca encontrar no chuchar ou na sucção do polegar, o substituto, a repetição dessa primeira experiência de prazer. Desta forma, a partir deste processo, é possível que exista um deslocamento para outras partes do corpo desta condição de satisfação.

A segunda fase do desenvolvimento psicossexual infantil, Freud descreve como sendo a fase anal. Nesta fase o sujeito busca satisfação através da estimulação da mucosa anal, procurando na retenção ou expulsão das fezes uma tentativa de modular o prazer que se obtém através desta atividade. Pode-se ressaltar a função de interdito que a educação exerce neste ponto, intervindo no prazer infantil da defecação através da adição dos primeiros elementos do ideal civilizatório. 

Tal como a zona dos lábios, a zona anal está apta, por sua posição, a mediar um apoio da sexualidade em outras funções corporais. É de presumir que a importância dessa parte do corpo seja originariamente muito grande. Inteiramo-nos pela psicanálise, não sem certo assombro, das transmutações por que normalmente passam as excitações sexuais dela provenientes e da frequência com que essa zona conserva durante toda a vida uma parcela considerável de excitabilidade genital. (FREUD, 1905/1996, p.175.)

Seguindo o caminho do desenvolvimento libidinal, após superada a fase anal, o sujeito se depara com um terceiro momento, a fase fálica. Uma das características marcantes dessa fase é que apesar de não desempenhar papel principal, sua forma se assemelha muito com a organização da sexualidade no adulto que é orientado, como Freud aponta, pela primazia do genital. Todavia, nesta fase não existe ainda uma diferenciação anatômica entre os sexos que só deve ocorrer a partir da instauração do complexo de édipo. 

Tanto para o menino como para a menina, o desenvolvimento libidinal ocorre de maneira idêntica, organizando assim as pulsões parciais para uma unificação sob a primazia do genital. É característica importante que a partir da excitabilidade da zona genital, o menino se apodere de pênis e a menina do clitóris e buscam sentir prazer através de sua manipulação. O complexo de castração, elemento que surge concomitante à fase fálica, aparece relacionado a imposição social da proibição da atividade masturbatória, onde na fantasia da criança, os pais ameaçam castrar o órgão que é valorizado. Essa interdição e inserção normativa se torna muito importante para um outro processo conhecido como complexo de édipo.  Contudo, como mencionado anteriormente, não existe uma diferenciação entre os sexos até este momento, somente quando a criança se depara com o órgão genital oposto de uma outra criança é que isso muda, mas ainda assim a diferença estaria situada na presença ou ausência do pênis. Segundo Laplanche e Pontalis (1994, p. 73) 

A estrutura e os efeitos do complexo de castração são diferentes no menino e na menina. O menino teme a castração como realização de uma ameaça paterna em resposta às suas atividades sexuais, surgindo daí uma intensa angústia de castração. Na menina, a ausência do pênis é sentida como um dano sofrido que ela procura negar, compensar ou reparar.

Se tratando do complexo de édipo também vivenciado na fase genital, refere-se em sua organização a vinculação do menino com a mãe e o ódio pelo pai, representando o interdito ao objeto materno. Essa relação compreende a emergência de um conflito entre a realização da satisfação no objeto materno e a manutenção do órgão genital valorizado. Desta forma, o menino na iminência do complexo de castração, suspende a busca da realização do amor pela mãe e passa a se identificar com pai, buscando assim outros objetos de amor. Segundo Freud, “com ele tem início o período de latência, que interrompe o desenvolvimento sexual da criança” (1924/2011, p. 209).

O complexo de édipo na menina traz características tão específicas que faz deste processo um tanto quanto enigmático. A menina antes de chegar ao complexo propriamente dito passa por uma fase pré-edipiana.  “Como o menino, a menina tem como objeto primeiro a mãe, e só depois passa a fixar-se no pai” (TALLAFERRO, 1999, p.160). Neste período, a criança acredita ser detentora do falo, contudo, ao se deparar com a diferença sexual no menino, acaba por se reconhecer como sendo despossuída do objeto de prestígio. Estabelece, assim, o que Freud chamou de inveja do pênis ou inveja do falo. Para Tallaferro (1999, p.160), “a falta de pênis que a menina observa em si mesma, ao comparar-se com os outros, provoca uma reação de ódio à mãe, pelo fato de considerar que ela privou de um pênis”. É então a partir desta constatação que a menina se afasta da mãe e busca se ligar ao pai,  quem ela acredita ser o possuidor do Falo; que passa a ser então seu objeto de amor. A mudança no objeto de amor traz consigo características importantes, a menina se identifica com a mãe e intensifica sua feminilidade. Além disso, a zona erógena prioritária da menina, o clitóris, passa por um deslocamento de parte de sua excitabilidade, bem como sua importância para a vagina. “A menina passa a desejar genitalmente seu pai” (TALLAFERRO, 1999, p.160). Para Freud, o complexo de édipo na menina culmina no desejo de receber de seu pai um bebê, quer lhe dar um filho, contudo, diante da impossibilidade do desejo incestuoso é que o complexo vai gradativamente sendo abandonado.

As análises parecem demonstrar que é a experiência de desapontamento penosos. […] a ausência da satisfação esperada, a negação continuada do bebê desejado, devem, ao final, levar o pequeno amante a volta as costas ao seu anseio sem esperança. Assim, o complexo de Édipo se encaminharia para a destruição por sua falta de sucesso, pelos efeitos de sua impossibilidade interna. (FREUD, 1924/2011, p.204.)

O período de latência descrito por Freud é marcado pelo desvio das pulsões sexuais de seu destino de satisfação direta. Trata-se de um período em que o desenvolvimento psicossexual da criança fica parcialmente detido, “como consequência do complexo de castração, a criança entra numa época de calma sexual, durante a qual o id se aplaca, o ego se reforça e o superego, “herdeiro” do complexo de Édipo, atua com mais severidade” (TALLAFERRO, 1999, p.160). Ocorre que certos entraves relativos à pulsão surgem intensificados (asco, vergonha, exigências dos ideais estéticos e morais) destinando as forças pulsionais o desvio de suas metas sexuais e orientando-as para novos fins, possibilitando a disposição da criança a atividades humanas (ciência, artes, etc.), chamada de sublimação. 

A puberdade marca o fim do período de latência, traz em seu bojo mudanças definitivas no desenvolvimento sexual do sujeito. A sexualidade infantil tendo seu fim na unificação pulsional sob o primado do genital, realiza seu curso em direção a um objeto que não é mais seu próprio corpo, portanto, deixa de ser auto-erótica. Verifica-se na puberdade um redespertar das pulsões sexuais e das inclinações infantis de sua primeira escolha de objeto. Contudo, como consequência do complexo de édipo, opera-se a barreira do incesto. Segundo Freud (1905/1996, p.213.)

O respeito a essa barreira é, acima de tudo, uma exigência cultural da sociedade, esta tem de se defender da devastação, pela família, dos interesses que lhe são necessários para o estabelecimento de unidades sociais superiores, e por isso, em todos os indivíduos, mas em especial nos adolescentes, lança mão de todos os recursos para afrouxar-lhes os laços com a família, os únicos que eram decisivos na infância. 

De acordo com Freud, a escolha objetal do sujeito ocorre em dois tempos. A primeira,  na infância, onde a criança tem como seu primeiro objeto de amor a mãe e busca encontrar em seus substitutos o retorno da primeira experiência de satisfação. A segunda, ocorre na puberdade, caracteriza-se pela escolha do objeto de amor que esteja distante das figuras de cuidado e que represente um afastamento do objeto incestuoso. Para Freud, o encontro de um objeto é na realidade um reencontro, essa afirmação se dá especialmente pelo fato de que na puberdade os sentimentos relacionados aos pais que são construídos desde a infância retornam neste período. As características da segunda escolha objetal que ocorre na adolescência são pautadas sobretudo pela incidência no plano psíquico pelas fantasias edípicas vividas na infância. O adolescente ao se distanciar das figuras paternas busca, sobretudo, ascender frente a essas vivências edípicas, busca não ser mais reconhecido como criança; busca ser capaz de encontrar sozinho no mundo seus próprios objetos de amor. Segundo Freud:

É na [esfera da] representação que se consuma inicialmente a escolha do objeto, e a vida sexual do jovem em processo de amadurecimento não dispõe de outro espaço que não o das fantasias, ou seja, o das representação não destinadas a concretizar-se. Nessas Fantasias, as inclinações infantis voltam a emergir em todos os seres humanos, agora reforçados pela premência somática, e entre elas, com frequência uniforme e em primeiro lugar, o impulso sexual da criança em direção aos pais, quase sempre já diferenciada através da atração pelo sexo oposto: a do filho pela mãe e a da filha pelo pai. Contemporaneamente à subjugação e ao repúdio dessas fantasias claramente incestuosas consuma-se uma das realizações psíquicas mais significativas, porém também mais dolorosas, do período da puberdade: o desligamento da autoridade dos pais, unicamente através do qual se cria a oposição, tão importante para o progresso da cultura, entre a nova e a velha gerações. (1905/1996, p.213-214).

Com isso, o adolescente tem de realizar um trabalho de reelaboração no plano psíquico destas novas configurações que emergem em relação ao seu próprio corpo e a maneira de se relacionar com os referenciais da primeira infância. O que se evidencia é que todas essas mudanças, referidas a intensificação pulsional, transformam significativamente a maneira com que este lida com sua própria imagem corporal e com os ideais parentais. “Se o corpo da infância tornou-se familiar e bem mapeado, o corpo da adolescência surge como uma surpresa e um mistério a ser desvendado” (CIDADE E ZORNIG, 2021, p.133).  De fato, o corpo infantil já não se sustenta, os pelos crescem, o nariz, a orelha, assim como os braços e pernas se alongam, nem mesmo a própria voz persiste sendo a mesma da infância, trata-se de um corpo estranho ao adolescente. Tais mudanças possibilitam que este se coloque de maneira integral na relação com um outro, um corpo que nada difere de um adulto. “O corpo deverá se remanejar sem cessar, inevitavelmente para dominar o impacto traumático da força pulsional” (BIRMAN, 2019, p.70).

O processo de elaboração do qual o adolescente se depara, perpassa também a relação com os pais que frente a essa nova configuração possam reconhecer o mesmo enquanto sujeito. O desligamento da autoridade paterna diz respeito ao momento em que o adolescente é capaz de encontrar novas formas de se relacionar e de se identificar com outros referenciais que não somente os pais idealizados. Segundo Santos “apesar de seu supereu ter se formado a partir de referenciais oriundas de suas primeiras identificações, essas referências agora devem ser questionadas” (2014, p.72). A adolescência é o momento em que o sujeito busca articular suas ideias e opiniões e ser ouvido em relação às mesmas, tem pensamentos e querem que estes possam encontrar espaço para expressão. Buscam poder viver e se colocar na relação com o outro, mesmo que diferentemente da maneira como seus pais ou sua família se colocam. Os ideais parentais são insuficientes para dar conta da realidade pulsional que se apresenta para o adolescente, surge então a busca por encontrar na relação com outros grupos, novos referenciais com que possam se identificar. Os professores são fundamentais na reformulação das identificações do adolescente que apesar destes buscarem recuperar na figura do professor as primeiras imagos dos pais na infância, possibilita com este movimento que os investimentos libidinais se estendam a um contexto mais amplo (FREUD, 1914/2012).

As etapas que se sucedem no âmbito psíquico possibilitam que o sujeito passe de um círculo bastante restrito dos pais a um movimento em direção a outros grupos na qual poderá se agrupar e ser acolhido, o que não ocorre de maneira fácil. Aliado a esses processos de transformação no âmbito do objeto da pulsão, outras modificações na economia libidinal passarão por um processo de reestruturação ao qual tenderão a apontar para o futuro a busca da satisfação. São as instâncias ideais e as identificações que darão o tom destas realizações, sendo efetivamente um dos caminhos ao qual os adolescentes poderão partir para se situar na busca por suas realizações.

1.4 O adolescer e o narcisismo: instâncias ideais e identificação 

É precisamente na obra Introdução ao Narcisismo de 1914 que Freud vem abordar a noção de ideal de eu e eu ideal, conceitos fundamentais para compreensão acerca da constituição psíquica do adolescente. Considerando que este momento perpassa por diversas transformações em relação às figuras de cuidado, a vivência pulsional do corpo e a reedição do édipo que acabam por impelir o adolecente a elaborar uma reconstrução de seu próprio narcisismo (COUTINHO, 2009). O termo narcisismo foi mencionado por Freud em primeira mão em uma das atas da Sociedade psicanalítica de Viena, conhecida também como Sociedade das quartas-feiras em 03 de novembro de 1909, ocasião em que uma nova edição dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade estava para ser publicada. É certo que algumas discussões iniciais já haviam sido realizadas entre Freud e Jung em algumas correspondências, mas o termo não havia ainda sido utilizado (GUIMARÃES, 2012). 

 Em Introdução ao Narcisismo (1914/2010), Freud atribui a criação do termo a Paul Nacke, como aponta no trecho a seguir: 

O termo “Narcisismo” vem da descrição clínica e foi escolhido por P.Nacke3, em 1899, para designar a conduta em que o indivíduo trata o próprio corpo como se este fosse o de um objeto sexual, isto é, olha-o e toca nele e o acaricia com prazer sexual, até atingir pela satisfação mediante esses atos. (p.14) 

O termo atribuído por Freud à psicanálise faz referência ao mito de Narciso de Ovídio em Metamorfoses. O mito conta a história de Narciso, filho do deus Céfiso e da ninfa Liríope que acaba por ser vingado por Nêmesis por repelir Eco. Durante uma caçada, Narciso vê sua imagem refletida em uma fonte e apaixona-se pela mesma, contudo acredita estar vendo um outro ser e lança-se em direção às águas para o encontro, constata que o objeto de seu amor é na verdade ele mesmo e então tenta se separar de sua própria pessoa, ferindo-se até a morte e transformando-se em uma flor (ROUDINESCO e PLON, 1998).

Partindo da hipótese acerca do Narcisismo4, Freud afirma que existiriam duas formas de escolha de objeto preponderantes, em um momento primeiro, o objeto de amor para a criança é a figura que provem a amamentação ou o cuidado. Todavia, já em um momento posterior na vida do sujeito, poderíamos dizer já na adolescência, é elaborada uma segunda escolha, que curiosamente segue essa primeira tendência, ou seja, um objeto de amor segundo a figura materna da criança ou do cuidador. Dessa forma, esse tipo de escolha de objeto de amor se trata como Freud descreveu como de um tipo por “apoio”. Todavia, ao investigar a condição da sexualidade perversa em seu estudo Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (1905), texto esse que é anterior a Introdução ao Narcisismo (1914), Freud identifica uma diferença em relação a escolha de objeto dos chamados invertidos. Esta segunda forma de escolha de objeto é conhecida como do tipo narcísica. Para ele:

Em todos os casos investigados, constatamos que os futuros invertidos atravessaram, nos primeiros anos de sua infância, uma fase muito intensa, embora muito breve de fixação na mulher (em geral, a mãe), após cuja superação identificaram-se com a mulher e tomaram a si mesmo como objeto sexual, ou seja a partir do narcisismo buscaram homens jovens e parecidos com sua própria pessoa, a quem eles devem amar tal como a mãe os amou (FREUD, 1905/1996, P.137).

A partir da análise acerca das diferentes possibilidades de vinculação da escolha amorosa e que estão conferidas a todos os indivíduos, Freud (1914) aponta que o ser humano tem primariamente dois tipos de objeto sexuais como citadas acima: ele mesmo e a mulher que o cria. Propõe que a partir disso todo indivíduo dispõe de um narcisismo primário que ora ou outra pode se manifestar de maneira preponderante em sua escolha de objeto. Além disso, em seu texto Introdução ao narcisismo (1914), Freud aponta que em relação ao narcisismo ele se divide em duas etapas, o narcisismo primário e o narcisismo secundário. Em primeira mão o narcisismo primário seria uma condição do desenvolvimento que estaria compreendida entre o auto-erotismo e o amor objetal estando presente em todos os sujeitos. Já de maneira diversa o narcisismo secundário seria um retorno da libido objetal ao Eu.

Freud se detém a descrever determinada parte da construção de seu texto sobre a forma de amor narcísica que alguns pais nutrem pelos seus filhos. Para ele essa forma de amor se dá sobretudo porque a criança foi em algum momento uma parte dos próprios pais.

O nascimento de uma criança é sempre uma oportunidade de resgatar dinâmicas e desejos abandonados. Mais precisamente, o que é revivido é o narcisismo dos pais. Tudo aquilo que, ao longo de suas vidas, foram obrigados a reconhecer como signos da castração são suspensos (GUIMARÃES, 2012, p.86). 

O que os pais pretendem com esse investimento é em especial por ocasião resgatar as vivências de seu período infantil, depositando sobre a criança a tarefa da realização desses ideais, uma vez abandonados na vida adulta, ou seja, em outras palavras, representa reviver na criança esse momento de completude imaginária ao qual um dia se experimentou em sua infância.

Ela deve concretizar os sonhos não realizados de seus pais, tornar-se um grande homem ou herói no lugar do pai, desposar um príncipe como tardia compensação para a mãe. No ponto mais delicado do sistema narcísico, a imortalidade do Eu, tão duramente acossada pela realidade, a segurança é obtida refugiando-se na criança. O amor dos pais, comovente e no fundo tão infantil, não é outra coisa senão o narcisismo dos pais renascido, que na sua transformação em amor objetal revela inconfundivelmente a sua natureza de outrora (FREUD, 1914/2010, p.37).

Esta dinâmica se evidencia de maneira imprescindível na adolescência, sobretudo por representar a recusa por parte do adolescente a esta imposição vinda dos pais da realização destes ideais. É neste momento então que o adolescente busca se distanciar dos ideais parentais anteriormente instituídos. 

Não há dúvida que esse processo é árduo, afinal, há muita resistência em se abandonar o “eu narcísico”. Além disso, desinvestir as figuras parentais libidinalmente e superar o Édipo não são tarefas fáceis para o adolescente, em função  da importância e complexidade que marcam a relação com o objeto a ser abandonado (GOMES, 2021, p.259).

Fundamentalmente pensar as consequências de se ocupar este lugar que Freud denominou de A majestade o Bebê, mostra-se de grande relevância para esta discussão, em especial por se tratar de uma relação que como Guimarães (2012)  destaca, estar nesta posição não é pura e simplesmente estar livre de todas as exigências culturais uma vez colocadas, mas sobretudo arcar com as consequências das idealizações impostas e/ou que se espera deste sujeito. Segundo Santos (2014, p.74),  “a ‘rebeldia’ adolescente parece ser um estilete que corta as amarras desse cativeiro e produz alguma liberdade para ambos”.  

Podemos afirmar que as instâncias ideais e o Eu são aquisições, forjadas a partir dos investimentos feitos pelas pessoas que cercam o indivíduo e que depositam sobre o mesmo todo o tipo de pretensões e desejos que vem a envolver com o sujeito com um “banho de palavras” para usar a expressão de Didier Anzieu em o Eu-pele (1889).  Freud argumenta que: 

é uma suposição necessária, a de que uma unidade comparável ao Eu não existe desde o começo no indivíduo; o Eu tem que ser desenvolvido. Mas as pulsões auto-eróticas são primordiais; então deve haver algo que se acrescenta ao auto-erotismo, uma nova ação psíquica, para que se forme o narcisismo (1914/2010, p.18-19).  

O que é importante destacar é que o narcisismo primário pressupõe a atraente fantasia de completude de que todo ser humano vivencia, relação esta que se dá entre mãe-bebe. Todavia esta relação é consistentemente abalada quando este se depara com o complexo de castração. É quando o sujeito leva então a adotar para si uma espécie de adiantamento deste estado de completude, aquilo que Freud veio a propor como ideal do eu. Destaca-se que este estado de completude não é inteiramente abandonado, ele surge sob a forma deste ideal, mas deriva justamente da formação do Eu ideal, da experiência de completude infantil. 

A esse Eu ideal dirige-se então o amor a si mesmo, que o Eu real desfrutou na infância. O narcisismo aparece deslocado para esse novo Eu ideal, que como o infantil se acha de posse de toda preciosa perfeição. Aqui como sempre no âmbito da libido,o indivíduo se revelou incapaz de renunciar à satisfação que uma vez foi desfrutada. Ele não quer se privar da perfeição narcísica de sua infância e se não pôde mantê-la, perturbado por admoestações durante seu desenvolvimento e tendo seu juízo despertado, procura readquiri-la na forma nova do ideal do Eu. O que ele projeta diante de si como seu ideal é o substituto para o narcisismo perdido da infância, na qual ele era seu próprio ideal (FREUD, 1914/2013, P.40).

O narcisismo primário se trata do investimento massivo no Eu do sujeito, que tem por consequência a possibilidade de que com o excesso de libido acumulado nesta instância, esta seja escoada para outros objetos, como libido de objeto. A libido de objeto acontece por uma exigência econômica, essa mesma que antes era investida no narcisismo primário é então direcionada a outros objetos, contudo nem sempre é possível que estas relações sejam mantidas ou seja, por ocasião de um rompimento essa mesma libido antes investida no objeto retorna ao Eu, seu lugar de origem e assim é o que caracteriza o narcisismo secundário (SAMPAIO E MIGLIAVACCA, 2012).

Essa descrição da dimensão do retorno da libido ao Eu se dá de maneira mais detalhada no texto Luto e melancolia de 1917, onde Freud vai abordar os possíveis processos defensivos que se estabelecem em relação a perda de objeto para o sujeito. Para ele no luto com a perda do objeto, a libido antes investida é retirada e retorna ao Eu, contudo na melancolia este processo carrega suas especificidades. Correlato ao processo de luto, na melancolia ocorre que uma parte ou um traço do objeto é incorporada ao Eu.

Foi nos dado esclarecer o doloroso infortúnio da melancolia, através da suposição de que um objeto perdido é novamente estabelecido no Eu, ou seja um investimento objetal é substituído por uma identificação (FREUD, 1923/2011, p.35).

A identificação como fenômeno clínico é fundamental para o processo inconsciente de constituição subjetiva, Freud assinala acerca deste mecanismo em diversos trabalhos como em A interpretação dos sonhos (1900) acerca dos mecanismos de distorção dos sonhos; no Caso Dora (1905) a respeito da escolha do sintoma; em Introdução ao Narcisismo (1905) se tratando da constituição do Eu; em Luto e Melancolia (1917) sobre a identificação do sujeito com o objeto perdido; em psicologia das Massas e análise do Eu (1921) a respeito dos agrupamentos humanos; em o Eu e o ID ( 1923) acerca dos traços característicos que constituem o  Eu.  “Na obra de Freud, o conceito de identificação assumiu progressivamente o valor central que faz dela mais do que um mecanismo psicológico, entre outros, a operação pela qual o sujeito humano se constitui” (Laplanche e Pontalis, 1994, p. 227). 

Na adolescência, um dos processos ao qual o sujeito tem que realizar é o de luto em relação a separação destas figuras primárias que compuseram o seu montante de investimento inicial, talvez o mais importante trabalho da adolescência. Para Freud (1923), a primeira identificação ao qual o sujeito realiza é com os pais, ou melhor dizendo com o pai (a figura paterna), o que veio a chamar de identificação primária, este processo ocorreria de maneira especial, pois não seria a cargo de um investimento objetal, mas a partir de uma identificação direta, imediata, mais antiga do que qualquer investimento objetal. Esta identificação que ocorre nos períodos mais iniciais da vida assume valor central, pois a internalização da figura paterna seria o que constituiria o cerne do ideal do Eu ou Supereu.

Mas como quer que seja depois a resistência do caráter às influências dos investimentos objetais abandonados, serão gerais e duradouros os efeitos das identificações iniciais, sucedidas da idade mais tenra. Isso nos leva de volta à origem do ideal do Eu, pois por trás dele se esconde a primeira e mais significativa identificação do indivíduo, aquela como pai da pré-história pessoal (FREUD, 1923/2011, p.38). 

A partir de 1923 em O Eu e o Id, a identificação passa a ser levada em consideração não somente como um processo decorrente do funcionamento melancólico, mas passa a23 configurar como determinante na formação do caráter do sujeito, fazendo deste mecanismo mais comum e frequente do que se pode imaginar. “O caráter do Eu é um precipitado dos investimentos objetais abandonados, de que contém a história dessas escolhas de objeto” (1923, p.36). 

Segundo Freud (1923, p.45), “o ideal do Eu é herdeiro do complexo de Édipo”, esse apontamento se dá especialmente porque em um momento inicial da vida do sujeito os pais foram em larga medida destino de quantitativos investimentos do Isso, o que corresponde dizer que grande parte destes investimentos foram alvo de repressão, sobretudo por representar desejos incestuosos, uma vez interrompidos bem ou mal pelo complexo de édipo. Esse interdito ao objeto de desejo se resvalou em um precipitado no Eu. Como consequência, formou-se através da identificação, o ideal do Eu ou o Supereu. A respeito disso, Freud afirma:

Claramente, a repressão do complexo de Édipo não foi tarefa simples. Como os pais, em especial o pai, foram percebidos como obstáculo à realização dos desejos edípicos, o Eu infantil fortificou-se para essa obra de repressão, estabelecendo o mesmo obstáculo dentro de si. (FREUD, 1923/2011, p.43).

 Esse obstáculo interno ao qual Freud se refere diz respeito ao próprio Supereu que uma vez internalizado é capaz de reunir as influências da família e do meio social. O Supereu é sobretudo essa instância capaz de agrupar e articular a relação ao qual o sujeito realiza com os ideais da cultura. A relação que se estabelece com estes ideais na adolescência é a justaposição da separação e a diferenciação que se efetua para que o sujeito possa ser reconhecido enquanto desejante. A instauração destes ideais possibilita uma articulação entre o dever e a negação de ser como a figura paterna.

 A extensa gama de identificações que o sujeito é instigado a realizar na atualidade revela a intensa possibilidade que o adolescente tem de se movimentar em relação a estes primeiros ideais previamente fixados, a partir disso, elaborar sua posição e uma definição de como se dará o seu devir.  Na adolescência, portanto, reconstrói-se o narcisismo, mas também se projeta novos ideais para o futuro, ao qual estes estarão a cargo do adolescente efetuar a sua realização ou não realização se assim lhe couber.

1.5 Imagem corporal e adolescência

Ao tratar da imagem corporal do adolescente, a partir do referencial psicanalítico, sempre temos que ter no horizonte que esta se fundamenta na teoria do inconsciente. Aliás, é disso que se trata este trabalho, discutir imagem corporal no que tange suas especificidades em relação à adolescência. Justamente por não ser especificamente o corpo biológico propriamente dito, mas a imagem que este representa para o sujeito, o que não significa dizer que diante desta colocação as implicações decorrentes desta representação imaginária e simbólica não tenham impactos no corpo real.

Saliento ainda dizer que esta divisão realizada pelo paralelismo psicofísico entre mente e corpo, já a algum tempo superada em psicanálise, por muito foi o que inviabilizou a discussão a respeito do tema, excluindo de toda debate, as proposições que partissem de um ponto de vista biológico. A ciência ocidental buscou capturar para si este corpo biológico, objetivando através da medicina os cuidados relativos a este, reservando e delimitando o campo do psíquico à psicanálise, o que ocorreu de maneira parcial tendo em vista que desde de Freud já se verifica a profunda relação que os fenômenos psíquicos assumem frente ao corpo-biológico (BIRMAN, 2019). 

Verificamos facilmente a importância da imagem corporal para a compreensão dos mais diversos fenômenos na atualidade, situamos prontamente quatro exemplos muito frequentes na clínica psicanalítica: nos casos das conversões na  histeria, nas doenças psicossomáticas, nos fenômenos de alucinação e delírio na psicose5 e ainda mais caro para este trabalho os frequentes casos de automutilação na adolescência. Como aponta Cidade e Zorning  (2021, P.131), “o corpo na adolescência não é apenas uma realidade biológica, mas sim um paradigma essencial para compreender a maior parte das problemáticas deste período”.

Segundo Anzieu (1989), Freud decidiu ao estudar psiquismo, propor a partir dele, um aparelho ou sistema ao qual estivesse articulada a outros subsistemas com funções próprias. Em um primeiro momento nos primórdios da psicanálise, Freud articula esta noção geral do psiquismo ao sistema nervoso da neurologia, ao qual se opera a partir de dois aparelhos (representação coisa e representação objeto), posteriormente, busca em um Projeto para uma Psicologia Científica (1895)  articular estes sistemas, designando-os como neurônios φ – phi, Ψ- psi e ω – ômega, com funções próprias destinadas a cada uma delas. As ideias acerca da primeira tópica (consciente, pré-consciente e inconsciente) e segunda tópica (Isso, Eu e Supereu) respectivamente representadas em A Interpretação dos Sonhos (1900) e em O Eu o Isso (1923), vem a se tornarem os modelos mais atuais de representação do psiquismo dentro da teoria Freudiana, o que se torna valiosíssimo porque é partir destes avanços na noção de aparelho psíquico que Freud vai postular em Além do Princípio do Prazer (1920) a definição do Eu como Interface para o mundo externo, uma vesícula,  um envelope que serviria de superfície ou barreira de contato do psiquismo com o mundo externo, anunciando as teorizações que advogam acerca da experiências relativas ao Eu, de que essas perpassam por experiências que se dão a partir do corpo. Logo em seguida, em 1923, é que se afirma a famosa frase de que “o Eu é sobretudo corporal, não é apenas uma entidade superficial, mas ele mesmo a projeção de uma superfície” (1923/2011, p.32). 

O corpo da infância é sobretudo erógeno, mas não no sentido genital como apontamos no início deste trabalho. Se optamos por situar o auto-erotismo como fundamental para formação da imagem corporal do adolescente é por esta representar o corpo em sua forma mais inicial, um corpo que é essencialmente pulsional. 

Um bebê que pode incorporar o campo da linguagem e que, portanto, está marcado pela pulsão percebe seu corpo como um acúmulo de cortes por onde passa a erotização materna. O bebê percebe o  corpo como uma quantidade de “fatias” erotizadas pela passagem da pulsão. É alimentado na boca, é olhado e olha, é falado, lhe são ditas palavras, palavras especiais, palavras que não dizem a ninguém, com um tom especial; é higienizado. Seu corpo é percebido como corpo fragmentado, composto por fatias que implicam, nem mais nem menos, o gozo auto-erótico. (AMIGO, 2007, p. 257).

Como apontado acima, este corpo da tenra infância se mostra fragmentado, como uma porção de sensações que ao longo do tempo podem ser capazes de serem reunidos e disso fazer unidade em um momento posterior. Em Freud, este movimento ao qual se organiza esta unificação é chamado de “Nova Ação Psíquica”, é a partir da introdução do narcisismo na cena psíquica que se opera essa mudança. Para Jacques Lacan este período se refere ao Estádio do Espelho, momento o qual ocorre a identificação imaginário do sujeito com seu próprio corpo.

 O estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação – e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos de ortopédica – e para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental (LACAN, 1999, p.100).

Segundo Dor (1989), este momento ao qual o sujeito se identifica com sua própria imagem, totalizando por assim dizer uma imagem ortopédica, acontece em três tempos. Em seu primeiro momento a criança vê seu corpo em uma relação de confusão entre si e o outro especular, é a partir deste outro que ela se funda e se orienta, esta etapa está por assim dizer condicionada ao registro imaginário. Em um segundo momento a criança observa que a imagem desse outro refletida no espelho é na realidade apenas uma imagem e não o outro real propriamente dito, desta forma, ela distingue a imagem do outro da realidade do outro. O terceiro momento é capaz de reunir estas duas experiências, a criança então reconhece que esta imagem não é real e se trata da sua própria imagem refletida no espelho, realiza desta maneira uma unificação da imagem de si que representa seu próprio corpo.

Segundo Soler (2017) a proposição de Lacan acerca do estádio do espelho como formador da imagem corporal é de certa forma anterior ao narcisismo, pois se situa antes da constituição do sujeito propriamente dito. O que ocorre em Introdução ao Narcisismo (1914) diz respeito ao posicionamento da libido erótica em relação ao investimento objetal, sobretudo nas figuras parentais inicialmente. Acerca do Estádio do espelho, esse processo ao qual a criança vivencia a unificação de sua imagem ao se ver refletida no espelho, trata-se do primeiro objeto da criança, é onde se situa o primeiro estádio da libido, o que a criança investe é a imagem que tem si, contudo isso se determina por outra função, a identidade. “É a questão fundamental, implícita, à qual o estádio do espelho:  a saber como a criança, que é um pequeno organismo, um pequeno animal, se torna um humano socializado e socializável” (SOLER, 2017, p.29).

Todo esse processo de significação da imagem corporal ocorre de modo especular e imaginário. A imagem que a criança tem de si é sempre uma imagem refletida e inversamente condicionada em sua forma, o que coloca o sujeito em uma relação direta de alienação à sua própria imagem. Para Amigo (2007), a imagem endereçada pelo Outro é a de um objeto satisfatório que se reveste para criança como “Eu ideal” e que se coloca a partir do véu de engano normativo de amor sobre a vontade de gozo. Esse engano amoroso nem sempre se faz presente, o que lança o sujeito a se haver com a mais irrestrita instrumentalização por parte do Outro. Somente com a identificação ao objeto fálico no período do complexo de édipo que o sujeito será capaz de dar uma resposta às injunções que lhe serão feitas ao longo da vida. Segundo Lopes, Santiago e Ferreira (2008, p.47) “a imagem do corpo traduz a relação do sujeito com a castração. Na contemporaneidade, a busca irrefreada da perfeição estética do corpo é uma das formas de tentar velar a castração, que por vezes se apresenta como o sentimento de estranheza”.

A imagem que cada sujeito faz de si não é estática e inabalável, muito pelo contrário, ela se mostra em constante mudança. Notamos isso quando observamos o grande investimento na auto-imagem ou em outras palavras nas chamadas “selfies” se quisermos utilizar um termo das redes sociais. Ao que parece, é necessário que constantemente se atualize esta noção que se tem de si, afinal outros atributos que sustentariam a unidade desta imagem do sujeito estão cada vez mais em decadência na contemporaneidade, onde o laço social se organiza de maneira diversa em função da falência do referenciais paternos. “A psicanálise encontra certamente as fantasias e as angústias do corpo despedaçado , porém em analisantes, adultos ou crianças, cuja unidade do eu já está estabelecida” (SOLER, 2017, p.29). Contudo, não é somente a imagem visual que entra como valor na balança da percepção de si, os ideias e a cultura são alguns dos agentes que entram em campo quando se pensa a relação que o sujeito estabelece com sua própria imagem corporal. “A autoimagem não é algo auto engendrado, a representação que fazemos de nós e nosso “eu” nasce de fora para dentro e depende desse lugar que vem do outro e que nos constitui” (GOMES, 2021, p.260).

A  adolescência é o período em que se observa efetivamente como a imagem de si se vê abalada, por ser um período de intensa carga pulsional e por seu corpo estar apto a se colocar de maneira igual na relação com um outro. Para Freud, o Eu se diferencia do Isso a partir da posição limite que ocupa entre o externo e interno, é a partir das experiências vivenciadas com o mundo externo e por assim dizer com a cultura que possibilita que este assuma outras características e se modifique. O sujeito adolescente por sua vez percebe seu corpo vivenciado como um turbilhão de sensações. Essas transformações que ocorrem no âmbito da puberdade colocam o sujeito adolescente em contato com a castração e com todos os dilemas da reconstrução de sua imagem nos diversos âmbitos de sua vida. Este reposicionamento ao qual o adolescente deve efetuar em relação ao seu corpo, aos pais e ao laço social, exigem uma resposta satisfatória para sua existência, ao qual o mesmo deve elaborar por si mesmo

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final do que foi apresentado, podemos concluir que a relação que se estabelece entre adolescência e imagem corporal é bastante próxima de tal modo que podemos afirmar que todo processo de constituição psíquica do sujeito assume profunda influência na estruturação da imagem que cada sujeito elabora de si mesmo. Desta maneira equivale dizer que grande parte das transformações que ocorrem no âmbito da puberdade apresentam modificações na relação que o adolescente estabelece com sua própria imagem. 

No decorrer deste trabalho podemos observar que a imagem de si é uma aquisição e não é dada a priori, o que se passa por longos e penosos processos, desde a infância até a vida adulta sendo atravessado por questões históricas e sociais em todas as épocas. Diante disso, portanto, a relação que o adolescente estabelece com seu corpo está intrinsecamente ligado à cultura que na atualidade percebe este como um espelho que reflete a maioria dos ideais a serem alcançados em nossa sociedade. 

Ao realizar este estudo, fica evidente que na atualidade a sociedade com a falência da função paterna e dos ritos de passagem, se mostra diante deste adolescente, incapaz de oferecer os elementos mínimos de referência, para que este realize sua passagem a vida adulta de maneira satisfatória, muitas vezes ficando estagnado em uma posição de desresponsabilização frente às exigências que lhe são impostas na contemporaneidade.

O que se verifica em relação ao narcisismo é que este se constitui com um dos principais articuladores das reconfigurações que o adolescente tem que realizar ao longo da vida, tanto em relação a família como da imagem que tem de si. Demonstrou-se ao longo do trabalho que o narcisismo assume fundamental importância tanto para a formação dos ideais ao qual o adolescente vai se utilizar para pensar seu futuro, como também para a unificação das pulsões antes postas de maneira independente, possibilitando assim uma percepção de si mais consistente. Para mais, possibilita que a libido antes investida somente no Eu, ganhe outros destinos, permitindo o sujeito se enlaçar em seu meio e com sua própria realidade, mesmo que por ventura em algum momento esta não possa se estabelecer.

A psicanálise se mostrou bastante pertinente aos estudos acerca da adolescência e da imagem de si, possibilitando a compreensão dos mais diversos aspectos psicológicos envolvidos na puberdade e na constituição do sujeito desde a infância. Além disso, se mostrou rigorosamente fundamental para a compreensão do fenômeno da adolescência em sua ligação com a cultura, o que evidenciou estabelecer para futuros trabalhos uma associação mais direta de maneira que se possa traduzir a partir do referencial psicanalítico a marcada relação que se estabelece entre estes dois conceitos.

Por fim, a adolescência tem se mostrado um desafio para aqueles que se interessam por compreender a realidade. Fenômenos psicopatológicos da ordem do corpo, têm se apresentado de maneira recorrente em adolescentes e provocado diversas instituições da sociedade a buscar respostas para estas questões, solicitando cada vez mais dos profissionais do campo psicológico contribuições para o entendimento dos diversos tipos de fenômenos. Estudos que venham a partir de uma perspectiva de não patologização da adolescência se mostram bastante relevantes para se compreender de maneira atenta e rigorosa esta tão importante fase da vida.


3Em 1920 em uma nova edição da obra Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) o mesmo retifica a atribuição e endereça a Havelock Ellis a invenção do termo. De acordo com Roudinesco e Plon em Dicionário de Psicanálise (1997) a invenção do termo Narcisismo teria sido empregado pela primeira vez por Alfred Binet em 1887 para descrever uma forma de fetichismo que consiste em tomar a própria pessoa como objeto sexual. 
4Optou-se neste trecho por fazer referência ao mito de narciso de Ovídio por considerar ser o mais conhecido, contudo é importante fazer nota de que esta não é a única versão do mito. Outros autores como Pausânias e Conão também fazem versões do mito onde dentro das discussões psicanalíticas possibilitam alcançar diferentes fenômenos acerca do narcisismo.
5Referimos aqui no caso da psicose as alucinações e delírios descritas em Observações psicanalíticas sobre um caso de paranóia (Dementia Paranoides) relatado em autobiografia (“O caso Schreber”, 1911)


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1Graduado em Psicologia – UFT
2Dr. Professor da Universidade Federal de Jataí – UFJ