ADOÇÃO EXCEPCIONAL POR FAMÍLIA ACOLHEDORA: A POSSIBILIDADE DE FLEXIBILIZAÇÃO DA ADOÇÃO POR FAMÍLIA ACOLHEDORA NO CASO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES FORA DO PERFIL

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ch10202505292132


Sandy Gabriela Melo Neres Ferreira1
Tatiana Merino Barbosa2
Luciane Lima Costa e Silva Pinto3


RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo analisar a possibilidade de flexibilização da vedação à adoção por famílias acolhedoras, à luz dos princípios constitucionais, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do princípio do melhor interesse da criança. O ECA estabeleceu a proibição da adoção por famílias acolhedoras, visando preservar o caráter temporário do acolhimento, evitando distorções na finalidade dessa medida. No entanto, essa vedação tem suscitado controvérsias, especialmente em casos em que se estabelecem vínculos afetivos sólidos entre a criança e a família acolhedora. O estudo adota uma abordagem qualitativa e explora a legislação, doutrina e jurisprudência, demonstrando que a rigidez da norma pode entrar em conflito com os direitos fundamentais das crianças e adolescentes. Assim, defende-se a necessidade de interpretar a legislação de forma mais flexível, permitindo a adoção em situações excepcionais, quando essa medida for claramente a mais benéfica para o desenvolvimento integral da criança.

Palavras-chave: Adoção; Família acolhedora; Princípio do melhor interesse da criança; ECA; Flexibilização legal.

ABSTRACT

This study aims to analyze the possibility of flexibilizing the legal prohibition on adoption by foster families, in light of the constitutional principles, the Child and Adolescent Statute (ECA), and the best interest of the child principle. Law No. 2.551/2018 prohibits foster families from adopting the children under their care, seeking to preserve the temporary nature of family fostering. However, this prohibition has raised legal and social concerns, especially in cases where strong emotional bonds are formed. Adopting a qualitative methodology, the research reviews relevant legislation, academic literature, and court decisions to argue that such a rigid approach may conflict with the fundamental rights of children and adolescents. The study concludes that a more flexible interpretation of the law is needed in exceptional situations, where adoption by the foster family would clearly serve the child’s best interests.

Keywords: Adoption; Foster family; Best interest of the child; ECA; Legal flexibility.

1 INTRODUÇÃO

A proteção da infância e da adolescência no Brasil é regida por um conjunto de normas legais que visam garantir o pleno desenvolvimento e bem-estar dos menores, com destaque para a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Ambas as legislações estabelecem que os direitos das crianças e adolescentes devem ser assegurados com absoluta prioridade, especialmente no que diz respeito à convivência familiar e comunitária. 

Nesse sentido, o acolhimento familiar surge como uma alternativa ao acolhimento institucional, sendo regulamentado em Porto Velho, pela Lei nº 2.551, de 07 de dezembro de 2018, que institui um regime temporário em que famílias acolhedoras recebem crianças afastadas de suas famílias de origem, com o intuito de garantir proteção e cuidado até que possam retornar à família biológica ou serem adotadas por terceiros.

No entanto, essa legislação apresenta  proíbe expressamente, sem exceções, que famílias acolhedoras adotem as crianças sob seus cuidados, com o objetivo de evitar a burla ao Cadastro Nacional de Adoção.

No entanto, sabemos que essa fila não é para todas as crianças, porque crianças e adolescentes mais velhos, ou com alguma deficiência e grupo de irmãos costumam se tornar filhos do Estado, no dizer de Natália Rodrigues Codeço Ribeiro, Daiana Ataíde Miller, ou seja, aqueles que completam 18 anos sem nunca terem tido respeitado o seu direito fundamental a ter uma família. 

Oliveira (2019) defende que a adoção é uma medida excepcional, devendo ocorrer somente após esgotadas todas as possibilidades de reintegração familiar, enquanto autores como Silva (2024) alertam para os riscos de instabilidade emocional causados pela transitoriedade do acolhimento, principalmente quando já se estabeleceram vínculos afetivos entre a criança e a família acolhedora. 

Assim, ao considerar que o princípio do melhor interesse da criança deve nortear todas as decisões que a envolvem, a vedação de adoção por famílias acolhedoras, sem exceções, parece destoar dos fundamentos constitucionais e do ECA, que priorizam o superior interesse das crianças e adolescentes, a garantia de um ambiente seguro, estável e afetuoso. Além disso, a jurisprudência nacional tem reconhecido exceções a essa vedação, quando há comprovação de laços afetivos profundos e de que a separação possa causar danos ao desenvolvimento da criança, indicando uma flexibilização interpretativa por parte do Judiciário.

Diante desse cenário, importa verificar se cabe exceção à vedação imposta pela Lei nº 2.551/2018 à família acolhedora. Acredita-se, que essa vedação possa ser afastada em casos excepcionais, quando entrar em conflito com os princípios do melhor interesse da criança e do adolescente e da prioridade absoluta, previstos no ECA, na Constituição e na Convenção dos Direitos da Criança da ONU.

O objetivo geral deste trabalho é analisar a possibilidade de flexibilização da vedação legal à adoção por famílias acolhedoras, à luz dos princípios constitucionais, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e das necessidades do melhor interesse da criança e do adolescente. Para isso, serão perseguidos os seguintes objetivos específicos: identificar os princípios constitucionais e legais do ECA que tratam do acolhimento familiar e da adoção; apresentar as justificativas legais e sociais para a vedação de adoção por famílias acolhedoras previstas na Lei nº 2.551/2018; e verificar as consequências jurídicas e sociais dessa vedação para o bem-estar das crianças acolhidas.

A escolha do presente tema se fundamenta na necessidade de refletir criticamente sobre a compatibilidade entre normas infraconstitucionais e os princípios superiores que regem a proteção à infância e juventude no Brasil. A vedação absoluta à adoção por famílias acolhedoras, embora justificada pela lógica de evitar conflitos de interesse, pode resultar, em casos específicos, na desconsideração de vínculos afetivos profundos e duradouros que se formam durante o acolhimento.

A metodologia adotada para esta pesquisa é qualitativa, de natureza exploratória e descritiva, com base em revisão bibliográfica e documental. Serão analisados dispositivos legais, doutrinas, artigos científicos e jurisprudência dos tribunais superiores, com ênfase nas decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que envolvem a adoção por famílias acolhedoras. O estudo buscará compreender as divergências entre o texto legal e sua aplicação prática, permitindo uma reflexão crítica sobre os limites e as possibilidades de evolução da legislação vigente.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

O referencial teórico deste trabalho visa analisar a Lei nº 2.551, de 07 de dezembro de 2018, a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) no que se refere à vedação de adoção por famílias acolhedoras, através de uma revisão abrangente dos principais conceitos e debates acadêmicos e jurídicos relacionados ao tema.

2.1 Conceitos definições: acolhimento familiar e adoção

O acolhimento familiar é criado pela Lei da Adoção, Lei nº 12.010/2009, que inseriu no ECA o art. 34 “O poder público estimulará, por meio de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, o acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente afastado do convívio familiar.” 

E este acolhimento tem preferência em relação ao acolhimento institucional, inteligência do parágrafo primeiro deste artigo 34: “A inclusão da criança ou adolescente em programas de acolhimento familiar terá preferência a seu acolhimento institucional, observado, em qualquer caso, o caráter temporário e excepcional da medida, nos termos desta Lei”. O Estatuto da Primeira Infância, Lei 13.257/2016, inseriu o parágrafo terceiro com a seguinte redação:

A União apoiará a implementação de serviços de acolhimento em família acolhedora como política pública, os quais deverão dispor de equipe que organize o acolhimento temporário de crianças e de adolescentes em residências de famílias selecionadas, capacitadas e acompanhadas que não estejam no cadastro de adoção (Brasil, 2016).

O acolhimento familiar é uma medida provisória destinada a fornecer proteção a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, enquanto se busca uma solução definitiva para sua situação, seja a reintegração familiar ou a adoção (Brasil, 2018). 

A Lei nº 2.551/2018 foi criada com o objetivo de regulamentar o acolhimento familiar, estabelecendo diretrizes para sua implementação e gerenciamento. A vedação de adoção por famílias acolhedoras, busca garantir que a medida de acolhimento não se torne uma alternativa à adoção, preservando sua natureza temporária, impedindo a burla à fila de adoção (Brasil, 2018).

Por outro lado, a adoção é uma medida definitiva que estabelece vínculos jurídicos e afetivos entre a criança ou adolescente e a nova família, conferindo-lhes os mesmos direitos e deveres de uma filiação biológica. O processo de adoção é regulamentado pelo ECA e visa assegurar o direito à convivência familiar e comunitária, conforme previsto na Constituição Federal de 1988. A distinção entre acolhimento familiar e adoção é fundamental para garantir que cada medida seja aplicada de forma adequada, respeitando os direitos e interesses das crianças e adolescentes envolvidos.

O Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA)4, instituído pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por meio da Resolução nº 289/2019, é uma ferramenta essencial para gerenciar e fiscalizar os processos de acolhimento e adoção no Brasil (Brasil, 2019). Segundo Souza e Oliveira (2024), apesar dos avanços proporcionados pelo SNA, ainda existem desafios relacionados à atualização e fiscalização dos dados, o que pode impactar na efetividade das medidas de proteção.

A adoção de crianças maiores, por exemplo, enfrenta obstáculos relacionados às preferências dos adotantes. Dias (2017) destaca que a adoção de crianças mais velhas requer uma abordagem sensível às especificidades de cada caso, considerando as experiências prévias e as necessidades emocionais dos adotados. 

Nesse contexto, o acolhimento familiar pode desempenhar um papel importante na preparação para a adoção, proporcionando um ambiente afetivo e estável que favoreça a construção de vínculos duradouros. Vale a reflexão de que o ECA, no caso do apadrinhamento, estabelece a preferência às crianças fora do perfil da adoção, no art.19-B, §4º:

O perfil da criança ou do adolescente a ser apadrinhado será definido no âmbito de cada programa de apadrinhamento, com prioridade para crianças ou adolescentes com remota possibilidade de reinserção familiar ou colocação em família adotiva (Brasil, 1990).

Acredita-se que a família acolhedora também deveria ser preferencialmente, para meninos e meninas neste perfil. 

É importante ressaltar que a vedação de adoção por famílias acolhedoras, conforme estabelecido pela Lei nº 2.551/2018, em casos excepcionais, pode gerar conflitos com os princípios do melhor interesse da criança e do adolescente, previstos na Constituição Federal e no ECA. Embora todo o trabalho de conscientização, para que os vínculos afetivos sejam de outra ordem, que não o maternar/paternar é possível que ele aconteça, sobretudo, nos casos em que os acolhidos e acolhidas estejam foram do perfil da adoção. A ruptura de vínculos afetivos estabelecidos durante o acolhimento pode ser prejudicial ao desenvolvimento emocional e psicológico das crianças, conforme evidenciado por estudos sobre o impacto da institucionalização prolongada (Silva, 2024).

Portanto, é necessário avaliar a compatibilidade das normas legais com os princípios constitucionais e os direitos fundamentais das crianças e adolescentes, buscando soluções que conciliem a proteção jurídica com as necessidades afetivas e emocionais dos envolvidos. A análise crítica da legislação vigente e das práticas adotadas no sistema de acolhimento e adoção é essencial para promover uma proteção mais justa e eficaz às crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.

2.2 Aspectos sociais e jurídicos da adoção por famílias acolhedoras

A adoção de crianças adolescentes e adultos é regulamentada pelo ECA, que impõe algumas vedações. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 42, §1º, estabelece que “não podem adotar os ascendentes e os irmãos do adotando” (Brasil,1990). Essa vedação visa evitar confusões nas relações familiares e possíveis fraudes patrimoniais. 

No entanto, de acordo com Vital (2020) o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem flexibilizado essa regra em situações excepcionais, priorizando o princípio do melhor interesse da criança. Em decisão da 4ª Turma, foi autorizada a adoção de um menor pelos avós paternos, considerando que eles exerciam, com exclusividade, as funções parentais desde o nascimento da criança, e que a adoção apresentava reais vantagens para o adotando.

A excepcionalidade, nesse contexto, refere-se a situações em que a aplicação estrita da norma legal contraria o bem-estar da criança. Como destaca o ministro Luis Felipe Salomão, a flexibilização da regra do ECA, para autorizar a adoção avoenga, exige a caracterização de uma situação excepcional (Brasil, 2020). 

Além disso, a doutrina reconhece a importância da parentalidade socioafetiva. Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho (2020) defendem que a vedação da adoção de descendente por ascendente […] visou evitar que o instituto fosse indevidamente utilizado com intuitos meramente patrimoniais ou assistenciais, mas reconhecem que, em muitos casos, os avós exercem efetivamente a função de pais, caracterizando uma filiação socioafetiva.

Dessa forma, compreende-se que o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), instituído pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por meio da Resolução nº 289/2019, visa promover a integração das informações sobre adoção e acolhimento, facilitando o acompanhamento e a tomada de decisões que priorizem o melhor interesse da criança. Esse sistema contribui para uma maior transparência e eficiência nos processos de adoção e acolhimento.

Em síntese, embora a legislação brasileira estabeleça restrições à adoção por ascendentes, a jurisprudência e a doutrina têm reconhecido a necessidade de flexibilização em casos excepcionais, sempre com o objetivo de assegurar o melhor interesse da criança. A adoção por avós, quando caracterizada por vínculos afetivos sólidos de maternidade/paternidade e pela ausência de conflitos familiares, pode representar a melhor solução para o desenvolvimento saudável do menor.

2.2.1 O Princípio do Melhor Interesse da Criança

No cenário internacional, o princípio do melhor interesse da criança foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro por meio da ratificação da Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1989 e ratificada pelo Brasil em 1990. 

O artigo 3º dessa Convenção estabelece que, em todas as ações relativas às crianças, devem ser consideradas, primordialmente, o melhor interesse da criança (ONU, 1989). Esse princípio também é reiterado na Convenção de Haia5 sobre a Proteção das Crianças e a Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, de 1993, da qual o Brasil é signatário. 

A Constituição Federal de 1988 e o ECA estabelecem a prioridade absoluta dos direitos da criança e do adolescente, o que inclui a garantia de um ambiente familiar e comunitário adequado para seu desenvolvimento. O artigo 227 da Constituição

Federal define que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente a proteção integral e prioritária, abrangendo direitos como a vida, saúde, alimentação, educação e convivência familiar (Brasil, 1988). E no artigo 100, parágrafo único, inciso IV, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), estabelece que todas as decisões administrativas e judiciais devem priorizar o bem-estar integral da criança, especialmente no que tange à convivência familiar e comunitária.

Este princípio da proteção integral conforme destacado por Cury, Garrido e Marçura (2002), se baseia na ideia de que crianças e adolescentes devem ser reconhecidos como sujeitos plenos de direitos. Em vez de serem vistos como objetos de intervenção no universo adulto, eles são titulares de direitos fundamentais que pertencem a todas as pessoas, além de possuírem direitos especiais devido à sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Essa perspectiva rompe com visões anteriores que os tratavam como objetos de direito, ou menores em situação irregular, seres sem autonomia ou direitos próprios, sublinhando a necessidade de sua proteção e promoção dentro da família, sociedade e Estado.

Dessa maneira, ainda a respeito do princípio da proteção integral, Madaleno (2017) afirma que a Constituição brasileira visa proteger os melhores interesses da criança e do adolescente, com ênfase no desenvolvimento pessoal do menor. Isso não se resume apenas à sua adequada inserção no núcleo familiar, mas também exige uma articulação de esforços tanto públicos quanto privados para a proteção de seus direitos. A criança e o adolescente deixam de ser vistos como simples extensões da personalidade de seus genitores, que antes exerciam um poder absoluto sobre eles, à margem de qualquer intervenção estatal.

Essa abordagem também encontra respaldo em outros estudiosos, como Oliveira e Silva (2019), que enfatizam a importância de garantir a crianças e adolescentes o acesso a direitos fundamentais e específicos que assegurem seu desenvolvimento integral, refletindo a evolução das normas e princípios do direito da infância e adolescência no Brasil. A ideia é não apenas protegê-los de possíveis riscos, mas também assegurar que sejam reconhecidos como sujeitos ativos na sociedade, com a capacidade de reivindicar e exercer seus direitos.

O ECA, por sua vez, enfatiza que qualquer medida que envolva crianças e adolescentes deve priorizar seu melhor interesse. O artigo 4º do ECA afirma que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária” (Brasil, 1990). Esses direitos fundamentais têm um papel central na discussão sobre a adequação da vedação de adoção por famílias acolhedoras, juntos eles formam toda a proteção integral às crianças. O direito à convivência familiar nada mais é que o direito fundamental da criança e do adolescente de terem uma família

Este princípio de acordo com Maciel e Carneiro (2018) promove uma transformação nas relações familiares ao reconhecer a criança como sujeito de direitos, conferindo-lhe uma posição de prioridade absoluta em relação aos demais membros da família. Essa mudança corrige um erro histórico, em que os menores eram vistos como meros objetos, sem capacidade de exercer direitos ou participar efetivamente do núcleo familiar e social, conforme determinado pelo ordenamento jurídico.

A aplicação prática do princípio do superior interesse da criança e do adolescente no contexto do acolhimento e da adoção requer uma análise cuidadosa das circunstâncias individuais de cada caso, priorizando sempre o bem-estar físico, emocional e psicológico da criança. Como destaca Madaleno (2017), o foco constitucional de proteção dos melhores interesses da criança e do adolescente busca o desenvolvimento seu pessoal, não apenas com a sua adequada inserção no núcleo familiar, mas também com a articulação de proteção de seus interesses superiores, que deixa de figurar como um mero prolongamento da personalidade de seus genitores.

3 IMPACTOS DA VEDAÇÃO IRRESTRITA DA ADOÇÃO POR FAMÍLIAS ACOLHEDORAS À LUZ DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA

A Lei nº 2.551/2018, ao vedar expressamente e sem exceções a possibilidade de adoção por parte das famílias acolhedoras, impõe uma limitação jurídica que suscita relevantes discussões quanto à sua compatibilidade com os princípios constitucionais e infraconstitucionais, especialmente o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, conforme exposto na seção anterior, 

A vedação da adoção por famílias acolhedoras mesmo quando se trata de crianças e adolescentes fora do perfil da adoção, na existência de laços afetivos sólidos e comprovados, configura um possível conflito com esse princípio. Conforme enfatiza Freire Júnior e Batista (2023), o melhor interesse da criança deve prevalecer sobre normas que, embora bem-intencionadas, se tornem obstáculos à concretização de vínculos afetivos já formados. A medida de acolhimento, embora temporária, muitas vezes resulta em relações familiares autênticas que, segundo Rosa (2023), não podem ser ignoradas sob pena de desconsiderar o aspecto humano e emocional do desenvolvimento infantil.

Do ponto de vista jurídico, essa vedação também pode ser analisada à luz do artigo 19 do ECA, que assegura à criança o direito de ser criada e educada, sempre que possível, no seio de sua família natural ou, na sua impossibilidade, por uma família substituta. Quando a convivência com a família natural se mostra inviável e a família acolhedora já se consolidou como referência afetiva, o impedimento legal da adoção se transforma em barreira injustificável, contrariando os fundamentos do próprio Estatuto.

Além disso, a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), ratificada pelo Brasil, e a Convenção de Haia sobre Adoção Internacional (1993), ambas reafirmam que o interesse superior da criança deve ser critério primordial em todas as decisões relativas à sua guarda, proteção e adoção. A negativa de conversão do acolhimento em adoção, nesses casos, pode representar não apenas uma afronta a esses tratados internacionais, mas também um desrespeito à dignidade da criança enquanto sujeito de direitos, como observa Vieira (2020).

A análise da vedação à luz da teoria do Direito Fundamental à convivência familiar, conforme desenvolvido por Madaleno (2018), aponta que o Estado não deve apenas garantir formalmente esse direito, mas também removê-lo de entraves normativos que dificultem sua efetiva concretização, especialmente em contextos em que já há forte vínculo afetivo estabelecido entre a criança e os acolhedores.

Dessa forma, parte-se da hipótese de que a restrição imposta pela Lei nº 2.551/2018, embora voltada à proteção do Cadastro Nacional da Adoção, portanto, da fila para adoção e do caráter temporário do acolhimento, pode comprometer a realização do melhor interesse da criança. Em última análise, tal vedação irrestrita exige revisão crítica, com vistas a compatibilizar as normas infralegais e estaduais com os ditames constitucionais e os princípios fundamentais do ECA e dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil.

O ECA, conforme exposto, consagra, em seu art. 100, § único, inciso IV, o princípio do melhor interesse da criança como diretriz máxima para todas as decisões judiciais, administrativas e políticas públicas relacionadas à infância. Nesse sentido, os tribunais têm enfrentado dilemas complexos quando se contrapõem o direito à convivência com a família biológica e os vínculos socioafetivos consolidados em famílias acolhedoras, com crianças fora do perfil da adoção.

Um caso paradigmático que exemplifica essa tensão foi julgado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no âmbito do Agravo em Recurso Especial n. 2.551.954/RS, de relatoria do Ministro Raul Araújo, publicado em 31 de março de 2025¹.

No caso em tela, discutia-se a situação do menor B. A. M. L., nascido em 2017, acolhido desde 2021 por uma família acolhedora após a genitora, J. M. L., apresentar quadro de retardo mental moderado (CID 10-F70), o que comprometeria, segundo laudos técnicos, sua capacidade de prover os cuidados necessários ao filho. A despeito de decisão anterior que havia mantido o poder familiar da mãe, a nova ação foi proposta com base em fatos novos, especialmente a resistência do menor à convivência com a genitora e sua manifesta vontade de permanecer com os acolhedores.

O STJ, ao julgar o recurso, reconheceu a excepcionalidade do caso e entendeu que a guarda deveria ser mantida com a família acolhedora, mesmo sem decisão definitiva sobre a destituição do poder familiar. Nas palavras do Ministro Raul Araújo:

Não há como desprezar a dinâmica das relações, em especial quando envolvem vínculos de afeto, em atenção ao bem-estar da criança. O menor vive com a família acolhedora desde dezembro de 2021, mantendo com ela laços afetivos e sendo reconhecido por ele como seus pais”.

A decisão reconheceu a prevalência do vínculo socioafetivo como critério essencial para preservar a saúde emocional e o desenvolvimento integral do menor, superando, naquele contexto, a primazia da família natural.

A doutrina contemporânea tem reconhecido a filiação socioafetiva como forma legítima de parentalidade, com respaldo inclusive constitucional. Segundo Madaleno (2021, p. 233), “a afetividade é elemento constitutivo da função parental, e sua ausência pode, por si só, justificar a modificação da titularidade do poder familiar”.

O STJ relatoria da Ministra Nancy Andrighi da Terceira Turma também tem reiterado esse entendimento em diversas decisões. Em outro julgado, a Corte afirmou que:

A guarda deve atender prioritariamente ao melhor interesse da criança e do adolescente, mesmo que isso implique afastamento do núcleo familiar biológico, quando este não oferece condições para o desenvolvimento saudável do menor” (STJ, REsp 1.159.196/MG, rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 23.11.2010).

Apesar de se tratar de um caso de guarda e não de adoção por família acolhedora, o precedente é relevante porque reforça a primazia do princípio do melhor interesse da criança sobre o vínculo biológico. Essa perspectiva se alinha ao novo paradigma do direito das famílias, que valoriza a convivência familiar baseada em vínculos afetivos e no cuidado concreto, em conformidade com os direitos fundamentais previstos no art. 227 da Constituição Federal.

Nesse sentido, mesmo que o caso analisado trate da guarda e não diretamente da adoção por família acolhedora, é possível estabelecer uma relação entre ambos, pois em ambas as situações o afastamento da família biológica ocorre em prol da proteção integral e do desenvolvimento saudável da criança. Assim, o julgado serve de fundamento para compreender a adoção por família acolhedora como medida excepcional, mas legítima, quando fundada no melhor interesse do menor.

Segundo Oliveira (2019, p. 203), “a rigidez normativa que impede a adoção por família acolhedora deve ser interpretada com cautela, sob pena de transformar o que deveria ser proteção em instrumento de violação dos direitos da criança” .

Portanto, esse julgamento reafirma que o melhor interesse das crianças e adolescentes não é conceito abstrato, mas sim um critério jurídico concreto que deve guiar decisões que, se malconduzidas, podem comprometer o futuro emocional, social e psicológico de uma criança.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa buscou refletir criticamente sobre a vedação legal e irrestrita imposta pela Lei Municipal nº 2.551/2018 à adoção de crianças por famílias acolhedoras, analisando sua compatibilidade com os princípios constitucionais e com os dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), especialmente no que se refere ao princípio do melhor interesse da criança. A partir da análise legislativa, doutrinária e jurisprudencial, conclui-se que a rigidez da norma, embora bem-intencionada ao preservar o caráter temporário do acolhimento, pode gerar efeitos adversos, como a ruptura de vínculos afetivos já consolidados, comprometendo o bem-estar emocional e psicológico das crianças e adolescentes.

O estudo demonstrou que a aplicação indiscriminada da vedação à adoção ignora realidades complexas vivenciadas pelas crianças acolhidas, que muitas vezes desenvolvem laços profundos e significativos com suas famílias acolhedoras, transformando a relação inicialmente temporária em uma referência afetiva e emocional essencial ao seu desenvolvimento. Nesses casos, a insistência em separar a criança do ambiente seguro e afetuoso em que está inserida não apenas contraria a sua vontade e bem-estar, como também pode configurar uma afronta aos seus direitos fundamentais.

Além disso, a jurisprudência pátria, especialmente do Superior Tribunal de Justiça, tem demonstrado uma crescente tendência de flexibilização da norma em casos excepcionais, reconhecendo o valor jurídico da filiação socioafetiva e a prevalência do melhor interesse da criança sobre normas infralegais. Essa interpretação jurisprudencial reforça a tese de que a vedação absoluta à adoção por famílias acolhedoras precisa ser repensada à luz dos princípios constitucionais e dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil.

A análise dos casos concretos evidencia a importância de uma abordagem individualizada, que considere não apenas os aspectos legais, mas também os elementos afetivos, emocionais e sociais que compõem a vida das crianças envolvidas. O princípio do melhor interesse da criança não deve ser visto como um ideal abstrato, mas como um critério prático e fundamental para a tomada de decisões judiciais e administrativas que afetem diretamente suas vidas.

Diante disso, este trabalho defende que a vedação à adoção por famílias acolhedoras não deve ser interpretada de forma absoluta. Em situações excepcionais, nas quais o vínculo afetivo esteja solidamente constituído, e seja evidente que a adoção promoverá o desenvolvimento integral da criança, é imprescindível que se permita a flexibilização da norma, conforme já reconhecido pela jurisprudência. Essa flexibilização não descaracteriza o acolhimento como medida temporária, mas sim adapta sua aplicação à realidade concreta e aos direitos fundamentais do menor.

Portanto, sugere-se uma revisão legislativa da Lei nº 2.551/2018, com a inclusão de dispositivos que permitam expressamente a adoção por famílias acolhedoras em situações excepcionais, desde que comprovada a formação de vínculo afetivo duradouro, o esgotamento das possibilidades de reintegração familiar e o atendimento ao melhor interesse da criança. Além disso, é fundamental o fortalecimento da atuação do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), para que haja maior integração entre os dados e uma tomada de decisão mais eficiente, ágil e humanizada.

Por fim, espera-se que este estudo contribua para o amadurecimento do debate jurídico e social sobre o tema, incentivando a construção de uma doutrina e de políticas públicas que valorizem a afetividade, a dignidade da criança e a necessidade de decisões que respeitem sua história de vida, seus vínculos e sua subjetividade.


4O SNA unifica os dados sobre crianças e adolescentes em situação de acolhimento e adoção, permitindo maior transparência e celeridade nos processos
5Art. 4º da Convenção de Haia destaca que a adoção internacional só pode ocorrer quando for demonstrado que ela representa a melhor solução para a criança, respeitando seu direito à convivência familiar e promovendo sua adaptação ao novo ambiente. A aplicação desse princípio na Convenção apresenta: “A adoção internacional deve ser realizada de modo que seja protegida a criança e assegurado o seu melhor interesse, levando em consideração suas necessidades emocionais e físicas” (Art. 21 da Convenção). Dessa forma, a Convenção reafirma a ideia de que qualquer decisão em matéria de adoção internacional deve ser tomada com base nas circunstâncias individuais da criança, levando em conta, por exemplo, suas preferências, sua saúde mental e física, e o contexto familiar e cultural.


REFERÊNCIAS

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1Acadêmica de Direito. Artigo apresentado à Faculdade Unisapiens de Porto Velho como requisito para obtenção ao título de Bacharel em Direito.
2Acadêmica de Direito. Artigo apresentado à Faculdade Unisapiens de Porto Velho como requisito para obtenção ao título de Bacharel em Direito.
3Especialista em Direito Constitucional. Mestre em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente, Professora Orientadora .