ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL (ANPP): UM ESTUDO DO POSSÍVEL IMPACTO PARA A EFICIÊNCIA DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL BRASILEIRO

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202501190132


Thiago de Medeiros Dantas1


RESUMO

O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), introduzido pela Lei nº 13.964/19, é uma inovação legislativa que visa aumentar a celeridade e eficiência do sistema de justiça criminal brasileiro. Este artigo analisa o impacto do ANPP na desburocratização dos processos e na redução do tempo de tramitação, com base em dados empíricos dos relatórios “Justiça em Números 2020 a 2024” do CNMP e estudos específicos sobre o tema. A pesquisa destaca a importância do ANPP na promoção da justiça na seara criminal, contribuindo para um sistema penal mais ágil e eficaz. A análise abrange a gênese do ANPP, seus contornos normativos e a aplicação prática e possíveis impactos no contexto da justiça criminal, com ênfase na redução da sobrecarga processual e na melhoria da eficiência do sistema, especialmente no tocante a celeridade processual. Por fim, serão discutidos as limitações e os desafios enfrentados na aplicação do ANPP, bem como as perspectivas futuras para sua consolidação como um mecanismo eficaz de justiça criminal.

Palavras-chave: Acordo de Não Persecução Penal. Celeridade Processual. Eficiência. Sistema de Justiça Penal.

ABSTRACT

The Non-Prosecution Agreement (ANPP), introduced by Law No. 13.964/19, is a legislative innovation aimed at increasing the speed and efficiency of the Brazilian criminal justice system. This article analyzes the impact of the ANPP on the streamlining of processes and the reduction of processing time, based on empirical data from the “Justice in Numbers 2020 at 2024” reports by the CNMP and specific studies on the subject. The research highlights the importance of the ANPP in promoting justice in the criminal sphere, contributing to a more agile and effective penal system. The analysis covers the genesis of the ANPP, its normative contours, and practical application, as well as its possible impacts on the criminal justice context, with an emphasis on reducing procedural overload and improving system efficiency, especially regarding procedural speed. Finally, the limitations and challenges faced in the application of the ANPP will be discussed, as well as future prospects for its consolidation as an effective criminal justice mechanism.

Keywords: Non-Prosecution Agreement. Procedural Speed. Efficiency. Criminal Justice System.

1 – INTRODUÇÃO

O acordo de não persecução penal é um recente instrumento de política criminal, criado pela Resolução nº 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público e positivado no ordenamento jurídico através da Lei nº 13.964/19, conhecida como “Pacote Anticrime”. O sistema de justiça criminal brasileiro enfrenta desafios históricos relacionados à morosidade e à sobrecarga processual. Nesse contexto, o acordo de não persecução penal (ANPP) surge como uma inovação legislativa destinada a promover maior celeridade e eficiência na resolução de conflitos penais.

O Direito na esfera criminal, quando comparado com os outros ramos, produz, a curto e médio prazo, impactos sociais superiores às demais. Daí a importância de levantar a problemática a respeito da eficiência e celeridade deste ramo do Direito, sobretudo quando da criação de institutos jurídicos, uma vez que a eficácia na aplicação das normas penais pode influenciar diretamente na percepção de justiça pela sociedade, na prevenção de crimes e na reintegração social dos infratores, ou seja, em sua eficácia social (STADLER et al., 2021, p. 27).

Pensando nisso, este artigo tem como objetivo analisar o impacto do ANPP na celeridade e eficiência do sistema de justiça criminal, destacando suas potencialidades e limitações, a partir de seu desempenho no tocante ao tempo de tramitação processual. Partindo de uma abordagem crítica e baseada em dados empíricos oferecidos pelos relatórios do “Justiça em Números 2020 a 2024” do CNMP, referentes aos anos-base de 2019 a 2023, além de estudos que trataram, acerca de seu potencial para otimização do sistema penal, busca-se analisar o possível impacto com seu advento e compreender como esse mecanismo pode contribuir para a desburocratização dos processos, a redução do tempo de tramitação e a efetividade na aplicação da justiça, proporcionando uma resposta mais ágil e adequada às demandas sociais na esfera penal.

Tendo isso em vista, o artigo é estruturado em quatro partes: um estudo breve e sintético da gênese e das razões por trás da concepção do ANPP; uma análise dos contornos normativos do instituto e sua conceituação; uma abordagem do perfil infracional em que incide o ANPP e sua abrangência; e, por fim, a apresentação dos dados de desempenho da justiça na esfera criminal, enfatizando o tempo de tramitação processual e as possíveis contribuições do ANPP para eficiência do sistema de justiça criminal de um modo global, além das limitações e o potencial ainda a ser plenamente explorado do instituto.

2 – GÊNESE DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL

O acordo de não persecução penal (ANPP) foi introduzido em nosso ordenamento, inicialmente, pelo artigo 18 da Resolução nº 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), de 07 de agosto de 2017, que teve posteriormente sua redação alterada pela Resolução nº 183/2018 do CNMP, as quais, além de terem servido, em âmbito administrativo, como primeiras regulações do ANPP, ainda sem expressa previsão em lei, foram os primeiros referenciais normativos que embasaram os futuros debates e propostas legislativas de introdução deste instituto no direito pátrio.

Assim, para melhor compreender as razões subjacentes à concepção deste instituto, é elucidativo o pronunciamento final nos Autos nº 01/20172, do Procedimento de Estudos e Pesquisas do CNMP, que:

[…] em um mundo ideal, o correto seria que todos os processos penais fossem submetidos a um juízo plenário, em que a condenação é proferida no âmbito de um processo judicial, com estrita observância do contraditório e ampla defesa.

No entanto, nosso país longe está desse mundo ideal e é imprescindível que se tome alguma providência para dar cabo à carga desumana de processos que se acumulam nas Varas Criminais do país e que tanto prejuízo e atraso causam no oferecimento de Justiça às pessoas, de alguma forma, envolvidas em fatos criminais (CNMP, 2017, p.29, grifos nosso). Com base nessas premissas, tendo em conta o princípio da eficiência e considerando que “a Constituição de 1988 fez uma opção inequívoca pelo sistema acusatório – e não pelo sistema inquisitorial – criando as bases para uma mudança profunda na condução das investigações criminais e no processamento de ações penais no Brasil, é que se entendeu perfeitamente cabível a criação, por meio de resolução do Conselho Nacional do Ministério Público, da figura aqui denominada de acordo de não persecução penal. Esse diagnóstico não é exclusivo do Brasil. Inclusive em países como a Alemanha, a conclusão acerca da necessidade da implantação de um sistema de princípio da oportunidade é apresentada como inexorável, inclusive por penalistas que são abertamente contrários a esse instituto, como é o caso do Prof. Bernd Schüneman (CNMP, 2017, p.31, grifos nosso).

Diante desse contexto, na Alemanha, por exemplo, passou-se a desenvolver um procedimento informal de acordo penal, mesmo sem previsão em lei para tanto(CNMP, 2017, p.32, grifos nosso).

Tendo em vista o papel pioneiro do CNMP e que a Resolução nº 181/2017 e suas premissas servirão de inspiração às futuras proposições, consignamos as razões expostas pela comissão que elaborou a Resolução 181/2017 para a implementação do acordo de não-persecução penal no ordenamento pátrio: a) celeridade na resolução dos casos menos graves (crime com penas mínimas inferiores a 4 anos), evitando-se, inclusive, que o STF tenha que discutir questões menores; b) maior disponibilidade de tempo para que o Ministério Público e o Poder Judiciário tratem dos casos mais graves, como o crime organizado; c) economia de recursos públicos com a diminuição de processos judiciais; d) minoração dos efeitos prejudiciais aos imputados de uma pena ou sentença penal condenatória; e) desafogar os estabelecimentos prisionais (CNMP, 2017, p. 32).

Dessarte, a partir do exposto, fica claro que o acordo de não persecução penal foi concebido como mecanismo destinado a desburocratizar, racionalizar e dar maior eficiência à administração da justiça criminal, incidindo sobre a ampla faixa de crimes de média e baixa ofensividade social (aqueles com pena inferior a 4 anos), para os quais ofereceria um procedimento mais simples e célere que o processo-crime tradicional, desafogando o sistema de justiça, que passaria, então, a ter melhores condições para focar sua atuação e recursos nos crimes de maior complexidade e interesse social, além de reduzir as taxas de encarceramento.

Todavia, a criação deste instituto mediante resolução, sem expressa previsão em lei em sentido estrito, não foi bem recebida por parcela da comunidade jurídica, levando ao questionamento da constitucionalidade do acordo de não persecução penal. Celeuma que foi resolvida com sua previsão e regulamentação pela Lei nº 13.964/19, conhecida como “Pacote Anticrime”, de 24 de dezembro de 2019. Essa lei adicionou o artigo 28-A ao Código de Processo Penal (CPP), instituindo o ANPP.

O acordo de não persecução penal foi assim incorporado ao CPP, dando à luz ao mais novo instituto despenalizador e desjudicializante de nosso ordenamento, o que nos leva à imperiosa necessidade de estudar como tem sido conceituado esse instituto e seus contornos normativos básicos para fins de compreensão de seu significado e relevância.

3 – ANPP: CONCEITO E CONTORNOS NORMATIVOS

Inicialmente, importa ressaltar que, contrariamente ao que a terminologia utilizada para o instituto induz concluir, o ANPP não resulta, efetivamente, em uma não persecução penal, passando a ideia equivocada de que não haveria a imposição de sanções ao imputado ou que a persecução sequer seria iniciada. Primeiramente, tal mecanismo, em regra, é aplicado após deflagrada a persecução, durante a fase investigativa. Por fim, as condições impostas ao autor do fato são conceituadas como “equivalentes funcionais à pena”, o que representa, de certo modo, uma resposta sancionatória do Estado (BOZOLA e PINTO, 2023, p. 2139).

Estabelece o artigo 28-A do Código de Processo Penal que, não sendo o caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática da infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime (BRASIL, 1941).

A partir do excerto, vemos que o acordo de não persecução penal pode ser inserido na categoria de práticas denominadas “diversão”, a qual compreende a opção de política criminal definida para a resolução de casos penais de maneira diversa do processo penal clássico, em momento anterior à verificação da culpa. A diversão pode ser subdividida em dois grupos, conforme a estratégia adotada: aquelas cujos mecanismos de atuação têm efeito antes da propositura da ação penal, caso da transação penal e da composição civil dos danos, e as estratégias de arquivamento e de extinção do caso no curso do processo penal, em que temos a suspensão condicional do processo. Do exposto, conclui-se que o ANPP se enquadra no primeiro grupo pelo seu papel desjudicializante (CUNHA, 2020, p. 300).

Em que pese certa semelhança com outros institutos despenalizadores pátrios, a transação penal e a suspensão condicional do processo, o acordo de não persecução penal possui caraterísticas distintas. A primeira razão reside no fato de que o acordo pressupõe, necessariamente, a confissão do autor do delito, não exigido em nenhum daqueles institutos. A segunda é que o ANPP é subsidiário em relação à transação penal, além de reclamar requisitos distintos daqueles exigidos pelos benefícios da Lei dos Juizados Especiais (VIANA, 2019, p. 365).

Quanto ao conceito, o acordo de não persecução penal, nas palavras de Mauro Messias (2020, p. 11), é um negócio jurídico de natureza extrajudicial celebrado entre o Ministério Público e o autor do fato delituoso – devidamente assistido por seu defensor –, cuja validade necessita de homologação pelo juízo competente, em que o imputado confessa formal e circunstancialmente a prática do delito, sujeitando-se ao cumprimento de certas condições não privativas de liberdade, em troca do compromisso do Parquet de não perseguir judicialmente o caso penal extraído da investigação penal, o que quer dizer: não oferecer denúncia, declarando-se a extinção da punibilidade, caso a avença seja integralmente cumprida.

Bozola e Pinto (2023, p. 2138) também definem o ANPP como espécie de justiça criminal negocial, destacando seu papel enquanto instrumento de consensualidade político-criminal ligado ao princípio da oportunidade da ação penal pública, em favor da economia processual e da celeridade na realização da justiça criminal, como uma espécie de pacto de arquivamento condicionado, uma vez que seu adimplemento extingue a punibilidade do autor do fato e resulta no arquivamento dos autos. Desta forma, seu fundamento normativo, além de se embasar no art. 28-A, também é respaldado pelo art. 28, caput, do CPP, que regula o arquivamento da investigação.

No tocante ao seu cabimento, a leitura do artigo 28-A do Código de Processo Penal manifesta que o legislador estabeleceu requisitos de natureza objetiva e subjetiva para que o acordo de não persecução penal possa ser realizado. Desse modo, os requisitos de natureza objetiva são: a) pena mínima inferior a quatro anos, b) crime praticado sem violência ou grave ameaça, c) necessidade e suficiência para a reprovação e prevenção do crime, d) não seja admitida a transação penal, e) inexistência de crime praticado no âmbito de violência doméstica ou familiar ou praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, e) não ser o caso de arquivamento. De outro giro, os de natureza subjetiva são: a) não ser o investigado reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas, b) não ter sido o agente beneficiado nos cinco anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo, c) confissão formal e circunstanciada (SARDINHA, 2020, pp. 69-71).

Encerrada a exposição acerca dos seus requisitos, cumpre a apresentação das condições exigidas com a celebração do acordo de não persecução penal, enunciadas nos incisos I a V do art. 28-A do CPP, a saber: I – Reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; II – Renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público com instrumento, produto ou proveito do crime; III – Prestar serviços à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940; IV- Pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; e V – Cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

Cumpre ressaltar que, com o inciso V, do art. 28-A, do CPP, o qual oportuniza a estipulação de outras cláusulas obrigacionais no acordo de não persecução penal, desde que compatíveis com a infração penal supostamente praticada pelo investigado, o legislador deixou uma cláusula aberta para que as partes, Ministério Público e investigado, em prestígio ao princípio da autonomia da vontade, possam negociar a fixação de outras condições distintas daquelas preconizadas nos incisos anteriores (SARDINHA, 2020, p. 68).

Uma vez celebrado e homologado judicialmente o acordo, inicia-se o cumprimento das condições estabelecidas junto às Varas de Execução Penal. Caso qualquer uma dessas condições seja descumprida, o acordo será rescindido judicialmente e será oferecida denúncia, consoante o § 10 do art. 28-A do CPP, o qual determina que o Ministério Público deve comunicar o fato ao juízo para a rescisão do acordo e posterior oferecimento de denúncia.

Essa solução, aliás, segue a jurisprudência já adotada para o descumprimento da transação penal. A jurisprudência estabelece que, ao ser formulado o pedido de rescisão pelo Ministério Público  (§ 10 do art. 28-A do CPP), deve-se dar oportunidade prévia de manifestação à defesa, preservando os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa (SARDINHA, 2020, p. 69).

Por fim, com o cumprimento integral do acordo de não persecução penal, o juiz decretará a extinção de punibilidade, como preconiza o § 13, art. 28-A do CPP, pondo fim ao litígio.

4 – ABRANGÊNCIA DO INSTITUTO

Partindo de seus contornos normativos, torna-se imperiosa uma análise inicial de sua abrangência para fins de aferição de seu potencial, enquanto mecanismo destinado a trazer maior eficiência ao sistema de justiça criminal, o que, numa avaliação preambular, aparenta ser significativo, pois oferece um novo tratamento extrajudicial para crimes de baixa e média gravidade que atendam aos requisitos negativos estabelecidos no artigo 28-A do CPP. Assim, segundo a doutrina, os contornos do instituto delineados pelos seus requisitos nos dão a possível dimensão de sua abrangência (OLIVEIRA, 2021, p. 45).

Ressalta Nucci sua falta de admiração frente à aprovação da aplicação do ANPP pelo Parlamento, haja vista o benefício abarcar a maioria dos crimes de colarinho branco. Apontamento feito por Walter Nunes no livro Pacote Anticrime corrobora com essa abrangência ao asseverar que o patamar eleito pelo legislador abarca, além de todos os crimes patrimoniais sem violência ou grave ameaça, os crimes contra a Administração Pública, tributários, de licitação, bem como crimes previstos em lei especiais, a exemplo dos crimes de responsabilidade de prefeitos, crimes contra o sistema financeiro, crimes ambientais, crimes de lavagem de dinheiro, crimes da lei de drogas, dentre outros. [..] Sobre os crimes no âmbito dos procedimentos licitatórios, é importante enfatizar que a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, a Lei nº 14.133, de 2021, alterou o Código Penal introduzindo os artigos 337E a 337-O, os quais, além de reproduzir os crimes constantes na antiga lei de licitações, a Lei nº 8.666, de 1993, acrescentou novas condutas, bem como majorou algumas penas impedindo, nesses casos, a celebração do ANPP. Os crimes os quais não possibilitam a aplicação do acordo são a contratação direta ilegal, a frustração do caráter competitivo da licitação, a modificação ou pagamento irregular em contrato administrativo e a fraude em licitação ou contratos, preceituados, respectivamente nos artigos 337-E, 337-F, 337-H e 337-L cujas penas mínimas são de 4 anos (OLIVEIRA, 2021, p. 45-46).

Ademais, mesmo os crimes cometidos por autoridades com foro privilegiado no STF e no STJ podem ser incluídos no acordo (artigo 1º, § 3º, da Lei nº 8.038/1990), conforme alteração introduzida pela Lei Anticrime (MESSIAS, 2020, p. 26).

Entretanto, os números absolutos por incidência de tipos penais não levam à conclusão imediata da incidência do ANPP nesses casos, pois existem outros requisitos para a formulação da proposta do acordo. Nos crimes contra o patrimônio, por exemplo, em que se destacam os crimes de furto simples e qualificado, segundo dados do CNJ, a reincidência pode ser um significativo fator limitador à aplicação do ANPP. Corroborando essa possibilidade, temos que o crime de furto é o que mais aparece entre aqueles cuja agravante é reconhecida nas sentenças, chegando a ultrapassar 50% dos casos, segundo dados do CNJ (BOZOLA e PINTO, 2023, p. 2150).

Empiricamente, a possível dimensão do impacto do ANPP no sistema de justiça criminal pode ser concebida a partir de relevante estudo realizado por Allana Siqueira Simonetti Oliveira (2021, pp. 77-88), o qual intentava mensurar o impacto da aplicação dos acordos em âmbito federal, circunscrito ao Tribunal Regional da 5ª Região (TRF5). Baseado nos dados disponíveis até 2021, apresentou uma percuciente pesquisa que nos oferece uma projeção significativa.

Nessa toada, foi observado por aquela autora que o percentual possível de aplicação do ANPP, baseando-se na quantidade de pena e excluindo-se os tipos que envolvem violência ou grave ameaça, das ações penais distribuídas de janeiro de 2015 a agosto de 2020 em todas as varas penais subordinadas ao TRF5, perfaz-se um total aproximado de 86,14% das categorias de ações, levando em consideração o total de 191 tipos de ações. Entretanto, esse percentual se eleva para 93,28% do montante, ao se desconsiderar do total de ações as que cabem transação penal. Adverte, ainda, que a despeito de ser apenas estatística e de englobar apenas dois requisitos, a abordagem desses dados é importante para que se possa mensurar a magnitude do instituto.

Abordando o perfil infracional nos 191 tipos de ações em escrutínio, os dez primeiros crimes em número de autos são: estelionato majorado (15,72%), uso de documento falso (5,49%), crime contra a administração ambiental (5,39%), crime da lei de licitações (4,46%), crimes de responsabilidade (4,44%), contrabando ou descaminho (3,85%), crime contra o Sistema Financeiro Nacional (3,24%), roubo majorado (3,18%), peculato (2,95%) e crimes contra a Ordem Tributária (2,91%), perfazendo um total de 48,45%, excluído apenas o roubo majorado em decorrência da impossibilidade de aplicação do ANPP devido à violência. Excluídas as classes genéricas que comportam também a transação (crimes da lei de licitações, crimes de responsabilidade e contra a ordem tributária), o percentual sobe para 57,88% de autos em que se poderiam, em tese, aplicar o instituto (OLIVEIRA, 2021, p. 77).

Nada obstante, apesar desse amplo espaço para incidência do instituto, foram celebrados pelo Ministério Público Federal potiguar apenas 51 acordos em 2021, um número inexpressivo, se considerarmos que em janeiro de 2021 deram entrada no TRF daquele estado o expressivo número de 4862 novos processos, apesar da projeção, ao menos no plano das probabilidades, apontassem um cenário mais promissor. O que não passou despercebido pela pesquisa que concluiu que o ANPP apresentou divergências quantitativas no tocante à aplicabilidade teórica e prática: na teoria, doutrinadores asseveram ser o instituto capaz de abranger a maioria dos crimes em decorrência da pena mínima, contudo, sua aplicabilidade prática não acompanhou a referida projeção (OLIVEIRA, 2021, p. 89).

Nesse sentido, a autora inferiu possíveis externalidades que poderiam ter interferido no desempenho esperado como o contexto pandêmico, a insuficiência de defensores públicos e a falta de formação e consenso no tocante ao modo de negociação no ambiente do ANPP, o que nos leva a constatação dos muitos desafios no processo de implementação e aprimoramento do instituto  (OLIVEIRA, 2021, p. 89).

5 – POSSÍVEL IMPACTO NO SISTEMA DE JUSTIÇA PENAL

O relatório mais recente do CNJ, “Justiça em Números 2024”, referente ao ano base de 2023, nos apresenta um panorama promissor quanto ao enfrentamento da morosidade judicial, graças ao processo de virtualização implementada, tendo por marco a Resolução CNJ nº 420, de 29 de setembro de 2021, a qual estabeleceu um cronograma para que todos os órgãos do Poder Judiciário digitalizem o acervo processual físico e vedou o ingresso de novos casos em autos físicos a partir de março de 2022 (CNJ, 2024, on-line).

O impacto da virtualização na tramitação processual pode ser aferida pela comparação entre o tempo de tramitação dos autos físicos e dos autos eletrônicos: a tramitação eletrônica com um tempo médio de 3 anos e 5 meses, chega a representar quase um terço do tempo levado na tramitação de processos físicos, cuja média de tempo é de 12 anos e 4 meses. Nesse ano-base, a taxa de virtualização dos autos foram superiores a 90% do acervo em todos os tribunais do país (CNJ, 2024, on-line).

Voltando-se para a esfera criminal, objeto imediato de nosso estudo, em 2023, ingressaram, no Poder Judiciário, 3,4 milhões de casos novos criminais, a maioria, 2,6 milhões (64,2%) na fase de conhecimento de primeiro grau. Além desses 3,4 milhões, foram iniciadas 599,5 mil (14,8%) execuções penais, totalizando 4 milhões de novos processos criminais, quando computadas as execuções penais (CNJ, 2024, on-line).

O foco da presente análise na Justiça Estadual se deve ao fato de ser o segmento com maior representatividade de litígios no Poder Judiciário, com 71,3% da demanda. Na área criminal, essa representatividade aumenta para 94,1% (CNJ, 2024, on-line). O panorama nos oferece a dimensão dos desafios enfrentados no sentido de otimizar e racionalizar o sistema rumo a uma maior funcionalidade e efetividade e, sobretudo, a relevância dos indicadores da justiça estadual para análise e possíveis soluções para os gargalos no desempenho geral na administração da justiça criminal.

O relatório do CNJ mostra que o quantitativo de processos novos criminais aumentou em 2023, de 3,2 milhões para 3,4 milhões entre 2022 e 2023, registrando variação no último ano de 6,7%. Atenta-se para o fato de que é a maior quantidade de casos novos criminais da série histórica e processual, a qual abrange os anos de 2009 a 2023, após a queda na série histórica que foi verificada entre os anos de 2015 e 2019 (CNJ, 2024, on-line).

Figura 2 – Série histórica dos casos novos e pendentes criminais no primeiro grau, no segundo grau e nos tribunais superiores, excluídas as execuções penais. Fonte: CNJ, 2024.

O empenho dos atores institucionais e individuais na resolução da demanda, contudo, pode ser medida pelas estatísticas do acervo que, no início da série histórica calculada a partir do DataJud com inclusão dos TCOs, era de 7,2 milhões, sofreu redução nos três anos subsequentes, chegando a 6,2 milhões em 2023, o que significa uma redução de 13,7% entre os anos de 2020 e 2023 e de 5,2% no último ano (CNJ, 2024, online).

Na fase de conhecimento de primeiro grau, apesar disso, o tempo do processo criminal é maior que o do não criminal. Na Justiça Estadual, os processos criminais duram, em média, 2 anos e 7 meses até o primeiro julgamento (CNJ, 2024, on-line).

Figura 03 – Tempo médio de tramitação dos processos criminais (direita) e não criminais (esquerda) baixados na fase de conhecimento do primeiro grau, por tribunal,  Fonte: CNJ, 2024.

O relatório infere que o baixo desempenho em 2023 na esfera criminal, segundo expresso no relatório do Justiça em Números 2024, se deu em razão do aumento dos casos novos e sua pressão sob o sistema ao lado do acervo já existente.

No Brasil, em relação ao sistema carcerário, o sistema punitivo estatal continuou essencialmente encarcerador, embora a série histórica demonstre uma possível alteração na tendência nos anos-base de 2022-2023  (CNJ, 2024, on-line).

Ao final de 2023, embora houvesse 2,7 milhões de execuções penais pendentes, sendo 1,8 milhão de penas privativas de liberdade (64%), logo a maioria, e 986,5 mil de penas alternativas (36%), ao longo desse ano, 600 mil execuções penais foram iniciadas e, na maioria dos casos, a pena aplicada foi não privativa de liberdade, com 343,6 mil casos iniciados (57,3%), enquanto as com privação de liberdade representam um total de 256 mil (42,7%)  (CNJ, 2024, on-line).

O relatório nos revela que o ano de 2022 foi o marco de virada da série histórica (2009-2023), quando as novas execuções não privativas de liberdade pela primeira vez superam as privativas de liberdade, cujo real significado podem ser apenas presumido, nada obstante, demonstre, por si só, ser imperioso acompanhar seu fluxo e estudar as injunções que lhe condicionam, bem como suas implicações para o sistema global. Citamos esse dado pela sua relevância temática, considerando que um dos objetivos do ANPP é reduzir a taxa de encarceramento.

Voltando ao tempo médio de duração do processo criminal na fase de conhecimento do 1º grau da Justiça Estadual, que remete ao indiciador de desempenho relacionado a celeridade processual, objeto do presente estudo, tomando por base os relatórios referentes aos anos-base de 2019 a 2023, foi observado uma crescente redução no tempo médio de tramitação dos autos.

Desse modo, se, em 2019, o tempo médio de tramitação era de 4 anos e 2 meses; em 2020, foi de 4 anos; em 2021, 2 anos e 11 meses; em 2022, 2 anos e 9 meses; e, em 2023, 2 anos e 7 meses. Ao longo dessa temporalidade, o tempo de tramitação dos autos criminais foram sempre superiores aos dos não criminais, em consonância ao nível de congestionamento da esfera criminal e o tamanho de seu acervo processual (CNJ,2020; CNJ,2021; CNJ,2023; CNJ,2024).

Em relação ao possível impacto do ANPP nesse processo de redução do tempo de tramitação processual, há a expectativa de que a economia processual e dos atos procedimentais reflitam na economia do tempo processual, sobretudo, pela diminuição de audiências de instrução e julgamento, memoriais, sentenças e recursos. Considerando-se, dessa forma, a intuitiva projeção de que a redução na quantidade de processos criminais no âmbito do Poder Judiciário na razão inversa ao aumento do número de acordos de não persecução penal celebrados e homologados melhorem o desempenho do sistema de justiça criminal como um todo.

Contudo, esses dados devem ser analisados com precaução, pois não permitem delimitar a influência direta do ANPP na redução do tempo de tramitação, apesar da abrangência de sua incidência no plano teórico, haja vista, sobretudo, o forte impacto do processo de virtualização nesse indicador, como já exposto anteriormente. Além disso, a novidade do instituto, que ainda se encontra em fase de consolidação, e externalidades como a ausência de defensores públicos, podem ocasionar uma baixa taxa de celebração de acordos, consoante havia sido sinalizado pela pesquisa realizada por Allana Oliveira no âmbito da Justiça Federal, a qual fizemos referência no tópico anterior.

A despeito da falta de dados e estudos específicos, quanto ao número de ANPPs celebrados e seu efetivo impacto no sistema criminal, a pesquisa realizada por Leonardo Lopes Sardinha com objetivo analisar a eficiência dos ANPPs no âmbito das Varas Criminais da Comarca de Birigui/SP nos anos de 2019 e 2020, no que diz respeito a celeridade processual, oferece contribuição relevante para o tema.

Desse modo, a pesquisa constatou que o tempo médio de prolatação das sentenças se mostrou significativamente superior ao cumprimento dos acordos envolvendo crimes da mesma natureza: enquanto o tempo médio das sentenças oscilou entre 626 e 955 dias, em 2019 e 2020, por seu turno, o cumprimento dos acordos se deu entre 02 meses a 01 ano.

De início, chama a atenção que foram celebrados apenas 43 acordos no período analisado. Embora não se possa mensurar à luz dos dados fornecidos qual seria o percentual de incidência do instituto em face do montante processual da comarca, em razão de não constar a quantidade de processos em tramitação nas Varas Criminais, é informado, contudo, que houvera ao todo 879 sentenças prolatas, o que revela de forma oblíqua que a incidência das ANPPs havia sido tímida, em parte devido o contexto pandêmico, muito embora o estudo revele que os ANPPs apresentaram um desempenho superior ao processo penal tradicional, no que diz respeito ao tempo de resolução do conflito, o que permite inferir que o potencial do instituto não foi plenamente explorado e, ao mesmo tempo, oferece importante indicador das perspectivas futuras e da contribuição que esse instrumento pode oferecer.

Nesse contexto, advertiu Leonardo Lopes Sardinha que não obstante a eficiência dos acordos de não persecução penal celebrados e cumpridos na comarca de Birigui, o acordo deve ser visto como uma expressão do fenômeno denominado “diversão”, e não um substituto do processo penal, o qual continua como instrumento por excelência de resolução de conflitos a coexistir com meios alternativos ou simplificados de resolução de conflitos penais (SARDINHA, 2020, p. 96).

Muito embora os dados apresentados pelos relatórios do “Justiça em Números de 2020 a 2024” não permitam mensurar o impacto concreto com o advento do mais novo instituto desjudicializante e despenalizador sobre o sistema entendido de forma global, pela falta de informações específicas que permitam averiguar empiricamente sua incidência, dados oferecidos pelo Ministério Público Federal, ainda nos anos iniciais da gênese do ANPP, demonstram engajamento, no âmbito federal, na implementação do novo instituto. Assim, o MPF propôs 1.029 acordos em todo o país, de maio de 2018 até novembro de 2019 (GIORDANE, 2019, p. 47-48).

Quanto aos ANPPs celebrados pelo MPF, nesse período, foi observado que o estado com maior número de acordos celebrados foi o Paraná, que firmou 242, seguido do estado do Espírito Santo, com 124 acordos. Já no Distrito Federal, foram propostos somente 14. O relatório mostra que 62% dos acordos resultaram em indenização e somente em 19% deles não houve prestação de serviços à comunidade (GIORDANE, 2019, p. 48).

A partir disto, é possível projetar o forte impacto que o instituto pode oferecer a médio e longo prazo, na medida em que se consolide no âmbito da justiça criminal, como forma mais efetiva de recomposição do meio social e das vítimas afligidos pelas condutas delituosas, mediante prestações pecuniárias e de serviços à comunidade, realizados pelos imputados, em prestígio ao caráter repressivo do instituto; sem desconsiderar, por outro lado, seu potencial preventivo e educativo, ao chamar o imputado a participar de forma voluntária e ativa na reparação dos danos e consequências de sua conduta. Certamente, tais desdobramentos e contribuições do ANPP não estão desconexos de seu desempenho no tocante a celeridade processual, uma vez que a morosidade e ineficiência do sistema de justiça atinge não só os direitos das partes e a legitimidade do sistema de justiça, mas também o resultado útil do processo para os envolvidos e toda coletividade.

Nesse sentido, valendo-se de importante pesquisa realizada por Tairine Giordane, com objetivo de fomentar a discussão quanto ao potencial reparador e educativo do acordo de não persecução penal, apresentamos alguns casos bem-sucedidos de celebrações de acordos, os quais revelam que, a médio e longo prazo, pode o ANPP se tornar um importante instrumento de promoção da justiça, de uma forma mais célere e eficaz.

No Amazonas, no dia 24 de outubro de 2017, foi firmado pela 2ª Promotoria de Justiça de Coari um dos primeiros Acordos de Não-Persecução Penal no âmbito do Ministério Público do Estado do Amazonas (MP-AM). No caso, o investigado foi acusado de lesão corporal culposa contra um idoso, ao atropelá-lo na faixa de pedestres enquanto conduzia seu veículo automotor. As condições estabelecidas no acordo foram: reparação do dano causado à vítima (estimado em R$ 4.000,00) e prestar serviços à comunidade, pelo período de 4 (quatro) meses, na Delegacia de Polícia do município. No Piauí, o Ministério Público firmou seu primeiro acordo de não persecução penal em 06 de fevereiro de 2018, na comarca de Parnaíba. A investigada havia sido presa por furto, sendo que, posteriormente, em audiência de custódia, foi apresentado que a conduzida não respondia a outros processos e que já havia restituído a vítima. Desse modo, foi oferecida a proposta de acordo, em que teria o dever de prestar serviços à comunidade por seis meses, por quatro horas semanais, e se submeter a tratamento para drogadição, em um CAOS, também pelo período de seis meses.

O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) ofereceu seu primeiro acordo de não persecução penal a um jovem de Campo Belo que confessou ter falsificado histórico escolar com o intuito de efetuar matrícula em curso de graduação. Para que haja o arquivamento da ação penal, foram estabelecidas a prestação serviço à comunidade por 16 meses e a prestação pecuniária no valor de R$9.540,00, destinado ao Fundo Especial do MPMG. Ademais, as disciplinas já cursadas na faculdade no ano de 2017 não poderão ser aproveitadas futuramente.

Em Tocantins, é possível observar claramente a destinação dos valores arrecadados pelas prestações pecuniárias estabelecidas em acordos de não persecução penal. O Ministério Público Estadual, por meio da Promotoria de Justiça de Arapoema, aplicou esse método de resolução de conflitos para possibilitar um projeto assistencial destinado a atender um jovem com deficiência física, que vivia em condições indignas, permitindo assim que possa viver em espaço adequado. Além disso, na Comarca de Arapoema, outros benefícios são vistos: a delegacia possui agora drone, notebook, impressora e sistema de monitoramento, para auxiliar nas investigações; o Hospital Regional recebeu equipamentos, como cadeiras de rodas, cadeiras de banho, aparelhos de ar-condicionado e televisores; e associações sem fins lucrativos, como a Associação Amigos da Bola e a Associação de Universitários, foram beneficiadas. O próximo objetivo agora é a destinação ao Corpo de Bombeiros de um aparelho desfibrilador, aparelhos de pressão e outros.

Na mesma linha, em Goiás, em um mês de utilização dos acordos de não persecução penal pela 1ª Promotoria de Justiça de Quirinópolis, foram arrecadados 22 mil reais por prestações pecuniárias, sendo esses valores recolhidos para um fundo específico, para que haja a sua destinação aos Conselhos da Comunidade e de Segurança, para a realização de polícias públicas de execução penal e de segurança pública Além disso, todos esses acordos estão alimentando um banco de dados da promotoria, com a finalidade de monitorar a reincidência, indicando (ou não) o acerto dessa estratégia.42. Já em Formosa, foram arrecadados mais de 120 mil reais pelos mais de 50 acordos realizados pela 3ª Promotora de Justiça de Formosa, que foram totalmente destinados a instituições beneficentes da cidade, de acordo com a promotora Camila Fernandes Mendonça (GIORDANI, 2019, p. 46-48).

Por todo o exposto, fica claro que, embora o ANPP não tenha, ainda, realizado plenamente todo o impacto esperado, pela doutrina e pelos atores institucionais e individuais que o conceberam, no sistema de justiça criminal, há ainda um longo trajeto a ser percorrido no sentido de se alcançar maior funcionalidade e eficiência no sistema de justiça, da qual a celeridade processual é parte fundamental e relevante indicador de desempenho a condicionar os demais indicadores relacionados a eficiência e eficácia do instituto.

6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS  

O acordo de não persecução penal, finalmente regulamentado por lei com a promulgação da Lei 13.964, de 2019, surge no ordenamento jurídico brasileiro, aliado aos demais institutos despenalizadores já existentes, com o intuito de ensejar celeridade e eficiência ao sistema de justiça criminal tradicional, moroso e burocrático. Com a dificuldade do sistema de justiça criminal processar todos os casos e oferecer uma resposta adequada aos diversos litígios na seara penal, permitiu-se um olhar crítico e problematizador ao excessivo formalismo do processo penal clássico, o qual, no digno afã de efetivar os direitos e garantias no âmbito da seara criminal, impunha ritos e ritmos procedimentais/processuais que estavam em descompasso com as demandas sociais e o resultado útil do processo, os quais as estatísticas desvelam de forma implacável.

A incapacidade do sistema criminal brasileiro garantir a duração razoável do processo, aliás, nunca é demais lembrar que se trata de princípio consagrado no artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal de 1988, com o princípio reitor da execução de manutenção dos direitos dos presos, aliada ao cenário de caráter marginalizante do ambiente carcerário, contribuem de forma sobremaneira relevante para asseverar a necessidade de a pena privativa de liberdade ser aplicada apenas em caráter de exceção, como também prevê nossa Carta Magna. Esse cenário deu causa à necessidade e às iniciativas de diversificação dos mecanismos de solução de delitos. Diante disso, surge o ANPP como instrumento para a resolução de conflitos no tocante à pequena e média criminalidade.

Os indicadores, apesar do ganho em produtividade com as melhorias estudadas, continuam a apontar uma Justiça Penal encarceradora, onerosa e morosa. Dados da pesquisa indicam que é reflexo do afluxo constante e crescente de novos casos e do peso dos processos pendentes sobre o sistema, apesar dos esforços realizados no sentido da superação desse contexto.

Refletindo acerca da problemática que originou a concepção do ANPP e sobre o fato de que, 4 anos após seu advento previsto em diploma legal, o sistema de justiça criminal continua aquém do desempenho esperado, observa-se antes o aumento de conflitos em âmbito penal, revelado pelo aumento do número de novos processos; conclui-se que a resolução de problemas atinentes ao fenômeno social do crime vai além da simples aplicação de leis e institutos penais ou do aperfeiçoamento do sistema no processamento da demanda, todavia institutos como o ANPP tenham muito a contribuir para a solução dos conflitos e eficiência do sistema, muito embora faltem, ainda, estudos específicos, no tocante a seu papel e impacto no sistema de justiça criminal, de modo a permitir mensurar com maior precisão sua influência no sistema de modo global.

Dessa forma, é imperiosa a existência de pesquisas e diagnósticos contendo informações quanto aos indicadores de desempenho do instituto, como a celeridade processual, além de fatores externos que possam influenciar no tempo de tramitação processual/procedimental, especialmente no que diz respeito à tramitação nas Varas de Execução Penal, ao tempo de duração das investigações policiais e à disponibilidade da Defensoria Pública.

Outrossim, a análise dos dados coletados permite inferir que, a despeito de o ANPP poder exercer, no plano teórico, relevante função no tocante à celeridade e redução de processos penais e, por conseguinte, na otimização e eficiência da justiça criminal, para que se alcancem conclusões mais fidedignas, imperioso se faz estudos especializados para seu acompanhamento no médio e longo prazo, a fim de que seu real impacto e as limitações na execução possam ser conhecidas e mensurados com maior precisão, permitindo o aperfeiçoamento de sua implementação, a fim de que as expectativas teóricas sejam congruentes com seu efetivo desempenho.


2 Disponível em: <https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Pronunciamento_final.pdf>. Acesso em: 16 out. 2024.


REFERÊNCIAS

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1Graduando em Direito pela UFRN. Pós-Graduado em Gestão Pública voltada para o Ministério Público pela UFRN (2015). Graduado em História pela UFRN (2010). E-mail: thiago.dantas@mprn.mp.br