ABUSO OBSTÉTRICO: RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO OBSTETRA EM FACE DA FALTA DE PROFISSIONALISMO SOB A ÓTICA DOS DIREITOS HUMANOS

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.12593875


Vinícius de Paulo Corrêa1 


RESUMO

A responsabilidade civil refere-se a qualquer ação ou omissão que resulta na violação de uma norma jurídica, seja ela de natureza legal ou contratual. Nos dias atuais, um tema de grande relevância e debate é o abuso obstétrico. Este estudo tem como objetivo principal uma abordagem teórica, empregando o método dedutivo e uma revisão bibliográfica que utiliza informações provenientes de artigos publicados disponíveis na internet, doutrinas e jurisprudências relacionadas à falta de profissionalismo médico ante os Direitos Humanos e a Responsabilidade Civil. Para que seja configurada a responsabilidade civil do médico em casos de erro de abuso, é necessário comprovar a culpa do profissional, a existência de um dano sofrido pelo paciente-vítima e a existência de um nexo de causalidade entre a conduta do médico, que pode variar de negligente a imprudente ou imperita, e a lesão suportada pelo paciente. Este estudo concluiu que a responsabilidade civil do médico é de natureza subjetiva, o que implica que é essencial comprovar a culpa do profissional e a existência do dano para que seja configurada essa responsabilidade.

Palavras-chaves: abuso; violência obstétrica; responsabilidade civil 

1 INTRODUÇÃO 

O presente artigo aborda o tema Abuso Obstétrico: responsabilidade civil do médico obstetra em face da falta de profissionalismo sob a ótica dos direitos humanos; uma questão complexa e preocupante que afeta milhões de mulheres em todo o mundo. Foi investigado o abuso obstétrico sob a perspectiva do profissionalismo médico, analisando a violação dos direitos humanos das mulheres durante o parto e a responsabilidade civil dos profissionais envolvidos. O contexto durante a assistência ao parto é fundamental para entender o abuso obstétrico, pois muitas vezes as mulheres encontram-se em posição de vulnerabilidade física e emocional. Relatos de abusos por parte de profissionais de saúde são frequentes, variando de violência verbal a intervenções médicas desnecessárias.

O abuso obstétrico viola os princípios éticos da medicina, como a autonomia do paciente, a beneficência e a não maleficência, é uma forma de violação dos direitos humanos durante o processo de gestação, parto e pós-parto, sendo caracterizada pela falta de profissionalismo médico, contribuindo assim para a perpetuação deste ato. A responsabilidade civil dos profissionais de saúde envolvidos é uma questão importante, sendo assim, foram analisadas as legislações que abordam a responsabilidade civil, buscando garantir a prestação de cuidados de qualidade e proteção dos direitos das mulheres.

O objetivo deste artigo é analisar o abuso obstétrico no contexto brasileiro, identificando os principais fatores que motivam essa prática e suas consequências para a saúde das mulheres. Além disso foram discutidas medidas para combater essa pratica e proteger os direitos das mulheres, afinal a conscientização e educação são essenciais para promover mudanças, para isso é necessário capacitar os profissionais de saúde e fortalecer as políticas públicas e o controle de fiscalização e haver também a responsabilização dos culpados.

Este artigo contribui com debates sobre o abuso obstétrico, destacando a importância do profissionalismo médico, dos direitos humanos e da responsabilidade civil. Não tem como objetivo esgotar o assunto, mas levantar dados e hipóteses de acordo com a bibliografia e legislação específica. Para obter melhores resultados, o método utilizado foi o dedutivo, com pesquisa bibliográfica sustentada na lei, na doutrina e na jurisprudência, em adição análise das orientações do Ministério da Saúde e do Conselho Regional de Medicina, bem como nas normas de ética geral e profissional.

Em resumo, este artigo teve como objetivo principal aprofundar o entendimento sobre o abuso obstétrico, sua relação com o profissionalismo médico, e a responsabilidade civil dos profissionais de saúde envolvidos. Ademais, houve a pretensão de destacar a relevância do tema, objetivando contribuir para a conscientização pública e a busca por medidas eficazes de prevenção e tratamento do abuso obstétrico.

É fundamental reconhecer que o abuso obstétrico é uma questão complexa e abrangente, que exige um entendimento multidisciplinar e a colaboração de diversos setores da sociedade, incluindo profissionais de saúde, legisladores, e a comunidade em geral. A pesquisa bibliográfica e a análise das leis, doutrinas e jurisprudências são ferramentas importantes para a compreensão deste fenômeno e para o desenvolvimento de estratégias eficazes de combate. Portanto, este trabalho não objetivou somente fornecer uma visão geral do abuso obstétrico, mas também incentivar a reflexão e a ação contínua para garantir que as mulheres tenham acesso a uma assistência ao parto digna, baseada em respeito e nos direitos humanos, prevalecendo a ética médica. A análise apresentada tem como objetivo ser um passo em direção a um futuro em que esta violência contra a mulher seja uma realidade cada vez mais rara e inaceitável em nossa sociedade.

Ao abordar as questões de profissionalismo médico, direitos humanos e responsabilidade civil, espera-se que o debate seja estimulado, e que assim seja promovida a conscientização inspirando ações concretas para erradicar essa prática prejudicial. A conscientização, educação, capacitação de profissionais e o fortalecimento das políticas públicas, tem grande importância e não pode ser subestimada. É decisivo que todos os envolvidos nessa área da saúde trabalhem em conjunto para assegurar que as mulheres recebam os cuidados necessários e respeitosos, baseados em evidências durante a gestação, parto e pós-parto.

Embora este artigo não esgote completamente o assunto abordado, ele lança luz sobre a complexidade do abuso obstétrico e fornece um ponto de partida para futuras pesquisas e iniciativas práticas. O desafio é grande, mas a busca por uma assistência ao parto mais humanizada e justa para todas as mulheres é um objetivo digno e essencial.

2 OS DIREITOS DA PACIENTE NAS CIRURGIAS OBSTÉTRICAS

Na relação médico-paciente, existem regras e deveres que o cirurgião deve respeitar, sob pena de responsabilização. Os deveres médicos podem ser divididos em três grupos: o dever de informar e esclarecer, o dever de técnica e perícia, e o dever de cuidar e zelar. O dever de informar e esclarecer abrange todas as informações relacionadas à cirurgia, incluindo os riscos, possíveis resultados, efeitos colaterais, exames necessários, instrumentos necessários e utilizados, entre outras informações essenciais para a realização do procedimento, é importante salientar que é fundamental adaptar a informação de maneira que seja compreensível para o paciente, de modo que ele possa tomar a decisão correta sobre o procedimento que será realizado, levando em consideração sua própria realidade (ALBUQUERQUE, 2016).

Durante o processo de parto, a gestante possui o direito de ser ouvida em relação às suas queixas e preocupações, de expressar seus sentimentos e reações de forma livre, sempre com o suporte de uma equipe preparada e atenciosa, toda mulher tem o direito a um parto normal e seguro, já que esse é considerado o método mais saudável e seguro para o nascimento de seus filhos. A realização de uma cesariana deve ser indicada somente quando há risco para a criança ou para a mãe (ALBUQUERQUE, 2017).

O cartão da gestante desempenha um papel crucial, pois contém registros detalhados do estado de saúde da mulher durante a gravidez. Com base nele, a equipe médica terá acesso às informações essenciais sobre o progresso da gestação e os cuidados necessários com a paciente. A informação desempenha um papel importante na construção da relação médico-paciente, sendo incorporada ao Código de Ética Médica, no artigo 34: 

Art. 34. É vedado ao médico: Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar danos, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal (CEM, 2009).

A Lei Federal 11.108/2005, popularmente conhecida como a “Lei do Acompanhante”, assegura às mulheres em trabalho de parto, durante o parto e imediatamente após o parto nos estabelecimentos de saúde vinculados ao Sistema Único de Saúde (SUS) – sejam eles de administração pública direta ou indireta – o direito à presença de um acompanhante, este direito é aplicável tanto em partos normais quanto em cesarianas, e nenhum hospital, médico, enfermeiro ou membro da equipe de saúde tem permissão para negar ou impedir a presença do acompanhante, conforme estabelecido por essa legislação.

Existem outras duas regulamentações que garantem que a parturiente possa ter uma pessoa de sua escolha presente durante o processo de parto. Uma delas é a Resolução Normativa RN 211/2010 da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), que regula os planos de saúde no país, já a outra regulamentação é a Resolução da Diretoria Colegiada RDC 36/2008 da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

A informação desempenha um papel vital na construção de uma relação médico-paciente respeitosa e ética, como refletido no Código de Ética Médica e nas leis que protegem os direitos das gestantes. Por conta disso, torna-se essencial que médicos e profissionais de saúde cumpram essas obrigações para garantir a melhor assistência possível e respeitar os direitos e escolhas das pacientes em todas as etapas de seus cuidados médicos.

3 AS CONDUTAS DO MÉDICO OBSTETRA SOB A ÓTICA DA LEGISLAÇÃO E DA ÉTICA PROFISSIONAL

Conforme definido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) (2016), a violência é caracterizada como o “uso intencional da força ou poder, de forma ameaçadora ou efetiva, direcionado a si mesmo, a outra pessoa, a um grupo ou à comunidade, com potencial para causar lesões, morte, trauma psicológico, perturbações no desenvolvimento ou privações”. Em contrapartida, a Obstetrícia é a especialização médica dedicada ao estudo dos fenômenos relacionados à reprodução feminina, abrangendo todo o processo gestacional, que engloba o préparto, o parto e o pós-parto.

Conforme consolidado na Declaração Who da OMS, sobre violência obstétrica: 

No mundo inteiro, muitas mulheres experimentam abusos, desrespeito, maustratos e negligência durante a assistência ao parto nas instituições de saúde. Isso representa uma violação da confiança entre as mulheres e suas equipes de saúde, e pode ser também um poderoso desestímulo para as mulheres procurarem e usarem os serviços de assistência obstétrica. Embora o desrespeito e os maus tratos possam ocorrer em qualquer momento da gravidez, no parto e no período pós-parto, as mulheres ficam especialmente vulneráveis durante o parto. Tais práticas podem ter consequências adversas diretas para a mãe e a criança. Relatos sobre desrespeito e abusos durante o parto em instituições de saúde incluem violência física, humilhação profunda e abusos verbais, procedimentos médicos coercivos ou não consentidos (incluindo a esterilização), falta de confidencialidade, não obtenção de consentimento esclarecido antes da realização de procedimentos, recusa em administrar analgésicos, graves violações da privacidade, recusa de internação nas instituições de saúde, cuidado negligente durante o parto levando a complicações evitáveis e situações 5 ameaçadoras da vida, e detenção de mulheres e seus recém-nascidos nas instituições, após o parto, por incapacidade de pagamento (OMS WHO/RHR/14.23 de 2014).

Assim, a declaração ressalta a frequência de incidentes que envolvem abusos, desrespeito e negligência perpetrados contra mulheres durante o procedimento de parto em instituições de saúde em âmbito global. Esses comportamentos não apenas constituem uma quebra da confiança essencial entre mulheres e os profissionais de saúde, mas também representam um obstáculo substancial para a busca e utilização dos serviços obstétricos. É imperativo reconhecer que tais práticas, que abrangem desde agressões físicas e verbais até a realização de procedimentos médicos sem o devido consentimento informado, acarretam impactos diretos e prejudiciais na saúde tanto da mãe quanto da criança. Adicionalmente, essas circunstâncias podem resultar em complicações evitáveis durante o parto, colocando em risco a vida das mulheres e dos recém-nascidos. Este contexto demanda urgentemente a promoção de uma cultura que valorize o respeito, o consentimento informado e a prestação de cuidados humanizados durante o processo de parto, visando assegurar a segurança e a dignidade das mulheres em todas as fases desse momento crucial.

Essa forma de violência pode ser cometida por qualquer indivíduo que esteja envolvido no cuidado da mulher durante o período gestacional, incluindo médicos, enfermeiros, técnicos em enfermagem, obstetrizes, doulas, instrumentadores, anestesistas, ou qualquer pessoa que faça parte desse contexto e a viole dentro desse contexto. A vítima, por sua vez, será sempre a mulher grávida, em trabalho de parto, passando por um aborto ou no período puerperal.

A suposição de culpa nos atos do médico é o fundamento que sustenta sua responsabilidade civil, que só se configura quando há demonstração de culpa ou dolo por parte do profissional. Isso implica na existência da intenção consciente do médico em suas ações ou na sua acessibilidade consciente do risco de causar dano ao paciente, o que é expressamente proibido pelo Código de Ética Médica:

Segundo o Conselho Federal de Medicina é vedado ao médico:

Art. 1º Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência. Parágrafo único. A responsabilidade médica é sempre pessoal e não pode ser presumida.

Art. 2º Delegar a outros profissionais atos ou atribuições exclusivos da profissão médica.

Art. 3º Deixar de assumir responsabilidade sobre procedimento médico que indicou ou do qual participou, mesmo quando vários médicos tenham assistido o paciente.

Art. 4º Deixar de assumir a responsabilidade de qualquer ato profissional que tenha praticado ou indicado, ainda que solicitado ou consentido pelo paciente ou por seu representante legal. (CFM, 2018).

Nesse contexto, é fundamental ressaltar a presença de obrigações éticas que regem a prática médica, conforme estabelecido no Código de Ética Médica, cuja formulação está definida pela Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 2.217/2018. Essas diretrizes, de maneira abrangente, orientam a conduta dos profissionais no exercício da medicina.  

Portanto, ao disciplinar a conduta dos médicos e estabelecer diretrizes, obrigações e regulamentos a serem seguidos no desempenho de sua profissão, o Código de Ética Médica assume um papel essencial na asseguração da qualidade, segurança e respeito nas práticas médicas em todo o território nacional, abrangendo tanto o setor público quanto o privado (NOVO, 2019). 

Ruy Rosado de Júnior Aguiar (2000, p. 7) leciona que o médico tem o dever de agir com diligência e cuidado no exercício da sua profissão, de acordo com o estado da ciência e as regras consagradas pela prática médica.

O Código de Defesa do Consumidor, de forma análoga, estabelece, no artigo 6º, inciso III, o Princípio da Transparência, assegurando o direito do consumidor a receber informações completas acerca de todos os elementos relacionados ao serviço ou produto que adquire.

No que tange ao Código de Ética Médica, conforme estipulado no artigo 22, é expressamente proibido ao médico “abster-se de obter o consentimento do paciente ou de seu representante legal após fornecer informações claras sobre o procedimento a ser realizado, a menos que haja risco iminente de morte”(CFM,12016).

Além disso, de acordo com o artigo 24, é incumbência do médico “assegurar ao paciente o pleno exercício do direito de tomar decisões autônomas sobre sua pessoa e seu bem-estar, sem restrições indevidas de sua autoridade” (CFM, 2016).

Constitui infração médica ainda, conforme prevê o Código de Ética médica, artigos 26 e 31 respectivamente,

Deixar de respeitar a vontade de qualquer pessoa, considerada capaz física e mentalmente, em greve de fome, ou alimentá-la compulsoriamente, devendo cientificá-la das prováveis complicações do jejum prolongado e, na hipótese de risco iminente de morte, tratá-la.” e “Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte (CFM, 2016)

Resumidamente, é imperativo que o médico opere em estrita consonância com os padrões éticos e normativos da profissão médica. Nesse contexto, ele deve empregar todos os recursos e conhecimentos à sua disposição com o intuito de promover a recuperação do paciente, agindo com cautela e diligência para prevenir quaisquer prejuízos ou danos a seus pacientes.

4 A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA COMO UMA VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Existem várias categorias de violência contra a mulher, que podem ser diversas como: violência física, que se refere a agressões que causam danos à integridade física da mulher; violência psicológica, que envolve ações que provocam danos emocionais, afetando a saúde mental da mulher; violência sexual, que envolve danos, constrangimentos e coações no contexto da sexualidade e do sexo; violência patrimonial, que engloba a subtração, destruição e retenção de bens e recursos da mulher, que irá controlá-la financeiramente; e violência moral, que inclui calúnia, difamação e ofensas à dignidade da mulher (OLIVEIRA, 2016).

Além dessas categorias amplamente reconhecidas, existe uma forma de violência contra a mulher que ainda é pouco difundida e debatida, conhecida como violência obstétrica. A violência obstétrica pode ser conceituada como a prática de atos violentos, agressivos, imprudentes, negligentes e omissos, que atentam contra a dignidade e integridade da gestante, especialmente durante o trabalho de parto e no período puerperal. É fundamental destacar a importância de discutir e combater a violência obstétrica para garantir o respeito aos direitos das mulheres durante o processo de gestação, parto e pós-parto.

A violência obstétrica tem sido interpretada como um tipo de violência institucional e de gênero, pois corresponde à utilização arbitrária do saber por parte de profissionais da saúde no controle dos corpos e da sexualidade de suas pacientes, o que inclui a negligência, a discriminação social, a violência verbal, a violência física, a medicalização e a utilização de procedimentos inadequados e/ou desnecessários na gestação, incluindo o momento pré-parto, do parto e do pós-parto (NOGUEIRA, SEVERI, 2016, p. 433).

Os direitos humanos representam garantias universais e inalienáveis atribuídas a todos os indivíduos, independentemente de qualquer distinção, e foram conquistados ao longo da evolução da sociedade. Seu objetivo principal é salvaguardar a dignidade intrínseca de cada ser humano, bem como outros aspectos essenciais relacionados, como a preservação da vida, a preservação da liberdade e a promoção da igualdade, entre muitos outros direitos fundamentais. Uma definição notável do conceito de direitos humanos, conforme apresentado por André de Carvalho Ramos (2017) em seu “Curso de Direitos Humanos”, a descrição como um conjunto de direitos absolutamente essenciais para a existência da pessoa humana, sendo fundamentados nos princípios da liberdade, igualdade e dignidade (RAMOS, 2017).

Os direitos humanos representam prerrogativas fundamentais subjacentes ao ser humano e à sua condição intrínseca. Podemos afirmar que esses direitos têm como base o valor primordial do Direito que é conferido a cada indivíduo simplesmente por existir. Conforme estabelecido pela ONU, os direitos humanos são universais, aplicando-se a todas as pessoas, independentemente de sua raça, gênero, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra característica. Isso encontra respaldo no artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: 

Art. 1º Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.

Em 2014, a Organização Mundial de Saúde (OMS) emitiu uma declaração oficial destinada à prevenção e erradicação da violência obstétrica, classificando-a como um flagrante a violação dos direitos humanos fundamentais.

Os abusos, os maus-tratos, a negligência e o desrespeito durante o parto equivalem a uma violação dos direitos humanos fundamentais das mulheres, como descrevem as normas e princípios de direitos humanos adotados internacionalmente. Em especial, as mulheres grávidas têm o direito de serem iguais em dignidade, de serem livres para procurar, receber e dar informações, de não sofrerem discriminações e de usufruírem do mais alto padrão de saúde física e mental, incluindo a saúde sexual e reprodutiva (OMS, 2014)

Sob a perspectiva dos direitos humanos, a violência obstétrica viola uma série de direitos, incluindo o direito à vida, conforme previsto no artigo 5º, caput, da Constituição Federal de 1988, o direito de não ser submetido à tortura e tratamento cruel ou degradante, conforme previsto no artigo 5º, inciso III, da CF, o direito ao respeito pela vida privada, conforme estipulado no artigo 5º, inciso X, da CF, o direito à informação, conforme assegurado no artigo 5º, inciso XIV, da CF, e o direito à saúde, conforme garantido no artigo 6º, caput, da CF.

A violência obstétrica refere-se a atos de violência, negligência, discriminação e abusos verbal ou físico dirigido a mulheres durante o ciclo da gravidez, parto e pós-parto. Podendo incluir práticas médicas invasivas não consentidas, falta de respeito à autonomia das mulheres, discriminação com base em gênero, raça ou classe social, entre outros comportamentos relacionados.

5 A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO OBSTETRA EM FACE DA VIOLAÇÃO DOS DIREITOS DA PACIENTE 

A responsabilidade civil desempenha um papel fundamental na busca por justiça para as vítimas de abuso obstétrico. Trata-se de uma abordagem legal que visa garantir que os profissionais de saúde sejam responsabilizados por suas ações e que as mulheres admitidas recebam a compensada pelos danos físicos, emocionais e psicológicos sofridos durante o processo de gravidez, parto e pós-parto. O médico, ao negligenciar os direitos do paciente, configura uma violação clara da responsabilidade civil, como exposto por Bittar (4ª ed., p. 82). Além disso, a falta de cuidado e atenção adequada resulta em danos morais, impondo ao profissional a obrigação. 

Primeiramente, torna-se necessário definir o conceito de responsabilidade civil, que se enquadra na área do Direito Civil e tem como objetivo não prejudicar, mas sim amparar aqueles que estão em conformidade com a norma jurídica ou contratual. No entanto, mesmo quando alguém segue esses normas, o seu direito pode ser violado devido a ações ou omissões de terceiros, resultando em danos, nesses casos, uma pessoa que infringiu o direito está obrigada a reparar o dano causado. 

O Código Civil, em seu artigo 186, estabelece que o ato ilícito pode ocorrer tanto por ação quanto por omissão, de forma voluntária, negligente ou imprudente, configurando assim uma responsabilidade subjetiva. Além disso, o ato ilícito também pode ser cometido por meio de excesso, quando ultrapassa os limites do direito, seja por motivos econômicos, sociais, ou por violar a boa-fé e os bons costumes. Isso está previsto no artigo 187 do mesmo dispositivo legal e caracteriza uma responsabilidade objetiva, ou seja, independente de culpa. Em ambas as situações, aquele que sofreu o dano tem a obrigação de repará-lo, sendo que a medida dessas peças será determinada pela extensão do dano causado, como expressamente estabelecem os artigos 927 e 944 do Código Civil.

O artigo 927 do CC em seu parágrafo único, discorre que “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, riscos para o direito de outrem” (BRASIL, CC, 2002). Enquanto no artigo 944 do Código Civil, diz que a indenização será medida pela 5 extensão do dano e caso houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização” (BRASIL, CC, 2002).

A legislação Civil em seu art. 951 dispõe sobre a modalidade da responsabilidade que “o disposto nos arts. 948, 949 e 950, aplicam-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho” (BRASIL, CC, 2002). No mesmo sentido, dispõe o art. 14, § 4º, do Código de Defesa do Consumidor: “A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa” (BRASIL, CDC, 1990).

A suposição de culpa nos atos do médico é o fundamento que sustenta sua responsabilidade civil, que só se configura quando há demonstração de culpa ou dolo por parte do profissional. Isso implica na existência da intenção consciente do médico em suas ações ou na sua acessibilidade consciente do risco de causar dano ao paciente, o que é expressamente proibido pelo Código de Ética Médica.

No entendimento de Diniz, ela nos prega que a responsabilidade médica é contratual, vejamos:

(…) a responsabilidade médica no capítulo atinente aos atos ilícitos, tal responsabilidade, a nosso ver, é contratual. Realmente nítido é o caráter contratual do exercício da medicina, pois apenas excepcionalmente terá natureza delitual, quando o médico cometer um ilícito penal ou violar normas regulamentares da profissão (DINIZ, 2022, p. 121).

Dentro da análise da responsabilidade civil é importante a análise da responsabilidade subjetiva e responsabilidade objetiva.  

A presença de elementos fundamentais desempenha um papel crucial na definição da responsabilidade civil, sendo a conexão entre a ação e o dano causado um aspecto vital. A ausência de qualquer um desses elementos pode resultar na inviabilidade da imputação de responsabilidade. 

Na responsabilidade subjetiva o ilícito é o seu fato gerador, de modo que o imputado, por ter-se afastado do conceito de bônus pater famílias, deverá ressarcir o prejuízo, se se provar que houve dolo ou culpa na ação. Sua responsabilidade será individual, podendo ser direta ou indireta. Será direta, quando o agente responder por ato próprio. Será indireta, apenas nas situações previstas em lei, nas quais se admite culpa presumida juris et de jure, operando-se, consequentemente, conforme o caso, a inversão do ônus probandi, ou, ainda, gerando responsabilidade civil objetiva (DINIZ, 2022, p. 30).

A responsabilidade civil subjetiva é comumente adotada como regra, uma vez que implica que o agente seja responsabilizado por suas ações, sejam elas culpadas, dolosas ou mesmas omissões. No entanto, é importante abordá-la com cautela, uma vez que, em determinadas circunstâncias, a responsabilidade civil objetiva pode prevalecer.

Em última análise, a responsabilidade civil subjetiva exige que a vítima comprove a existência de dolo ou culpa por parte do agente causador do dano. Por outro lado, a responsabilidade civil objetiva não depende da demonstração de dolo ou culpa por parte do agente, sendo suficiente estabelecer o nexo causal entre sua conduta e o dano causado. Em outras palavras, mesmo que o causador do dano não tenha agido com dolo ou culpa, ele ainda tem a obrigação de indenizar a vítima.

Na responsabilidade objetiva, a atividade que gerou o dano é lícita, mas causou perigo a outrem, de modo que aquele que a exerce, por ter a obrigação de velar para que dela não resulte prejuízo, terá o dever ressarcitório, pelo simples implemento do nexo causal. A vítima deverá pura e simplesmente demonstrar o nexo de causalidade entre o dano e a ação que o produziu. Nela não se cogita de responsabilidade indireta, de sorte que reparará o dano o agente ou a empresa exploradora, havendo tendência de solicitação dos riscos77, nem do fortuito como excludente de responsabilidade, como pondera Arnoldo Medeiros da Fonseca78 (DINIZ, 2022, p. 30).

Para evitar a responsabilidade objetiva, são necessários requisitos específicos, tais como uma entidade ser uma pessoa jurídica de direito público ou uma pessoa de direito privado desempenhando uma função de serviço público, o dano causado a terceiros deve decorrer da prestação desse serviço público e o agente causador do dano deverá estar presente no exercício de suas funções.

Para dar suporte ao debate, passa-se a evidenciar o caso Shantal Verdelho. Esse caso foi selecionado como foco de análise devido à sua importância significativa no contexto deste artigo, pois, ocorreram uma sucessão de eventos que evidenciam a presença de violência obstétrica, resultando na violação dos direitos humanos dos pacientes, conforme abordado nos capítulos anteriores. 

A influenciadora brasileira Shantal Buonamici Verdelho, passou por uma experiência traumática de violência obstétrica durante o nascimento de sua filha mais nova, Domênica, ocorrida em setembro de 2021, ao final desse ano a situação ganhou ampla visibilidade em todo o país quando veio à tona, o caso foi abordado por diversos meios de comunicação, envolvendo o obstetra Renato Khalil, figura de renome na área médica de São Paulo.

Shantal compartilhou de sua experiência através das redes sociais, revelando detalhes de como se sentiu desrespeitada, humilhada e maltratada por parte dos profissionais de saúde envolvidos em seu atendimento obstétrico. Ela foi submetida a procedimentos invasivos e dolorosos sem o devido consentimento, além de ter se sentido ignorada em relação às suas preferências e necessidades durante o parto (GLOBO NEWS, 2022). 

Segundo o Globo News (2022), e conforme relato da mesma, durante o parto, o médico proferiu palavras chulas e constrangedoras, além de ter exposto partes íntimas dela diante de seu marido e outros presentes no momento. Segundo o G1 (2022), em um áudio vazado, a influencer Shantal conta o ocorrido:’’Quando a gente assistia ao vídeo do parto, ele me xinga o trabalho de parto inteiro. Ele fala: Porra, faz força. Filha da mãe, ela não faz força direito. Viadinha. Que ódio. Não se mexe, porra. Depois que revi tudo, foi horrível.”

Esse tipo de situação é alarmante e inaceitável. O parto é um momento sensível na vida de uma mulher e o respeito à sua autonomia, dignidade e direito à informação é fundamental. Os abusos obstétricos podem ter consequências emocionais para as mães, afetando sua confiança, bem-estar mental e a relação com o próprio filho.

Esse incidente em particular recebeu ampla cobertura da mídia e a mesma tomou consciência da violência que sofreu ao assistir à gravação do parto. No entanto, é importante notar que muitas mulheres enfrentam situações semelhantes diariamente, porém, devido à falta de informação, não estão cientes do que estão passando.

O caso de Shantal Verdelho chamou a atenção para a necessidade de conscientização sobre os direitos das gestantes e parturientes, bem como a importância de uma abordagem humanizada e respeitosa por parte dos profissionais de saúde durante o processo de parto e nascimento. O fato destaca a importância de se promover treinamento adequado para os profissionais de saúde, a fim de garantir que a experiência das mulheres seja a mais positiva e respeitosa possível.

Além disso, casos como esse podem servir de impulso para discutir mais amplamente sobre como melhorar os sistemas de saúde e garantir que os direitos das mulheres sejam protegidos em todas as fases da gravidez e do parto. É fundamental que a sociedade como um todo tenha cuidado com os problemas de abuso obstétrico e trabalhe em direção às mudanças que assegurem o tratamento adequado e respeitoso das mulheres durante esse período crucial de suas vidas. Importante salientar que é um momento crucial na vida de uma mulher, onde a ansiedade e o medo das coisas não darem certo, se misturam com um misto de angústia e fragilidade, ficando a parturiente vulnerável, razão pela qual, o tratamento deve ser o mais transparente possível, levando em conta a sensibilidade do momento.

6 NECESSIDADE DA TUTELA PENAL PARA REGULAR A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

O princípio da dignidade humana, baseado no artigo 1º da Constituição Federal, é crucial no ordenamento jurídico brasileiro. Embora esse princípio pudesse assegurar um parto tranquilo e humanizado para as mulheres gestantes, ainda não existe legislação específica sobre violência obstétrica no Brasil.

Porém, diversas condutas de violência obstétrica podem ser enquadradas em dispositivos já existentes no Código Penal. Por exemplo, situações que resultam em morte durante o parto podem ser tipificadas como homicídio simples (artigo 121 do CP). Lesões corporais, como episiotomias sem anestesia, podem se enquadrar como lesão corporal (artigo 129 do CP), com penas agravadas em casos de danos mais graves.

Maus-tratos durante o parto, como exames invasivos desnecessários ou a recusa de medicamentos, podem configurar o crime de maus-tratos (artigo 136 do CP). Frases humilhantes proferidas por profissionais de saúde podem ser consideradas injúria (artigo 140 do CP). Ameaças durante o parto se enquadram como crime de ameaça (artigo 147 do CP). Constrangimento ilegal (artigo 146 do CP) pode ser aplicado a situações que expõem a intimidade da mulher ou realizam procedimentos sem consentimento.

Pode-se considerar a viabilidade de aplicar medidas que aumentem a pena em situações em que procedimentos inadequados por profissionais de saúde resultem em morte. Isso fica evidente em um caso específico relacionado à prática de episiotomia durante os partos:

Apelação criminal julgada envolvendo um caso de homicídio culposo durante um parto normal com episiotomia. O réu foi considerado culpado por não seguir corretamente as diretrizes profissionais. Ficou evidenciado que a conduta negligente, imprudente e inexperiente resultou na morte da paciente. Após a realização da episiotomia, o réu deixou de proceder à revisão do reto, o que causou a comunicação entre o conteúdo fecal e o canal vaginal, levando a uma infecção generalizada fatal. A condenação pelo homicídio culposo foi mantida, aplicando-se a causa de aumento de pena prevista na lei pela inobservância das normas técnicas da profissão. A pena de dois anos de detenção foi substituída por prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária, consideradas adequadas ao caso. A apelação foi negada. (TJRS, 2013).

O caso julgado demonstra a condenação do médico por homicídio culposo agravado devido à não conformidade com as práticas profissionais. Sua conduta negligente, imprudente e inexperiente, ao não realizar a revisão após a episiotomia, foi considerada como causa direta da fatalidade. A ausência desse procedimento preventivo impediu a identificação precoce da lesão na paciente, evitando assim sua morte.

Isso evidencia que não é imprescindível criar um novo artigo penal exclusivo para violência obstétrica. Pelo contrário, é viável reconhecer a violência obstétrica além do erro médico e responsabilizá-la civil e eticamente. Considerando-a uma forma de violência contra a mulher, o respaldo legal para punição já existe no Código Penal por meio de diversos artigos preexistentes, permitindo a denúncia e condenação dos agressores pelo sistema judiciário.

Além disso, o Código Penal prevê agravantes quando o crime é cometido contra mulher grávida (artigo 61 do CP). Consequentemente, é viável utilizar dispositivos específicos que aumentam a pena em casos de violência obstétrica que resultem em fatalidades.

A conclusão é que, embora não exista uma legislação penal específica para violência obstétrica, as condutas abusivas podem ser enquadradas e punidas com base em dispositivos já existentes no ordenamento jurídico brasileiro.

7 CONCLUSÃO 

Durante a gravidez, é comum que as futuras mães sintam ansiedade e com isso o cuidado deve ser redobrado, especialmente quando se trata do momento do parto. Com todas as mudanças que ocorrem no corpo e na vida social, as gestantes precisam se adaptar a essa nova fase e buscar informações para se prepararem adequadamente. O conhecimento sobre o processo de parto e as opções disponíveis é essencial para evitar situações desagradáveis.

É compreensível que, diante da incerteza, as mulheres confiem nos médicos e na equipe de saúde para tomar decisões seguras durante o parto, muitas vezes sem questionar suas escolhas. No entanto, algumas gestantes ficam surpresas e desapontadas com o atendimento precário e a falta de preparo da equipe médica quando chegam à maternidade. A falta de informações sobre os procedimentos realizados durante o parto pode criar um obstáculo para que as mulheres possam defender seus direitos e evitar a violência obstétrica. Agravando essa situação, há um número significativo de intervenções médicas durante o parto, às vezes realizadas sem o consentimento adequado da gestante. Isso ocorre mesmo quando o papel dos médicos deveria ser garantir que o parto transcorra naturalmente e com segurança. 

É crucial que os profissionais de saúde ajam de acordo com o Código de Ética Médica, informando as gestantes sobre suas opções e respeitando suas decisões, além de demonstrarem respeito as gestantes em um momento tão delicado. Essas práticas deveriam ser rotineiras em ambulatórios, hospitais e maternidades, mas na prática, nem sempre são seguidas. Devido ao aumento dos casos de violência obstétrica, é fundamental debater essa questão e fornecer assistência jurídica às vítimas.

A falta de leis nacionais e políticas públicas adequadas deixa as vítimas muitas vezes sem amparo legal quando sofrem violência obstétrica. Portanto, é crucial abordar essa questão sob uma perspectiva jurídica, considerando a responsabilidade civil dos médicos e promovendo um amplo debate para eliminar essa prática, com a divulgação de informações e a criação de leis específicas, o direito a um atendimento digno e respeitoso durante o parto será preservado.

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1Graduando do 8º período do curso de Direito do Centro Universitário de Patos de Minas – UNIPAM. Email: viniciuscorrea@unipam.edu.br