REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202409191530
Bruna Carvalho Portela1
RESUMO
Este artigo analisa a obrigatoriedade da Administração Pública em seguir os precedentes vinculantes do Supremo Tribunal Federal (STF), com ênfase no impacto dessas decisões na concessão do Benefício de Amparo Assistencial ao Idoso e à Pessoa com Deficiência, conforme previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). A pesquisa busca compreender como a jurisprudência consolidada pelo STF tem influenciado a atuação administrativa na concessão desse benefício, além de explorar as dificuldades enfrentadas pelos gestores públicos em adequar suas práticas às decisões judiciais. Utilizando uma metodologia baseada na análise jurisprudencial e revisão bibliográfica, o estudo identifica os principais desafios enfrentados pela Administração Pública, tais como a complexidade da aplicação de precedentes e as implicações no tempo de tramitação dos processos. Os resultados indicam que, embora a vinculação aos precedentes do STF tenha como objetivo uniformizar as decisões administrativas, ainda há lacunas na sua implementação, comprometendo a celeridade e a efetividade na concessão dos benefícios assistenciais.
Palavras-chave: Precedentes vinculantes; Benefício assistencial (LOAS); Administração Pública; Supremo Tribunal Federal (STF).
ABSTRACT
This article analyzes the obligation of the Public Administration to follow the binding precedents of the Brazilian Supreme Court (STF), with an emphasis on the impact of these rulings on the granting of the Welfare Assistance Benefit to the Elderly and People with Disabilities, as provided by the Organic Law of Social Assistance (LOAS). The research aims to understand how the jurisprudence consolidated by the STF has influenced administrative actions in granting this benefit, in addition to exploring the challenges faced by public managers in adjusting their practices to judicial decisions. Using a methodology based on jurisprudential analysis and literature review, the study identifies the main challenges faced by the Public Administration, such as the complexity of applying precedents and the implications for the processing time of requests. The results indicate that, although adherence to the STF’s precedents aims to standardize administrative decisions, there are still gaps in its implementation, compromising the speed and effectiveness in granting welfare benefits.
Keywords: Binding precedents; Welfare assistance benefit (LOAS); Public Administration; Brazilian Supreme Court (STF).
1 INTRODUÇÃO
A vinculação da Administração Pública aos precedentes judiciais, especialmente aqueles proferidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF), assume papel fundamental no cenário jurídico contemporâneo do Brasil. O novo Código de Processo Civil, instituído pela Lei n.º 13.105/2015, trouxe a força vinculante dos precedentes, ampliando seu impacto sobre a uniformização das decisões judiciais e administrativas.
No contexto da Administração Pública, a adoção dessa prática visa aumentar a segurança jurídica e a previsibilidade dos atos administrativos, assegurando que as ações dos gestores estejam alinhadas com os entendimentos já consolidados pelo Judiciário. Dessa forma, busca-se evitar decisões divergentes e promover maior coerência nos processos administrativos que envolvem a concessão de direitos, como é o caso do Benefício de Amparo Assistencial ao Idoso e à Pessoa com Deficiência, previsto pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS).
A importância da vinculação aos precedentes do STF na atuação da Administração Pública é particularmente relevante na concessão de benefícios sociais. O STF, como guardião da Constituição, estabelece diretrizes que orientam não apenas o Poder Judiciário, mas também a Administração, na interpretação e aplicação de normas constitucionais. Esse fenômeno é evidenciado no âmbito do Benefício de Amparo Assistencial, que visa amparar idosos e pessoas com deficiência que se encontram em situação de vulnerabilidade social e que não possuem meios de prover sua subsistência. Ao vincular a Administração Pública aos precedentes, busca-se garantir que o direito à assistência social, previsto no artigo 203 da Constituição Federal, seja efetivamente implementado, evitando a judicialização excessiva de questões já pacificadas pelo STF.
O Benefício de Amparo Assistencial, regulamentado pela LOAS, tem como objetivo garantir uma renda mínima a idosos e pessoas com deficiência em situação de extrema pobreza. Trata-se de um instrumento de proteção social fundamental para a dignidade e a inclusão de segmentos vulneráveis da população.
No entanto, a concessão desse benefício frequentemente enfrenta desafios práticos, como a definição de critérios de “miserabilidade” e a falta de uniformidade nas decisões administrativas. Diante disso, o STF tem desempenhado um papel relevante na fixação de precedentes que orientam a Administração Pública na aplicação uniforme desses critérios, especialmente quando questões complexas ou controvérsias surgem quanto à interpretação das regras estabelecidas na LOAS.
Nesse sentido, o objetivo deste artigo é examinar como a vinculação da Administração Pública aos precedentes do STF tem influenciado a concessão do Benefício de Amparo Assistencial ao Idoso e à Pessoa com Deficiência. A análise se concentrará na importância dessa vinculação para garantir a uniformidade e a justiça na concessão do benefício, além de discutir os obstáculos enfrentados pelos gestores públicos ao tentar implementar esses precedentes.
Com base em uma metodologia que combina revisão bibliográfica e análise jurisprudencial, o estudo busca explorar as dificuldades enfrentadas pela Administração Pública na adequação de suas práticas às orientações vinculantes do STF. A pesquisa utilizará, como base teórica, decisões relevantes do STF, além de artigos acadêmicos que discutem a eficácia da aplicação dos precedentes vinculantes na esfera administrativa.
Assim, este estudo aborda, em especial, como a Administração tem aplicado os precedentes que tratam da definição de critérios de concessão do benefício, como a interpretação da “miserabilidade”, um conceito frequentemente questionado nas instâncias administrativas. A revisão da literatura jurídica e da jurisprudência recente permite identificar os pontos de conflito e as áreas em que a aplicação dos precedentes ainda apresenta dificuldades. Além disso, o artigo discute como a vinculação aos precedentes pode reduzir a judicialização de demandas sociais, ao evitar que questões já decididas pelo STF continuem sendo levadas ao Judiciário, criando um círculo de morosidade processual que impacta diretamente a eficiência da concessão de benefícios.
Desse modo, a vinculação da Administração Pública aos precedentes do STF constitui-se como ferramenta essencial para garantir a eficiência, a uniformidade e a justiça na concessão de benefícios sociais, como o Benefício de Amparo Assistencial ao Idoso e à Pessoa com Deficiência. No entanto, essa vinculação também apresenta desafios, especialmente na adaptação das práticas administrativas às orientações judiciais e na superação de obstáculos burocráticos. O fortalecimento dessa prática depende não apenas da correta interpretação e aplicação dos precedentes pelos gestores públicos, mas também da criação de mecanismos que facilitem sua implementação de forma célere e efetiva.
2 PRECEDENTES E ASSISTÊNCIA SOCIAL: O IMPACTO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E NA CONCESSÃO DO BENEFÍCIO ASSISTENCIAL (LOAS)
A vinculação da Administração Pública aos precedentes judiciais, especialmente aqueles emanados do Supremo Tribunal Federal (STF), é um tema central no desenvolvimento do sistema jurídico brasileiro contemporâneo. A partir da promulgação do novo Código de Processo Civil (Lei n.º 13.105/2015), os precedentes passaram a desempenhar um papel fundamental na busca por segurança jurídica, eficiência e uniformidade nas decisões judiciais e administrativas (Wambier; Didier, 2016). Esse fenômeno reflete um movimento global de adoção de elementos da common law no Brasil, que tradicionalmente tem sido um sistema baseado no civil law (Araujo; Nunes, 2019). Dessa forma, o conceito de precedente judicial, que inicialmente possuía um caráter apenas persuasivo, evoluiu para se tornar uma norma obrigatória em determinadas circunstâncias, especialmente quando se trata de precedentes do STF e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) (Mitidiero, 2016).
No contexto administrativo, a vinculação aos precedentes do STF impõe à Administração Pública o dever de seguir diretrizes já consolidadas pelo Poder Judiciário, evitando decisões contraditórias e garantindo maior previsibilidade nos atos administrativos (Martins, 2020). Esse dever é particularmente relevante em questões relacionadas aos direitos fundamentais, como o Benefício de Amparo Assistencial ao Idoso e à Pessoa com Deficiência (LOAS). A LOAS, instituída pela Lei n.º 8.742/1993, é um instrumento essencial de proteção social para aqueles que, devido à idade ou deficiência, não possuem meios de subsistência digna (Souza, 2017). No entanto, a aplicação prática da LOAS tem gerado inúmeras controvérsias, tanto no âmbito administrativo quanto judicial, especialmente em relação aos critérios de concessão do benefício, como a definição de “miserabilidade” (Fonseca, 2018). Assim, o respeito aos precedentes do STF que tratam dessa questão é de suma importância para assegurar a efetividade dos direitos sociais garantidos pela Constituição Federal de 1988 (Barroso, 2017).
2.1 O papel dos precedentes no sistema jurídico brasileiro
O conceito de precedente no Brasil ganhou relevância crescente a partir da introdução do novo Código de Processo Civil (CPC) de 2015, que promoveu uma mudança significativa no tratamento das decisões judiciais. Embora o sistema jurídico brasileiro tenha suas raízes no civil law, a adoção de elementos típicos do common law, como o caráter vinculante dos precedentes, tornou-se essencial para a uniformização da jurisprudência e a redução da insegurança jurídica (Wambier; Didier, 2016). Os precedentes, especialmente os oriundos de tribunais superiores como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), passaram a ter força obrigatória, obrigando as instâncias inferiores e a Administração Pública a segui-los (Marinoni, 2016).
Diferente dos sistemas jurídicos de tradição common law, onde os precedentes têm natureza eminentemente vinculante, no Brasil, a obrigatoriedade dos precedentes está restrita a determinadas circunstâncias, como em casos de repercussão geral ou em julgamentos de controle concentrado de constitucionalidade pelo STF. Nesses casos, as decisões vinculam não apenas os tribunais inferiores, mas também a Administração Pública, que deve pautar suas ações de acordo com os parâmetros estabelecidos (Cunha, 2017). A vinculação busca garantir que o sistema jurídico funcione de maneira uniforme, promovendo coerência nas decisões e evitando que casos idênticos recebam tratamentos diferentes, o que poderia gerar instabilidade jurídica e questionamentos constantes sobre a atuação dos entes administrativos (Barroso, 2017).
Além disso, o sistema brasileiro diferencia os precedentes de natureza obrigatória dos chamados precedentes persuasivos, aqueles que, embora não sejam obrigatórios, podem influenciar a tomada de decisões com base em sua relevância jurídica (Mitidiero, 2016). Essa distinção é fundamental para entender a complexidade da aplicação dos precedentes no Brasil, pois nem todas as decisões judiciais têm caráter vinculante (Pereira, 2018). No entanto, os precedentes obrigatórios, como os oriundos de repercussão geral e súmulas vinculantes, são um mecanismo eficaz para assegurar a aplicação uniforme do direito, especialmente em áreas sensíveis como o direito à assistência social (Souza, 2017).
A vinculação aos precedentes implica na obrigatoriedade de segui-los, conforme disposto pelo novo CPC, enquanto a aplicação envolve a interpretação e adaptação do precedente ao caso concreto. A vinculação limita a discricionariedade do juiz ou administrador ao lidar com questões já decididas em sede de repercussão geral ou por meio de súmulas vinculantes, obrigando-os a seguir os parâmetros estabelecidos (Wambier; Didier, 2016). No entanto, a aplicação de um precedente exige que o intérprete examine as peculiaridades do caso específico e ajuste o entendimento consolidado às particularidades do contexto (Mitidiero, 2016).
No âmbito da Administração Pública, essa distinção se revela especialmente relevante, uma vez que os gestores devem respeitar os precedentes do STF ao conceder benefícios como o LOAS, mas também têm o dever de avaliar as circunstâncias particulares de cada solicitante (Barroso, 2017). A aplicação dos precedentes, especialmente em questões sociais, como a concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC) da LOAS, exige que a Administração siga os entendimentos consolidados pelo STF, enquanto ao mesmo tempo precisa considerar as nuances individuais dos casos concretos (Mitidiero, 2016).
A ausência de uma aplicação correta dos precedentes pode resultar em judicialização desnecessária de casos que poderiam ser resolvidos administrativamente, sobrecarregando o Judiciário e gerando atrasos na concessão de direitos garantidos por lei (Souza, 2017). A interpretação rígida ou incorreta dos precedentes judiciais, quando dissociada da análise contextual de cada caso, acaba criando um vácuo entre a decisão administrativa e a efetivação dos direitos, prejudicando o cidadão que busca o benefício.
A aplicação de precedentes, portanto, é um processo dinâmico que requer tanto a observância da vinculação quanto a análise cuidadosa das especificidades de cada situação (Wambier; Didier, 2016). Para garantir que os direitos sociais sejam efetivados de forma justa e célere, a Administração Pública deve estar preparada para adaptar os precedentes às realidades fáticas apresentadas, evitando a judicialização desnecessária e proporcionando maior eficiência no cumprimento das decisões judiciais vinculantes (Cunha, 2017).
2.2 A Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS)
A Lei Orgânica da Assistência Social (Lei n.º 8.742/1993) é um dos principais instrumentos de proteção social no Brasil, voltado para a garantia de direitos fundamentais de grupos vulneráveis, como idosos e pessoas com deficiência (Silva, 2018). Por meio do Benefício de Prestação Continuada (BPC), a LOAS visa assegurar uma renda mínima a indivíduos que, por razões de idade ou deficiência, não podem prover sua própria subsistência e não possuem meios de sustento familiar (Fonseca, 2018).
O Benefício de Prestação Continuada (BPC), previsto no artigo 20 da LOAS, consiste no pagamento de um salário mínimo mensal a idosos com 65 anos ou mais e a pessoas com deficiência que comprovem a impossibilidade de sustento próprio ou familiar (Souza, 2017). Este benefício, de caráter não contributivo, é uma forma de assegurar a dignidade humana, estabelecida na Constituição Federal, aos segmentos mais vulneráveis da sociedade. No entanto, para a concessão do BPC, é necessário comprovar a condição de “miserabilidade”, que consiste em uma renda familiar per capita inferior a um quarto do salário mínimo, conforme estipulado na legislação (Barroso, 2017).
A concessão do Benefício de Amparo Assistencial exige o cumprimento de dois requisitos fundamentais: a comprovação de idade (no caso de idosos com 65 anos ou mais) ou a condição de deficiência, além da comprovação de “miserabilidade” (Cunha, 2017). A definição desse último critério tem gerado controvérsia e judicialização, pois o critério de renda previsto na LOAS é considerado extremamente restritivo (Marinoni, 2016). Em muitos casos, o STF tem flexibilizado esse critério por meio de decisões que ampliam a interpretação da “miserabilidade”, considerando outros fatores, como condições de moradia e acesso a serviços básicos (Pereira, 2018). Essas decisões vinculam a Administração Pública, que deve adaptar sua atuação à nova interpretação, garantindo que o benefício seja concedido de maneira mais justa e ampla (Wambier; Didier, 2016).
A implementação da LOAS, embora essencial para a proteção social, enfrenta desafios significativos, especialmente no que diz respeito à interpretação dos requisitos para concessão do BPC (Souza, 2017). A rigidez do critério de renda tem sido um dos principais obstáculos à efetivação desse direito, levando à judicialização de inúmeros casos em que a Administração Pública nega o benefício com base em interpretações estritas da legislação (Fonseca, 2018). O STF, em diversas ocasiões, flexibilizou esses critérios, considerando outros fatores além da renda, como o contexto social e econômico do beneficiário (Barroso, 2017). No entanto, a Administração ainda enfrenta dificuldades em aplicar esses precedentes, o que gera morosidade na concessão do benefício e perpetua a exclusão de muitas pessoas que deveriam ser contempladas (Cunha, 2017).
Nesse sentido, a LOAS, embora seja um marco na proteção social no Brasil, precisa de uma interpretação mais flexível e de uma implementação mais eficiente, especialmente por parte da Administração Pública (Souza, 2017). A vinculação aos precedentes do STF é fundamental para garantir que o direito à assistência social seja respeitado, mas é necessário que os gestores públicos tenham a capacidade de aplicar corretamente essas orientações e adaptar suas práticas para que os direitos fundamentais sejam efetivados de forma eficiente (Barroso, 2017). A correta aplicação dos precedentes judiciais e a adaptação às especificidades de cada caso são passos essenciais para evitar a judicialização desnecessária e assegurar que o Benefício de Prestação Continuada (BPC) chegue às pessoas que dele necessitam, de forma célere e justa (Cunha, 2017).
3 PRECEDENTES DO STF RELACIONADOS AO BENEFÍCIO ASSISTENCIAL
A vinculação da Administração Pública aos precedentes estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) desempenha um papel crucial na uniformidade e eficiência das políticas públicas voltadas para a concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC), previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). As decisões do STF sobre o tema têm impactado significativamente a interpretação da legislação, especialmente no que se refere ao conceito de miserabilidade e à abrangência das decisões judiciais. Essa seção detalha as principais decisões, seus impactos e os desafios tanto qualitativos quanto quantitativos decorrentes dessas determinações.
3.1 Principais decisões do STF sobre o LOAS
O STF tem sido fundamental na consolidação de entendimentos relacionados à concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC), especialmente no tocante à definição de critérios para a caracterização da miserabilidade. Um dos casos mais emblemáticos foi o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) n.º 567.985/MT, com repercussão geral reconhecida, que marcou um divisor de águas na interpretação do critério econômico para a concessão do BPC. O Tribunal decidiu que a exigência de renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo, prevista na legislação original, não pode ser interpretada de forma rígida e isolada, devendo ser acompanhada de uma análise mais ampla da situação de vulnerabilidade do requerente (STF, 2013).
Esse precedente abriu a possibilidade para que outros elementos, como condições de moradia, saúde, e acesso a serviços básicos, também fossem considerados ao avaliar se um indivíduo ou família se encontra em situação de miserabilidade. A decisão ampliou significativamente o acesso ao BPC, mas também impôs desafios de implementação à Administração Pública, que se viu obrigada a desenvolver novos parâmetros para analisar casos concretos, à luz desse precedente.
Outro caso relevante foi a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 1232, em que o STF reafirmou que a definição de miserabilidade não pode ser limitada a uma fórmula matemática, sob pena de desrespeitar a dignidade da pessoa humana, princípio fundamental consagrado pela Constituição Federal. O Tribunal determinou que o critério de ¼ do salário mínimo deveria ser utilizado como um parâmetro, e não como um limite rígido, permitindo que casos excepcionais fossem considerados fora desse escopo estrito (STF, 2014). Essa decisão teve grande impacto na atuação administrativa, uma vez que obrigou a Administração Pública a realizar uma análise mais subjetiva e abrangente da condição socioeconômica dos beneficiários.
3.2 Impacto das decisões sobre o conceito de miserabilidade
As decisões do STF sobre o LOAS, especialmente o RE 567.985/MT e a ADI 1232, tiveram um impacto profundo na definição do conceito de miserabilidade, transformando a maneira como a Administração Pública e o Judiciário abordam a concessão do Benefício de Prestação Continuada. Antes dessas decisões, o critério de ¼ do salário mínimo era aplicado de maneira estrita, resultando na exclusão de muitas pessoas que, embora não se enquadrassem no critério econômico, viviam em condições de extrema vulnerabilidade (Barroso, 2017). Com a flexibilização desse critério, o STF permitiu que outros fatores qualitativos fossem considerados, ampliando o conceito de miserabilidade para incluir não apenas a renda familiar, mas também as condições de vida dos beneficiários.
Esse novo entendimento permitiu que pessoas em situação de vulnerabilidade social, como aquelas que vivem em condições precárias de habitação, sem acesso a saneamento básico ou com elevados custos de tratamento médico, pudessem ser contempladas pelo benefício, mesmo que sua renda familiar estivesse ligeiramente acima do critério estabelecido pela lei (Cunha, 2017). Ao vincular essas decisões à Administração Pública, o STF garantiu que a interpretação da lei fosse mais condizente com o princípio da dignidade humana e com o dever de promoção da igualdade material.
No entanto, essa flexibilização também trouxe desafios significativos para a Administração Pública. A análise de fatores qualitativos exige uma capacidade técnica e uma estrutura administrativa que muitas vezes não estão disponíveis em todas as esferas do governo, especialmente em municípios menores e com menos recursos. A falta de pessoal qualificado para realizar essas análises mais detalhadas tem gerado atrasos na concessão do benefício, além de aumentar a judicialização de casos em que a Administração não consegue aplicar corretamente os precedentes estabelecidos pelo STF (Silva, 2018).
3.3 Discussão sobre a abrangência das decisões: aspectos quantitativos e qualitativos
A ampliação do conceito de miserabilidade, conforme determinada pelo STF, teve importantes implicações tanto no âmbito quantitativo quanto no qualitativo. Do ponto de vista quantitativo, as decisões do Tribunal aumentaram o número de beneficiários do BPC, já que a flexibilização do critério de renda permitiu que mais pessoas fossem incluídas no programa. Esse aumento, no entanto, gerou um impacto significativo sobre os recursos orçamentários destinados à assistência social. Estudos realizados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) estimam que o número de beneficiários do BPC aumentou em cerca de 15% após as decisões do STF, o que representou um crescimento substancial nos gastos públicos com o programa (IPEA, 2019).
Esse impacto orçamentário levantou questionamentos sobre a sustentabilidade financeira do BPC a longo prazo. Enquanto a inclusão de novos beneficiários é fundamental para garantir a proteção social, o aumento das despesas públicas também exige uma reavaliação dos mecanismos de financiamento do sistema de assistência social (Silva, 2018). O desafio, portanto, é equilibrar a necessidade de ampliar o acesso ao BPC com a garantia de que os recursos orçamentários sejam suficientes para cobrir a demanda crescente, sem comprometer outras áreas essenciais da política pública.
Do ponto de vista qualitativo, as decisões do STF trouxeram uma importante evolução no entendimento sobre o conceito de vulnerabilidade social, permitindo uma abordagem mais abrangente e contextualizada da situação dos beneficiários. Ao permitir que fatores como a condição de saúde, o acesso a serviços básicos e a qualidade de vida fossem considerados na concessão do BPC, o STF reforçou a ideia de que a proteção social deve ser garantida de maneira integral, e não apenas com base em critérios econômicos restritivos (Cunha, 2017). No entanto, essa maior complexidade também criou desafios para a Administração Pública, que precisa de instrumentos adequados para avaliar essas variáveis de maneira justa e eficiente.
4 A VINCULAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA AOS PRECEDENTES DO STF
A vinculação da Administração Pública aos precedentes judiciais, especialmente aqueles emanados do Supremo Tribunal Federal (STF), tem se tornado um dos pilares centrais para a garantia de uniformidade e previsibilidade nas decisões administrativas. A implementação de precedentes vinculantes nas esferas públicas visa assegurar que os direitos fundamentais, como os relacionados ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) previsto na LOAS, sejam efetivados de maneira célere e justa. No entanto, essa vinculação traz consigo desafios operacionais e técnicos para a Administração Pública, que precisa adequar suas práticas às diretrizes estabelecidas pelo STF.
4.1 O dever de seguir os precedentes vinculantes
A promulgação do Código de Processo Civil de 2015 consolidou a importância da vinculação aos precedentes, atribuindo à Administração Pública a obrigação de observar as decisões judiciais com efeito vinculante, como as que decorrem de repercussão geral, controle concentrado de constitucionalidade e súmulas vinculantes. No âmbito da LOAS, o cumprimento dessas diretrizes é fundamental para garantir que o BPC seja concedido de acordo com as orientações consolidadas pelo STF, assegurando a uniformidade na aplicação da lei e evitando a perpetuação de práticas administrativas divergentes (Wambier; Didier, 2016).
Esse dever de seguir precedentes visa não apenas garantir que a Administração não se distancie das interpretações jurídicas já pacificadas, mas também reduzir a judicialização desnecessária. No entanto, a vinculação, apesar de clara no plano normativo, enfrenta obstáculos quando se trata de sua implementação na prática cotidiana dos órgãos públicos.
4.2 Efeitos da vinculação nas esferas administrativas
A vinculação da Administração Pública aos precedentes do STF, especialmente no campo das políticas assistenciais, tem efeitos diretos na execução de políticas públicas como a concessão do BPC. Ao ser obrigada a seguir as decisões do STF, a Administração precisa adaptar suas diretrizes de concessão de benefícios para incluir a flexibilização do conceito de miserabilidade, conforme estabelecido pela Corte. O impacto disso pode ser observado na ampliação do acesso ao BPC, uma vez que o critério estrito de renda per capita de ¼ do salário mínimo foi relativizado, permitindo que outros fatores, como condições de moradia e saúde, sejam considerados (Barroso, 2017).
Essa ampliação traz benefícios sociais inquestionáveis, como o aumento da proteção a grupos vulneráveis, mas também desafia a capacidade técnica e financeira do Estado em garantir que essas políticas sejam implementadas de maneira adequada. Com o aumento no número de beneficiários, há uma crescente pressão sobre os recursos orçamentários e a capacidade da Administração de avaliar casos de forma rápida e eficiente.
A vinculação aos precedentes reforça a interdependência entre o Judiciário e a Administração Pública, criando um canal de diálogo contínuo entre essas esferas. No entanto, esse relacionamento nem sempre é harmonioso, especialmente quando a Administração encontra dificuldades em aplicar corretamente os precedentes estabelecidos pelo STF. Um exemplo disso é a judicialização de demandas sociais, como a concessão do BPC, que muitas vezes decorre da incapacidade da Administração de adaptar suas práticas administrativas às decisões judiciais.
Essa judicialização reflete a resistência de alguns gestores públicos em aceitar a mudança de critérios e padrões normativos, o que pode ser fruto de limitações técnicas, orçamentárias ou de uma burocracia enraizada que dificulta a implementação rápida de mudanças. Além disso, a morosidade no cumprimento de ordens judiciais pode gerar um ciclo vicioso de judicialização, no qual beneficiários que poderiam ser contemplados administrativamente recorrem ao Judiciário em busca de seus direitos (Silva, 2018).
4.3 Desafios e obstáculos para a vinculação na prática
Embora o dever de seguir os precedentes vinculantes seja estabelecido de maneira clara no ordenamento jurídico, sua aplicação prática enfrenta uma série de dificuldades técnicas e jurídicas. Um dos principais obstáculos é a complexidade dos casos que envolvem o Benefício de Prestação Continuada, em que a aplicação dos precedentes não se resume a um simples cumprimento mecânico, mas exige uma análise detalhada das circunstâncias particulares de cada requerente (Cunha, 2017). A capacidade técnica limitada em algumas regiões do país, principalmente em municípios de pequeno porte, torna a aplicação dos precedentes ainda mais desafiadora.
Outro desafio é a interpretação e adaptação de precedentes. Em muitos casos, a Administração Pública carece de uma estrutura adequada para treinar servidores a interpretar corretamente as decisões judiciais e aplicá-las de forma eficaz. Essa deficiência gera inconsistências na concessão de benefícios e uma sobrecarga do Judiciário, que acaba sendo acionado para corrigir falhas que deveriam ter sido resolvidas administrativamente (Fonseca, 2018).
A morosidade administrativa é outro obstáculo importante que impede a efetivação dos direitos sociais estabelecidos pelos precedentes do STF. Em muitos casos, o tempo necessário para que a Administração Pública implemente uma decisão judicial é excessivo, prejudicando diretamente os beneficiários do BPC, que dependem de uma resposta célere para garantir sua subsistência. Esse atraso acaba gerando um aumento na judicialização das demandas sociais, uma vez que os cidadãos recorrem ao Judiciário em busca de uma solução mais rápida para seus problemas (Pereira, 2018).
A judicialização, embora seja uma ferramenta importante para a proteção de direitos, não pode ser vista como a solução ideal para todas as demandas sociais. Quando a Administração Pública falha em implementar adequadamente os precedentes do STF, o Judiciário é acionado de maneira recorrente, o que sobrecarrega o sistema de justiça e compromete a celeridade dos processos. Essa sobrecarga gera um círculo vicioso em que, quanto mais a Administração falha em seguir os precedentes, mais o Judiciário é acionado, perpetuando o problema da morosidade na concessão de benefícios sociais.
5 ANÁLISE DA APLICAÇÃO DOS PRECEDENTES NO CONTEXTO DO LOAS
A aplicação dos precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF) no contexto da concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC), conforme previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), revela um panorama complexo da relação entre o Judiciário e a Administração Pública. Embora os precedentes busquem uniformizar as decisões administrativas, garantir a proteção dos direitos sociais e reduzir a judicialização desnecessária, sua implementação prática apresenta desafios significativos. Esta seção examina a eficácia da vinculação dos precedentes, o papel do Judiciário na garantia dos direitos sociais, a adequação administrativa à jurisprudência do STF e os impactos da judicialização excessiva.
5.1 A eficácia prática da vinculação dos precedentes no âmbito administrativo
A vinculação da Administração Pública aos precedentes do STF tem como objetivo primordial a uniformização das decisões administrativas e a promoção da segurança jurídica. No entanto, a eficácia prática dessa vinculação enfrenta diversas barreiras, especialmente no campo da assistência social. Um dos grandes desafios está relacionado à capacidade da Administração Pública de internalizar os precedentes e aplicá-los de forma correta e eficiente. No caso do Benefício de Prestação Continuada (BPC), essa dificuldade é exacerbada pela complexidade dos critérios estabelecidos pelo STF para a caracterização da “miserabilidade”.
As decisões do STF que flexibilizam o critério de renda para a concessão do BPC trouxeram uma ampliação significativa do conceito de vulnerabilidade, mas a adaptação a esse novo parâmetro tem sido lenta e desordenada. Em muitos municípios, especialmente nas regiões mais pobres do país, os órgãos administrativos não dispõem da estrutura técnica e humana necessária para aplicar corretamente esses precedentes. O uso de critérios econômicos rígidos ainda é comum, mesmo após o STF ter determinado que outros fatores, como condições de moradia, saúde e acesso a serviços básicos, devem ser levados em consideração (Silva, 2018).
Essa disparidade na aplicação dos precedentes compromete a uniformidade das decisões administrativas e perpetua a desigualdade no acesso ao benefício. A falta de capacitação dos gestores e a ausência de um sistema nacional eficaz de monitoramento e controle tornam a vinculação formal aos precedentes uma realidade distante, afetando diretamente a população mais vulnerável. Estudos apontam que, apesar das decisões vinculantes, o número de benefícios concedidos com base nos critérios ampliados ainda é baixo, refletindo a dificuldade prática de implementar mudanças jurisprudenciais em larga escala (Pereira, 2018).
5.2 O papel do Judiciário na concretização dos direitos assistenciais
O Judiciário, especialmente o STF, desempenha um papel central na concretização dos direitos sociais, particularmente no que se refere à assistência social. O protagonismo do STF na interpretação da LOAS e na flexibilização do conceito de “miserabilidade” é uma resposta à inércia e ineficiência da Administração Pública na concessão do BPC. A decisão do STF no Recurso Extraordinário n.º 567.985/MT, que determinou a ampliação dos critérios de vulnerabilidade, é um exemplo claro de como o Judiciário tem atuado para assegurar a concretização de direitos fundamentais que, de outra forma, estariam comprometidos (Barroso, 2017).
No entanto, essa atuação do Judiciário também levanta questões sobre o equilíbrio entre os poderes. A constante interferência do Judiciário em matérias que deveriam ser de competência administrativa indica uma falha estrutural na implementação de políticas públicas. O STF tem sido chamado a atuar em diversas ocasiões para corrigir falhas na concessão do BPC, especialmente em casos em que a Administração se recusa a aplicar as diretrizes jurisprudenciais. Isso tem gerado um fenômeno de “judicialização dos direitos sociais”, onde o Judiciário, ao invés de funcionar como última instância de proteção de direitos, torna-se um ator indispensável para a efetivação desses direitos, preenchendo lacunas deixadas pela Administração Pública (Cunha, 2017).
Esse papel central do Judiciário, embora necessário em muitos casos, não deve ser visto como a solução ideal. A judicialização excessiva tende a sobrecarregar o sistema judicial, retardando a resolução de demandas e comprometendo a celeridade que o BPC exige, dada sua natureza assistencial. Além disso, a dependência do Judiciário para a efetivação de direitos sociais reflete a incapacidade da Administração Pública de cumprir seu papel constitucional, o que pode minar a confiança nas instituições públicas (Fonseca, 2018).
5.3 Reflexões sobre a adequação da Administração Pública à jurisprudência do STF
A adequação da Administração Pública à jurisprudência do STF, especialmente no contexto do BPC, enfrenta obstáculos consideráveis. Um dos maiores problemas é a resistência cultural dentro da Administração em aceitar e aplicar mudanças estabelecidas pelo Judiciário. Isso pode ser atribuído, em parte, à burocracia e às práticas administrativas enraizadas que privilegiam a manutenção do status quo em detrimento da inovação e da flexibilidade (Pereira, 2018).
Embora as decisões do STF sobre o BPC determinem uma aplicação mais ampla e inclusiva da legislação assistencial, muitos gestores públicos continuam aplicando critérios ultrapassados e limitadores, como o critério de renda per capita de ¼ do salário mínimo, mesmo após sua relativização pelo Supremo. Essa resistência à mudança jurisprudencial não é apenas fruto de uma cultura conservadora, mas também da falta de capacitação técnica e jurídica para lidar com a complexidade da aplicação dos precedentes (Cunha, 2017).
Ademais, a Administração Pública muitas vezes carece de recursos tecnológicos e humanos para realizar uma análise contextual e holística das condições de vulnerabilidade dos solicitantes do BPC. Essa falta de infraestrutura contribui para a disparidade na aplicação dos precedentes em diferentes regiões do país, perpetuando desigualdades no acesso ao benefício. O desafio, portanto, é não apenas garantir a vinculação formal aos precedentes, mas também assegurar que a Administração tenha condições reais de aplicá-los de maneira eficaz e uniforme (Silva, 2018).
5.4 O impacto da judicialização excessiva no acesso ao benefício assistencial
A judicialização excessiva no contexto da concessão do BPC tem gerado sérios obstáculos ao acesso célere e eficaz ao benefício assistencial. O aumento significativo de ações judiciais relacionadas à concessão do BPC, muitas vezes em razão da resistência da Administração em aplicar os precedentes vinculantes, tem sobrecarregado o sistema de justiça e prolongado a tramitação dos processos. Em vez de servir como um mecanismo excepcional de proteção de direitos, a judicialização tornou-se a regra para muitos solicitantes do BPC que, sem outra alternativa, recorrem ao Judiciário para garantir o acesso ao benefício (Barroso, 2017).
Essa dependência do Judiciário cria um ciclo vicioso: a incapacidade da Administração de aplicar corretamente os precedentes leva à judicialização, e a sobrecarga do Judiciário resulta em atrasos na concessão do benefício, o que agrava a situação de vulnerabilidade dos solicitantes. Para muitos, a espera prolongada pela resolução judicial representa a diferença entre a subsistência e a miséria, uma vez que o BPC é um benefício assistencial destinado a garantir condições mínimas de sobrevivência (Fonseca, 2018).
Além disso, a judicialização excessiva também tem um impacto financeiro significativo, tanto para o sistema de justiça quanto para os cofres públicos. O custo de litigar milhares de casos de concessão do BPC, além do custo dos atrasos na concessão dos benefícios, acaba onerando ainda mais o orçamento público. Esse cenário aponta para a necessidade urgente de melhorias na capacidade administrativa de implementar os precedentes do STF de maneira célere e eficaz, evitando que o Judiciário continue a ser a principal via de acesso aos direitos sociais (Souza, 2017).
6 ESTRATÉGIAS PARA APERFEIÇOAMENTO DA APLICAÇÃO DOS PRECEDENTES VINCULANTES NO ÂMBITO DO BENEFÍCIO ASSISTENCIAL (LOAS)
A correta aplicação dos precedentes vinculantes do Supremo Tribunal Federal (STF) pela Administração Pública no contexto da concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC) é essencial para garantir a uniformidade e a justiça nas políticas assistenciais no Brasil. Contudo, o atual cenário evidencia entraves significativos relacionados à capacidade técnica dos gestores, à judicialização excessiva e à falta de integração entre os Poderes Executivo e Judiciário. Esta seção propõe estratégias para superar esses desafios e fortalecer a execução de políticas públicas baseadas nos precedentes judiciais.
6.1. Capacitação técnica da Administração Pública
A falta de capacitação técnica dos gestores públicos é uma das principais barreiras à aplicação eficiente dos precedentes vinculantes, especialmente no âmbito da assistência social. O Benefício de Prestação Continuada, regulado pela LOAS, envolve critérios complexos que exigem dos administradores um conhecimento técnico-jurídico detalhado para interpretar e aplicar corretamente as decisões do STF.
A estrutura atual da Administração Pública, especialmente em municípios de pequeno porte e regiões mais vulneráveis, é marcada por carências significativas em termos de recursos humanos qualificados. Em muitas localidades, os servidores responsáveis pela análise de solicitações do BPC não possuem o treinamento necessário para lidar com a aplicação dos precedentes judiciais, o que resulta na perpetuação de práticas antigas, muitas vezes descompassadas com as novas orientações jurisprudenciais (Fonseca, 2018). Essa falta de capacitação técnica gera uma grande quantidade de erros administrativos e recusa injustificada de benefícios, forçando os solicitantes a recorrerem ao Judiciário.
A solução para esse problema passa por investimentos robustos em programas de capacitação contínua, que devem ser implementados de forma descentralizada e adaptados às realidades locais. Esses programas precisam incluir tanto formação jurídica quanto treinamento em gestão pública, com enfoque nas diretrizes estabelecidas pelos precedentes do STF. A criação de cursos de curta e longa duração, em parceria com universidades, escolas de governo, como a Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), e o próprio Poder Judiciário, poderia capacitar os gestores a aplicar os precedentes de maneira uniforme e eficiente em todo o território nacional (Cunha, 2017).
Além da formação técnica, é necessário que as administrações locais disponham de ferramentas tecnológicas de suporte à tomada de decisão, que possam orientar os gestores sobre a aplicação dos precedentes. Sistemas de gestão integrados, que permitam o acesso facilitado à jurisprudência do STF, seriam uma forma de assegurar que os precedentes sejam seguidos corretamente em tempo real. Tais plataformas poderiam, inclusive, fornecer parâmetros automáticos para a concessão de benefícios assistenciais, baseados nos critérios estabelecidos pelo Judiciário, eliminando a margem de erro na aplicação das diretrizes (Pereira, 2018).
6.2. Redução de ajuizamento a garantia de celeridade na concessão de benefícios
A judicialização excessiva no contexto do BPC é um reflexo direto da incapacidade da Administração Pública de aplicar os precedentes do STF de forma eficaz e uniforme. Como resultado, a morosidade na concessão de benefícios gera insegurança para os solicitantes, que acabam buscando no Judiciário a solução para seus problemas. Isso sobrecarrega os tribunais e aumenta o tempo de espera para a obtenção do benefício, prejudicando a população mais vulnerável.
Uma das estratégias mais eficazes para reduzir a judicialização e garantir maior celeridade no processamento dos pedidos de BPC seria a implementação de soluções tecnológicas avançadas. Sistemas de inteligência artificial (IA) e big data poderiam ser utilizados para automatizar o processamento das solicitações, cruzando dados socioeconômicos de diferentes bases públicas – como o Cadastro Único, o INSS e a Receita Federal – para verificar a elegibilidade dos solicitantes de forma mais rápida e precisa (Souza, 2017). Isso permitiria que os critérios de “miserabilidade”, frequentemente flexibilizados pelo STF, fossem analisados de maneira integral, levando em conta não apenas a renda per capita, mas também fatores como saúde, habitação e acesso a serviços básicos.
Outra medida seria a criação de mecanismos de conciliação administrativa, nos quais os gestores públicos poderiam resolver disputas de forma mais ágil, evitando que as demandas cheguem ao Judiciário. Um exemplo seria a criação de comitês de mediação, formados por representantes da Administração Pública e do Poder Judiciário, para solucionar casos controversos sobre a concessão do BPC antes que eles sejam judicializados. Esses comitês poderiam atuar como instâncias intermediárias, facilitando a concessão de benefícios em situações complexas, sem a necessidade de uma longa tramitação judicial (Fonseca, 2018).
Além disso, é fundamental que sejam instituídos prazos rigorosos para a análise dos pedidos de BPC, de modo a garantir a celeridade na resposta aos solicitantes. O descumprimento desses prazos poderia ensejar penalidades administrativas para os gestores responsáveis, incentivando a eficiência na aplicação das políticas assistenciais. Com essas medidas, seria possível minimizar os entraves burocráticos e assegurar que os beneficiários tenham acesso rápido aos direitos que lhes são garantidos por lei (Cunha, 2017).
6.3 Integração entre os Poderes Executivo e Judiciário
A falta de coordenação entre o Executivo e o Judiciário é uma das causas centrais dos problemas na aplicação dos precedentes vinculantes no contexto do BPC. O distanciamento institucional entre esses dois poderes gera decisões conflitantes e dificulta a execução eficaz das políticas públicas. Uma maior integração entre o Executivo e o Judiciário seria fundamental para assegurar a uniformidade na aplicação das decisões do STF e evitar a judicialização excessiva.
Uma das propostas para promover essa integração seria a criação de fóruns interinstitucionais, onde representantes do Poder Executivo e do Judiciário pudessem debater periodicamente as dificuldades operacionais e jurídicas na aplicação dos precedentes. Esses fóruns serviriam como um espaço para troca de experiências e identificação de boas práticas na concessão de benefícios assistenciais. Além disso, poderiam atuar na proposição de soluções conjuntas para os problemas enfrentados na implementação das diretrizes estabelecidas pelo STF, permitindo que o diálogo entre os dois poderes ocorresse de forma contínua e colaborativa (Pereira, 2018).
Outra sugestão seria a criação de comissões mistas permanentes, formadas por membros do Judiciário, do Executivo e da sociedade civil, com o objetivo de monitorar e supervisionar a aplicação dos precedentes vinculantes no âmbito da LOAS. Essas comissões teriam a responsabilidade de acompanhar a execução das políticas assistenciais, identificar falhas e sugerir melhorias na implementação dos precedentes. A atuação dessas comissões seria especialmente importante em casos onde a judicialização é recorrente, permitindo que os problemas estruturais sejam solucionados de forma preventiva, antes que se tornem objeto de litígios judiciais (Fonseca, 2018).
Finalmente, seria importante promover o uso de tecnologias integradas entre os dois poderes, como sistemas de gestão compartilhados, que permitam o acesso em tempo real às informações sobre as decisões judiciais e a execução administrativa das políticas assistenciais. Essa comunicação integrada ajudaria a evitar decisões conflitantes, garantir maior transparência na aplicação dos precedentes e otimizar o fluxo de informações entre o Judiciário e a Administração Pública. Ferramentas digitais de uso comum, como portais de acesso compartilhado e bancos de dados unificados, poderiam facilitar a implementação ágil e eficaz dos precedentes (Souza, 2017).
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A aplicação dos precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF) na concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC) tem gerado mudanças significativas na forma como a Administração Pública deve atuar para garantir a efetivação dos direitos sociais previstos na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). Embora os precedentes vinculantes tenham como objetivo assegurar uniformidade e justiça na concessão dos benefícios, a realidade mostra que a Administração Pública enfrenta obstáculos consideráveis para implementar essas diretrizes de maneira eficaz e ágil. O BPC, que deveria ser um direito assegurado aos grupos mais vulneráveis, continua a ser impactado por entraves burocráticos, falta de capacitação técnica e resistência na aplicação dos novos critérios estabelecidos pelo STF, perpetuando a judicialização excessiva e atrasando o acesso ao benefício.
A Administração Pública, portanto, desempenha um papel crucial na operacionalização dos direitos sociais e precisa internalizar e aplicar corretamente as decisões do STF. Para que isso se concretize, é necessário um investimento contínuo em capacitação técnica e jurídica para os gestores públicos, bem como uma adaptação mais rápida e eficiente às mudanças jurisprudenciais. Isso inclui o desenvolvimento de ferramentas tecnológicas que agilizem a análise dos pedidos de BPC e permitam uma aplicação mais precisa dos precedentes, respeitando as particularidades de cada caso e ampliando a análise das condições de vulnerabilidade dos solicitantes.
No que diz respeito à vinculação administrativa aos precedentes do STF, é evidente a necessidade de uma maior integração entre os poderes Executivo e Judiciário, promovendo um diálogo contínuo que favoreça a implementação eficaz das diretrizes judiciais. Essa integração pode ser viabilizada por meio de fóruns interinstitucionais e comissões mistas, responsáveis por monitorar e avaliar a aplicação dos precedentes. Além disso, é essencial que o Estado invista em soluções que minimizem a judicialização, como a criação de mecanismos de conciliação que permitam a resolução mais ágil de disputas, evitando que essas questões se arrastem no Judiciário.
O fortalecimento da vinculação da Administração Pública aos precedentes do STF depende, assim, de um esforço coordenado para superar os desafios atuais. A consolidação de uma cultura administrativa voltada para a efetivação dos direitos sociais e a celeridade na concessão de benefícios é fundamental para garantir que o direito à assistência social seja plenamente respeitado, permitindo que os grupos mais vulneráveis tenham acesso, de forma digna, aos direitos assegurados pela Constituição.
REFERÊNCIAS
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1 Graduada em Direito pela Faculdade Estácio de Teresina (2016). Exerceu estágio no Tribunal Regional Eleitoral do Piauí (2014-2015). Atualmente, é servidora efetiva da Câmara Municipal de Teresina lotada na Procuradoria Legislativa. Membro da Comissão de Análise do Quadro Funcional da Câmara Municipal de Teresina (2016). Membro da Comissão de Estudos das Leis Administrativas de Teresina (2018). Titular da Sociedade Unipessoal de Advocacia “Bruna Carvalho Portela Sociedade Individual de Advocacia”, desde 17/08/2020, com expertise em Direito Previdenciário. Membro da Comissão de Direito Previdenciário da OAB/PI. Membro da Comissão de Acompanhamento do Processo Legislativo da OAB/PI. Pós-Graduada em Direito Público pela Estácio-CEUT (2016-2017). Pós-Graduada em Direito da Seguridade Social pela Faculdade Legale (2020-2021). Pós-Graduada em Regime Próprio de Previdência Social (RRPS) e Direito Previdenciário Militar pela Faculdade Legale (2021-2022). Curso Superior de Tecnologia em Gestão Pública (2019-2020). Curso Superior de Tecnologia em Gestão Financeira – UNICV (2022-2023). Endereço Lattes: https://lattes.cnpq.br/2649216139892318. E-mail: brunaportela2@hotmail.com