REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cs10202410200002
Clemência Gomes Abreu
José Amauri Siqueira da Silva
Suzana Gusmão Lima
RESUMO
Esta pesquisa analisou a valorização da educação intercultural na Escola Municipal Professor Waldir Garcia, uma instituição pública de Manaus que atendia um número significativo de alunos imigrantes e refugiados, principalmente da Venezuela e do Haiti. Com o objetivo de compreender as práticas educativas dessa escola, foi adotado um percurso metodológico que incluiu pesquisa bibliográfica, documental e de campo. Aplicou-se um questionário que abordava a importância da educação intercultural em relação às necessidades dos alunos imigrantes e refugiados. Os resultados indicaram que a Escola Waldir Garcia aliou educação, resistência e luta por justiça social, consolidando-se como uma referência internacional em educação intercultural. A escola promoveu o acolhimento de alunos estrangeiros e ofereceu uma formação integral que valorizava e respeitava a diversidade cultural. Esse modelo educacional estava alinhado com as diretrizes do multiculturalismo e reforçava os princípios democráticos, tornando-se um exemplo de como a educação pode contribuir para a inclusão e transformação social.
Palavras-chave: Educação, Intercultural, Imigração, Cidadania
RESUMEN
Esta investigación analizó la valorización de la educación intercultural en la Escuela Municipal Profesor Waldir Garcia, una institución pública de Manaos que atendía a un número significativo de estudiantes inmigrantes y refugiados, principalmente de Venezuela y Haití. Con el objetivo de comprender las prácticas educativas de esta escuela, se adoptó un enfoque metodológico que incluyó investigación bibliográfica, documental y de campo. Se aplicó un cuestionario que aborda la importancia de la educación intercultural en relación con las necesidades de los estudiantes inmigrantes y refugiados. Los resultados indicaron que la Escuela Waldir Garcia unió educación, resistencia y lucha por la justicia social, consolidándose como una referencia internacional en educación intercultural. La escuela promueve la acogida de estudiantes extranjeros y ofreció una formación integral que valoraba y respetaba la diversidad cultural. Este modelo educativo estaba alineado con las directrices del multiculturalismo y reforzaba los principios democráticos, convirtiéndo en un ejemplo de cómo la educación puede contribuir a la inclusión y transformación social.
Palabras clave: Educación, Cultura, Inmigración, Ciudadanía
1. INTRODUÇÃO
A diversidade cultural é uma característica central da sociedade brasileira, manifestando-se nas artes, religiões e sistemas educacionais. Nesse contexto, a educação intercultural surge como uma ferramenta essencial para reconhecer e valorizar essa diversidade, promovendo a inclusão e a equidade social. No entanto, a implementação desse modelo no sistema educacional brasileiro ainda enfrenta desafios significativos, uma vez que, historicamente, a educação no Brasil sempre serviu aos interesses das elites dominantes. Somente no final do século XX, com a pressão dos movimentos sociais, a diversidade cultural passou a ser incorporada no campo educacional.
Na região amazônica, a educação intercultural apresenta grandes desafios, apesar da vasta diversidade populacional. Em Manaus, cidade com uma composição sociocultural única devido à presença de muitos imigrantes, a Escola Municipal Waldir Garcia foi selecionada para a pesquisa por contar com um número relevante de alunos imigrantes e refugiados. Essa escola, desde 2016, tem implementado práticas pedagógicas interculturais, buscando integrar diferentes grupos culturais e promover discussões sobre diversidade e desigualdade no ambiente escolar.
A pesquisa teve como objetivo principal analisar como a educação intercultural é aplicada na Escola Waldir Garcia, partindo da hipótese de que sua valorização contribui para a transformação das práticas pedagógicas e o desenvolvimento de um currículo focado na promoção da diversidade cultural. Além disso, investigou o desenvolvimento da educação intercultural no cenário internacional, sua inserção no Brasil e as práticas específicas adotadas pela escola.
A escolha de Manaus se justifica pela trajetória da autora, que já havia trabalhado com projetos de intercâmbio cultural entre alunos brasileiros e bolivianos, e posteriormente observou o crescimento do número de estudantes estrangeiros nas escolas estaduais de Manaus, intensificado pelo fluxo migratório da Venezuela. Isso evidenciou a necessidade de adequar o ensino para acolher essa nova demanda.
Assim, a pesquisa explora como a Escola Waldir Garcia se tornou um exemplo de implementação da educação intercultural, demonstrando como essa abordagem pode ser aplicada no contexto da diversidade cultural presente em Manaus.
1.1. OS MÚLTIPLOS MULTICULTURALISMOS
A partir da Segunda Guerra Mundial, especialmente nos anos 1950, surgiram novas reflexões sobre a diversidade cultural, desafiando visões tradicionais. Hall (2003; 2006) explorou as sociedades multiculturais, reconhecendo sua heterogeneidade. O multiculturalismo é um conceito complexo, envolvendo não só teorias, mas também política e economia, refletindo na diversidade cultural sem necessariamente garantir harmonia entre os povos. Mendes (2010) destaca que a coexistência de culturas não assegura interações significativas, podendo gerar tanto colaboração quanto conflitos. Hall (2003) vê o multiculturalismo como um processo dinâmico de gestão da diversidade cultural, não um estado ideal.
Ao analisar o Quadro 01, observa-se a distinção fundamental entre os termos “multicultural” e “multiculturalismo” de acordo com o entendimento de Hall (2003).
Quadro 1 – A diferença entre multicultural e multiculturalismo
Multicultural | Multiculturalismo |
Descreve as características sociais e os problemas de governabilidade apresentados por qualquer sociedade na qual diferentes comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum, ao mesmo tempo em que retêm algo de sua identidade “original”. | Refere-se às estratégias e políticas adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade gerados pelas sociedades multiculturais. É usualmente utilizado no singular, significando a filosofia específica ou a doutrina que sustenta as estratégias multiculturais. |
Fonte: Elaborado pela autora (2021) baseado em Hall (2003).
O texto explora o multiculturalismo a partir das ideias de Hall (2003), destacando sua complexidade e variações. Ele descreve o multiculturalismo como um processo dinâmico, com versões conservadoras que buscam assimilação e versões críticas que ficam em poder e resistência. Hall critica o “multiculturalismo boutique”, que valoriza a diversidade cultural sem provocar mudanças reais, e adverte sobre a relação entre multiculturalismo e globalização, destacando resistências locais. Por fim, o texto questiona como esse conceito impacta a educação e a formação dos estudantes brasileiros, preparando para a discussão que segue.
1.2. EDUCAÇÃO, CULTURA E DIVERSIDADE
O texto aborda o multiculturalismo como um conceito moldado por transformações locais e globais, influenciando a construção da identidade social e a cultura. Hall (2003; 2006) ressalta que o multiculturalismo permite escolhas autônomas, enquanto Candau e Moreira (2008) veem-no como crucial para reconhecer a diversidade cultural e combater a opressão. No Brasil, a educação reflete a história de migração e colonização, trazendo desafios que, segundo Banks (2009), precisam ser valorizados para evitar tensões sociais. O multiculturalismo tem diferentes abordagens, como a assimilacionista, a diferencialista e a intercultural, sendo esta última a mais eficaz para promover o diálogo e a inclusão na educação.
Quadro 2 – Indivíduo e inclusão social no contexto do multiculturalismo
Segregacionismo | Interacionismos | Inclusivismo |
O indivíduo era afastado da sociedade. | A escola passa a receber pessoas com deficiência. | A educação é um direito de todos. Essa perspectiva é defendida pelo multiculturalismo. |
Fonte: Elaborado pela autora (2021) com base em Anjos, Andrade e Pereira (2019).
O multiculturalismo é apresentado como uma ferramenta para promover inclusão social e convivência democrática, fundamentais à educação intercultural. Morin (2000) destaca que essa abordagem busca construir uma sociedade mais coesa, capaz de enfrentar desafios relacionados à diversidade e à exclusão social. Grant (2008) reforça que a educação multicultural deve atender às necessidades de populações culturalmente diversas, garantindo justiça e igualdade. Na América Latina, políticas educacionais começaram a reconhecer a diversidade cultural nas décadas de 1980 e 1990, rompendo com abordagens monoculturais. No Brasil, embora haja desafios devido à exclusão histórica de povos indígenas e africanos, o multiculturalismo é essencial para valorizar a pluralidade nos currículos escolares.
1.3. A ESCOLA MULTICULTURALISTA
O modelo de escola multicultural no Brasil enfrenta grandes desafios devido às desigualdades entre instituições, agravadas por corrupção e disparidades regionais. Para que a educação multicultural seja eficaz, é necessário que a escola seja um espaço de diálogo entre diferentes culturas, reconhecendo a diversidade de experiências (Pérez Gómez, 2001; Candau, 2008). No entanto, as escolas frequentemente priorizam a padronização, o que dificulta a inclusão de várias culturas (Moreira e Candau, 2003). Reformular currículos e práticas pedagógicas é fundamental para atender grupos marginalizados e promover uma verdadeira educação multicultural. Embora o Brasil tenha uma rica diversidade cultural, a política educacional nem sempre favorece essa multiplicidade.
1.4. A EDUCAÇÃO INTERCULTURAL NO BRASIL
Neste texto, a interculturalidade na educação brasileira é explorada sob um viés sócio-histórico, com foco na formação das sociedades latino-americanas, conforme discutido por pesquisadores como Akkari (2012; 2011), Candau (2008) e Santos (1999). Martinez (2000) critica a visão predominante, que prioriza interesses econômicos nos acordos comerciais, destacando a importância das relações humanas entre os países da América Latina, especialmente os que fazem fronteira com o Brasil.
A escola deve promover a inter-relação científico-cultural, frequentemente negligenciada em acordos macroeconômicos. O texto examina a formação cultural brasileira, abordando seus contrastes e dilemas, a relação entre educação e cultura na diversidade e, por fim, a implementação da educação intercultural no sistema educacional brasileiro.
1.5. EDUCAR PARA COLONIZAR
O Brasil, um país com vasto território e grandes desigualdades sociais desde a colonização, sofreu a imposição de uma educação católica e de um modelo de comportamento dominador, particularmente sob a influência da Companhia de Jesus. Com a formação de uma sociedade mestiça, as relações de poder se consolidaram com a elite agrária colonial, resultando em um sistema educacional que priorizava a cultura branca e promovia o branqueamento da população.
A educação intercultural no Brasil, embora tenha ganhado força nas discussões a partir da década de 1990, enfrenta um paradoxo entre a defesa da diversidade cultural e a busca por um sistema educacional unificado. Movimentos sociais, especialmente o movimento negro, têm lutado contra a discriminação e por maior visibilidade e direitos, revelando a herança colonial que ainda perpetua desigualdades.
Historicamente, a educação no Brasil foi marcada por tentativas de homogeneização cultural, silenciando as vozes e saberes dos grupos indígenas e afro-brasileiros. Essa dinâmica, que se intensificou com a Revolução Industrial, destaca a necessidade de reformas educacionais que promovam e valorizem a diversidade cultural, integrando-a efetivamente no debate educacional.
1.6. O MODELO EDUCACIONAL INTERCULTURAL NO BRASIL
A primeira reforma da educação brasileira voltada para fins interculturais ocorreu com a promulgação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) em 1997, que causaram controvérsia na sociedade. Essa iniciativa é importante para entender o paradoxo de uma sociedade multiétnica que, embora reconheça sua diversidade, não consegue se reconciliar com ela. Ao contrário de modelos bipolares, como os dos Estados Unidos e da África do Sul, ou de nacional versus imigrante na Europa, o Brasil apresenta uma complexidade única (AKKARI, 2015).
A educação intercultural no Brasil passou por um longo caminho político e jurídico, tendo suas discussões iniciadas entre as décadas de 1970 e 1980, com a emergência dos movimentos afro-brasileiros que lutavam por direitos civis e o surgimento de estudos sobre estereótipos e discriminação no contexto educacional (AKKARI, 2006).
Quadro 3 – Reconhecimento da pluralidade cultural nos documentos oficiais do Brasil
Documentos | Referência à pluralidade cultural |
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 | Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afrobrasileiras |
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996 (Lei 9.394/96) | Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afrobrasileira e indígena. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008). |
Fonte: Elaborado pela autora (2021) a partir de Akkari (2015).
A identidade mestiça do Brasil e a discriminação histórica contra afrobrasileiros e ameríndios são reconhecidas, mas a aplicação da legislação que promove a pluralidade cultural nas escolas ainda enfrenta dificuldades. O sistema educacional reflete interesses locais e internacionais, e entre 2019 e 2020, foi desafiado por grandes ondas migratórias, especialmente de venezuelanos. Segundo o CONARE e ACNUR, 93,7% das solicitações de refúgio vieram de venezuelanos, com a maioria registrada nas regiões norte, especialmente em Roraima e Amazonas, alterando a demografia de capitais como Boa Vista e Manaus.
Esse fluxo migratório pressionou o sistema educacional a acolher cerca de 5.880 crianças e adolescentes refugiados, forçando escolas municipais e estaduais a adaptarem suas práticas pedagógicas. Algumas escolas se destacaram por implementar métodos inclusivos e interculturais, mas nem todas estão preparadas para lidar com a diversidade e os desafios de integrar esses novos alunos, refletindo a necessidade de maior suporte e adaptação do sistema educacional.
2. METODOLOGIA
2.1. O OBJETO DE ESTUDO
O interesse pela educação intercultural nasceu da prática docente da educadora em Cáceres (MT), na fronteira entre Brasil e Bolívia, a partir de 2010, quando coordenou o projeto “Diversidade cultural: nossa identidade”. Este projeto visava promover o intercâmbio cultural entre escolas brasileiras e bolivianas, explorando aspectos linguísticos e socioculturais.
Em Manaus, desde 2012, como professora de Língua Espanhola no Colégio Amazonense Dom Pedro II, a educadora continuou a explorar a interculturalidade através de projetos anuais focados na cultura dos países de língua espanhola. A presença de alunos imigrantes e refugiados no colégio intensificou essa abordagem, destacando a importância de integrar as diversas culturas no ambiente escolar. Um marco significativo foi a realização de uma sala temática sobre a Colômbia, em 2019, com apoio do consulado colombiano, fortalecendo a conexão entre a escola e a comunidade imigrante.
Entretanto, foi na Escola Municipal Prof. Waldir Garcia, em Manaus, que a educadora encontrou um exemplo contínuo de educação intercultural. A escola se destacou por incorporar a diversidade cultural de maneira diária e humanitária, sendo um modelo reconhecido regional e internacionalmente por suas práticas inclusivas com alunos de diferentes origens.
A partir dessas experiências, a educadora conclui que a interculturalidade deve ser parte integrante e constante do cotidiano escolar, e não limitada a eventos pontuais, promovendo uma valorização contínua da diversidade cultural no ambiente educacional.
2.2. MANAUS: A CIDADE MULTICULTURAL DOS TRÓPICOS
Manaus, capital do Amazonas, tem uma história marcada pela interculturalidade desde o século XVII, com a chegada dos colonizadores portugueses. Durante os séculos XVII e XVIII, a região era dominada pela Coroa Portuguesa, com uma população majoritariamente indígena e poucos colonos, militares e religiosos. A mestiçagem, inicialmente proibida, passou a ser permitida, gerando o caboclo, uma figura expressiva na população local.
No auge do ciclo da borracha, entre os séculos XIX e início do XX, Manaus se modernizou e ganhou destaque internacional, embora os benefícios desse progresso tenham sido restritos à elite, acentuando as desigualdades sociais. Após o declínio da borracha, a cidade herdou sua arquitetura e atraiu novos imigrantes. A partir de 1960, com a criação da Zona Franca de Manaus, a cidade passou por outro ciclo de crescimento demográfico, mas as políticas públicas continuaram excludentes.
Recentemente, o fluxo migratório de haitianos e venezuelanos, impulsionado por crises em seus países, modificou a demografia local. Muitos imigrantes se estabeleceram em bairros como São Geraldo, enfrentando dificuldades para se inserir no mercado formal devido à falta de qualificação ou à burocracia para validar diplomas. Muitos dependem do setor informal para sobreviver, contando com apoio de organizações religiosas, como a Paróquia São Geraldo. A Escola Municipal Prof. Waldir Garcia também desempenha um papel crucial na inclusão dessas famílias imigrantes, adaptando-se para acolher as novas demandas.
2.3. A ESCOLA MUNICIPAL PROFESSOR WALDIR GARCIA
A Escola Municipal Professor Waldir Garcia, fundada em 1987 no bairro São Geraldo, oferece ensino fundamental (1º ao 5º ano) e atende cerca de 227 alunos, incluindo imigrantes do Haiti e Venezuela. Em 2020, ganhou o Prêmio Educador Nota 10 por seus projetos de protagonismo juvenil. Localizada próxima ao Igarapé da Cachoeira Grande, a escola enfrentou desafios, incluindo uma ameaça de demolição em 2011 devido a obras do Programa Minha Casa, Minha Vida. Isso causou evasão escolar e redução de matrículas em 2012.
Em resposta, a escola adaptou suas metodologias, influenciada por programas como o Mais Educação e movimentos por educação integral. A partir de 2015, a escola se engajou nesse movimento, e em 2016, tornou-se de tempo integral, o que resultou em vários prêmios, incluindo o Itaú-Unicef (2017) e “Plantando Saberes e Sabores” (2019). Desde 2013, a escola tem melhorado seu IDEB, sendo reconhecida como transformadora. Além disso, a escola valoriza a educação intercultural, refletida em suas atividades escolares.
3. DISCUSSÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS
3.1. RESISTÊNCIA E EDUCAÇÃO
A Escola Municipal Prof. Waldir Garcia representa a luta por justiça social e direitos humanos em uma área com uma significativa população de imigrantes e refugiados. Em 2016, a escola transformou-se em uma instituição de ensino integral, o que foi essencial para sua sobrevivência, já que enfrentava a ameaça de demolição devido a obras de aterramento na margem de um afluente do Rio Negro. Essa mudança não apenas garantiu sua continuidade, mas também reformulou suas práticas e currículos, destacando sua relevância para as famílias ao seu redor, especialmente para os refugiados haitianos que se estabeleceram no bairro São Geraldo, em Manaus.
A Escola Municipal Prof. Waldir Garcia é a primeira instituição de educação integral mantida pelo poder público municipal em Manaus, resultado da pressão exercida pelo movimento social Coletivo Escola Família Amazonas (CEFA) e das circunstâncias históricas que cercam a escola. Para investigar como a escola se tornou uma referência transformadora e como sua abordagem de educação intercultural se desenvolveu, foi conduzida uma pesquisa de campo com o corpo de servidores, incluindo administrativos e professores. A coleta de dados foi realizada por meio de um formulário eletrônico, buscando entender a realidade vivida pelos servidores e o impacto das mudanças implementadas na escola. A escola continua enfrentando desafios, mas persiste em seu compromisso de oferecer um ensino público, gratuito e de qualidade para a comunidade.
3.2. A COLETA DE DADOS
3.2.1. Coleta de Dados sobre Educação Intercultural
Os dados foram coletados durante o 1º semestre de 2021, por meio da aplicação de formulários online desenvolvidos no Google Forms, enviados via link aos contatos de WhatsApp do público-alvo da pesquisa. Essa metodologia foi adotada em decorrência da pandemia do novo coronavírus, que resultou no fechamento das escolas durante o ano de 2020 e parte de 2021.
3.2.2. Período da Coleta
• Data de Disponibilização do Formulário: 16/04 a 07/05/2021
• Público-Alvo: Professores, gestora e corpo administrativo da Escola Municipal Professor Waldir Garcia.
3.2.3. Variáveis Analisadas
O instrumento de coleta de dados contemplou diversas variáveis relevantes para a pesquisa, incluindo:
• Tempo de serviço na escola: A maioria do corpo docente possui experiência significativa, com muitos professores trabalhando na escola há 8 anos ou mais. Esse tempo de serviço pode indicar uma maior familiaridade com as dinâmicas da escola e com os alunos, favorecendo práticas pedagógicas mais efetivas e uma melhor compreensão das necessidades dos estudantes.
• Titulação docente: Com 57% dos entrevistados possuindo pós graduação e 43% apenas graduação, os resultados mostram um quadro docente bem qualificado. Essa titulação pode impactar positivamente na implementação de metodologias inovadoras e na promoção da educação intercultural.
• Grau de conhecimento sobre a educação intercultural: A pesquisa revelou que 71% dos participantes concordam plenamente que a educação intercultural é relevante para o Brasil. Isso demonstra uma conscientização crescente sobre a importância de uma abordagem educacional inclusiva e sensível às diversidades culturais presentes na escola.
• Grau de conhecimento sobre a teoria do multiculturalismo: Os resultados indicaram que 70% dos entrevistados consideram bom o que sabem sobre o multiculturalismo. Essa percepção positiva é essencial para o desenvolvimento de práticas pedagógicas que reconheçam e valorizem as diversas culturas dos alunos.
• Conhecimento sobre a legislação brasileira em relação à educação intercultural: 86% dos participantes afirmaram conhecer a legislação relacionada à educação intercultural. Esse conhecimento é fundamental para que os educadores possam integrar as diretrizes legais em suas práticas e garantir o direito à educação de todos os alunos.
• Participação docente em capacitações sobre diversidade cultural: Todos os entrevistados relataram participação frequente em capacitações sobre diversidade cultural. Essa formação contínua é crucial para que os professores se sintam preparados para lidar com as especificidades de um ambiente escolar multicultural.
• Participação da Secretaria de Educação em promover a educação intercultural na escola: Embora 42,9% dos participantes afirmam que a SEMED-AM oferece formação, 28,6% consideram que essa promoção ocorre raramente. Essa discrepância sugere a necessidade de um aumento na oferta de capacitações para apoiar melhor os educadores em suas práticas.
• Parcerias da escola com instituições e/ou organizações para fortalecer ações de educação intercultural: Os dados mostraram que 86% dos entrevistados afirmam que parcerias sempre ocorrem. Essa colaboração pode enriquecer o ambiente escolar, trazendo novas perspectivas e recursos para o ensino.
• Relação da comunidade escolar com alunos imigrantes e/ou refugiados: A percepção positiva em relação ao acolhimento de alunos imigrantes e refugiados indica um ambiente inclusivo, o que é fundamental para a construção de uma comunidade escolar solidária.
• Relações interpessoais e acolhimento dos estudantes na escola: Os dados mostraram que os servidores valorizam as relações interpessoais, indicando que a interação entre alunos e educadores é um aspecto prioritário para o bem-estar e o desenvolvimento dos estudantes.
• Desenvolvimento de práticas pedagógicas voltadas à promoção da educação intercultural: 71% dos entrevistados relatam que atividades voltadas à diversidade cultural sempre ocorrem. Essa frequência sugere um compromisso com a promoção de uma educação que respeita e valoriza as diferenças culturais.
• Aplicação dos recursos para melhoria da infraestrutura escolar: A pesquisa destacou uma demanda significativa por melhorias na infraestrutura, o que indica a necessidade de investimento em recursos físicos e materiais que suportem as práticas pedagógicas.
• Grau de valorização da educação intercultural no ambiente escolar: 66,7% dos entrevistados acreditam que o currículo atende e valoriza a diversidade cultural. Essa valorização é crucial para o desenvolvimento de um currículo que reflita a pluralidade da sociedade.
Práticas de Autoridade Compartilhada
A Escola Professor Waldir Garcia tem trabalhado com base no conceito de autoridade compartilhada, conforme descrito por Santos (1997). Esse conceito reflete a criação curricular cotidiana e práticas de diálogo que têm sido desenvolvidas, especialmente desde 2016, quando a escola passou a operar em jornada integral e a adotar um conceito de educação integral.
Dentre as práticas pedagógicas destacadas, estão o apoio de tutores e as assembleias, que envolvem todos os alunos nas tomadas de decisões. Esses momentos são fundamentais para a escuta e a conversação, possibilitando decisões compartilhadas.
As práticas pedagógicas na Escola Municipal Professor Waldir Garcia buscam valorizar a diversidade cultural, promovendo um ambiente escolar inclusivo e democrático. A participação ativa de educadores, colaboradores e instituições parceiras é fundamental para o sucesso dessas iniciativas.
4. CONCLUSÃO
A pesquisa qualitativa realizada na Escola Municipal Waldir Garcia revelou a importância da implementação e valorização da educação intercultural na instituição. O aprofundamento no conceito de interculturalidade demonstrou sua relevância no contexto educacional, especialmente quando associado ao multiculturalismo que promove direitos humanos e justiça social. Essa abordagem reconhece que a educação está intimamente ligada a dimensões sociais, culturais, econômicas e políticas, sendo moldada pelas demandas de cada época.
No Brasil, a implementação da educação intercultural ainda enfrenta obstáculos, decorrentes da história de desigualdades do país. Contudo, a Escola Waldir Garcia destaca-se por suas práticas pedagógicas inclusivas, que dão visibilidade e acolhimento a alunos imigrantes e refugiados, como os haitianos e venezuelanos. A instituição promove uma abordagem de ensino horizontal, quebrando com práticas etnocêntricas e monoculturais, e construindo um ambiente propício ao diálogo e à inclusão cultural.
A transformação para o modelo de tempo integral, a partir de 2016, ampliou as oportunidades para um desenvolvimento mais completo dos alunos, abrangendo os aspectos intelectual, físico, emocional e sociocultural. Mesmo diante das dificuldades impostas pela pandemia de COVID-19, a escola adaptou-se rapidamente às ferramentas digitais, mantendo o envolvimento com a comunidade escolar e assegurando a continuidade das práticas interculturais.
A Escola Municipal Waldir Garcia se tornou um exemplo inspirador de como promover a educação intercultural, comprometida com o acolhimento e respeito à diversidade. Sua relação com a comunidade é pautada por um modelo humanitário, e a gestão escolar trabalha para garantir que a instituição continue atuando como um espaço de formação de cidadãos críticos e socialmente conscientes.
No entanto, para que esse modelo seja ampliado e fortalecido, é essencial que a Secretaria Municipal de Educação invista em formação continuada para os profissionais da escola, desenvolva parcerias com universidades e melhore as condições salariais dos docentes e gestores. Além disso, o fortalecimento do Conselho Escolar, melhorias na infraestrutura e acompanhamento adequado dos recursos destinados à instituição são passos fundamentais.
A gestão escolar deve continuar fomentando práticas que acolham e respeitem as vozes dos estudantes imigrantes e refugiados. O corpo docente também deve investir na produção de materiais pedagógicos que reflitam a diversidade cultural da comunidade escolar e que abordam temas como culturas africanas, indígenas e imigração. Além disso, é crucial promover o protagonismo dos estudantes imigrantes e desenvolver atividades que combatam preconceitos e discriminações.
Com essas ações, será possível consolidar ainda mais a educação intercultural na Escola Municipal Waldir Garcia, garantindo que ela permaneça um exemplo de inclusão e valorização da diversidade cultural, além de um motor de transformação social.
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