REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11095565
Túlia Gomes de Souza Neves¹
RESUMO
O presente trabalho visa a apresentar o desconforme sistema tributário nacional sobre o consumo, com seu desrespeito ao princípio da capacidade contributiva, demonstrando que a tributação é essencial para o financiamento de toda e qualquer atividade estatal, constituindo um dever fundamental de todo cidadão suportar a carga tributária de acordo sua capacidade contributiva. O modelo de tributação adotado deve ser de conhecimento de todos os que arcam com este ônus, com informações precisas, sendo que o direito à informação e o princípio da transparência são de importância ímpar para os consumidores e para toda a sociedade. Faz-se uma a análise da transparência tributária e dos efeitos da Lei nº 12.741/2012, que estabelece a obrigatoriedade de informar aos consumidores, nos documentos fiscais, os tributos embutidos no preço, bem como a sua possibilidade prática de implementação no contexto tributário brasileiro. Os resultados sugerem que os valores dos tributos indicados nos documentos fiscais não conseguem corresponder ao efetivo custo daqueles, sendo apenas valores estimados, o que pode implicar a manutenção de um verdadeiro processo de opacidade, o qual permeia a carga fiscal brasileira, especialmente no que tange a sua regressividade, onerando quem esteja no final da cadeia produtiva, os consumidores.
Palavras-chave: Transparência Tributária. Consumidor. Tributação no consumo.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tenta apresentar de que forma o modo de tributar brasileiro é assimilado pelos consumidores, mediante informações veiculadas nos mais diversos meios de propagação coletiva, uma vez que os fornecedores de produtos e/ou serviços não cumprem com seu papel de informar. Ao contrário, constata-se que, quando há a necessidade de alcançar a lucratividade, os fornecedores, dentro do tema da complexa carga fiscal, cometem erros crassos e opiniões tendenciosas, muitas vezes levando os consumidores a erro.
Os consumidores brasileiros deparam-se, diariamente, com nomenclaturas que lhe são totalmente estranhas, como “tributo por dentro”, “tributo por fora”, “tributo direto”, “tributo indireto”, etc. Não obstante isso, o consumidor ainda se vê obrigado a decifrar a sopa de letrinhas que se tornou o sistema tributário nacional (IR, IPI, IOF, ICMS, ISS, PIS, COFINS etc.).
No paradigma do modelo de Estado instituído pela Constituição Federal, que assegura uma grande gama de direitos de várias dimensões, a tributação merece ser vista como um instrumento de realização das promessas constitucionais, chamando os cidadãos a contribuir de acordo com sua capacidade contributiva, para, com isso, restar garantido o princípio da solidariedade social, um dos pilares da Magna Carta de 1988.
Em vista disso, a tributação não pode passar à margem desse novo paradigma constitucional, especialmente porque tem muito a contribuir para realização dos objetivos fundamentais da República. O estudo procura, todavia, analisar a forma como a tributação é compreendida pelos consumidores e a possibilidade de sua maior transparência, em especial no que tange à tributação sobre o consumo, desde o advento da Lei nº 12.741/2012. Isso faz-se necessário, porque o debate é centrado no consenso de que a tributação é elevada e esconde o problema central da regressividade brasileira, o que contrasta com o paradigma constitucional eleger um sistema progressivo.
Para atingir tal desiderato, o estudo parte do paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito e os seus reflexos na tributação, buscando delinear a importância central do princípio da capacidade contributiva. Em seguida, a análise se direciona à forma como a tributação é debatida pela sociedade. Já na terceira parte, o direito à informação e a transparência tributária são analisados, bem como se examina a possibilidade prática de implementação da Lei nº 12.741/2012 com informações exatas e fidedignas no contexto da complexa tributação sobre o consumo brasileira.
Por fim, procede-se a uma análise da Lei nº 12.741/2012, com origem na complexidade do sistema tributário nacional, com vistas a aferir a possibilidade do efetivo cumprimento da norma. Com a criação da chamada Lei da Transparência, é importante indagar até que ponto a informação que será mostrada ao consumidor é fidedigna com a real carga tributária embutida no custo do produto.
2. TRIBUTAÇÃO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A Constituição brasileira de 1988 institui formalmente o Estado Democrático de Direito e traz um contexto de direitos reconhecidos ao longo da história para a constituição de uma sociedade livre, justa e solidária, sob o fundamento da dignidade da pessoa humana e do pluralismo político. Os objetivos perseguidos pelo Texto Constitucional são a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos. O sistema tributário idealizado pela Constituição é acompanhado desse compromisso fundamental da República Federativa Brasileira, onde assume local de destaque o princípio da capacidade contributiva.
O denominado de Estado Democrático do Direito nasce com o objetivo de conciliar o núcleo de direitos liberais e os sociais, mediante o estabelecimento da efetiva igualdade. Enquanto que esta igualdade consiste na garantia de condições mínimas e essenciais para a vida do cidadão e da comunidade, o Estado está autorizado a tomar as medidas para efetivação dessas condições. Assim, a lei assume o papel de uma ação concreta do Estado e não mais mero comando normativo de regulação social. Como ensina Lênio Streck (2009, p. 35): “o Estado Democrático de Direito representa, assim, a vontade constitucional de realização do Estado Social. É nesse sentido que ele é um plus normativo em relação ao direito promovedor-intervencionista próprio do Estado Social de Direito”.
Com efeito, não é possível dissociar a concepção do Estado Democrático de Direito com a efetiva realização dos direitos fundamentais. Isso ocorre porque se busca uma síntese das fases anteriores, mediante o preenchimento das lacunas de ambos os modelos, o Estado Liberal e o Estado Social. Essa simbiose é representada propriamente pela “necessidade do resgate das promessas da modernidade, tais como igualdade, justiça social e a garantia dos direitos humanos fundamentais”. (STRECK, 2009, p. 37).
Mediante a adoção de um comportamento ativo e transformador, o Estado Democrático de Direito pressupõe o estabelecimento de uma sociedade baseada nos alicerces fundamentais propostos pela Constituição. Nas palavras de Lênio Streck (2009, p. 35).
Há que se ter presente que o direito do Estado Democrático de Direito supera a noção de “fontes sociais”, em face daquilo que podemos chamar de prospectividade, isto é, o direito não vem à reboque dos “fatos sociais” e, sim, aponta para a reconstrução da sociedade. Isso é facilmente detectável nos textos constitucionais, como em terrae brasilis, onde a Constituição estabelece que o Brasil é uma República que visa a erradicar a pobreza etc., além de uma gama de preceitos que estabelecem as possibilidades (e determinações) do resgate das promessas não cumpridas da modernidade.
Com suporte nesse paradigma constitucional e estatal, comprometido com a igualdade material e concretização dos direitos fundamentais, é que o modelo tributário deve ser estabelecido. A Constituição brasileira reúne vários princípios para conformar a tributação, de acordo com os objetivos fundamentais da República, muito embora o princípio da capacidade contributiva assuma local de destaque nesse ponto.
A igualdade material, enfim, deve ser vislumbrada como um caminho atual, real e factível para a concretização/efetivação do Estado Democrático de Direito e, por consequência, do princípio basilar que o sustenta: dignidade da pessoa humana. Esse novo caminho pode e deve ser trilhado em apoio na utilização de conhecidos instrumentos, como a adequada interpretação do princípio da capacidade contributiva e a utilização da extrafiscalidade como meio de concretização dos direitos fundamentais, entre outros. (BUFFON, 2009, p. 116).
Para Roque Antônio Carrazza (2009, p. 103-104), o “princípio da capacidade contributiva hospeda-se nas dobras do princípio da igualdade”, na medida em que é o mais eficaz para alcançar a justiça fiscal. De tal asserção, decorre a importância do princípio da progressividade a ser utilizado em todos os impostos sem qualquer distinção entre impostos reais e pessoais, bem como o princípio da seletividade, que o autor considera obrigatórios em impostos como o ICMS e o IPI. (CARRAZZA, 2009, p. 104)
Com efeito, o princípio da capacidade contributiva pretende que a carga tributária seja distribuída entre os cidadãos de acordo com a capacidade que este tem em arcar com a tributação. O ônus tributário será tanto maior quanto maior for sua capacidade de arcar com ele e, ao contrário, será tanto menor, ou até mesmo inexistente, quanto menor, ou nula, for tal capacidade. (BUFFON, 2009, p. 176-177).
Na doutrina em geral, acentua-se, recorrentemente, que o princípio da capacidade contributiva encontra seu fundamento § 1º do art. 145 da Constituição. O fundamento de tal princípio, entretanto, se encontra nos pilares de sustentação do Estado Democrático de Direito, porquanto o novo paradigma constitucional e estatal tem o compromisso com a realidade e o efetivo cumprimento das promessas da Modernidade.
O princípio da capacidade contributiva, diferentemente do que sustentam muitos, não está fundamentado no § 1º do art. 145 da CF/88. Ele decorre do caráter do modelo de Estado constituído pela Carta brasileira de 1988 (Estado Democrático de Direito), o qual está alicerçado nos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade substancial e da solidariedade. Isto é, não há de se falar em Estado Democrático de Direito, se esse não tiver como objetivo a redução das desigualdades sociais, a formação de uma sociedade solidária, que esteja apta a assegurar a igual dignidade a todos os seus membros. (BUFFON, 2009, p. 175)
O princípio da capacidade contributiva deve, portanto, ser o fio condutor de todo o exercício do poder de tributar e na formulação da legislação tributárias, porquanto, conforme anota Mizabel Derzi (2004, p. 71), “a Constituição não tolera que se prestigiem as concentrações de riqueza nas mãos de poucos, sem chamar tal elite privilegiada à solidariedade tributária”.
Ademais, qualquer função exercida pelo Estado, no sentido de dar cumprimento as suas atribuições constitucionais, implica custos financeiros públicos. Isso abrange todos os tipos de direitos, que vão desde as liberdades clássicas aos direitos sociais. Para fazer frente à implementação das várias dimensões de direitos, o Estado necessita fazer uso dos tributos para suportar este peso financeiro.
Assim, o Estado Contemporâneo lança mão da figura do Estado Fiscal, amparado na cobrança de tributos, para concretizar os direitos fundamentais previstos na Constituição. O dever de pagar tributos se mostra inevitável, na medida em que a vida em sociedade e a organização do Estado necessita de recursos. Nesse sentido, Casalta Nabais (2005, p. 26) assinala que “os actuais impostos são um preço: o preço que todos, enquanto integrantes de uma dada comunidade organizada em estado (moderno), pagamos por termos a sociedade que temos.”
Esse dever fundamental de pagar tributos está alicerçado na ideia de cidadania fiscal e encontra seu fundamento no princípio da solidariedade, onde todos os membros da comunidade são chamados a contribuir com a coletividade, de acordo com a capacidade contributiva, e dizer sobre quanto de tributos estão dispostos a pagar. O cidadão possui o direito-dever de participar ativamente de qualquer reforma fiscal e ter o conhecimento de como o poder de tributar é exercido.
Ademais, todos os cidadãos devem ter uma opinião sobre os tributos, sendo este um tema demasiadamente “importante para ser deixado exclusivamente nas mãos de políticos e de técnicos (economistas)”. (NABAIS, 2005, p. 35).
Obviamente, o sistema tributário deve ser constituído com suporte nos ditames constitucionais e ter como norte os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, expressos no artigo 3º da Constituição. Esta não é, todavia, uma realidade brasileira, já que a Constituição estabelece o Estado Democrático de Direito marcado profundamente pela igualdade formal e material, comprometida com o estabelecimento de uma sociedade livre, justa e solidária. A Constituição definiu o sistema tributário consubstanciado no princípio da igualdade e da capacidade contributiva, para que o peso da carga tributária seja suportado de acordo com as condições pessoais de cada contribuinte.
A prática tributária brasileira, contudo, é exercida em sentido oposto ao preconizado na Constituição. Com amparo na influência do ideário neoliberal, a tributação brasileira provoca uma redistribuição de renda às avessas, na medida em que parcela da população com menor capacidade contributiva arca com fatia significativa da carga tributária. (BUFFON, 2009, p. 67)
Este quadro se verifica nas pífias correções aplicadas na tabela do Imposto sobre a Renda das Pessoas Físicas, nos baixos limites de isenção e nos vários lindes de deduções estabelecidos na legislação, que desvirtua o tributo sobre a renda (acréscimo patrimonial), ao ponto de tributar o próprio patrimônio do contribuinte. Acrescente-se a isso a expressiva tributação indireta, que retira recursos da população de forma invisível e indolor.
Hodiernamente, a tributação sobre os bens de consumo (bens e serviços) correspondeu a 49,73% de toda a arrecadação, e os tributos sobre a folha de salários chegaram a 26,53%, enquanto a tributação sobre a renda ficou em 17,84%. Tal fato significa exprimir que, no Brasil, tributa-se fortemente o consumo e o trabalho, enquanto a Constituição estabelece um sistema tributário fundado no princípio da capacidade contributiva.
Apesar de se reconhecer a existência deste verdadeiro défice democrático brasileiro – em que a maioria da população não tem grandes possibilidades de intervir no processo decisório, ao passo que grandes corporações fazem uso de lobby para influenciar as decisões políticas – é de suma importância que a população tenha consciência do que paga de tributos, do quanto paga e quem arca com maior ou menor parte dessa carga.
Nesse sentido, o princípio da transparência fiscal tem importância singular nesse debate, porquanto estabelece que toda atividade financeira deve ser desenvolvida de forma clara, aberta e simplificada, dirigindo-se tanto ao Estado quanto à sociedade. (TORRES, 1993, p. 125). Assim, não paira dúvida que é direito do consumidor em saber o quanto de fato está pagando pelos serviços e produtos adquiridos.
2 A TRIBUTAÇÃO NO DEBATE PÚBLICO
A cada anúncio da Receita Federal do Brasil sobre arrecadação, comuns são as manchetes dos mais diversos jornais do País, dando conta de um novo recorde de arrecadação. Não se vê tal ênfase, todavia, quando existe um recuo da arrecadação. Uma simples pesquisa no Google pelos termos “tributação” e “recorde” traz aproximadamente 272 mil resultados, o que demonstra como o tema é recorrente.
No cotidiano, são comuns os comentários críticos à tributação comparando o valor pago com os benefícios a serem recebidos em troca. Expressões como “tributos de primeiro mundo, benefícios de terceiro mundo” são corriqueiras. Nessas críticas também entram reclamações contra corrupção, problemas em infraestrutura em geral e a saúde deficitária.
Com efeito, no que diz respeito ao cumprimento destas promessas constitucionais, reconhecidamente, há muito a ser feito, mas, por outro lado, também existem diversas conquistas que merecem ser prestigiadas.
Com a finalidade de trazer à tona o montante de tributos arrecadados pelo Estado Brasileiro, foi criada uma parceria entre Associação Comercial de São Paulo (ACSP), Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo (FASP) e o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT) para lançar uma página na internet, no endereço www.impostometro.com.br, com a finalidade de consolidar os números de toda a arrecadação em tributos no País.
Nessa página da internet, também podem ser encontradas comparações interessantes com o que poderia ser feito com o valor total dos recursos arrecadados.
O sistema do “Impostômetro” (2020) faz a consolidação dos tributos arrecadados por todas as esferas de governo (Federal, Estadual e Municipal) com apoio das informações prestadas pelos diversos órgãos encarregados de administrar estes valores. Nesse somatório, estão incluídos os valores correspondentes aos impostos, taxas e contribuições, bem como as multas, juros e correção monetária incidentes.
Os dados do Impostômetro, entretanto, não podem ser utilizados como referência para apurar a carga tributária. Isso porque estão incluídos nesse cálculo o valor de multas, juros e correção monetária, o que, nos termos do artigo 3º do Código Tributário Nacional, não são considerados tributos. Estes valores são significativos porquanto somente em âmbito federal temos penalidades que podem chegar a 225% do valor do tributo, embora, no mais das vezes, estejam entre 75 % a 150 %).
Com origem nas informações prestadas pelo Impostômetro, foi lançada uma campanha pelo Dia da Liberdade de Impostos, que representa o dia desde quando se deixaria de trabalhar para pagar tributo. Em 2019, este dia foi comemorado no dia 03 de junho de 2019 em diversas cidades do País, quando foram realizadas promoções, comercializando mercadorias sem os “malfadados” tributos.
Ademais, apesar de ser um movimento importante que traz a tributação para o centro do debate, cabe a reflexão sobre a avaliação do peso da tributação para cada contribuinte. Isso porque o Dia da Liberdade de Impostos não é o mesmo para todos os brasileiros, sendo que, para alguns, ele deve ocorrer antes de 06 de junho e para outra parcela considerável de contribuintes ele seria comemorado bem depois.
Em contraposição ao Impostômetro, foi lançado pelo Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz) o sistema do Sonegômetro, que tem por objetivo apresentar o valor dos tributos sonegados, na página da internet www.quantocustaobrasil.com.br. É uma campanha que busca conscientizar a população do fato de que a carga tributária poderia ser reduzida, caso não existissem desvios ou sonegação.
Os números também impressionam, na medida em que estimam que o valor sonegado no ano de 2018 ultrapassou R$ 345 bilhões de reais e, da mesma forma que o Impostômetro, denota comparativos interessantes do que poderia ser feito com o valor dos recursos que deixaram de ingressar nos cofres públicos.
Com efeito, as cifras mostradas são previsões extraídas de estudo realizado pelo Sindicato, indicando que o percentual de 10% do PIB brasileiro seria informal. (SONEGAÇÃO no Brasil, 2019). O estudo reconhece a dificuldade de aferir exatamente o mercado informal, até porque se fosse possível ter conhecimento do valor exato sonegado, por que ele não estaria sendo cobrado?
Muito embora não seja um número fidedigno e exato, a campanha do Sonegômetro é importante para chamar a atenção sobre a sonegação fiscal, que ninguém em sã consciência declara que não existe.
Com base na contraposição destes dois lados, um pelo Fisco e outro pelos contribuintes, são veiculados pela mídia, e tem trazem repercussão na sociedade, muito embora o sentimento antifiscalista seja predominante.
Nas mídias nacionais, é pobre o debate da tributação do ponto de vista da justiça fiscal e de trazer à tona a distribuição justa da carga tributária, sob o prisma do princípio da capacidade contributiva. As matérias que cuidam dos tributos não se aprofundam em mostrar os reais problemas da tributação brasileira, conforme é apontado acima.
O debate é centrado apenas em concordar ou não com a carga tributária, apesar de já se ter formado um consenso de que não existe mais espaço para aumentar a tributação. Estudo realizado pela Receita Federal do Brasil indica que a carga tributária no ano de 2019 atingiu 35,17% do PIB, o que não pode ser considerado exorbitante, quando a França já teve 46% do seu PIB em tributos com a implementação das medidas sugeridas pela Teoria do Flat Tax. (DERZI, 2004, p. 75).
Outra publicação que merece ser comentada é uma reportagem no Jornal Zero Hora (2014) com a seguinte manchete: “Impostos cresceram 277% entre 2000 e 2013, mostra pesquisa, no mesmo período; a inflação medida pelo IPCA aumentou quase 138%”. Esta matéria divulga um estudo do Instituto Assaf (2013) sobre a carga tributária com suporte nos dados do Impostômetro.
A pesquisa chega ao percentual de 277,3% com a relação entre a carga tributária per capita do ano de 2000, que seria de R$ 2.086,21, e da de 2013, que seria de R$ 7.872,14. A reportagem também assinala que, no ano de 2000, foram arrecadados 350 milhões em tributos, enquanto em 2013 este valor seria de R$ 1,53 trilhão, que corresponderia a um aumento de 334%. Já o salário-mínimo, que em 2000 era de R$ 151,00 e passou para R$ 678, teria um aumento de 349%, mas a inflação medida pelo IPCA no período é de 137,9%, o que permitiu um aumento real de apenas 88,8%.
A matéria, então, busca fazer uma contraposição entre o aumento da arrecadação per capita (277,3%) e o aumento real do salário-mínimo (88,8%). Apesar de referir que o PIB também teve o incremento de 273,3%, o Jornal dá ênfase ao crescimento na carga tributária per capita.
Efetivamente, a carga tributária brasileira está em constante crescimento, pois estudo do IPEA indica que esta, de 1988 até 2012, cresceu 12 pontos percentuais no período, quando era de 23,4% do PIB. Já de 2002 a 2012, a carga tributária teve períodos de queda, mas manteve a tendência de alta, saindo de 32,0% em relação ao PIB em 2002, atingindo 35,5%, em 2012, segundo o estudo. (ORAIR et al, 2013)
Com efeito, o aumento da carga tributária não corresponde efetivamente aos 277,3% referidos na reportagem e no estudo. Isso porque a carga tributária é medida com origem na relação entre tudo o que foi arrecadado em tributos e o valor total do que foi produzido no País (PIB). O que efetivamente ocorreu foi o aumento na arrecadação, que acompanhou o crescimento do próprio PIB e o impacto da inflação.
Ademais, conforme exposto anteriormente, nos dados do Impostômetro, estão acrescidos os valores de multa, juros e correção monetária, o que tecnicamente não é considerado tributo e não poderia ser utilizado para aferir a carga tributária. Isso porque as multas, juros e correções decorrem de penalidades e sanções pecuniárias em virtude de descumprimento da lei em geral e são aplicadas, excepcionalmente, ao cidadão que não cumpre a lei, e, portanto, não poderiam ser confundidas com o tributo cobrado indistintamente de todos.
Outra matéria sobre a tributação foi publicada no portal G1.com (2019), dando conta de que o Brasil tem a segunda maior carga tributária da América Latina. A reportagem traz o estudo da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre a carga tributária dos países da América Latina no ano de 2018, onde o Brasil tem a carga tributária de 36,3% do PIB, enquanto a Argentina possui o maior peso de tributos, com 37,3%.
A matéria também esclarece que a média da carga tributária na América Latina é de 20,7% do PIB, enquanto a média de todos os países da OCDE é de 34,6%. O país membro da OCDE com a maior carga tributária é a Dinamarca, com 48% do PIB recolhido em tributos.
No contexto latino-americano, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) publicou o estudo intitulado “Não basta arrecadar: a tributação como instrumento de desenvolvimento”. O estudo tem por objetivo analisar a tributação da América Latina e apontar sugestões em matéria tributária para aumentar a arrecadação e competir pelo investimento privado. Isto, porém, não significa reduzir a carga tributária, mas o estudo reconhece a necessidade da América Latina em aumentar a tributação, com sistemas tributários mais simples e de bases amplas. (CORBACHO; FRETES CIBILS; LORA, 2012).
Cabe também referir a campanha promovida pelo Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco) denominada de Imposto Justo. Esta campanha tem por objetivo coletar assinaturas para o projeto de lei de iniciativa popular que visa a estabelecer que o reajuste na tabela do Imposto de Renda Pessoa Física seja feito com base na inflação, dentre outras medidas. (SINDIFISCO, 2014). Em síntese o projeto de lei:
[…] corrige a tabela do imposto de renda da pessoa física, que acumula perdas de 50% desde 1996, cria dispositivos para evitar defasagens por dez anos, aumenta de 3 mil para 12 mil reais o que pode ser deduzido de gasto com educação e ressuscita deduções com aluguel e juros da casa própria, abandonadas em 1998. Também propõe que os sócios de uma empresa paguem, como pessoas físicas, IR sobre o que recebem de dividendo (estão isentos desde 1996) e retoma a taxação de 15% sobre as remessas de lucros ao exterior, igualmente isentas há 17 anos. (SINDIFISCO, 2014).
Além dessa iniciativa, a campanha também traz para o debate a controvérsia da incidência do Imposto sobre Veículos Automotores (IPVA) sobre embarcações e aeronaves civis. Ocorre que somente os automóveis estão sendo tributados pelo IPVA, enquanto as embarcações marítimas (lanchas e barcos de luxo), aviões e helicópteros não são tributados.
Este debate decorre da interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento dos Recursos Extraordinários nº 255111, 134509 e 379572 sobre o alcance da expressão “veículos automotores” prevista no inciso III do art. 155 da Constituição. A Corte Suprema firmou o entendimento de que o campo de incidência fixado pela Constituição não inclui as aeronaves e embarcações marítimas, declarando inconstitucionais as legislações dos Estados de São Paulo, Amazonas e Rio de Janeiro, que previam a cobrança.
O Sindifisco (2014) propõe uma Emenda Constitucional que altere o art. 155 para que também sejam incluídos no campo de incidência os veículos aéreos e aquáticos, e não somente os terrestres. Esses veículos fora do âmbito de incidência são, normalmente, de propriedade de empresários, executivos e pessoas com alto poder aquisitivo sem serem objeto de tributação, enquanto o cidadão comum paga o tributo sobre seu automóvel.
A campanha promovida pela entidade sindical, todavia, não tem grande repercussão na mídia, sendo que as matérias sobre a campanha enfatizam os baixos limites de deduções do Imposto de Renda das Pessoas Físicas e o reajuste na tabela do referido imposto. Tal pode ser observado em matérias do Correio Braziliense (SANTOS, 2014) e do Diário Pernambucano (SINDIFISCO NACIONAL, 2014).
Com efeito, o problema estrutural da composição tributária passa ao largo dos debates lançados ao público em geral, sendo que não tem grande repercussão o estabelecimento de um sistema tributário progressivo. Além disso, não entra em discussão o fato de quem realmente arca com a carga tributária e tem seu patrimônio e os recursos destinados ao próprio sustento confiscados pelos tributos. Quem realmente suporta maior parte da carga tributária sequer a percebe ante a complexa, pesada e invisível tributação sobre o consumo.
Ademais, não restam dúvidas de que a progressividade no Imposto de Renda não consegue colaborar com a adequada redistribuição de renda, quando, ao receber R$ 4.463,81 já se ingressa na faixa máxima de tributação (27,5%) e, conforme esclarece Mizabel Derzi (2004, p. 75): “em um país em que a carga tributária repousa sobretudo nos impostos indiretos, que penalizam os mais pobres, e em que a distribuição de renda é severamente injusta, acentuar a regressividade do sistema tributário seria intolerável”.
Com a constatação da fragilidade do debate sobre a tributação e do descompasso do sistema tributário ante o núcleo principiológico da Constituição, parte-se para o estudo da transparência tributária e da viabilidade prática da Lei nº 12.741/2012 em colaborar para o amadurecimento do debate tributário no contexto normativo-constitucional.
3 TRANSPARÊNCIA TRIBUTÁRIA E O DIREITO DO CONSUMIDOR
No contexto normativo constitucional brasileiro, o exercício do poder de tributar também se impõe observar os contornos e objetivos fundamentais da República, mediante a elaboração de um modelo tributário progressivo e baseado na solidariedade e na capacidade contributiva. Apesar de a realidade tributária estar constituída no sentido oposto, o debate em torno do problema estrutural da tributação não é alçado ao público em geral e não encontra a repercussão que merece. Com essas constatações exploradas anteriormente, pretende-se abordar o princípio da transparência tributária e a possibilidade do efetivo cumprimento da Lei nº 12.741/2012, que intenta concretizar a aplicação deste princípio.
Com efeito, a transparência fiscal denota face dupla: uma dirigida ao Estado no sentido de combater a irresponsável gestão dos recursos públicos, desrespeito aos direitos fundamentais do contribuinte, corrupção dos agentes públicos e opacidade das informações financeiras; e outra relativa ao cidadão e às empresas, que vai de encontro à evasão fiscal, elisão abusiva, sigilo fiscal, para encobrir atos delituosos e corrupção ativa. (TORRES, 1993, p. 126).
Esse princípio ganhou destaque com a crise do Estado Social e foi impulsionado pelas teorias neoliberais. Estas privilegiavam um estado mínimo em favor de um mercado livre e alimentavam um antifiscalismo, que tinham como regra menos impostos, menos Estado e mais mercado. (DERZI, 2004, p. 72).
Com amparo neste princípio, várias leis foram criadas no mundo todo para combater práticas abusivas. No Brasil, apesar da resistência na implementação, pode-se mencionar como exemplos a Lei Complementar nº 104/01, que prevê a norma antielisiva, a Lei Complementar nº 105/01, estabelecendo os critérios para quebra do sigilo bancário, bem como a Lei Complementa nº 101/01, também conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal. Ainda pode ser acrescentada a Lei nº 12.846/2013, que prevê a responsabilidade civil e administrativa das pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública.
No âmbito estritamente tributário, o §5º do art. 150 da Constituição aufere destaque, na medida em que estabelece in verbis: “A lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre as mercadorias e serviços.”
Conforme esclarece Roque Antônio Carrazza (2009, p. 962), este dispositivo busca dar ao consumidor a noção exata da carga tributária que está suportando na condição de contribuinte de fato. Ou seja, busca elucidar o consumidor de montante de tributos que está embutido no preço do produto adquirido. Para o referido autor, esta medida terá o efeito de induzir os consumidores
[…] a assumir uma postura menos tolerante no que concerne à sonegação fiscal habitualmente realizada por maus comerciantes e inescrupulosos prestadores de serviços, que costumam deixar de emitir notas fiscais, não documentando, assim, a ocorrência do fato imponível tributário.
Apesar da regulamentação tardia do dispositivo constitucional pela Lei nº 12.741/2012, o consumidor consegue ter noção da carga tributária que está suportando como contribuinte de fato, muito embora não seja uma tarefa simples apurar o valor exato dos tributos embutidos no preço, ante os inúmeros tributos indiretos e a complexidade na apuração destes.
Com efeito, a Lei nº 12.741/2012 determina que deve ser indicado no documento fiscal, ou outro equivalente, o valor aproximado da totalidade dos tributos que influenciaram na formação do preço de venda de cada mercadoria comercializada ou serviço prestado. Nesse cálculo, devem ser computados o ICMS, ISS, IPI, IOF, PIS/PASEP, COFINS e CIDE, de acordo com o que for aplicado à operação. A determinação legal de que devem ser levados em conta sete tributos que podem influenciar no preço dos bens e serviços não deixa dúvidas da complexidade da tributação sobre o consumo e esclarece por que ela corresponde a 49,7% da carga tributária.
Precisar o valor de tributos que compõem o preço de venda é uma tarefa complexa e depende, principalmente, de que os fornecedores e os demais integrantes da cadeia comercial indiquem aos adquirentes o montante de tributos recolhidos em cada etapa de comercialização. Isso depende de total readequação da cadeia comercial para repassar a informação do montante de tributos recolhidos até a etapa de comercialização; tarefa que tem a dificuldade aumentada de forma exponencial no contexto brasileiro com diversos tributos incidentes, em distintas etapas de comercialização e com formas de apuração diferenciadas.
Destarte, essência da democracia, a transparência dos impostos ficou assegurada por este princípio constitucional, que prevê que a lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços. No caso brasileiro nosso Congresso Nacional deixou os cidadãos órfãos da citada lei por 25 anos. Somente no decorrer de 2013 o tema foi abordado pelo Congresso Nacional, mas a lei – inicialmente badalada na mídia – já caiu no esquecimento mesmo antes de completar um ano.
Regina Helena Costa afirmou que:
[…] tal dispositivo representa o primeiro ponto de toque entre a atividade tributante e o direito do consumidor. Pretende a Lei Maior seja o consumidor informado acerca dos chamados impostos indiretos, incidentes sobe as operações com os bens e serviços que venha a adquirir e que, portanto, têm seus valores embutidos nos preços. No sistema tributário vigente, são eles o IPI, o ICMS e o ISS. São denominados impostos indiretos por parte da doutrina, porque, neles, o contribuinte de jure – industrial, produtor, comerciante, prestador de serviço – repassa o impacto tributário par ao contribuinte de fato, evento conhecido como repercussão tributária.
Nesta esteira de raciocínio, a Lei nº. 12.741/2012 determinou, então, que deverá constar dos documentos fiscais ou equivalentes, a informação do valor aproximado correspondente à totalidade dos tributos federais, estaduais e municipais, cuja incidência influi na formação dos respectivos preços de venda, nos documentos emitidos por ocasião da venda ao consumidor de mercadorias e serviços, em todo território nacional.
À primeira vista, pode parecer que a lei em comento versa sobre matéria de natureza tributária, e os motivos para isto são claros: 1) trata-se de informação relativa a tributos (em que pese a Constituição Federal referir-se a impostos, a Lei foi mais ampla, incluindo em suas disposições algumas contribuições, como será visto oportunamente); 2) o artigo 150 da Constituição Federal, que norteou a criação da lei, faz parte do capítulo que dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional; 3) a observância da lei implica em interferência nas obrigações acessórias dos contribuintes, qual seja a forma de emissão dos documentos fiscais.
Entretanto, esta primeira impressão mencionada não é verdadeira, eis que a informação dos tributos na nota fiscal, implementada pela Lei nº. 12.741/2012 trata-se, na verdade, de assunto correlato ao Direito do Consumidor. Tanto é que a Lei nº. 12.741/2012 implementa alterações no Código de Defesa do Consumidor (CDC – Lei nº. 8.078/1990), e determina a aplicação das penalidades previstas no CDC àqueles que descumprirem suas disposições.
Todavia, como sistema tributário nacional é um emaranhado de tributos e de legislações das mais diversas, elaboradas por parte de cada ente tributante, que podem variar de acordo com o regime tributário escolhido pelo contribuinte e inúmeras distorções podem suceder no decorrer da cadeia comercial por conta dos diversos regimes tributários e das peculiaridades de cada tributo, muitas vezes os fornecedores não conseguem apresentar informações fidedignas sobre a carga tributária incidente sobre seus serviços ou seus produtos.
Entre os diversos regimes, pode-se mencionar as distorções ocorrentes no âmbito do PIS e da COFINS nos regimes de Lucro Real e Lucro Presumido, acrescidos da tributação monofásica e da substituição tributária; no regime do Simples Nacional, que neutraliza os efeitos da não cumulatividade em diversos tributos, como o IPI, ICMS, PIS e COFINS.
Com relação ao PIS e à COFINS, existem regimes de apuração diferenciados para as empresas do Lucro Real e Presumido, além de haver regimes especiais para produtos específicos submetidos a tributação monofásica e a substituição tributária para frente. Nas empresas submetidas ao Lucro Real, a apuração do PIS e da COFINS está submetida ao princípio da não cumulatividade, com alíquotas de 1,65% para o PIS e 7,6% para a COFINS sobre todas as receitas, com direito a aproveitamento de crédito da etapa anterior . Já as empresas do Lucro Presumido apuram as contribuições pelo regime cumulativo mediante a utilização das alíquotas de 0,65% para o PIS e 3% para a COFINS sobre o faturamento, e não mantêm direito a crédito. Aqui já se pode perceber as dificuldades de quantificar o valor exato de tributos embutidos no preço final pago pelo consumidor quando não se tem a informação das empresas envolvidas na cadeia comercial. Como são aplicadas alíquotas e regimes de apuração diferentes, não basta aplicar a alíquota ao valor das mercadorias para obter o valor de tributos envolvidos.
Ademais, no PIS e na COFINS, existem os regimes monofásicos para produtos específicos, como bebidas, cosméticos, medicamentos etc. Nesta forma de tributação, a incidência tributária ocorre somente na fase industrial com suporte numa vasta tabela de alíquotas em função do valor ou da quantidade. Como não há incidência nas demais fases da cadeia comercial, o comércio varejista somente tem condições de informar ao consumidor o valor dos tributos embutidos quando o fabricante lhe repassar a informação.
Na mesma linha funciona a substituição tributária para frente do PIS e da COFINS aplicada aos cigarros. A diferença consiste no fato de que a incidência atinge todas as fases da cadeia comercial, mas o valor já é recolhido e calculado pelo fabricante no momento da venda ao atacadista ou varejista, com a suposição do preço de venda ao consumidor; isso tudo sem que se observem as hipóteses de alíquota zero, suspensão, isenção imunidade, créditos presumidos e a discussão dos créditos admissíveis para o PIS e a COFINS, que lhe concedem o título de tributos mais complexos do Brasil.
Outra distorção envolvendo regimes de tributação no curso da cadeia comercial diz respeito ao Simples Nacional. Como é um regime unificado e especial de pagamento de tributos que incide sobre a receita bruta e não tem o condão de transferir créditos fiscais para a etapa seguinte, o Simples Nacional distorce o efeito da não cumulatividade no curso da cadeia comercial. O mesmo se dá na apuração pelo Lucro Presumido, no Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI e nas 27 legislações de ICMS de cada unidade da Federação.
Com efeito, o princípio da não cumulatividade surge como alternativa à incidência, em cascata, da tributação de produtos comercializados em várias etapas, mediante a compensação do valor devido com o valor pago na etapa anterior. Assim, somente existe o efetivo pagamento sobre o valor agregado em cada etapa da comercialização. Sobre a perversidade da cumulatividade, Alcides Jorge Costa (1979, p. 8) comenta que
O imposto de vendas multifásico cumulativo em cascata ressente-se de outro grave defeito: o de não constituir uma carga uniforme para todos os consumidores que são, afinal, quem o suportam. Este ônus será tanto maior quanto mais longo o ciclo da produção e da comercialização de cada produto. Como a essencialidade do produto não guarda relação alguma com a extensão do ciclo a que fica sujeito até chegar ao consumidor, pode acontecer – e acontecia muitas vezes – que o produto mais essencial seja o mais onerado. Por exemplo: jóias têm um ciclo de produção e comercialização normalmente mais curto que o de certos artigos de alimentação, como a carne.
O processo se dá no momento em que a cadeia comercial é influenciada por alguma mudança do regime tributário do contribuinte que restringe a apropriação do tributo pago na etapa anterior. No caso do Simples Nacional, se a indústria destacar o ICMS de 18%, e a empresa atacadista, optante pelo Simples Nacional, revender a mercadoria para o supermercado tributado pelo Lucro Real, este somente poderá se creditar do tributo pago pela atacadista em alíquotas inferiores ao regime normal de tributação, bem como deverá, na venda ao consumidor, recolher novamente os 18%. Assim, os 18% iniciais da indústria são embutidos no custo do produto, mas não é possível mensurá-lo, na medida em que o tributo destacado na nota fiscal do consumidor não reflete o total embutido no preço.
Em acréscimo a estas mudanças de regimes de tributação, que variam de acordo com cada contribuinte envolvido na cadeia comercial, deve-se ressaltar a quantidade de tributos que incidem na cadeia comercial e a grande quantidade de sujeitos ativos que podem exigir a cobrança do tributo, dando aso a conflitos de competência e dificultando o recolhimento adequado do tributo ao Ente público. Aqui podem ser citados os conflitos entre os limites de incidência entre o ISS e o ICMS, bem como, no caso do ISS, o município ao qual deve ser recolhido o tributo.
Toda essa complexidade também demonstra a falta de transparência da tributação brasileira, que sequer permite aferir o exato montante de tributos incluídos no preço de venda do produto ou serviço.
Nesse contexto, a informação da tributação indireta indicada nas notas fiscais, ainda que aproximada, tem importância no Estado brasileiro, com intensiva tributação sobre o consumo. Essa sistemática de tributação, intensamente alicerçada no consumo, faz com que a carga tributária seja distribuída de forma regressiva, desconsiderando a capacidade econômica do consumidor, que mesmo tendo menor capacidade contributiva arca com maior parte da carga tributária em comparação com quem tem essa maior capacidade. Isso porque, do total de rendimentos de cada contribuinte, aquele que recebe menos tem um percentual maior de seus rendimentos consumido pela tributação.
Dessa forma, a indicação da tributação indireta nos documentos fiscais é forma importante de auxiliar a trazer à tona o modelo de tributação brasileiro regressivo e que desconsidera a capacidade contributiva, muito embora não tenha a mesma notoriedade e o impacto social que as mais diversas matérias veiculadas nos meios de propagação coletiva, contando com a dificuldade da apuração correta dos valores embutidos nos preços dos produtos. Ademais, a indicação da tributação é a única forma que o consumidor pode ter seu direito á informação assegurado, cumprindo assim o quanto disposto na Carta da República.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
De tudo o que foi abordado, pode-se dizer que a tributação é uma necessidade inevitável para o financiamento do Estado, em razão da necessidade de dar cumprimento à gama de direitos e funções que lhe são atribuídas pela Constituição. Nesse aspecto, a obrigação fundamental de pagar tributos consiste no dever dos cidadãos em contribuir com a parcela que lhe cabe no bolo tributário, com suporte no princípio da solidariedade e na capacidade contributiva, bem como se constituiu na obrigação de tomar conhecimento de como o poder de tributar é exercido pelo Estado e quem efetivamente responde pela carga tributária.
Ademais, a Constituição fundamenta o sistema tributário no princípio da solidariedade, igualdade e capacidade contributiva, determinando que o peso da carga tributária seja suportado de acordo com as condições de cada contribuinte. Dessa forma, a Constituição não permite que parcela da população com menor capacidade contributiva arque com parte significativa do peso dos tributos.
O modelo tributário vigente, contudo, vai de encontro ao preconizado pela Constituição, na medida em que tributa intensamente o consumo, onerando sobremaneira os consumidores. A tributação passa a ser regressiva, promovendo uma redistribuição de renda às avessas, porquanto impõe a quem possui menor capacidade contributiva uma tributação mais elevada.
Efetivamente, o princípio da transparência fiscal tem muito a contribuir para esclarecer à população o quanto se paga de tributos nos bens de consumo, mediante a efetiva aplicação da Lei nº 12.741/2012. Esta legislação encontra seu maior obstáculo na complexidade da tributação sobre o consumo, o que aponta mais uma característica perversa da tributação brasileira, transposta à regressividade tributária: a impossibilidade de apurar a real carga tributária embutida no custo do produto. Assim, a complexidade da tributação sobre o consumo dificulta a própria transparência fiscal.
Portanto, as informações expressas e as discussões lançadas sobre a tributação deixam de denotar o efetivo papel que a tributação pode e deve exercer no Estado Democrático de Direito, sendo que a Lei nº 12.741/2012, que visou proteger o consumidor, pode significar um avanço, com a ressalva de que os valores indicados sempre serão aproximados, malgrado ainda não se tenha dado um passo adiante na discussão acerca da elaboração de um modo de tributar que esteja adequado à Constituição.
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¹A autora é juíza de direito vinculada ao Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba. Possui graduação pelo UNIPE – Centro Universitário de João Pessoa, sendo especialista em direito pela mesma instituição de ensino superior.