A TEORIA DO MÍNIMO EXISTENCIAL EM JOHN RAWLS: A BASE CONTEMPORÂNEA PARA O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10236127


Rodrigo Lima Marins1


1 INTRODUÇÃO

A implementação do ideal de justiça sempre se deparou com dados entraves, seja na própria sociedade, imbuída da satisfação de seus próprios anseios, seja na instituição estatal, cujo papel falho de agente interventor não implicou mudanças nas disparidades socioeconômicas. A necessidade da aquisição de direitos e garantias, que em um primeiro momento beneficiavam tão somente os altos estratos da política, ensejou graduais clamores da sociedade pela sua concretude.  

Aos poucos algumas mudanças foram inseridas legalmente; no entanto, ainda não era suficiente. Nesse primeiro período, a inserção em uma folha de papel dos direitos igualitários de todos perante as leis não implicou quaisquer alterações práticas. As manifestações políticas de opressão persistiam a ocorrer e o conceito de justiça parecia não ter sido estendido aos marginalizados.

Um Constitucionalismo apregoado como uma limitação ao exercício desmedido pelo próprio ente estatal e às atividades dos particulares, não passou de uma carta de intenções. Nessa conjuntura, o Estado de Direito balizava as suas bases de atuação, inobstante a exigência “a posteriori” de um posicionamento mais ativo pelo Estado, tenha dado azo ao surgimento dos direitos sociais.

Em um viés diametralmente oposto ao Estado de Direito, o Estado do bem-estar social traz consigo uma visão  assistencialista. A ideia do interesse público, inserido nos direitos coletivos, começa a ganhar forma e junto a ela, as políticas de ações afirmativas. Nesse contexto, a isonomia material começar a galgar os seus primeiros passos, cujo conteúdo assenta-se em tratar com diferenciação os desiguais. O filósofo John Rawls, ao tentar propor um modelo adequado de solução às injustiças, apresenta um discurso com fulcro na teoria do mínimo existencial.

O artigo em comento não tem a perspectiva de esgotar o assunto, até mesmo porque seria inviável devido à extensão do conteúdo, mas sim observar a aplicação dessa teoria desenvolvida por Rawls para embasar o princípio da capacidade contributiva no Direito Tributário.

A Constituição Federal de 1988, no bojo de seu artigo 145 § 1º, ao dispor sobre esse princípio, assevera a imposição de limites à capacidade contributiva  nos casos em que a  renda não superar o mínimo necessário à  subsistência. Há, portanto, uma evidente intersecção entre a teoria rawlsiana e o objeto de discussão do presente artigo. A metodologia deste artigo consistirá em estudo comparativo-dedutivo entre textos doutrinários e a jurisprudência firmada pelos tribunais superiores no tocante à reafirmação da existência do princípio de proteção ao mínimo ético existencial e os instrumentos de limitação ao poder de tributar do Estado. 

2 LIMITAÇÕES AO PODER DE TRIBUTAR 

A Constituição Federal estabeleceu explicitamente limitações ao exercício de tributar por parte dos governantes. Trata-se de uma garantia atribuída aos cidadãos pelo legislador com o escopo de evitar uma excessiva cobrança. Nas palavras de Sérgio Pinto Martins, “as limitações constitucionais ao poder de tributar são garantias do contribuinte contra o insaciável poder fiscal do Estado ( 2008 : 126).” 

Interessa-nos aqui, nesse primeiro ponto de análise, a aplicação dada pelo Art. 150 da CRFB/88, em seu inciso II1. Nesse dispositivo há a manifestação da justiça distributiva, ao reconhecer um tratamento diferenciado aos desiguais. De fato, representa uma flexibilização ao art. 5º da Constituição, haja vista que este se refere a uma isonomia formal e não material.

Portanto, assentando-se no princípio da isonomia tributária, seria inviável ao legislativo ou Executivo criarem formas de tributos que violassem a racionalidade e apresentassem um tratamento diferenciado aos iguais, desrespeitando esse preceito constitucional.

Insta observar a  importância concedida ao Judiciário na identificação de uma prática anti-isonômica pelo governo. Em que pese o princípio da isonomia tributária ser de ampla aplicação nos órgãos legiferantes , isso não exclui a sua apreciação pelo Judiciário, sobretudo porque o legislador dificilmente conhecerá as inúmeras facetas e peculiaridades fáticas que poderão surgir. Porém, não pode o Judiciário criar uma norma ao caso concreto, já que feriria a separação dos poderes. Nesse sentido, atuaria apenas como “legislador negativo”.2

2.1 Contextualização histórica 

A origem dos tributos é muito antiga. Há na Bíblia e em diversas partes do “Corpus Iuris Civilis” evidências de que já na Antiguidade presenciava-se a sua incidência. Porém, se buscará neste artigo aqui melhor delimitar a abordagem, partindo do contexto do Estado liberal burguês ( modernidade – após a Revolução Francesa). Nessa conjuntura, o surgimento da figura do Estado, enquanto entidade destinada a promover o atendimento às necessidades sociais, motivou a cobrança dos tributos. Trata-se na realidade de uma contraprestação: a sociedade concede um “pagamento” ao Estado e este retribui por meio da prestação de serviços públicos. 

Essa retribuição supramencionada é decorrente, sob a análise de uma perspectiva contratualista, da elaboração de um contrato social, 3 em que o homem abdica de sua liberdade em prol de um melhor convívio social. Destarte, ele próprio autoriza que o governante fixe os tributos. 

Entretanto, esse momento inicial é caracterizado pela amplitude de poderes os quais detinham os governantes. Assim sendo, a limitação na cobrança de tributos era claramente dificultada e detectava-se um poder eminentemente impositivo. Então, nesse viés é inconcebível qualquer abordagem direcionada a uma isonomia material, uma vez que imperava uma simetria contratual.

No Estado Democrático de Direito, de viés eminentemente social, no entanto, uma Constituição, enquanto núcleo essencial regulador das condutas sociais, emerge como limitadora do excesso de força dos governantes. Isso significa dizer que não poderia haver uma cobrança tributária incongruente com a ditada pela Carta Constitucional de 1988. Nessa esteira, é mister levantar o pensamento de Adam Smith, citado por Sérgio Pinto Martins: “ Adam Smith afirmava que a subordinação do cidadão ao governo deve se fazer na medida do possível, em proporção a sua capacidade de pagar”. (2008: 67) 

O pensamento de Smith reflete uma postura distributivista. Assim sendo, nota-se que o delineamento do princípio da capacidade contributiva, proveniente da isonomia tributária, começa a ganhar forma. Por conseguinte, vislumbra-se uma barreira que impede uma atuação desmedida na elaboração dos tributos, haja vista a necessidade do respeito à capacidade econômica dos contribuintes.

Hodiernamente, com as bases do constitucionalismo mais solidificadas, as limitações às cobranças tributárias tornaram-se mais visíveis, sob o respaldo de fundamentos como a teoria do mínimo existencial, sobre  a qual se pretende tratar com maior propriedade posteriormente.

2.2 Imunidade Tributária

Assim como determinados princípios que erigem a limitação de tributar do Estado, as imunidades fiscais também determinam essa não incidência. “Por meio da imunidade, a Constituição suprime parcela do poder fiscal, vedando que a União, os Estados-membros e os municípios criem tributos para certas pessoas, fatos ou coisas”  ( MARTINS, 2008: 129)  

Urge observar, que sob uma perspectiva positivista,  as imunidades devem estar ínsitas explicitamente no texto Constitucional . Nesse sentido, é vital a distinção entre imunidade e isenção, conforme o apresentado por Sacha Calmon Navarro Coêlho: “ O legislador só pode dizer que dado fato ou aspecto factual não é tributável através de lei   ( princípio da legalidade). Se usar a lei Constitucional, trata-se de imunidade, e se utilizar a lei infraconstitucional, cuida da isenção.” (2008: 174)  

Entretanto, apesar dessa postura positivista inicialmente abordada, é importante que se verifique a atual relevância dos Direitos Humanos, apresentando-se também como preceitos limitadores. Nessa vertente, o mínimo existencial adquire um elevado status , flexibilizando a interpretação dos dispositivos constitucionais e legais.

2.2.1. Mínimo Existencial

O Mínimo Existencial, teoria incipiente em nosso ordenamento jurídico, surgida após essa onda de direitos humanos  no Constitucionalismo contemporâneo, consiste no atendimento material do Estado aos indivíduos( prestação positiva), a fim de manter o mínimo necessário à subsistência.

Em que pese a prestação positiva pelo agente estatal, o mínimo existencial também engloba um não fazer , isto é, um “status negativus” 4, caracterizando uma estabilidade aos cidadãos frente a eventuais atitudes exorbitantes praticadas, vertical ou horizontalmente. Portanto, a liberdade de fazer ou de não fazer resulta em um dos fundamentos essenciais do mínimo existencial. Nesse diapasão, Ricardo Lobo Torres, um dos principais expoentes do assunto no Brasil, assevera: 

“ Sem o mínimo necessário à existência cessa a possibilidade de sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais da liberdade. A dignidade humana e as condições materiais da existência não podem retroceder aquém de um mínimo, do qual nem os prisioneiros, os doentes mentais e os indigentes podem ser privados. O fundamento do direito ao mínimo existencial, por conseguinte, reside nas condições para o exercício da liberdade, que alguns autores incluem na liberdade real, na liberdade positiva ou até na liberdade para ao fito de diferenciá-las da liberdade que é mera ausência de constrição.” (2008:69)

Como já mencionado anteriormente, o direito ao mínimo existencial não está disposto constitucionalmente de forma explícita. A sua efervescência dá-se a partir do momento em que se reconhece a abstração principiológica e uma consequente justiça social como norteadora da criação e aplicação das leis.

Além da liberdade, o mínimo existencial encontra amparo nos Direitos fundamentais sociais. De forma mais acurada, Ricardo Lobo Torres disciplina:

“ Os direitos sociais se transformam em mínimo existencial quando são tocados pelos interesses fundamentais ou pela jusfundamentalidade. A ideia de mínimo existencial, por conseguinte, coincide com a de direitos fundamentais sociais em seu núcleo essencial (2009: 42).”

Eximiamente em uma passagem posterior, o autor argumenta a redução do objeto dos Direitos Sociais ao Mínimo Existencial, implicando uma quantidade mínima de Direitos Sociais a fim de que o homem possa viver de forma digna: 

“ Em síntese, a jusfundamentalidade dos direitos sociais se reduz ao mínimo existencial, em um duplo aspecto de proteção negativa contra a incidência de tributos sobre os direitos sociais mínimos de todas as pessoas e de proteção positiva consubstanciada na entrega de prestações estatais materiais em favor dos pobres.” ( 2009: 80-81)

Uma questão que já ocasionou debates jurisprudenciais, envolvendo a teoria do Mínimo Existencial, refere-se à aplicação da teoria da Reserva do Possível. Esta abordagem alude à possibilidade de o poder público se eximir de dadas prestações aos cidadãos por considerá-las inviáveis em decorrência de limitações orçamentárias. Porém, entende-se que assuntos relativos a direitos humanos,  como a saúde, educação, vida, devem ser minimamente assegurados, sem qualquer alegação de impossibilidade de cumprimento pelo poder público.5

2.3 A capacidade contributiva e o mínimo existencial: uma intersecção necessária

O princípio da capacidade contributiva está intrinsecamente relacionado à justiça distributiva. Sob o contexto do Estado Democrático de Direito, não há mais como reconhecermos que todos são iguais, em quaisquer circunstâncias. Daí compreende-se a capacidade contributiva como um postulado essencial na concretização de valores mínimos à subsistência. Em que pese o princípio obter grande notoriedade atualmente, a sua essência começou a ser discutida em contextos prévios. 

Partindo-se da análise das prévias Constituições brasileiras, a Constituição de 1946 foi a primeira a delinear a capacidade contributiva de forma similar a que  se conhece em nossa atual Constituição. Assim, dispunha: “ os tributos terão caráter pessoal sempre que isso for possível e serão graduados conforme a capacidade econômica do contribuinte.” 6

Na ditadura militar, no entanto, com a edificação da Emenda Constitucional de 1965 e reiterado pela Carta Constitucional de 1967, suprimiu-se o referido princípio. Inobstante essa omissão, muitos ainda entendiam  a possibilidade de uma cobrança diferenciada de tributos com base em critério econômico, já que a Constituição não excluiu a análise dos princípios por ela adotados. 

A atual Constituição, em seu Art. 145, parágrafo 1º, dispõe sobre essa capacidade econômica. Na primeira parte do dispositivo, afirma o caráter de pessoalidade, isto é, a indisponibilidade da incidência do imposto. 

Aduz o douto Sacha Calmon:  

“ O caráter pessoal a que alude o constituinte significa o desejo de que a pessoa tributada venha a sê-lo por suas características pessoais( capacidade contributiva), sem possibilidade de repassar o encargo a terceiros. Essa impossibilidade de repassar, transferir, repercutir o encargo tributário é que fecunda a classificação dos impostos em diretos e indiretos.”( 2008: 84)

Importante observação alude à expressão “ sempre que possível” ,no início do parágrafo, a qual poderia conduzir uma interpretação equivocada de seu sentido, conforme preleciona Hugo de Brito Machado :

“É certo que a expressão “sempre que possível”, utilizada no início do mencionado dispositivo, pode levar o intérprete ao entendimento segundo o qual o princípio da capacidade contributiva somente será observado quando possível. Não nos parece, porém, seja essa a melhor interpretação, porque sempre é possível a observância do referido princípio. A nosso ver, o “sempre que possível”, do § 1º do art. 145, diz respeito apenas ao caráter pessoal dos tributos, pois na verdade nem sempre é tecnicamente possível um tributo com caráter pessoal.” ( 2004: 52)

Esse princípio, embora implícito no Texto Supremo, ao que parece, vincula o Legislativo e o Judiciário, haja vista que valores  superiores como a igualdade e a dignidade da pessoa humana não podem ser rechaçados. Inclusive, vale mencionar, que caso o Legislativo desrespeite essa diretriz na criação de uma lei, é perfeitamente cabível uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, por meio das figuras insculpidas no art. 103 da CRFB/ 88. 7

Esse posicionamento de vinculação dos poderes não é pacificado pela  doutrina. Adota-se aqui a corrente majoritária por crer-se na impossibilidade do Legislativo e  Executivo atuarem em oposição à capacidade contributiva, por se tratar de um princípio pragmático no Direito Tributário. Daí a controvérsia quanto a definição da natureza jurídica da capacidade contributiva. ( MARTINS, 2008: 69-70)

Outra questão em que há divergências é se a aplicação desse princípio envolveria apenas os impostos, consoante disposição Ipsis Litteris da Constituição Federal. Entendeu o STF que a Constituinte deu preferência aos impostos, haja vista a sua influência na capacidade de gastos dos contribuintes, porém a sua aplicação não pode ficar a eles adstrita.8

2.3.1 Visconde de Cairu e a  inserção da capacidade contributiva no Brasil

José da Silva Lisboa, também conhecido como Visconde de Cairu, foi um economista que desempenhou uma importante atuação no país, sobretudo, possibilitando que se alavancasse o processo de independência política, em 1822.

Inspirado claramente pelos ideais Smithianos do liberalismo,  Lisboa escreveu a obra Princípios da Economia Política. Há de se observar a sua influência no processo de abertura dos portos, em 1808, apresentando tal medida como fundamental para o estímulo da economia, sob o prisma do laissez faire. 

Ao analisar o papel que o Estado desempenharia na Economia, Lisboa traz à baila três principais funções que deveria o ente estatal efetuar. Peço Vênia para transcrevê-las: 

“Conforme a este sistema de liberdade natural, o Soberano tem somente três deveres, que são de grande importância na verdade, mas planos e inteligíveis aos entendimentos ordinários:1º o dever de proteger o Estado de violência e invasão de outros Estados independentes; 2º o dever de proteger, quanto for possível, a cada membro do Estado da injustiça ou opressão de qualquer outro membro, estabelecendo a mais exata administração da justiça;  3º o dever de erigir e manter certas obras e instituições públicas, que não podem ser do interesse de qualquer indivíduo, e nem ainda de certo número de indivíduos, o erigir e manter, visto que o proveito não poderia reembolsar o custo, como aliás freqüentemente se reembolsa a benefício de toda a Nação […] (Lisboa, 1956, p. 172).” ( grifo nosso)9

Destarte, como salientado no art. 2º do trecho transcrito, verifica-se o primordial papel do Estado no desempenho de prestação da justiça aos cidadãos. Nota-se, então, a importância que o pensamento do Visconde de Cairu trouxe para a inserção da capacidade contributiva no ordenamento jurídico brasileiro, embora de forma tímida. Prova disto está na Constituição de 1824, a qual estabeleceu a seguinte redação em seu art. 179 § 15: “ninguém será isento de contribuir para as despesas do Estado na proporção dos seus haveres.” 

Complementando essa explanação, Ricardo Lobo Torres afirma que as bases da capacidade contributiva encontram-se presentes por meio da influência de Visconde de Cairu( 2008:93):

“ No Brasil as vicissitudes da ideia da capacidade contributiva acompanharam as do pensamento universal. Ingressou com a Constituição do nosso Estado Fiscal no início do século passado, cabendo ao Visconde de cairu captar os princípios lançados na obra de Adam Smith.”  ( 2008: 93) 

3.A JUSTIÇA COMO EQUIDADE: O MODELO PROPOSTO POR JOHN RAWLS

A teoria de John Rawls assenta-se sobre uma dupla base principiológica da abordagem da justiça. O primeiro princípio por ele mencionado refere-se à liberdade que deve ser a todos concedida indistintamente. Portanto, a liberdade de expressão e de voto,  exemplos dados pelo próprio autor, refletem uma isonomia formal dentro do modelo de justiça.

Em um segundo momento, Rawls direciona o seu discurso para a desigualdade de renda e de bens, propondo uma distribuição de tal forma que a justiça distributiva seja alcançada. Segundo suas próprias palavras:

“Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais extenso de iguais liberdades fundamentais que seja compatível com um sistema similar de liberdades para as outras pessoas; segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem estar dispostas de tal modo que tanto (a) se possa razoavelmente esperar que se estabeleçam em benefício de todos como (b) estejam vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos.” (2008: 73)

Urge enfatizar a distribuição equânime de riquezas, conforme salientada acima, a qual o filósofo convencionou denominar princípio da diferença. Nessa perspectiva, Rawls afirma que o preceito de justiça não está apenas em uma igualdade plena, mas também em uma desigualdade tolerável, isto é, a favor dos menos privilegiados. Em suas palavras, “ segundo o princípio de diferença, só é justificável se a diferença de expectativas for vantajosa para o indivíduo representativo que está em pior situação, neste caso o trabalhador não qualificado representativo.” (2008: 94)  

Em seu discurso, evidencia-se claramente uma perspectiva comunitarista. A superação da pobreza e da miséria infla a sua teoria de aspectos marcadamente distributivistas. Nesse sentido, afirma Vânia Cardoso da Motta:

“Segundo Semearo, a corrente comunitarista foi desencadeada nos Estados Unidos, contrapondo-se ao projeto de renovação do liberalismo dos anos 1970,e teve início com as reflexões de J. Rawls na obra A Theory of justice. Mais tarde, outros autores buscaram revitalizar os paradigmas mais radicais do liberalismo e, com base na tradição liberal do contratualismo, procuram ‘justificar teoricamente as instituições sociais e políticas do estado constitucional democrático’ ”. ( 2012: 153)   

3.1. Críticas ao Utilitarismo

A influência que Rawls imprimiu para a compreensão do significado de justiça foi expressiva. A sua atuação deu-se em um contexto no qual foram rechaçados os ideais positivistas e utilitaristas detectando-se uma maior imbricação entre o Direito e a Moral. Assim sendo, surgiram determinados direitos erigidos à categoria de fundamentais.

O  utilitarismo, cujo expoente máximo é J. Bentham,  é uma corrente que defende a maximização da felicidade como um mecanismo de melhor realizar as distribuições materiais aos membros da sociedade, enquadrando-se como uma doutrina consequencialista. Dessa forma, propõe Rawls um modo alternativo para a fundamentação do conceito de Justiça.

Rawls atribui ao utilitarismo uma insensibilidade às injustiças. Não seria possível afirmar que uma situação é justa com parâmetro no saldo líquido de felicidade, já que a felicidade geral implicaria sacrificar direitos de outros indivíduos, realizando uma distribuição que colidiria com os ditames da justiça. Dessarte, o teórico propõe uma justiça distributiva, a qual estivesse mais preocupada com os direitos sociais como aspectos centrais e não como instrumentos para se alcançar o fim último, qual seja, o bem-estar-social.

Nessa esteira, Amartya Sen , coadunando com os ideais rawlsianos,  em sua obra Desenvolvimento como Liberdade,  expõe as limitações da perspectiva utilitarista:

Indiferença distributiva: o cálculo utilitarista tende a não levar em consideração desigualdades na distribuição da felicidade( importa a soma total, independentemente do quanto sua distribuição seja desigual). Podemos estar interessados na felicidade geral e contudo desejar prestar atenção não apenas nas magnitudes “agregadas”, mas também nos graus de desigualdade na felicidade; Descaso com os direitos, liberdade e outras considerações desvinculadas da utilidade: a abordagem utilitarista não atribui importância intrínseca a reivindicações de direitos e liberdades( eles são valorizados apenas indiretamente e somente no grau em que influenciam as utilidades). É sensato levar em consideração a felicidade, mas não necessariamente desejamos escravos felizes ou vassalos delirantes; Adaptação e condicionamento mental: nem mesmo a visão que a abordagem utilitarista tem do bem-estar individual é muito sólida, pois ele pode facilmente ser influenciado por condicionamento mental e atitudes adaptativas.” ( 2010: 88-89) 

3.2. Mas afinal, como alcançar a justiça?

A teoria em John Rawls preocupa-se com a resolução dos seguintes dilemas: o que é justo? Como alcançar a justiça?  A fim de responder essas indagações e fincar os postulados da justiça, Rawls assenta-se em uma situação hipotética, assemelhada ao estado de natureza, denominada de Posição Original. Nesse caso, utilizando-se de um método analítico-reflexivo, Rawls imagina como as pessoas criariam as leis para reger a sociedade se elas fossem almas não materializadas. Partindo-se do pressuposto de que essas almas não conheceriam a realidade à qual seriam direcionadas, em que pese serem racionais, como criar as regras da sociedade?

A fim de responder a essa pergunta, propôs o filósofo que as pessoas vestissem o “véu da ignorância”, isto é, elas desconheceriam as vantagens e desvantagens da vida material. Daí, decorre a lógica da criação de preceitos pautados na equidade, isto é, proporiam todos a criação de regras que privilegiassem a igualdade. A justiça seria, então, anterior ao surgimento das instituições.

Rawls acredita ser essa maneira a única para se atingir os ideais de Justiça, já que o homem por si só é egoísta e tende a promover a desigualdade. Daí, a necessidade de uma cooperação social e de formação de um contrato. Esse pacto, no entanto, diferentemente do contratualismo moderno, não está caracterizado pela arbitrariedade e poder de imposição do governante.

A emergência das instituições, enquanto instrumentos essenciais para a efetivação da justiça dar-se-á apenas após a posição original e escolha dos princípios que conduzirão a um primeiro processo. Nessa sequência, alguns estágios deverão ser observados, totalizando quatro, quais sejam: Convenção Constituinte e elaboração de uma Constituição Justa; legislatura e elaboração de uma legislação justa; aplicação das regras a casos particulares pelo Executivo e judiciário. 10      

3.3  O mínimo ético existencial e a teoria da justiça distributiva: o elo da capacidade contributiva e sua influência no desenvolvimento econômico

A justiça, nos dias atuais, perdeu o aspecto predominantemente positivista, o qual atrelava as questões do justo ou injusto à obediência legal. Portanto, postulados como a dignidade da pessoa humana e o atendimento ao mínimo vital destacaram-se como diretrizes à criação, execução e aplicação das leis.

No âmbito do Direito Tributário, o princípio da capacidade contributiva demonstrou a preocupação do Estado em construir essas bases de apoio social. O conceito de humanização insurgiu nessa conjuntura, haja vista a necessidade de minimização das desigualdades  decorrentes do individualismo.

A capacidade contributiva, então, representa a junção do mínimo existencial com esse novo ideal de justiça, pautado na distributividade.

Cabe mencionar que o legislador com o escopo de estimular o desenvolvimento econômico, não atribuiu a aplicação desse princípio apenas às pessoas naturais, mas também às empresas 11. É evidente que  benefício será concedido a empresas com menores portes, uma vez que seria ilógico grandes empresas, com elevado faturamento, ficarem isentas de contribuir. 12  

4.CONCLUSÃO

A Justiça não é um conceito fácil de ser depreendido e se situa em uma zona de instabilidade, haja vista as diferentes significações que perpassaram no decorrer dos tempos e ainda hoje vigem.  

Nesse sentido,  a abordagem de John Rawls é inovadora por abarcar no conceito de Justiça não apenas uma simetria contratual, mas também a consideração de desigualdades socioeconômicas, que implicam a impressão da distributividade. Portanto, hodiernamente, há exemplos inteligíveis da tentativa de concretização de sua teoria, como nas políticas de ações afirmativas.

Em sua obra Uma Teoria da Justiça, Rawls esquematiza a necessidade de se tutelar o Mínimo Existencial, para que seja viabilizada uma igualdade de oportunidades. Para isso, enfatiza a necessidade do governo de incentivá-la por meio de políticas públicas.

Um desses tratamentos diferenciados concedidos pelo legislador Constitucional é o princípio da capacidade contributiva. Em outras palavras, cada qual deverá contribuir proporcionalmente à sua renda, obstaculizando que os pobres sofram um maior ônus pelas cargas tributárias.

Enfim, é perceptível a imbricação entre esses conceitos. A implementação da capacidade contributiva somente tornou-se viável após o entendimento de que o mínimo existencial à sobrevivência deveria ser assegurado, refletindo a dignidade da pessoa humana. Não há, portanto, como desvincularmos a importância teórica empreendida por Rawls na fixação das bases contemporâneas da capacidade contributiva.  


1 Art. 150. “Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios (…) II- instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”

2.  Assevera ALEXANDRINO, Marcelo e PAULO, Vicente: “ Segundo o STF, o Judiciário só pode atuar como “legislador negativo”, negando aplicação de determinada lei ou norma a um caso concreto, ou até mesmo retirando-a do mundo jurídico, no caso de Controle abstrato de constitucionalidade. Não pode o Judiciário, entretanto atuar “criando norma legal”, o que ele estaria fazendo se entendesse um benefício ou vantagem legal a um grupo não alcançado pelo texto da lei.” Manual de direito tributário. 5 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007.

3. Jean Jacques Rousseau já evidencia tal perspectiva em seu “Contrato Social” : “o que o homem perde pelo contrato social, é sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo o que o tenta e pode alcançar, o que ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui.” (2003:37)

4.  Jellinek propõe uma teoria na qual estabelece quatro status em que o indivíduo poderá se situar em face do Estado. Nesse sentido, o doutrinador Pedro Lenza conceitua claramente : “ status passivo ou subjectionis –  o indivíduo se encontra em posição de subordinação aos poderes públicos, vinculando-se ao Estado por mandamentos e proibições. O indivíduo aparece como detentor de deveres perante o Estado; status negativo – O indivíduo, por possuir personalidade, goza de um espaço de liberdade diante das ingerências dos Poderes Públicos. Nesse sentido, podemos dizer que a autoridade do Estado se exerce sobre homens livres; status positivo ou status civitatis – o indivíduo tem o direito de exigir que o Estado atue positivamente, realizando uma prestação a seu favor; status ativo – o indivíduo possui competências para influenciar a formação da vontade do Estado, por exemplo, pelo exercício do direito do voto exercício de direitos políticos.”  ( 2011: 867)

5.  Para fins de melhor especificação, transcreve-se esse antagonismo existente: “A destinação de recursos públicos, sempre tão dramaticamente escassos, faz instaurar situações de conflito, quer com a execução de políticas públicas definidas no texto constitucional, quer, também, com a própria implementação de direitos sociais assegurados pela Constituição da República, daí resultando contextos de antagonismo que impõem, ao Estado, o encargo de superá-los mediante opções por determinados valores, em detrimento de outros igualmente relevantes, compelindo, o Poder Público, em face dessa relação dilemática, causada pela insuficiência de disponibilidade financeira e orçamentária, a proceder a verdadeiras “escolhas trágicas”, em decisão governamental cujo parâmetro, fundado na dignidade da pessoa humana, deverá ter em perspectiva a intangibilidade do mínimo existencial, em ordem a conferir real efetividade às normas programáticas positivadas na própria Lei Fundamental. ( grifo nosso)”. ARE 639.337 AgR / SP. Min relator: Celso de Mello.

6.  O artigo 202 da Constituição de 1946 dispunha: “Os tributos terão caráter pessoal, sempre que isso for possível, e serão graduados conforme a capacidade econômica do contribuinte”. Portanto, podemos considerar que o ingresso do princípio da capacidade contributiva no ordenamento jurídico brasileiro ocorreu de forma clara com a referida disposição na Constituição de 1946. 

7.  Nessa perspectiva, argumenta Hugo de Brito Machado: “ Tal como acontece com a inobservância de qualquer outro princípio constitucional, também a inobservância, pelo legislador, do princípio da capacidade contributiva pode ser objeto de controle tanto por ação direta, promovida perante o Supremo Tribunal Federal, por uma das pessoas indicadas no art. 103 da vigente Constituição Federal, como em qualquer das ações nas quais ordinariamente são apreciadas as questões tributárias.” ( 2004: 52-53) 

8. Para melhor aprofundamento verifica-se o posicionamento do STF : “A taxa de fiscalização da CVM, instituída pela Lei nº 7.940/89, qualifica-se como espécie tributária cujo fato gerador reside no exercício do Poder de polícia legalmente atribuído à Comissão de Valores Mobiliários. A base de cálculo dessa típica taxa de polícia não se identifica com o patrimônio líquido das empresas, inocorrendo, em consequência, qualquer situação de ofensa à cláusula vedatória inscrita no art. 145, § 2º, da Constituição da República. O critério adotado pelo legislador para a cobrança dessa taxa de polícia busca realizar o princípio constitucional da capacidade contributiva, também aplicável a essa modalidade de tributo, notadamente quando a taxa tem, como fato gerador, o exercício do poder de polícia” ( grifo nosso).  RE 216.259-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19/05/00 

9. LISBOA, José da Silva. Princípios de economia política. Edição comentada e anotada por L. N.Paula. Rio de Janeiro: Pongetti, 1956 (edição original de 1804). Disponível em :  <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/face/article/view/308/245>  Acesso em : 28 de Junho de 2013

10. DUTRA, Delamar José Volpato; ROHLING, Marcos. O Direito em uma teoria da justiça de Rawls. p.7.Disponível em:< http://www.ufpel.edu.br/isp/dissertatio/revistas/34/03.pdf>  Acesso em: 27 de Junho de 2013.

11.  Afirma YUNUS, Muhammad : “ Se o governo estiver convencido de que as empresas sociais assumiram uma função que era tradicionalmente do Estado, então faria sentido, do ponto de vista econômico, estimulá-las por meio da isenção de impostos. Parece razoável oferecer às empresas sociais um tratamento tributário diferenciado em retribuição à redução da carga tributária com que os contribuintes normalmente arcam.” ( 2008:185)

12. O desenvolvimento econômico deve ser fomentado pelo Estado com a redução da cobrança de tributos , porém essa é uma prerrogativa que não deve ser estendida a todas as empresas. Verifica-se isso nas palavras de MACHADO, Hugo de Brito: “ É certo que nossa Constituição contém regras no sentido de que o desenvolvimento econômico e social deve ser estimulado (art. 170), e especificamente no sentido de que a lei poderá, em relação à empresa de pequeno porte constituída sob as leis brasileiras, e que tenham sua sede e administração no País, conceder tratamento favorecido( art. 170, IX) (…) isenção de imposto de renda a empresa industrial,a pretexto de incrementar o desenvolvimento regional, sem qulaquer consideração ao montante do lucro auferido, constitui flagrante violação do princípio da capacidade contributiva(…).” (2004: 53) 


5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

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1Graduado em Direito pela UFF (2011-2016). Especialista em Direito Civil e Processual Civil. Técnico de Atividade Judiciária do TJRJ. Assessor de Juiz