A RESPONSABILIZAÇÃO DA CADEIA PRODUTIVA E O TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10819240


Verônica Fleury Pavan Roriz dos Santos1


RESUMO

A exploração de trabalho em condições análogas à escravidão em cadeias produtivas, entendidas como modelo de produção fragmentado em etapas designadas a vários produtores contratados por uma empresa líder do processo, responsável pela marca e comercialização do produto.  A existência de trabalho escravo, em regra, é observada nas pequenas e médias empresas intermediárias da cadeia. Porém, é possível a responsabilização jurídica da empresa do topo, que detém o poder econômico dominante.

ABSTRACT

The exploitation of labor in conditions analogous to slavery in production chains, understood as a fragmented production model in stages assigned to several producers hired by a leading company in the process, responsible for the brand and marketing of the product. The existence of slave labor, as a rule, is observed in small and medium-sized companies intermediary in the chain. However, it is possible to hold the top company, which holds the dominant economic power, legally responsible.

INTRODUÇÃO

A partir da promulgação do atual instrumento normativo, o trabalho, então, passou a ser valorizado e considerado um dos princípios centrais da democracia brasileira, consistindo em uma das formas mais expressivas de afirmação do ser humano2.

O combate ao trabalho escravo é objeto da normativa internacional de direitos humanos (Convenção de Genebra de 1956), sendo considerado princípio fundamental do trabalho (Declaração da OIT de 1998), de modo que as Convenções 29 e 105 da OIT sobre o tema são “core obligations”.

No entanto, a escravidão tradicional, abolida formalmente pela Lei Áurea (1888) e pautada no exercício dos atributos da propriedade sobre o trabalhador, é substituída pela escravidão contemporânea, a qual contempla diversas condutas violadoras da dignidade humana pela coisificação do ser humano (art. 149, CP; Portaria 671 e IN 2 do MTP).

Nesse contexto, destaca-se a exploração de trabalho em condições análogas à escravidão em cadeias produtivas, entendidas como modelo de produção fragmentado em etapas designadas a vários produtores contratados por uma empresa líder do processo, responsável pela marca e comercialização do produto.

A existência de trabalho escravo, em regra, é observada nas pequenas e médias empresas intermediárias da cadeia. Porém, é possível a responsabilização jurídica da empresa do topo, que detém o poder econômico dominante.

1. CONCEITOS

1.1 Escravidão

Escravidão, em sentido estrito, consiste no estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade3.

1.2 Servidão

Condição de qualquer um que seja obrigado pela lei, pelo costume, por um acordo ou em razão de dívidas contraídas com o tomador de seus serviços, a viver e trabalhar numa terra a este pertencente ou a fornecer-lhe, contra remuneração ou gratuitamente, determinados serviços, sem poder mudar sua condição4.

1.3 Trabalho forçado ou obrigatório

Em linha de princípio, é todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade5.

A expressão “trabalho forçado ou obrigatório” não compreende, entretanto:

a) qualquer trabalho ou serviço exigido em virtude de leis do serviço militar obrigatório com referência a trabalhos de natureza puramente militar;

b) qualquer trabalho ou serviço que faça parte das obrigações cívicas comuns de cidadãos de um país soberano,

c) qualquer trabalho ou serviço exigido de uma pessoa em decorrência de condenação judiciária, contanto que o mesmo trabalho ou serviço seja executado sob fiscalização e o controle de uma autoridade pública e que a pessoa não seja contratada por particulares, por empresas ou associações, ou posta à sua disposição;

d) qualquer trabalho ou serviço exigido em situações de emergência, ou seja, em caso de guerra ou de calamidade ou de ameaça de calamidade, como incêndio, inundação, fome, tremor de terra, doenças epidêmicas ou epizoóticas, invasões de animais, insetos ou de pragas vegetais, e em qualquer circunstância, em geral, que ponha em risco a vida ou o bem-estar de toda ou parte da população;

e) pequenos serviços comunitários que, por serem executados por membros da comunidade, no seu interesse direto, podem ser, por isso, considerados como obrigações cívicas comuns de seus membros, desde que esses membros ou seus representantes diretos tenham o direito de ser consultados com referência á necessidade desses serviços.

1.4 Trabalho decente

Considerando a Declaração da OIT de 1998 sobre Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho, a Declaração da OIT de 2008 sobre uma Globalização Mais Justa e Equânime, o Pacto Global de Empregos e a Agenda do Trabalho Decente, José Cláudio Monteiro de Brito Filho define como decente o trabalho em que se realiza “um conjunto mínimo de direitos do trabalhador que corresponde: à existência de trabalho; à liberdade de trabalho; à igualdade no trabalho; ao trabalho com condições justas, incluindo a remuneração, e que preservem sua saúde e segurança; à proibição do trabalho infantil; à liberdade sindical; e à proteção contra os riscos sociais”6.

Trata-se, portanto, de um conceito doutrinário e crítico, e não de um conceito positivo-analítico.

1.5 Trabalho indigno

Outro conceito crítico, tratar-se-ia do trabalho contrário à agenda do trabalho decente; a antítese do trabalho decente.

1.6 Trabalho em condições análogas à de escravo

É o trabalho escravo vertido em linguagem juspositivista penal. Para o STF, “a escravidão é um estado de direito pelo qual o homem perde, por lei, sua personalidade. O ordenamento jurídico pátrio não reconhece tal estado, por isso não há escravidão no Brasil e nem crime que reduza a condição de escravo, mas a condição análoga à de escravo, ou seja, a algo semelhante”7.

Assim, sob o viés penalista, conforme art. 149 do Código Penal, o trabalho em condição análoga à de escravo é gênero que se revela por uma das seguintes espécies:

A) trabalho forçado;

B) trabalho sob jornada exaustiva;

C) trabalho em condições degradantes;

D) trabalho com imposição ao trabalhador de restrição de locomoção em razão de dívida (truck system), o que pode ser operacionalizado por qualquer meio; e

E) trabalho com imposição ao trabalhador de retenção compulsória no local de trabalho, o que o empregador pode externar por três formas: cerceamento do uso de meio de transporte; vigilância ostensiva ou apoderamento de documentos ou objetos pessoais.

2. RESPONSABILIDADE EM CADEIA DE FORNECEDORES

2.1 O perfil do direito do trabalho

Pensemos na seguinte cadeia produtiva: Grife, Confecção e Oficina, isto é, a Grife vende uma calça a R$ 150,00. Encomenda seu fornecimento a uma Confecção, pagando-lhe R$ 40,00. A Confecção conta com poucos costureiros extremamente capacitados chamados “piloteiros”, que são encarregados da elaboração de uma peça piloto. Aprovada a peça piloto pela Grife, a Confecção fornece o modelo e encomenda as calças à Oficina, pagando-lhe R$ 6,00 a peça. A Oficina passa o trabalho a seus costureiros, remunerando-os por R$ 2,00 peça.

O primeiro dado relevante é o seguinte: no preço praticado pela Grife não há, necessariamente, dumping social. O segundo dado relevante: estamos no contexto do façonismo: um histórico modelo de produção no setor de costura; uma materialização da chamada terceirização modular, material, externa ou de etapas da cadeia produtiva.

O terceiro dado relevante: uma atuação em nível de Oficina tutelaria cerca de dez, quinze trabalhadores; em nível de Confecção, atingiria cem, cento e cinquenta trabalhadores; uma mesma atuação em nível de rife tutelaria dez mil, quinze mil trabalhadores, considerando-se o efeito cascata da atuação.

Considerando o que foi dito, a solução está na atuação diante da Grife, claro. Ainda que no caso concreto haja atuação em face da oficina flagrada e da Confecção que lhe passou as encomendas, certamente deve-se buscar o envolvimento da Grife.

2.2. Análise econômica dos direitos

Chamaremos a Grife, aqui, de detentor do poder econômico relevante, assim aquele que, por seu porte, possui condições de ditar as regras em sua cadeia produtiva.

Perceba, pois, que as elocubrações em matéria de responsabilidade em cadeia não se prestam a tratar das responsabilidades de um pequeno lojista que compra as peças da Grife. Este, além de se encontrar em ponto mais remoto da cadeia em relação àquele em que verificado o trabalho escravo, não é detentor do poder econômico relevante.

2.3. Responsabilidade social e responsabilidade jurídica

A forma de atuação se dará através da imputação de responsabilidade jurídica ao detentor do poder econômico relevante na cadeia produtiva.

A responsabilidade social deriva de um comprometimento espontâneo da marca, que pode subscrever o Pacto Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e, assim, deixar de contratar fornecedores envolvidos pelo trabalho escravo. As “sanções” em sede de responsabilidade social se esgotam no controle feito pelo consumidor e pelo mercado, exceto se a marca utiliza sua consciência social como marketing.

Neste caso, é possível cogitar-se um pedido de dano moral coletivo por publicidade enganosa (CDC, arts. 83 c/c art. 37) da empresa que se divulga compromissada socialmente e, todavia, é recorrentemente envolvida em situações de trabalho escravo.

A responsabilidade social não é suficiente para se combater o trabalho escravo. É mister plasmar uma cultura de responsabilidade jurídica: a empresa tem o efetivo dever legal de zelar pela erradicação do trabalho escravo em sua cadeia.

Nesse prisma, a responsabilidade internacional do Estado encontra respaldo no art. 63 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, cujo reflexo provém de norma consuetudinária e constitui um dos princípios fundamentais de direito internacional sobre a responsabilidade dos Estados. André de Carvalho Ramos dita que a responsabilidade internacional do Estado consubstancia-se na obrigação de reparar danos da violação de norma do direito internacional8.

2.4. A teoria da cegueira deliberada: o início da responsabilização em cadeia

A teoria da cegueira deliberada é proveniente do Direito Penal, sendo também rotulada de Teoria do Avestruz, sendo chamada, no direito norte-americano, de Willful Blindness ou Ostrich Instructions, e invocada nas hipóteses de tipos penais coligados (assim chamados os crimes que dependem da preexistência de um outro crime para existir, como é o caso do crime de receptação em relação a um crime de roubo ou furto).

Em tais situações criminais, é de difícil prova a prática do crime derivado quando o agente argumenta o desconhecimento do crime antecedente. Neste ponto, a teoria da cegueira deliberada imputará responsabilidade àquele que adrede se coloca em situação de ignorância, omitindo-se quanto a um dever razoável de cautela.

Na receptação, por exemplo, a teoria é aplicada quando os preços manifestamente díspares dos produtos recebidos forem indiciários de uma proveniência ilícita. O agente da receptação agiu como se esperava? Pediu notas fiscais? Indagou a razão do baixo custo? Vertendo a teoria em questão para o direito do trabalho, cumpre verificar a postura assumida pelo beneficiário em relação aos demais elos de tal cadeia.

Preocupou-se este em se informar quanto aos meios como seu produto é fabricado? Não se ateve, em suas inúmeras visitas a fornecedores, se este possui capacidade produtiva e empregados em número suficiente para atender-lhe? Notando a ausência de capacidade produtiva do fornecedor para dar conta de toda a encomenda, o tomador buscou identificar quais oficinas abasteciam tal fornecedor? Ao permanecer inerte em relação a um dever razoável de agir, o tomador coloca-se deliberadamente em situação de ignorância quanto ao que ocorre ao seu redor, respondendo pela omissão culposa (negligência).

Tal teoria é, pois, fundada na teoria da culpa. Trata-se de uma forma de explicar a culpa daquele que adrede se omite.

Em um primeiro momento, a teoria se mostrou relevante e os detentores do poder econômico relevante passaram a implementar compliance, auditando sua cadeia produtiva.

Mas os casos de trabalho escravo subsistiam e embora a teoria ainda possua utilidade em situações de culpa ou em situações como a omissão do recrutador em providenciar quanto a trabalhadores recrutados em outras localidades do território nacional, mostrou-se necessário construir teorias com imputações objetivas, enfocadas não nos meios (implementação de auditorias na cadeia de fornecedores) mas nos resultados (efetiva erradicação do trabalho escravo da cadeia). Vale ressaltar que, nem sempre, a culpa do detentor do poder econômico é auto-evidente: caso demonstre práticas de auditorias regulares e que o preço por ele praticado é exequível (como no exemplo da Grife que paga R$ 40,00 a peça à Confecção), a teoria poderá perder persuasividade.

2.5. Teoria da subordinação integrativa e do grupo econômico.

Agregando outros elementos à teoria da subordinação estrutural, viceja, no Ministério Público do Trabalho, a teoria da subordinação integrativa. Esta se inspirará nos direitos espanhol e alemão, em que a justeza na distribuição dos riscos do negócio é tão ou mais significativa que a simples análise da subordinação para a identificação do regime jurídico dos trabalhadores.

Em tais sistemas, é condição do “ser empresário” não apenas a assunção de riscos como, em contrapartida, o benefício de grandes oportunidades de lucro. Não é o que sói ocorrer em uma relação empresarial em que um único fornecedor é completamente envolvido pela dinâmica da atividade de um único tomador.

Saliente-se, ademais, que o art. 9º da CLT desconsidera a forma dos negócios jurídicos para fins de aplicação do direito do trabalho. Surge daí uma clara identificação de operações nas quais a quase totalidade da produção de uma oficina é absorvida por uma única confecção e a quase totalidade da produção desta confecção é absorvida por uma grife, com uma hipótese de grupo econômico de fato (CLT, art. 2º, par. 2º).

A CLT é um diploma simples: suas concepções sobre grupo econômico não miravam, necessariamente, grandes e complexas operações, como holdings, joint ventures ou pools. Não; a caracterização do grupo econômico trabalhista admite situações mais simples como aquelas de completa ou quase completa absorção e subordinação econômica de uma empresa por outra, não impondo requisitos como a identidade do quadro societário ou outros requisitos do gênero.

A teoria acima pode ser lançada em situações de total absorção dos fornecedores pelo detentor do poder econômico relevante na cadeia. Mas pode ser colocada em xeque caso haja uma pluralidade maior de destinatários da mercadoria ou com o advento da Reforma Trabalhista.

2.6. Teoria dos contratos coligados, das redes contratuais ou dos contratos em rede.

Proveniente do Direito Civil e do Direito do Consumidor, extrai fundamentos do Código Civil, art. 421; Código de Defesa do Consumidor, art. 6º, VI, 7º, parágrafo único, 12, 14, 25, par. 1º e 34. Abaixo, um exemplo de aplicação da teoria das redes contratuais no universo temático das relações de consumo:

Apelação – Ação de reparação de danos morais – Cancelamento de voo – Contratos coligados – Único serviço denominado “Pacote Turístico” – Responsabilidade civil solidaria e objetiva, fundada na teoria do risco do negócio – Artigos 6º, inciso VI, 7º, Parágrafo Único, 14, 25, § 1º e 34, do Código de Defesa do Consumidor – Artigo 927, Parágrafo Único do Código Civil – Legitimidade passiva da operadora de turismo para a ação caracterizada – Nexo de causalidade não desconstituído, à luz do art. 14, § 3º, inciso II, do CDC – Inversão legal do ônus da prova – Montante reparatório majorada para R$ 7.000,00, sendo assim distribuído: R$ 4.000,00 para autora Lycia Maria Firmo Guerreiro; R$ 1.500,00 para Sergio Martins Guerreiro e R$ 1.500,00 para Clayr Maria Fonseca Firmo Guerreiro – Negado provimento ao recurso de apelação do réu – Dado provimento ao recurso adesivo dos autores, majorando-se o valor arbitrado por danos morais. (Apelação cível n. 0001712-22.2007.8.26.0441, TJSP, Rel. Des. Alfredo Attié, julgado em 22.08.2012, publicado no DJe n. 1247)

A teoria se ampara na noção de que o Direito do Consumidor é o direito comum da pós-modernidade, para os fins do art. 8º da CLT; tanto assim que a legislação trabalhista alemã expressamente o concebe como fonte supletiva do direito do trabalho naquele País. Diante da omissão celetista em tratar de cadeias produtivas, recorre-se a tal teoria.

2.7. Teoria da internalização das externalidades negativas

Trata-se da teoria objetivamais convincente quando evidenciadas degradações socioambientais em decorrência deintercorrências de trabalho escravo em uma cadeia produtiva. Conforme já explicado, possuifundamentos no direito ambiental, sendo aplicável ao direito do trabalho em razão dainterdependência característica dos direitos fundamentais.

Verificada que a consequência do trabalho escravo é a corrosão de todo umsegmento da atividade econômica (como vem ocorrendo no setor de costura), a favelização (como se verifica nas grandes obras) ou outros prejuízos, a teoria apresenta-se bastante plausível e amparada, conforme já verificado, numa adequada articulação dos arts. 3º, II, III, IV, e 14, par. 1º, da Lei 6.938/81, bem como no Princípio 16 da Declaração do Rio de 1992.

Abaixo, alguns julgados do STJ versando sobre a teoria em questão:

STJ, 2ª Turma, REsp 1137314 (17/11/2009): “Não mais se admite, nem se justifica, que para produzir ferro e aço a indústria brasileira condene as gerações futuras a uma herança de externalidades ambientais negativas, rastros ecologicamente perversos de uma atividade empresarial que, por infeliz escolha própria, mancha sua reputação e memória, ao exportar qualidade, apropriar-se dos benefícios econômicos e, em contrapartida, literalmente queimar, nos seus fornos, nossas florestas e bosques, que, nas fagulhas expelidas pelas chaminés, se vão irreversivelmente“.

STJ, 2ª Turma, REsp 1071741 (24/03/2009): “Ao acautelar a plena solvabilidade financeira e técnica do crédito ambiental, não se insere entre as aspirações da responsabilidade solidária e de execução subsidiária do Estado – sob pena de onerar duplamente a sociedade, romper a equação do princípio poluidor-pagador e inviabilizar a internalização das externalidades ambientais negativas – substituir, mitigar, postergar ou dificultar o dever, a cargo do degradador material ou principal, de recuperação integral do meio ambiente afetado e de indenização pelos prejuízos causados”.

2.8. Princípios de Ruggie, Recomendação de 2014 da OIT sobre Trabalho Forçado ou Obrigatório e Decreto 9.571/2018.

Há cada vez mais normas robustecendo as teorias sobre responsabilidade em cadeia produtiva em questões relacionadas a Direitos Humanos.

Em junho de 2011, o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou por consenso os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos.

O Princípio 17 prevê a auditoria de fornecedores (due diligence) em Direitos Humanos:

PRINCÍPIO 17

A fim de identificar, prevenir, mitigar e reparar os impactos negativos de suas atividades sobre os direitos humanos, as empresas devem realizar auditorias (due diligence) em matéria de direitos humanos. Esse processo deve incluir uma avaliação do impacto real e potencial das atividades sobre os direitos humanos, a integração das conclusões e sua atuação a esse respeito; o acompanhamento das respostas e a comunicação de como as consequências negativas são enfrentadas. A auditoria (due diligence) em matéria de direitos humanos:

A. Deve abranger os impactos negativos sobre os direitos humanos que tenham sido causados ou que tiveram a contribuição da empresa para sua ocorrência por meio de suas próprias atividades, ou que tenham relação direta com suas operações, produtos ou serviços prestados por suas relações comerciais;

B. Variará de complexidade em função do tamanho da empresa, do risco de graves consequências negativas sobre os direitos humanos e da natureza e o contexto de suas operações;

C. Deve ser um processo contínuo, tendo em vista que os riscos para os direitos humanos podem mudar no decorrer do tempo, em função da evolução das operações e do contexto operacional das empresas.

Juridicamente, apenas a imputação objetiva de responsabilidade garante o aprimoramento contínuo de auditorias na cadeia produtiva.

O Princípio 22 realça o dever de indenização: “Se as empresas constatam que provocaram ou contribuíram para provocar impactos adversos devem reparar ou contribuir para sua reparação por meios legítimos”.

A Recomendação de 2014 da OIT sobre Trabalho Forçado também representa a busca pela positivação do tema “cadeias produtivas”:

4. Levando em consideração as circunstâncias nacionais, os Membros deveriam adotar as medidas preventivas mais eficazes, tais como:

j) Ao colocar em vigor suas obrigações sob a Convenção para suprimir o trabalho forçado ou obrigatório, fornecer orientação e apoio a empregadores e empresas para que adotem medidas efetivas para identificar, prevenir, mitigar e prestar contas

CONCLUSÃO

É possível a responsabilização jurídica da empresa do topo, que detém o poder econômico dominante, com fundamento na Teoria do Avestruz ou da Cegueira Deliberada.

Relembramos, também, dos contratos de facção, nos quais recorrentemente eram encontrados casos de trabalho escravo contemporâneo – “Contrato de facção tem por objeto a compra de parte da produção e não a locação de mão de obra ou a prestação de serviços”.

Tal teoria, oriunda do Direito Penal (art. 180, CP), considera igualmente culpado aquele que, deliberadamente, coloca-se em situação de desconhecimento ou ignorância dos fatos, com o intuito de se eximir da obrigação de evitar o ilícito. Isso porque a função social da empresa e do contrato (arts. 5º, XXIII, 170, III, CF; art. 421, CC), assim como o dever de boa-fé anexo às contratações (art. 422, CC) impõem o monitoramento do respeito aos direitos humanos ao longo da cadeia como um dever de diligência (Princípios de Ruggie. art. 3º, VIII, e 9º, VII, Dec. 9571/18; Recomendação 203, OIT).

As empresas beneficiadas com o produto da escravidão contemporânea, de forma direta, possuem plenas condições de fiscalizar os demais produtores da cadeia mediante adoção de política interna para identificação, prevenção e controle de riscos, exigindo adequação à lei como condição para contratações (“compliance”).

São exemplos de medidas a prévia seleção de empresas idôneas, a verificação da proporcionalidade do preço do serviço/produto, a exigência de documentos periódicos que atestem a regularidade fiscal e trabalhista (ex.: CNDT), e o constante monitoramento ambiental das condições de trabalho, inclusive dos locais de alojamento dos obreiros.

O descumprimento enseja responsabilidade por ato ilícito decorrente de omissão (arts 186 e 927, CC) ou abuso de direito (art. 187), de forma subjetiva (culpa “in vigilando” e culpa “in elegendo”) ou objetiva (arts. 927, parágrafo único, 932, II, e 933, CC; Teoria do Risco Criado; Teoria do Risco Proveito; Princípio do Poluidor-Pagador; Teoria da Internalização das Externalidades Negativas – Princípio 16, Declaração Rio 92) e solidária (art. 942, parágrafo único, CC).

Além disso, a inclusão da empresa na Lista Suja do Ministério do Trabalho (Port. Interm. 4/2016) também resulta na sua responsabilidade social (“Name Shamed”) por meio da proibição de obter financiamento do BNDES (art. 4º, Lei 11.948/09), possibilidade de suspensão de sua inscrição (Lei Afonso Bezerra/São Paulo), restrição de contratos nacionais e internacionais e expropriação da propriedade (art. 243, CF).


2 DELGADO, Maurício Goldinho. Direitos fundamentais na relação de trabalho. Revista de direitos e garantias fundamentais. n. 2. 2007. p. 15.

3 Convenção da ONU sobre abolição da escravatura de 1926

4 Convenção Suplementar da ONU sobre abolição da escravatura de 1956

5 Convenção 29 da OIT

6 BRITO FILHO. José Cláudio Monteiro de. Trabalho decente. Análise jurídica da exploração do trabalho – trabalho forçado e outras formas de trabalho indigno. São Paulo: Ltr, 2004, p. 61.

7 Informativo 524, outubro de 2008, STF

8 RAMOS, André de Carvalho. Responsabilidade internacional por violação de direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 69.


REFERÊNCIAS

Apelação cível n. 0001712-22.2007.8.26.0441, TJSP, Rel. Des. Alfredo Attié, julgado em 22.08.2012, publicado no DJe n. 1247)

BRITO FILHO. José Cláudio Monteiro de. Trabalho decente. Análise jurídica da exploração do trabalho – trabalho forçado e outras formas de trabalho indigno. São Paulo: Ltr, 2004.

Convenção da ONU sobre abolição da escravatura de 1926

Convenção Suplementar da ONU sobre abolição da escravatura de 1956

Convenção 29 da OIT

DELGADO, Maurício Goldinho. Direitos fundamentais na relação de trabalho. Revista de direitos e garantias fundamentais. n. 2. 2007.

RAMOS, André de Carvalho. Responsabilidade internacional por violação de direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

Informativo 524, outubro de 2008, STF

STJ, 2ª Turma, REsp 1137314 (17/11/2009

STJ, 2ª Turma, REsp 1071741 (24/03/2009):


1Doutoranda em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Mestre em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Pós-graduada em Direito do Trabalho e Seguridade Social pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo de São Francisco). Pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Advogada. Professora tutora da OAB (Civil) no Damásio Educacional. Coautora de obras e artigos jurídicos.