A REPRESENTAÇÃO FEMININA EM “A BOLSA AMARELA” E SUA CONTRIBUIÇÃO  PARA A FORMAÇÃO DE LEITORES CRÍTICOS/REFLEXIVOS.

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7975290


Flávia Martins Malaquias1


RESUMO 

A análise da representação feminina na literatura desempenha um papel essencial na  compreensão e discussão da desigualdade de gênero enfrentada pelas mulheres em  diversos contextos sociais. Conscientes do poder transformador da literatura, que  contribui com a formação do leitor crítico/reflexivo, e amplia seu horizonte de  expectativas, neste estudo buscaremos explorar a representação feminina no livro “A  Bolsa Amarela”, de Lygia Bojunga, para analisar as vivências da protagonista e  adversidades enfrentadas pela protagonista. Para alcançar os objetivos, realizaremos uma análise reflexiva apoiada nas contribuições teóricas de Brait (2017), Costa Lima  (1981), Candido (2002), Todorov (2009), Ginzburg (2012) e Zilberman (1994). Essas  perspectivas teóricas enriqueceram este estudo, promovendo uma reflexão crítica e  aprofundada sobre as questões supracitadas.  

Palavras-chave: A bolsa amarela; representação feminina; literatura; relação de gênero. 

INTRODUÇÃO 

A narrativa “A Bolsa Amarela”, escrita por Lygia Bojunga, publicada em 1976,  apresenta em seu enredo questões acerca da identidade e liberdade aliadas à  representação feminina e as condições enfrentadas pelas mulheres em uma sociedade  patriarcal. Por meio de uma narrativa na voz infantil, apresenta uma protagonista que  enfrenta conflitos com a família que acredita que “criança não têm vontade”, reprimindo  suas vontades deixar de ser criança, ter nascido garoto em vez de menina e a vontade  ser escritora, tendo que escondê-las dentro de uma bolsa amarela. Nesta narrativa, é  questionado e contestado os estereótipos de gênero e os preconceitos que os envolvem. 

É natural questionar se um livro destinado a esse público pode, de fato, suscitar  discussões sobre a sociedade patriarcal e as imposições enfrentadas pelas mulheres.  No entanto, é nesse contexto que a força da literatura reside na capacidade de abordar  temas complexos e desafiadores de maneira acessível e significativa para as crianças,  ampliando as percepções do leitor.

Objetivamos analisar e problematizar sobre a representação feminina presente no  livro, com vistas a discutir sobre suas contribuições para a construção de identidades  femininas e para a percepção das relações de poder entre os gêneros. Para  procedermos à essa análise delineamos objetivos específicos que visam contextualizar  os conceitos de mímesis e representação, identificar a simbologia dos objetos utilizados  na narrativa para representar determinadas situações vivenciadas pela protagonista.  Assim também uma análise reflexiva utilizando uma seleção específica de trechos da  obra como corpus, com o objetivo de aprofundar a compreensão da condição da mulher  na sociedade atual, embasando-se na representação feminina presente na literatura da  narrativa. 

A pesquisa adotará uma abordagem bibliográfica e de corpus. A fundamentação  teórica baseia-se em autores renomados, tais como Costa Lima (1981), Candido (2002),  Todorov (2009), Ginzburg (2012), Zilberman (2014) e outros, que fornecem subsídios  teóricos relevantes para a compreensão da representação feminina na literatura e a  contribuição para a formação de leitores literários críticos e autônomos.  

Dessa forma, buscamos contribuir para uma reflexão crítica sobre as questões de  gênero, ampliar o entendimento das complexidades da representação feminina e  destacar a importância da literatura infantojuvenil como meio de promover discussões  significativas sobre a sociedade patriarcal, suas consequências das desigualdades de  gênero para as mulheres. 

Perspectivas teóricas sobre a construção da personagem protagonista Raquel 

Ao explorar as perspectivas teóricas da literatura na construção da personagem  protagonista Raquel, é possível destacar algumas abordagens relevantes que  contribuem para uma compreensão mais profunda desse processo criativo. 

Candido (2000), enfatiza a relação intrínseca entre a arte, a literatura e os aspectos  sociais. Segundo o autor, a literatura reflete os conflitos vivenciados pelas personagens,  buscando denunciar situações que exigem uma mudança de paradigmas socioculturais.  Por conseguinte, em sua obra Literatura e Sociedade, afirma que 

A criação literária corresponde a certas necessidades de representação do  mundo, às vezes como preâmbulo a uma práxis socialmente condicionada. Mas  isto só se torna possível graças a uma redução ao gratuito, ao teoricamente  incondicionado, que dá ingresso ao mundo da ilusão e se transforma dialeticamente em algo empenhado, na medida em que suscita uma visão de  mundo (CANDIDO, 2000, p. 49). 

Nesse sentido, a ficção pode refletir a realidade de maneira significativa, retratando  situações em que pessoas se deslocam em busca de trabalho e melhores condições de  vida. Essa temática, tão presente na sociedade, é abordada tanto na literatura quanto na  realidade vivida por muitas pessoas. Na construção da personagem protagonista em “A  bolsa amarela” percebe-se claramente um reflexo das questões e desafios enfrentados  pelas crianças na sociedade, explorando temas como a liberdade, a identidade e a busca  por autonomia. 

Outra abordagem relevante é a perspectiva de Todorov (2009) em relação à  interação da literatura com diversos discursos vivos. 

A literatura não nasce no vazio, mas no centro de um conjunto de discursos  vivos, compartilhando com eles numerosas características; não é por acaso que,  ao longo da história, suas fronteiras foram inconstantes. Senti-me atraído por  essas formas diversas de expressão, não em detrimento da literatura, mas ao  lado dela (TODOROV, 2009, p.22). 

Sabe-se que a literatura não existe isolada, mas se entrelaça com outros campos  do conhecimento, enriquecendo-se por meio desse diálogo constante. Essa interação  amplia as possibilidades da literatura e proporciona uma compreensão mais ampla e  profunda do mundo ao conectar-se com diferentes áreas de conhecimento. 

Ela não surge no vazio, mas está associada a inúmeras características e diálogos  com diferentes áreas do conhecimento. Dessa forma, a construção da personagem  protagonista pode ser enriquecida por elementos provenientes de diversas disciplinas,  como a psicologia, a pedagogia e a sociologia. Isso possibilita uma compreensão mais  ampla e complexa da personagem, suas motivações e seu impacto no leitor. 

Ademais, é válido considerarmos o gênero literário como um elemento influente na  construção da personagem protagonista. Bojunga utiliza elementos do gênero da  narrativa infantojuvenil, explorando as vivências e os dilemas das crianças. A  personagem protagonista, nesse cenário, assume uma posição central na história, sendo  construída de forma a representar as experiências e os sentimentos comuns nessa fase  da vida. Através da construção da personagem, a autora é capaz de transmitir  mensagens, despertar a empatia do leitor e promover reflexões sobre temas relevantes  para o público infantojuvenil.

A construção da personagem protagonista está inserida em um contexto de  transformações sociais. A literatura comparada tem discutido amplamente as relações  entre exclusão social e valor literário, questionando visões patriarcais e conservadoras  que foram predominantes por muito tempo. Nesse sentido, a construção da personagem  protagonista, especialmente no que se refere à representação feminina, ganha  importância ao desafiar estereótipos e promover a inclusão de perspectivas diversas. 

Destarte, ao considerar as perspectivas teóricas da literatura, podemos  compreender a riqueza e a complexidade desse processo criativo, que vai além da mera  representação de uma figura central na narrativa. A construção da personagem é  influenciada por elementos sociais, diálogos interdisciplinares e reflexões sobre gênero  e inclusão, resultando em uma obra que aborda 

Nas transformações recentes, a literatura comparada tem amplamente discutido as  relações entre exclusão social e valor literário. Os princípios comuns à sociedade  patriarcal e ao conservadorismo canônico têm passado por mudanças, acompanhando  as transformações das últimas décadas e despertando interesse na crítica ao cânone e  aos seus valores. Dessa forma, o nacionalismo literário tem reavaliado, de maneira  pertinente, a inclusão das mulheres na literatura, o que tem ganhado importância  (GINZBURG, 2012). 

Além das palavras: a construção da personagem protagonista 

No tocante ao narrador, Beth Brait (2017) explica que sendo em primeira ou  terceira pessoa, as técnicas selecionadas pelo autor pode ser por meio de descrição  detalhada ou sintética, com os discursos direto, indireto ou indireto livre, diálogos e  monólogos para atender às suas intenções e formas para sua manipular o discurso,  construindo as personagens que, quando completas, escapam de comando, reduzindo se em palavras expostas aos receptores que podem trazer outras possibilidades de produção de sentidos. 

De acordo com Brait (2017), na construção de uma personagem, o escritor usa  artifícios disponíveis através de um código para gerar as criaturas de seus textos,  provenientes de sua vida real ou imaginária, sonhos, pesadelos, e mesmo, de  mesquinharias do cotidiano. Ainda, afirma que 

“A condução da narrativa por um narrador em primeira pessoa implica,  necessariamente, a sua condição de personagem envolvida com os “acontecimentos” que estão sendo narrados. Por esse processo, os recursos  selecionados pelo escritor para descrever, definir, construir os seres fictícios que  dão a impressão de vida chegam diretamente ao leitor através de uma  personagem. Vemos tudo através da perspectiva da personagem, que, arcando  com a tarefa de “conhecer-se” e expressar esse conhecimento, conduz os traços  e os atributos que a presentifica e presentifica as demais personagens”  (BRAIT, 2017, p. 83). 

Nessa perspectiva, observa-se que a construção da protagonista Raquel, é  conduzida de forma sutil e delicada ao longo da narrativa. Bojunga utiliza técnicas  narrativas eficazes para transmitir as emoções e os pensamentos da protagonista,  mergulhando na mente da criança e explorando seus conflitos internos. A partir do  discurso indireto livre e uma linguagem predominantemente coloquial, o leitor tem acesso  direto aos sentimentos de Raquel, criando uma conexão emocional profunda com suas  vontades e seus conflitos familiares. 

Ressalta-se que para a construção do personagem pode ser construída somente por meio de um jogo de linguagem, que seja tangível a sua presença, sendo de  movimentos sensíveis. Sendo o texto um produto, sendo ele o único que concretiza os  elementos usados pelo escritor para dar consistência à sua criação para causar estímulos  às reações dos leitores. Nesse sentido, constroem-se as personagens seguindo  determinadas leis, mas que somente o texto fornece.  

Ao se observar o processo de construção de personagens de um texto, por meio  da comparação, pode-se compreender como o autor realiza seu processo de criação  de criaturas que compõem seu texto, levando em conta o conjunto de sua obra. É  preciso ter em mente que esse entendimento é definido por meio da análise, aliada a  uma perspectiva crítica, bem como pelas bases teóricas usadas ao analisar. No entanto,  o leitor comum pode tão somente desfrutar da personagem sem a preocupação de um  analista (BRAIT, 2017). 

No tocante à construção da personagem protagonista Raquel, é possível observar  a habilidade de Bojunga em criar uma personagem cativante e complexa. A protagonista,  enfrenta desafios emocionais e busca encontrar sua própria identidade. Essa construção é conduzida de forma sutil e delicada ao longo da narrativa. A autora utiliza técnicas  narrativas eficazes para transmitir as emoções e os pensamentos, mergulhando na  mente da criança e explorando seus conflitos internos.  

O uso do discurso indireto livre permite ao leitor ter acesso direto aos sentimentos  da personagem, criando uma conexão emocional profunda. Além disso, a protagonista  é apresentada como uma criança imaginativa e sonhadora, cuja bolsa amarela é um símbolo importante na história. Através da bolsa, a personagem protagonista expressa  seus desejos, medos e anseios mais profundos, revelando sua necessidade de se  libertar das expectativas e pressões sociais. A bolsa torna-se uma metáfora poderosa  para a busca da individualidade e da autenticidade. 

Ao longo da narrativa, a personagem enfrenta desafios e confronta os valores e  normas impostos pela sociedade, especialmente no que diz respeito ao papel da mulher.  Questiona os estereótipos de gênero e busca se libertar das limitações impostas,  reivindicando seu espaço e sua voz. 

Essa construção destaca a importância da autenticidade e da busca pela identidade  própria. A autora retrata de forma sensível e realista os dilemas enfrentados pelas  crianças ao tentarem se encaixar em padrões sociais pré-estabelecidos. Raquel representa a luta pela individualidade e a necessidade de se expressar livremente,  deixando uma mensagem poderosa para os leitores de todas as idades. 

A Mimesis e a Representação: entre a imitação e a criação 

A representação não ocorre por vontade própria, mas busca tornar-se visível e dar  visibilidade ao outro, em um aspecto paradoxal. A prática da mimesis faz com que a  linguagem perca sua identidade habitual, deixando de expressar apenas implicações  imediatas sobre o mundo. Da mesma forma, o produtor da linguagem se despoja de sua  própria identidade e passa a falar ou escrever para dar vida a fantasmas, que não são  meras projeções de seu eu empírico (COSTA LIMA, 1981, p. 230). O autor também  destaca que a mimesis atua na representação de representações, estabelecendo um  distanciamento entre elas e a própria cena, o que torna possível apreciá-las, conhecê-las e questioná-las. Esse distanciamento pode impedir a ação prática sobre o objeto,  mas, ao mesmo tempo, permite que se pense nele, experimentando-o. A distância  mantém o objeto próximo daquilo que o alimenta, assim como da proximidade do mundo  sensível que está em seu horizonte (COSTA LIMA, 1981, p. 231). 

Aristóteles (2011) compara tragédia e comédia, mostrando que a representação ou  imitação está associada aos personagens, que podem ser pessoas com características  inferiores ou superiores inerentes aos seres humanos reais. A mimesis é tanto imitativa  quanto criativa, pois denota a inclinação do ser humano em representar as coisas como  deveriam ser, mas não são. A literatura é uma fonte de experiências sobre o  comportamento humano. No entanto, o efeito mimético não é o mesmo que sentir a situação narrada, pois ele é subjetivo. Ao longo do tempo, a literatura perdeu sua  importância em gerar reflexões próprias e abordar questões humanas. Na época de  Aristóteles, a literatura desempenha um papel crucial e estava integrada à vida cultural  da sociedade. No entanto, na contemporaneidade, a literatura cria personagens por meio  da imitação de ações humanas. As personagens imitam o ser humano da mesma forma  que o ser humano se molda por meio da imitação. 

Segundo Zilberman (1994), os livros têm o potencial de ensinar valores às crianças  por meio da moral da história, proporcionando à literatura infantil um espaço para discutir  questões sociais, uma vez que ela desempenha um papel fundamental na formação das  crianças. As histórias infantis utilizam animais como uma forma de alegoria para  expressar seu mundo interior, relacionando-se com sua forma física, comportamento,  virtudes e características humanas. 

Na literatura infantil, é comum encontrar a representação do gênero feminino  estereotipado como mulher frágil e indefesa. Nas histórias infantis, as mulheres  frequentemente são retratadas como passivas, aguardando que os homens, ativos, as  “salvem” e as despossem sem considerar sua vontade (ALVES e PITANGUY, 1985, p.  64). Desde os primórdios da literatura infantil, os contos de fadas apresentam princesas  enfrentando perigos, à espera de seus príncipes heróis para resgatá-las e viverem felizes  para sempre. 

Aristóteles (2011), ao abordar gêneros literários como poesia, fábula, teatro,  epopeia, entre outros, atribui uma importância fundamental ao enredo. O enredo é  essencialmente o desenvolvimento da história, com mudanças que buscam novos  rumos. Essas mudanças dependem da semelhança e da necessidade de se basearem  na história, que deve ter um começo, meio e fim para alcançar um ponto. Na imitação  das ações humanas, é necessário reconhecer uma reviravolta, que ocorre quando o ser  humano sai da ignorância e adquire conhecimento sobre algo que antes desconhecia,  causando uma mudança abrupta. Se essa mudança leva a um desfecho negativo, chega-se à catarse, uma comoção emocional que leva à purificação. A catarse proporciona uma  liberação emocional intensa, representando o clímax da história e constituindo uma das  partes da narrativa. 

Estereótipos culturais e novas identidades: a representação feminina na literatura

O sexo é uma questão política, pois envolve relações de poder. O movimento  feminista surge como uma ruptura aos modelos políticos tradicionais que desconsideram  o espaço individual e definem a política apenas na esfera objetiva. O discurso feminista  denuncia a natureza subjetiva da opressão e dos aspectos emocionais, revelando as  relações interpessoais e buscando organizar a política pública. Essas relações contêm  elementos de poder e hierarquia entre homens, mulheres e outras categorias. Em todas  as esferas da vida, seja no âmbito doméstico, no trabalho ou em outros contextos, as  mulheres buscam recriar essas relações, valorizar a feminilidade e repensar e reconstruir  a identidade de gênero, sem a necessidade de se adaptarem a modelos hierarquizados.  É importante considerar as qualidades femininas e masculinas como atributos integrais  do ser humano (ALVES & PITANGUY, 1991). 

Bourdieu (2002) argumenta que existe uma dominação masculina que priva as mulheres por meio de um sistema de regras opressoras que julga o corpo feminino.  Essas concepções estão enraizadas e muitas vezes invisíveis na sociedade, originando se de princípios morais e religiosos que impõem normas que valorizam o corpo  masculino e reduzem o corpo da mulher a um objeto sexual. Essa situação de  desigualdade é perpetuada sem justificativa, silenciando e subordinando as mulheres,  que são excluídas da participação e relegadas ao papel de donas de casa. Existe uma  divisão entre os sexos na ordem social que parece tão normal e natural que se torna  inevitável, pois está profundamente internalizada nas mentes e funciona como esquemas  perceptíveis, resultando em relações de poder sobre a mulher. Esses esquemas sociais  atribuem ao homem um papel de dominador e opressor, impondo uma ideia de  masculinidade que limita a liberdade da mulher de escolher outros caminhos para sua  vida. 

Segundo Zolin (2011), os textos canônicos produzidos por escritores masculinos  representam a mulher por meio de estereótipos culturais, retratando-a como sedutora,  perigosa, imoral, megera, indefesa ou incapaz, ou ainda como um anjo capaz de se  sacrificar pelo bem-estar familiar. A partir dos anos 90 do século XX, as personagens  femininas nos textos literários escritos por mulheres passaram a ser construídas com o  intuito de agregar novas identidades, desafiando a ordem patriarcal por meio de  abordagens feministas. Essa tendência na literatura feminina caracteriza-se pela  produção de textos literários novos e autônomos que denunciam a opressão e buscam  promover uma nova identidade feminina. Em seu estudo sobre Ana Maria Machado e  Nélida Piñon, demonstrou que a transformação das mulheres que antes estavam aprisionadas nas relações de gênero, sendo identificadas como mulheres-objeto, em  personagens femininas protagonistas de narrativas que as constroem como mulheres sujeitas. Essas personagens são dotadas da capacidade de construir sua própria trajetória  e desafiar as manifestações do poder de ideologias patriarcais, as quais estão perdendo  força na sociedade. 

Desconstrução dos estereótipos de gênero em “A Bolsa Amarela”: a voz da  protagonista Raquel 

Procedemos ao diálogo entre as teorias apresentadas na fundamentação teórica e  o corpus selecionado. Narrada em primeira pessoa pela personagem protagonista, traz  uma criança que vive em meio a adultos e sente que não tem voz dentro de sua família.  A narrativa desenvolve-se a partir de sua perspectiva subjetiva, permitindo que a  narradora participe ativamente da história. Segundo Brait (2017), a escolha entre a  primeira e a terceira pessoa na narrativa permite ao escritor detalhar ou sintetizar sua  narrativa, manipular o discurso e construir personagens completas. Nesse sentido,  Raquel é uma personagem e, ao mesmo tempo, narradora, conferindo-lhe participação  e controle sobre tudo o que é narrado. 

Raquel é uma menina questionadora, com uma imaginação fértil e uma  personalidade marcante. Ela se recusa a aceitar os papéis socialmente impostos a seu  gênero e idade, entrando em conflito com sua família patriarcal. Raquel guarda dentro  de uma bolsa amarela seus desejos reprimidos, como o desejo de ser adulta, de ter  nascido menino e de se tornar escritora, pois não concorda com as imposições às quais  está exposta. No entanto, ao tentar esconder esses desejos sufocados, eles apenas  crescem ainda mais: 

“Eu tenho que achar um lugar para esconder as minhas vontades. Não digo  vontade magra, pequenininha, que nem tomar sorvete a toda hora, dar sumiço  da aula de matemática, comprar um sapato novo que eu não aguento mais o  meu. Vontade assim todo o mundo pode ver, não tô ligando a mínima. Mas as  outras – as três que de repente vão crescendo engordando toda a vida – ah – essas eu não quero mais mostrar […]” (BOJUNGA NUNES, 2020, p. 9). 

Assim, a personagem sofre com a tradição familiar patriarcal, sendo uma criança  do sexo feminino sem espaço para expressar sua vontade, uma vez que seu desejo não  é considerado legítimo em uma sociedade machista que não leva em conta o desejo  infantil. Em uma sociedade tradicional que concede autoridade aos pais, principalmente aos pais do sexo masculino, as crianças, especialmente as meninas, se submetem a essa autoridade. 

Na narrativa, não se nota a presença das vozes de seus pais em seu mundo infantil,  o que demonstra uma desigualdade entre o adulto e a criança. Por isso, ela deseja ser  adulta: “gente grande é uma turma muito difícil de entender” (BOJUNGA, 2020, p.18).  

Entretanto, sua narrativa denota a predominância de valores do masculino  sobrepondo-se aos femininos, a menina demonstra isso em um jantar na casa de sua tia  Brunilda, que mantém a família financeiramente: “Puxa vida, por que é que eu não tinha  nascido Alberto em vez de Raquel? Pronto! Mal acabei de pensar aquilo e a vontade de  ter nascido garoto deu uma engordada […]” (BOJUNGA, 2020, p. 77). 

A vontade de ser homem não está associada à sexualidade da personagem, mas  sim, à vontade de ter voz e ter liberdade na sociedade patriarcal, ela quer ter o direito de  jogar bola, soltar pipa, ter o mesmo direito que um menino. Raquel em sua fala ao irmão  deixa evidente como se sente em relação à essa desigualdade, 

Vocês podem ter um monte de coisas que a gente não pode. Olha: lá na escola,  quando a gente tem que escolher um chefe pras brincadeiras, ele sempre é um  garoto. Que nem chefe de família: é sempre o homem também. Se eu quero  jogar uma pelada, que é o tipo do jogo que eu gosto, todo mundo faz pouco de  mim e diz que é coisa pra homem; se eu quero soltar pipa, dizem logo a mesma  coisa. É só a gente bobear e ficar burra: todo mundo tá sempre dizendo que vocês  têm que meter as caras no estudo, que vocês é que vão ser chefe de família,  que vocês é que vão ter tudo. Até para resolver casamento – então eu não vejo?  – a gente fica esperando vocês decidirem (BOJUNGA, 2012, p. 16-17). 

Ela não gosta do modo com que a tratam, isso por perceber que ela como menina  não possui a força e a liberdade que os meninos têm, pois recebe um tratamento inferior  em sua família que é composta por adultos, sendo ela a única criança e ainda ser menina.  Sua vontade de ser homem, portanto, ocorre pelo anseio de liberdade como a de seu  primo Alberto, filho de sua rica tia Brunilda. 

Alves e Pitanguy (1985) mostram que a literatura infantil representar o gênero  feminino através do estereótipo de mulher de frágil e indefesa, reproduzindo histórias infantis criam mulheres submissas à espera de um príncipe encantado que salve sua  vida e se case com ela como prêmio, não importando seu desejo de se casar ou não  com o príncipe que lhe aparece.  

Inicialmente, possui um equilíbrio, pois apresenta um enredo estável, com Raquel  vivendo com sua família, participando dela submetendo-se a regras tradicionais que  configuram sua família. Mas surgem as vontades da menina que vão se intensificando, gerando o desequilíbrio. Para fugir desse problema, Raquel usa seu imaginário para fugir  dessa situação, e assim, ela deixa sua casa e somente retorna, após organizar seus  conflitos. Passa de um equilíbrio para o desequilíbrio, tornando-se insegura e revoltada  com a forma de tratamento dado por sua família. Entretanto, no final, a adolescente  passa a compreender os adultos. O leitor pode ver a passagem do equilíbrio para o  desequilíbrio e o retorno ao equilíbrio emocional. Ela possui três desejos que crescem  em sua mente: ser homem, ser escritora e crescer para ficar adulta. 

É nesse cenário, que a garota se vale de fantasias para narrar acontecimentos  sobrenaturais, imaginações que são usadas para a busca de equilíbrio emocional. Desse  modo, ela cria um mundo de imaginação, por meio de amigos imaginários André e  Lorelai; além de animais, galos, galinhas e objetos a bolsa amarela e seus sete filhotes,  alfinete, guarda-chuva, que falam, sentem e realizam as imaginações dela. A essas  imaginações, Costa Lima (1981) chama de representação para tornar o outro visível em  uma prática mimética na qual o objeto de imaginação perde sua habitual identidade, não  consistindo em algo que traga implicações imediatas sobre o mundo. Ao usar a mimesis,  o personagem fala ou escreve para animar fantasmas, que não são meramente  projeções empíricas. A mimesis supõe um distanciamento entre as representações e a  cena apresentada, possibilitando o questionamento ou conhecimento.  

Essas imaginações da menina marcam a importância e a simbologia da bolsa para  Raquel. Ela vivia com sua família em uma zona rural, mas eles mudaram para a cidade  e com isso, sentiu falta do quintal da casa. Sua família passou a ter uma vida triste e  irritada, talvez devido à dificuldade financeira e condições de trabalho na cidade muito  ruins. Passou a ter saudade do quintal e da felicidade de todos naquele espaço onde ela  podia brincar e usar a imaginação. 

Assim que a menina ganhou uma bolsa amarela, única peça que a família não  quis entre várias roupas e acessórios sua tia Brunilda doou, ela olhou dentro da bolsa e  fez uma analogia com o quintal dizendo: “tava até parecendo o quintal da minha casa,  com tanto esconderijo bom, que fecha, que estica, que é pequeno, que é grande. E tinha  uma vantagem: a bolsa eu podia levar sempre a tiracolo, o quintal não” (BOJUNGA,  2020, p.28-29).  

Desse modo, a velha bolsa amarela abrigou suas três vontades, passando a ser  seu quintal, lugar para ela depositar passou a depositar seus desejos, usando a  imaginação. A bolsa torna a menina sensível e criativa e simboliza um conflito que a  divide em dois mundos, um real e outro imaginário, através dos quais ela estabelece uma relação que mostra as incoerências da realidade e como a imaginação pode trazer compreensão para suas dificuldades em viver em um mundo marcado por imposições  que tolhe a liberdade das pessoas, seja qual for sua sexualidade. No mundo real,  estavam as vozes paterna e materna que representavam a sociedade patriarcal, e de  outro, as vozes criadas que subverteram essa realidade. A bolsa permanecia com Raquel  o tempo inteiro e em todos os lugares por onde ela levava seu inconsciente com uma  organização para cada situação, configuradas nos bolsos da bolsa aos quais ela  chamava de filhotes da bolsa amarela. 

Cheguei em casa e arrumei tudo que eu queria na bolsa amarela. Peguei os  nomes que eu vinha juntando e botei no bolso sanfona. O bolso comprido eu  deixei vazio, esperando uma coisa bem magra pra esconder lá dentro. No bolso  bebê eu guardei um alfinete de fralda que eu tinha achado na rua, e no bolso de  botão escondi uns retratos do quintal da minha casa, uns desenhos que eu tinha  feito, e umas coisas que eu andava pensando. Abrir um zipe; escondi fundo minha  vontade de crescer; fechei. Abri outro zíper; escondi mais fundo minha vontade  de escrever; fechei. No outro bolso de botão espremi a vontade de ter nascido  garoto (ela andava muito grande, foi um custo pro botão fechar). Pronto! a  arrumação tinha ficado legal. Minhas vontades estavam presas na bolsa amarela,  ninguém mais ia ver a cara delas (BOJUNGA, 2020, p. 30-31). 

Foi assim, que ela criou personagens animais e objetos para esconder na bolsa  suas vontades da família. Essas personagens possuem uma história própria com início,  meio e fim, ainda que não tenha o tradicional final feliz. A criação de personagens  fantásticas como os galos Afonso e Terrível, a Guarda-Chuva, o Alfinete de Fraldas e o  pessoal da Casa dos Consertos simboliza as várias etapas de crescimento emocional da  personagem, alegorias dos desejos mais intensos da personagem-protagonista. 

Entre as personagens criadas está o galo Rei, que quebra o estereótipo masculino. Ele foge do galinheiro e pede abrigo na bolsa amarela, dizendo que seu nome  não identifica com seu modo de pensar e que ele não queria mandar nas galinhas. Pediu  a Raquel para mudar seu nome, desse modo ele próprio escolheu o nome de Afonso.  Ela não gostou do nome, dizendo que o galo não combinava com Afonso, entretanto  respeitou sua vontade.  

Primeiro, a menina cria o Rei que se tornou Afonso. Ele não queria reinar  no galinheiro, porque diz não gostar de mandar e, foi por essa razão, que não se sentia  confortável com o nome Rei. Mais tarde, ela criou outro galo ao qual chamou de Terrível  para dividir o galinheiro com Afonso que não se sentiu ameaçado, o que não aconteceria  com os homens. Ele aceitou terrível, mas o galinheiro se revoltou com essa situação.

Os episódios dos galos trazem as considerações de Bourdieu (2002) sobre a  dominação masculina que inferioriza a mulher. Essa concepção está cristalizada ou  invisíveis na sociedade e buscam impedir a mudança de paradigma como aconteceu o  galo Afonso aceitar outro galo ajudando com as galinhas. Em outras palavras, o sistema  social, não aceita comportamentos diferentes daqueles que são impostos socialmente. 

Também Candido (2000) considera que a literatura pode denunciar condutas que  precisam mudar paradigmas socioculturais. 

Para Raquel, o Alfinete de Fraldas era pequeno e insignificante como ela se  sentia, e por isso, ela não deu nenhuma função para ele em seu mundo imaginário, mas  mesmo deixando-o, ele representa a prisão da criança, pois ela deseja crescer e ser  adulta. As ideias de Zilberman (1994) podem ser associadas à alegoria que crianças  usam para exteriorizar seu mundo interior, no caso do alfinete de fraldas, ele é uma  associada à forma física, na representação do que é ser criança. 

A menina inventa uma personagem chamada André para quem escreve uma carta  reclamando que nasceu após todos seus irmãos, em um momento em que a mãe não  queria mais filhos, dizendo que se sua mãe não queria ter mais filhos, por que ela nasceu.  Nessa carta ela faz uma reflexão referente à liberdade de querer um filho ou não, dizendo  que as pessoas deveriam nascer se a mãe quisesse e pergunta a André o que ele pensa  disso. (BOJUNGA, 2020). Aqui a autora entra em um assunto muito controverso e  bastante questionado pela sociedade de forma leve e sutil, o direito da mulher de ter ou  não um filho indesejado. Essa passagem do livro questiona a autonomia que a mulher  deveria ter sobre seu corpo com relação à reprodução, além de estar em conformidade  por Raquel não gostar de sua condição de ser uma criança, demonstrando seu  sofrimento por ter nascido em uma família adulta, com problemas financeiros, sendo  mais um fardo para a família, e ainda ser criança e menina. Essa sua insignificância fez  com que ela criasse estratégias para fugir da realidade para dar conta de trabalhar suas  emoções.  

Zolin (2011) faz menção sobre uma literatura feminina caracterizada pela  denúncia da opressão contra a mulher, trazendo-lhe uma nova identidade. Para Ginzburg  (2012), há um nacionalismo literário de inserção de mulheres na literatura que tem  crescido e aumentado sua importância no mundo da literatura de cunho social  (GINZBURG, 2012). 

Em outra parte do enredo, Afonso entrega a Raquel um guarda-chuva,  descobrindo que esse objeto ao ser produzido, pode ser homem ou mulher. Ela escolheu que este seria feminino, no caso uma guarda-chuva. Ela escolheu que a guarda-chuva  seria pequena, mas essa sua escolha era contraditória, uma vez que queria ser menino  e adulta. Nesse momento, ela estava diminuindo sua vontade de ser garoto e a aceitação  de sua identidade feminina. A guarda-chuva mesmo sendo pequena podia crescer e agir  como criança no sentido de brincar e se divertir. Ela podia escolher crescer ou ser  pequena por meio do cabo que podia se mover para aumentar ou diminuí-la. Ela queria  crescer, mas continuar brincando, o que não acontece com os adultos: “viu que uma  coisa não tinha nada a ver com a outra: ela podia muito bem ser grande e ela podia muito  bem continuar brincando.” (BOJUNGA, 2020, p.50). 

Raquel leva o guarda-chuva para consertar na Casa dos Consertos e foi lá que  ela teve ajuda para acabar com suas vontades. Nesse lugar, ela encontra uma realidade  bem divergente da sua, lá todos possuem o mesmo tratamento, exercem as mesmas  funções sendo homens ou mulheres. Conversa com Lorelai, outra personagem que ela  criou. Quer saber quem é o chefe da casa, se é o pai ou o avô dela. Lorelai diz lhe  pergunta para que chefe e a menina diz que é para resolver as coisas e Lorelai  respondeu:  

A gente senta aí na mesa e resolve tudo que precisa. Resolve como é que vai  enfrentar um caso que a vizinha criou; revolve se vai brincar mais que trabalhar;  resolve o que é que vai comer; quanto é que vai gastar em roupa, em comida,  em livro; resolve essas transas todas. Cada um dá uma ideia. E fica resolvido o  que a maioria acha melhor (BOJUNGA, 2020, p. 114). 

A menina foi surpreendida com uma realidade diferente daquela de sua família na  qual os homens têm uma posição de poder privilegiado em relação às mulheres, bem  como dos adultos em relação aos mais jovens como ela. Na família da Casa de  Consertos, ela percebeu que as mulheres fazem trabalhos considerados para homens  pela sociedade patriarcal, também os homens fazem trabalhos domésticos que essa  sociedade destina às mulheres.  

Nasceu nela o desejo de ser como Lorelai que gosta de ser criança e mulher ao  mesmo tempo, ainda que a sociedade imponha normas que tiram a liberdade e a  independência das mulheres. A descoberta dessa família que desconsidera as  imposições sociais, liberta as vontades de Raquel que percebe que pode soltar pipa  como os meninos e de ser grande, contudo, a vontade de ser escritora continua. Ela preferiu continuar a esconder essa vontade e parar de escrever, para evitar o deboche  de sua família. Entretanto, não consegui, porque a vontade cresceu mais ainda. Segundo  Raquel, “falaram que tanta coisa era coisa só pra garoto, que eu acabei até pensando  que o jeito era nascer garoto. Mas agora eu sei que o jeito é outro”. Foi assim, que ela  resolveu escrever e depositar na bolsa amarela que estava cada dia mais pesada. 

Acabei até mudando de ideia: resolvi que se eu queria escrever qualquer coisa  eu devia escrever e pronto. Carta, romancinho, telegrama, o que me dava na  cabeça. Queriam rir de mim? Paciência. Melhor rirem de mim do que carregar  aquele peso dentro da bolsa amarela. (BOJUNGA, 2020, p. 103) 

Sua descoberta maior foi a de que queria ser escritora, coisa que ela exercitou ao  criar personagens, escreveu cartas para André e Lorelai, inclusive no final a conheceu  pessoalmente Lorelai e sua família que ela fantasiou. Nesse momento, descobriu que  pode mudar. Observa-se que as histórias inventadas pela menina estão em  conformidade com as ideias de Todorov (2009), que afirma que a literatura não nasce no  vazio, mas sim, através de um conjunto de discursos vivos, com várias características,  não ocorrendo por acaso. “A bolsa amarela” é uma obra que nasceu das vontades vivas  de Raquel, cujos discursos resultaram em sua imaginação, componentes da obra literária  de Lygia Bojunga. 

Bojunga utiliza diversas metáforas para simbolizar elementos essenciais na  narrativa, abordando temas como o inconsciente infantil, a repressão das vontades e os  conflitos internos. Abaixo seguem análises que contribuem para a compreensão dessas  metáforas. 

• A bolsa amarela simboliza o inconsciente infantil e a repressão das vontades. Ela  representa o espaço onde a protagonista, Raquel, guarda seus segredos mais profundos  e desejos não expressos. A bolsa amarela torna-se um símbolo da importância de dar  voz às emoções e vontades reprimidas, permitindo que Raquel explore sua  individualidade e expresse suas necessidades. 

• As cartas escritas por Raquel ao longo da história possuem um significado mais  profundo. Elas funcionam como um exercício de escrita e uma forma de expressão  pessoal para a protagonista. As cartas simbolizam a busca de Raquel por encontrar sua  voz como escritora e afirmar sua identidade. Por meio delas, ela revela seu processo de  descoberta e autodescoberta, compartilhando suas experiências e reflexões. 

• O guarda-chuva representa o projeto de Raquel de ser grande e pequena  simultaneamente. Essa metáfora reflete o desejo de Raquel de explorar o mundo e 

desafiar as limitações impostas pela sociedade e pelos adultos. O guarda-chuva  simboliza a dualidade de Raquel, sua busca por equilíbrio entre a liberdade de expressão  e as responsabilidades da vida cotidiana. 

• O alfinete de fralda é utilizado por Raquel para controlar e fiscalizar suas próprias  vontades. Essa metáfora representa a autodisciplina e a internalização das regras  sociais. Ela reflete o conflito interno de Raquel entre suas vontades individuais e as  expectativas externas, mostrando a necessidade de encontrar um equilíbrio saudável  entre suas necessidades e as demandas do mundo ao seu redor. 

• A Casa de Consertos simboliza a família idealizada por Raquel, onde todos os  problemas e conflitos seriam resolvidos. Essa metáfora expressa o desejo de Raquel de  encontrar um ambiente familiar harmonioso e acolhedor, onde suas vontades e  necessidades sejam compreendidas e atendidas. A casa de consertos representa a  busca por segurança emocional e o anseio por um espaço onde Raquel possa ser  verdadeiramente ela mesma. 

• O Galo Terrivel representa a limitação da liberdade de pensamento. Essa metáfora  simboliza as restrições impostas pela sociedade, que restringem a expressão das ideias  e o questionamento das normas estabelecidas. Reflete a dificuldade de Raquel, a  protagonista, em expressar sua individualidade e ter suas opiniões valorizadas.  

• André é um personagem que representa a comunicação e a imaginação. Sua  presença na história estimula Raquel a se expressar e explorar sua criatividade. A  metáfora de André destaca a importância da comunicação como meio de expressão e  conexão com os outros. Além disso, sua presença também desperta a imaginação de  Raquel, abrindo portas para novas possibilidades e descobertas.  

• Lorelai é um símbolo das descobertas realizadas por Raquel ao longo da narrativa.  Essa metáfora representa a jornada de autodescoberta da protagonista, sua busca por  compreender a si mesma e ao mundo ao seu redor. Lorelai simboliza as experiências  transformadoras e reveladoras que contribuem para o amadurecimento de Raquel. 

Essas metáforas contribuem para uma reflexão mais profunda sobre temas como  a liberdade de pensamento, a importância da expressão pessoal, a busca pela identidade  e a reconciliação dos conflitos internos. Através desses símbolos, a autora nos convida  a refletir sobre as experiências da infância, a necessidade de autoconhecimento e a  importância de encontrar um espaço onde possamos expressar quem realmente somos.

Funcionam como recursos que serviram para superar a opressão dos adultos sobre  ela. Essas metáforas configuradas em amigos pessoas, amigos objetos e amigos animais metamorfoseados. A bolsa estabelece a mediação entre a realidade e a fantasia. 

Assim, no final, quando Raquel esvazia a bolsa, ela está passando por um rito de  passagem entre a criança pré-adolescente que deixou de ser criança e se transformou  em uma adulta jovem que conseguiu sua libertação. Através desses símbolos, a autora  nos convida a refletir sobre as experiências da infância, a necessidade de  autoconhecimento e a importância de encontrar um espaço onde possamos expressar  quem realmente somos. 

Considerações finais 

A representação feminina em “A Bolsa Amarela”, de Lygia Bojunga, aborda as  condições das mulheres na sociedade patriarcal por meio de uma narrativa na voz  infantil. Ficou evidente que é possível abordar e refletir sobre a sociedade patriarcal na  literatura infantil, promover uma problematização e reflexão sobre as temáticas  apresentadas na obra, conforme estabelecido nos objetivos deste estudo. 

O aporte teórico ratifica que, por meio da mimese, é possível tratar de temas  considerados pesados para crianças. As teorias e a própria obra nos mostram que os  jovens leitores podem se beneficiar desse tipo de texto, pois contribui para a formação  de identidade, além de proporcionar caminhos para reflexão e equilíbrio interior. Raquel,  a personagem principal, vivencia aventuras engraçadas e divertidas, utilizando-as como  pretexto para denunciar a sociedade patriarcal. 

A obra pode ser considerada feminista, levando à discussão sobre gênero ao  romper com paradigmas através de personagens como o Galo Afonso e a família da  Casa de Consertos, por meio da imaginação. Abre espaço para diversas análises,  incluindo questões de gênero, aborto, preconceito social, consumismo, identidade,  liberdade, entre outros. Além de questões sociais, o livro também possui uma  metalinguagem da criação literária, uma vez que Raquel acaba produzindo textos e  situações que se tornam histórias imaginárias, podendo servir como ponto de partida  para discussões sobre técnicas de produção textual. 

Por fim, além de analisar a representação feminina, a obra oferece a oportunidade  de explorar temas que despertam questionamentos sobre a sociedade patriarcal que  vivemos e promove reflexões/discussões enriquecedoras sobre as relações de 

desigualdades de gênero e social. Contribui significativamente para o desenvolvimento  de leitores críticos/reflexivos e para a promoção da leitura literária. 

REFERÊNCIAS 

ALVES, B. M.; PITANGUY, J. O que é feminismo? São Paulo: Brasiliense, 1991. BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: ÁTICA, 2017. 

BOJUNGA, Lygia. A bolsa amarela. 35. ed., Rio de Janeiro: Casa Lygia Bonjunga, 2020 

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 2. ed., Rio de Janeiro: BERTRAND  BRASIL, 2002. 

CANDIDO, A. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2000. 

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Trad. de Vera da  Costa e Silva. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017.  

COSTA LIMA, Luiz. Representação Social e Mímesis. IN: _____. Dispersa demanda.  Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981. 

GINZBURG, Jaime. O narrador na literatura brasileira contemporânea. Quaderni di  letterature iberiche e iberoamericane, 2 (2012), p. 199-221 

JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à Teoria Literária.  Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Editora Ática, 1994. 

TODOROV, Tzvetan, [1939] A literatura em perigo. Todorov; tradução Caio Meira. – Rio  de Janeiro: DIFEL, 2009. 

ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 9. ed. São Paulo: Global, 1994. 

ZOLIN, Lúcia Osana. A construção da personagem feminina na literatura brasileira  contemporânea (re)escrita por mulheres. Revista Diadorim / Revista de Estudos  Linguísticos e Literários do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da  Universidade Federal do Rio de Janeiro. v. 9, jul. 2011. Disponível em: Acesso em: jan  2021.


1Doutoranda em Estudos de Linguagens (PPGEL/UFMS). Docente na Rede Estadual de Ensino de Mato Grosso do  Sul.