A REMIÇÃO FICTA NO BRASIL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10051270


Bruno Chemin Borsoi1


Resumo: O presente artigo tem como objetivo verificar a possibilidade de ocorrência do fenômeno da remição ficta no plano nacional. A partir de uma análise da legislação e, especialmente da jurisprudência pátria, se verificou a existência de algumas situações em que será possível a concessão deste benefício legal em sede de execução penal. Em que pese a existência de uma jurisprudência sedimentada quanto a sua inviabilidade por ausência de previsão legal específica, se verificam algumas situações excepcionais que permitem o seu reconhecimento. A pandemia de COVID-19 e a Corte Interamericana de Direitos Humanos contribuiu para incremento de discussões a respeito do tema, o que permitiu que os Tribunais de sobreposição no Brasil pudessem rever o entendimento consolidado afim de inibir ou diminuir o fenômeno das penas ilícitas, em consonância com o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro.

Palavras-chave: Remição. Ficta. Tema 1120. STJ. STF. Pena Ilícita. Trabalho. Leitura.

1. INTRODUÇÃO

A remição é um benefício aplicado ao condenado, seja ele definitivo ou provisório, com vistas a fomentar o processo de ressocialização, estimulando a prática de condutas que possam auxiliar o apenado em sua reintegração social.

A lei de execução penal, Lei Federal nª 7.210/1984 traz a previsão de que a remição pode ocorrer em casos de trabalho e de estudo.

Em caso de remição por estudo ou atividade educacional, a legislação exige que o apenado tenha se dedicado a atividades educacionais pelo período de 12 (doze) horas, desde que divididas em no mínimo 03 (três) dias, consoante artigo 126, §1º, inciso I, da supracitada Lei.

Já no caso de remição pelo trabalho, o apenado detém o direito de remir 01 (um) dia de pena para cada 03 (três) dias laborados, nos termos do que dispõe o artigo da 126, §1º, inciso II.

Neste cenário, o reeducando terá direito ao abatimento de 01 (um) dia de pena para cada vez que cumprir um destes requisitos, sendo possível, inclusive, cumular a remição pelo trabalho e pelo estudo (artigo 126, §3º, da LEP).

A par da previsão legal, o Conselho Nacional de Justiça e a jurisprudência admitem outras hipóteses de remição, tais como a remição pela leitura (Recomendação nº 44/2013 e Resolução nº 391/2021).

De toda a forma, em todas estas hipóteses o reeducando necessariamente deve realizar alguma atividade para que seja possível a aplicação do benefício de abatimento de dias de cumprimento de pena.

Todavia, a doutrina há muito pugna pela necessidade de reconhecimento da remição ficta, também denominada de remição virtual.

Essa ocorre quando se concede o abatimento de dias no cumprimento da pena, ainda que o condenado não tenha realizado determinada atividade, pelo fato de que existe circunstancia que impede a realização da atividade dentro do sistema prisional.

Em outras palavras, a remição ficta permite o abatimento de pena ao reeducando que não trabalha ou estuda dentro do ambiente carcerário pela ausência de estrutura do Estado ou por fato a ele não imputado.

O fundamento do seu reconhecimento deriva de vários direitos do preso reconhecidos no plano interno e internacional. A título ilustrativo se cita o princípio da individualização da pena (artigo 5º, inciso XLVI da Constituição Federal) e o direito do preso ao trabalho previsto, dentre outros, no artigo da Lei de Execução Penal.

Porém, ainda que o Superior Tribunal Federal (STF) tenha reconhecido em sede da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347 a existência do fenômeno denominado de Estado de Coisas Inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro, a jurisprudência, inclusive do próprio STF, sempre negou a possibilidade do reconhecimento da remição ficta, fundamento o seu afastamento pela ausência de previsão legal.

Todavia, esse panorama vem se alterado paulatinamente nos últimos anos, principalmente após a ocorrência da pandemia provocada pelo COVID-19 e pelo reconhecimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos da ocorrência de pena ilícita nos estabelecimentos penais nacionais.

2. DIREITO DO PRESO AO TRABALHO E A REMIÇÃO

2.1 Previsão Jurídica de Trabalho ao Preso

A partir do momento em que o Estado segrega o indivíduo dentro de um estabelecimento prisional, o Estado atrai para si diversas responsabilidades e deveres que devem cominar na tentativa de ressocializar o indivíduo (NUCCI, 2018).

A segregação do preso deve respeitar diversos limites e direitos previstos em tratados internacionais, na Constituição Federal e em várias normativas nacionais. Esses limites impõe uma perspectiva de redução de danos (ROIG, 2022).

De outro lado, a LEP prevê que o preso irá manter todos os direitos que não forem suprimidos pela sentença (artigo 3º).

Nesta conjectura, a Constituição Federal prevê como direito social o direito do indivíduo ao trabalho (art. 6º).

Já a LEP prevê que o trabalho do preso como um direito (artigo 41, inciso I) e um dever (artigo 39, inciso V).

Art. 39. Constituem deveres do condenado:

V – execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas;

Art. 41 – Constituem direitos do preso:

II – atribuição de trabalho e sua remuneração;

A previsão do trabalho ao preso compreende uma finalidade dupla, qual seja, educativa e produtiva com vistas a ressocialização (MARCÃO, 2014).

O trabalho do condenado (e das pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei capazes de realizá-lo) desempenha importante papel no processo de recontato com o meio livre, sendo eficaz instrumento de afirmação da dignidade humana (ROIG, 2022).

Portanto, o Estado deve criar condições para que o preso possa exercer seus direitos, dentre eles o direito a trabalho, compreendendo instrumento de extrema relevância para que a pena atinja uma de suas finalidades e que permita a ressocialização do indivíduo.

Ao criar condições para que o preso possa laborar, o Estado também permite que o preso possa se utilizar do benefício da remição, sem prejuízo de que a remição seja alcançada por outras formas que não o trabalho, como o estudo e a leitura.

2.2 Conceito de Remição e Hipóteses Legais

A remição se constitui em um instituto aplicado na execução penal que permite reduzir o tempo de cumprimento de pena caso o condenado, definitivo ou provisório, se dedique a atividades que lhe auxiliam em sua ressocialização, seja por meio de trabalho, estudo e/ou leitura (ROIG, 2022).

Este instituto permite que a pena seja abreviada ou extinta, tratando-se de um estimulo para a prática de certas condutas dentro do ambiente carcerário (MIRABETE, 2000).

É o que leciona Renato Marcão:

A palavra “remição” vem de redimire, que no latim significa reparar, compensar, ressarcir. É preciso não confundir “remição” com “remissão”, esta, segundo o léxico, significa a ação de perdoar.

Pelo instituto da remição, o sentenciado pode reduzir o tempo de cumprimento de pena, contanto que se dedique rotineiramente ao trabalho e/ou estudo, observadas as regras dos arts. 126 a 128 da LEP2.

A regulamentação legal do instituto se encontra presente no artigo 126 e seguintes da LEP, que apresenta um capítulo próprio em seu texto para disciplinar o instituto.

A referida normativa apresenta a possibilidade de remição pelo trabalho e a remição pelo estudo, trazendo os requisitos para a concessão da remição em ambos os casos, inclusive quanto a possibilidade de cumulação da remição pelo trabalho e pelo estudo, impondo que o Estado defina as horas diárias de trabalho e estudo de forma a se compatibilizarem (ROIG, 2022).

Em caso de remição por estudo, a legislação exige que o apenado tenha se dedicado a atividades educacionais pelo período de 12 (doze) horas, desde que divididas em no mínimo 03 (três) dias, consoante artigo 126, §1º, inciso I, da supracitada Lei.

Já no caso de remição pelo trabalho, o apenado detém o direito de remir 01 (um) dia de pena para cada 03 (três) dias laborados, nos termos do que dispõe o artigo da 126, §1º, inciso II.

Mesmo que ausente previsão legal específica, o Conselho Nacional de Justiça e a jurisprudência admitem outras hipóteses de remição, tais como a remição pela prática de atividades sociais educativas escolares, não escolares e pela leitura (Recomendação nº 44/2013 e Resolução nº 391/2021).

Resolução 391/2021 – CNJ: Artigo 1º, Parágrafo único. Para fins desta resolução, considera-se:

I – atividades escolares: aquelas de caráter escolar organizadas formalmente pelos sistemas oficiais de ensino, de competência dos Estados, do Distrito Federal e, no caso do sistema penitenciário federal, da União, que cumprem os requisitos legais de carga horária, matrícula, corpo docente, avaliação e certificação de elevação de escolaridade; e

II – práticas sociais educativas não-escolares: atividades de socialização e de educação não-escolar, de autoaprendizagem ou de aprendizagem coletiva, assim entendidas aquelas que ampliam as possibilidades de educação para além das disciplinas escolares, tais como as de natureza cultural, esportiva, de capacitação profissional, de saúde, dentre outras, de participação voluntária, integradas ao projeto político-pedagógico (PPP) da unidade ou do sistema prisional e executadas por iniciativas autônomas, instituições de ensino públicas ou privadas e pessoas e instituições autorizadas ou conveniadas com o poder público para esse fim.

A normativa apresentada pelo CNJ apresenta alguns requisitos e limites para a concessão do benefício nestes casos, em especial em relação a remição pela leitura.

A resolução dispõe que o reeducando terá de 21 (vinte e um) a 30 (trinta) dias para realizar a leitura de um dos livros dispostos na biblioteca do estabelecimento penal. Após escoado o prazo, o preso terá 10 (dez) dias para realizar um relatório sobre sua leitura. Esse relatório será apreciado por uma comissão definida pelo estabelecimento (artigo 5º, inciso IV).

Para cada livro lido será concedida a remição de 04 (quatro) dias de pena (artigo 5º, inciso V). A resolução também determina que somente é possível a remição pela leitura pelo número de 12 (doze) vezes no período de 12 (doze) meses, o que acaba por limitar a remição pela leitura a fração de 48 (quarenta e oito) dias por ano.

Se observa, por tanto, que o instituto da remição apresenta grande regulamentação pela legislação nacional e por atos normativos de órgãos correlatos, à exemplo do CNJ.

Todavia, a regulamentação é tímida com relação a remição ficta.

2.3 Remição Ficta Regulamentada

A remição ficta ocorre quando é possível conceder remição de dias ao reeducando, mesmo que este não tenha realizado trabalho ou estudo dentro do ambiente prisional, desde que o preso não tenha dado causa a esta condição. A remição ficta pode ser denominada de remição virtual ou remição automática (ROIG, 2022).

A sua previsão legal é extremamente tímida, de modo que a LEP trouxe apenas uma possibilidade de sua concessão, regulamentação esta hipótese em seu artigo 126, §4º, onde prevê a possibilidade de remição de pena ao preso que, se tornou impossibilitado de realizar trabalho ou estudo por acidente.

Artigo 126, § 4o – O preso impossibilitado, por acidente, de prosseguir no trabalho ou nos estudos continuará a beneficiar-se com a remição.

Essa previsão não constava no texto legal quando do início da vigência da LEP, sendo que esta previsão foi acrescida pela Lei nº 12.433/2011.

Sendo assim, a legislação prevê que a única forma de ser concedida a remição ficta seria na hipótese em que o preso se acidenta e, em decorrência do seu quadro clínico, se mostra impossibilidade de trabalhar ou estudar, ocasião em que terá direito a remição mesmo que não realize qualquer atividade.

A resolução 391/2021 do CNJ, embora não tenha natureza de lei, traz outra possibilidade de remição ficta em seu artigo 7º, inciso II.

Artigo 7º, inciso II – seja assegurado o registro de presença da pessoa inscrita na prática social educativa, com o respectivo cômputo de carga horária, em caso de ausência motivada por questões de saúde, caso fortuito, força maior e quando a não realização da atividade decorrer de ato injustificado da administração da unidade de privação de liberdade;

A previsão é parecida com a remição ficta estabelecida pela LEP, mas traz importante incremento. A remição ficta será concedida não apenas nos casos em que o reeducando não esteja em condições de saúde de praticar a atividade, como também nos casos em que a não realização da atividade decorrer de caso furtuito, força maior e em decorrência de ato injustificado da administração da unidade prisional.

Conforme se infere do texto regulamentar, a remição ficta poderá ser aplicada em casos imputados à administração da unidade, desde que decorrente de injusto motivo.

Neste cenário, parcela da doutrina defende que a não existência de vagas de trabalho dentro do estabelecimento penal daria ensejo a remição ficta (ROIG, 2022).

3. RECONHECIMENTO DA REMIÇÃO FICTA FORA DAS HIPÓTESES LEGAIS

Em que pese a construção doutrinária quanto a possibilidade de concessão de remição ficta fora das hipóteses legais, a jurisprudência nacional se consolidou pela sua não admissão (MARCÃO, 2014).

O fundamento para a sua não admissão está justamente no fato de que esse benefício não goza de previsão legal.

Esse posicionamento era pacífico tanto no Supremo Tribunal Federal – STF3, quanto no Superior Tribunal de Justiça – STJ4.

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. REMIÇÃO FICTA. ADMISSIBILIDADE SOMENTE NAS HIPÓTESES PREVISTAS NO ART. 126 DA LEP. IMPOSSIBILIDADE NO CASO CONCRETO. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. PRECEDENTES DESTA CORTE. 1. Segundo a jurisprudência desta Corte Superior de Justiça, a remição ficta somente é admitida nas hipóteses legalmente previstas no art. 126, caput, da LEP, que elenca para tal finalidade apenas o trabalho e estudo. Não pode a suposta omissão Estatal ser utilizada como causa a ensejar a concessão ficta de um benefício que depende de um real envolvimento da pessoa do apenado em seu progresso educativo e ressocializador. 2. Com efeito, da mesma forma que os estudos, prioriza-se as horas efetivas de trabalho. Só assim é possível analisar o real comportamento do apenado e sua intenção de ressocialização. 3. A Defesa pretende, em síntese, que sejam cassadas as decisões das instâncias ordinárias, que indeferiram o pleito do paciente de homologação da remição ficta, pelo tempo em que teria ficado impedido de trabalhar em virtude da pandemia […] Não assiste razão à impetrante, uma vez que é firme a jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça no sentido de que, na ausência de expressa previsão legal – a exemplo da regra existente relativa aos reeducandos que venham a sofrer acidente laboral, do art. 126, § 4º, da LEP – não está autorizada a remição ficta da pena do preso que deixou de trabalhar, somente se podendo considerar, para fins de remição, o tempo de trabalho ou de estudo efetivamente cumprido pelo sentenciado (HC 651.897, Relator Ministro FELIX FISCHER, data da publicação: 4/5/2021)

Conforme se depreende dos julgados das Cortes de sobreposição, a omissão estatal não pode implicar remição ficta da pena, haja vista a razão do referido benefício, que é encurtar o tempo de pena mediante a efetiva dedicação do preso a atividades lícitas e favoráveis à sua reinserção social e ao seu progresso educativo.

Uma vez que o preso não realiza fisicamente estas atividades, considerando a ausência de previsão legal, seria impositiva a negativa de sua concessão.

Essa posição é criticada fortemente por parcela da doutrina por implicar, dentre outros, em quebra ao princípio da igualdade.

Não é razoável que Estado exija do condenado o cumprimento do dever de trabalhar, mas não ofereça condições para tanto, e pior, não compense o inadimplemento de seu dever de oferta laborativa. Nem se diga que o beneficiamento daqueles que não trabalham produziria ruptura da igualdade com os que trabalham, pois tal visão inverte a lógica jurídica favor rei. Na verdade, a ruptura da igualdade ocorre justamente ao não se assegurar a todos os presos o efetivo direito ao trabalho, discriminando-se alguns por desídia político-administrativa ou ausência de condições materiais.

Ocorre que este cenário está se alterando recentemente, sendo que a remição ficta foi admitida em outras hipóteses, ainda que não gozasse de previsão legal.

3.1 Recursos Repetitivos – Tema nº1120 – STJ – Nova Hipótese De Remição Ficta

Nos termos da Constituição Federal e do Código de Processo Civil, o STJ tem como uma de suas funções uniformizar a interpretação das leis federais, dentre elas a LEP.

Para concretizar suas funções, o CPC trouxe a previsão de instrumentos vocacionados a uma formação qualificada de precedentes judiciais, sendo que estes precedentes, observados os requisitos legais, serão aplicados de forma obrigatória pelos demais órgãos judiciais brasileiros (NEVES, 2016).

Dentro desta ordem de ideias, o STJ foi suscitado a se manifestar a respeito da remição ficta, mas em uma situação excepcional. Na aplicação ou não do benefício legal diante do quadro de pandemia instaurado pelo COVID-19.

Em que pese a jurisprudência sedimentada do STJ com relação a impossibilidade de remição ficta fora das hipóteses legais, o Tribunal verificou que esta hipótese deveria ser analisada com ressalvas, de modo que admitiu o processamento desta matéria sob a sistemática dos recursos repetitivos e, com a imposição de tese a ser firmada em precedente qualificado.

O principal fundamento trazido ao Tribunal para alteração de posicionamento decorria da impossibilidade fática dos presos de realizarem trabalho ou estudo no ambiente prisional em virtude das determinações de não aglomeração e circulação no ambiente penitenciário em decorrência da pandemia.

Nesta perspectiva, o STJ ponderou que a jurisprudência consolidada quanto a impossibilidade de concessão de remição ficta fora das hipóteses legais foi construída dentro de um estado normal de coisas, que não deveria ser replicado diante da situação excepcionalíssima de uma pandemia.

O princípio da dignidade da pessoa humana conjugado com os princípios da isonomia e da fraternidade (este último tão bem trabalhado pelo em. Min. Reynaldo Soares da Fonseca) não permitem negar aos indivíduos que tiveram seus trabalhos ou estudos interrompidos pela superveniência da pandemia de covid-19 o direito de remitir parte da sua pena tão somente por estarem privados de liberdade. Não se observa nenhum discrímen legítimo que autorize negar àqueles presos que já trabalhavam ou estudavam o direito de remitir a pena durante as medidas sanitárias restritivas5.

Convencido dos argumentos que fomentavam o reconhecimento da remição ficta nesta hipótese específica, o STJ firmou a tese nº 1120 com o seguinte teor:

Nada obstante a interpretação restritiva que deve ser conferida ao art. 126, §4º, da LEP, os princípios da individualização da pena, da dignidade da pessoa humana, da isonomia e da fraternidade, ao lado da teoria da derrotabilidade da norma e da situação excepcionalíssima da pandemia de covid-19, impõem o cômputo do período de restrições sanitárias como de efetivo estudo ou trabalho em favor dos presos que já estavam trabalhando ou estudando e se viram impossibilitados de continuar seus afazeres unicamente em razão do estado pandêmico.

Ao assim proceder, o Tribunal excepcional sua própria jurisprudência, criando uma nova hipótese de remição ficta fora das hipóteses legais admitidas.

Cabe ressalvar que a concessão do benefício se restringe ao período de pandemia e apenas aos presos que já estavam realizando atividades laborativas ou educacionais quando implementadas as limitações de movimentação e aglomeração provocadas pela pandemia.

3.2 Resolução da Corte Interamericana – Pena Ilícita – Nova hipótese de Remição Ficta

É de conhecimento notório que o Brasil apresenta graves e estruturais problemas em seu sistema carcerário. O país apresenta uma superpopulação carcerária e não detém um número de estabelecimentos prisionais condizentes com o número de presos.

Não à toa, o STF em sede da ADPF nº 347, reconheceu que o Brasil apresenta um Estado de Coisas Inconstitucional em seu sistema carcerário, ordenando uma série de medidas para tentar amenizar este quadro de violações sistêmicas aos direitos humanos dos presos.

Em que pese a decisão da ADPF nº 347, os Tribunais Superiores não admitem a remição ficta fora das hipóteses legais.

Contudo, o STJ foi forçado a reconhecer uma nova hipótese de remição ficta em decorrência de uma Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos proferida em 2018.

Ao analisar a superlotação carcerária existente no estabelecimento prisional denominado Complexo de Sá Carvalho, localizado no Rio de Janeiro, a Corte reconheceu a existência de penas ilícitas.

Em síntese, pena ilícita, conforme denominação criada pelo professor Eugenio Raul Zaffaroni, compreende a ideia de que qualquer cumprimento de pena em estabelecimentos prisionais da América Latina são violadoras de direitos humanos, pois os presos são submetidos a inúmeras ilicitudes pelo próprio Estado que as impõe (ZAFFARONI, 2020).

Conjugando a ideia de pena ilícita e constatando a existência de uma superlotação carcerária no complexo de Sá Carvalho, a Corte Interamericana determinou, a título de medida provisória, que os indivíduos que estivessem cumprindo pena neste estabelecimento tivessem o computo de sua pena realizado de forma diferenciada.

A Corte determinou que os dias de cumprimento de pena naquele estabelecimento fossem computados em dobro. Em outras palavras, a Corte criou nova hipótese de remição ficta fundada em pena ilícita decorrente da superlotação carcerária. Portanto, pelo simples fato de o apenado estar cumprindo pena no estabelecimento, este deve fazer jus ao abatimento de sua pena.

Cabe pressupor, de forma absoluta, que as privações de liberdade dispostas pelos juízes do Estado, a título penal ou cautelar, o foram no prévio entendimento de sua licitude por parte dos magistrados que as dispuseram, porque os juízes não costumam dispor prisões ilícitas. No entanto, são executadas ilicitamente e, por conseguinte, dada a situação que persiste, e que nunca devia ter existido, mas existe, ante a emergência e a situação real, o mais prudente é reduzi-las de forma que seja computado como pena cumprida o excedente antijurídico de sofrimento não disposto ou autorizado pelos juízes do Estado.

(…) Requerer ao Estado que adote imediatamente todas as medidas que sejam necessárias para proteger eficazmente a vida e a integridade pessoal de todas as pessoas privadas de liberdade no Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, bem como de qualquer pessoa que se encontre nesse estabelecimento, inclusive os agentes penitenciários, os funcionários e os visitantes, nos termos dos Considerandos 61 a 64 e 67. 2. O Estado deve tomar as medidas necessárias para que, em atenção ao disposto na Súmula Vinculante No. 56, do Supremo Tribunal Federal do Brasil, a partir da notificação da presente resolução, novos presos não ingressem no IPPSC e tampouco se façam traslados dos ali alojados a outros estabelecimentos penais, por disposição administrativa. Quando, por ordem judicial, se deva trasladar um preso a outro estabelecimento, o disposto a seguir, a respeito do cômputo duplo, valerá para os dias em que tenha permanecido privado de liberdade no IPPSC, em atenção ao disposto nos Considerandos 115 a 130 da presente resolução6.

A determinação da Corte tem força obrigatória no Brasil, de modo que o próprio STJ reafirmou a necessidade de sua observância.

AGRAVO REGIMENTAL. MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. LEGITIMIDADE. IPPSC (RIO DE JANEIRO). RESOLUÇÃO CORTE IDH 22/11/2018. PRESO EM CONDIÇÕES DEGRADANTES. CÔMPUTO EM DOBRO DO PERÍODO DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE. OBRIGAÇÃO DO ESTADOPARTE. SENTENÇA DA CORTE. MEDIDA DE URGÊNCIA. EFICÁCIA TEMPORAL. EFETIVIDADE DOS DIREITOS HUMANOS. PRINCÍPIO PRO PERSONAE. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE. INTERPRETAÇÃO MAIS FAVORÁVEL AO INDIVÍDUO, EM SEDE DE APLICAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS EM ÂMBITO INTERNACIONAL (PRINCÍPIO DA FRATERNIDADE – DESDOBRAMENTO). SÚMULA 182 STJ. AGRAVO DESPROVIDO. 1. Hipótese concernente ao notório caso do Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho no Rio de Janeiro (IPPSC), objeto de inúmeras Inspeções que culminaram com a Resolução da Corte IDH de 22/11/2018, que, ao reconhecer referido Instituto inadequado para a execução de penas, especialmente em razão de os presos se acharem em situação degradante e desumana, determinou que se computasse “em dobro cada dia de privação de liberdade cumprido no IPPSC, para todas as pessoas ali alojadas, que não sejam acusadas de crimes contra a vida ou a integridade física, ou de crimes sexuais, ou não tenham sido por eles condenadas, nos termos dos Considerandos 115 a 130 da presente Resolução”. Ao sujeitar-se à jurisdição da Corte IDH, o País alarga o rol de direitos das pessoas e o espaço de diálogo com a comunidade internacional. Com isso, a jurisdição brasileira, ao basear-se na cooperação internacional, pode ampliar a efetividade dos direitos humanos. 4. A sentença da Corte IDH produz autoridade de coisa julgada internacional, com eficácia vinculante e direta às partes. Todos os órgãos e poderes internos do país encontram-se obrigados a cumprir a sentença7.

A única ressalva feita pela Corte e pelo STJ diz respeito a necessidade de que os presos que estivessem cumprindo pena em decorrência da prática de crime contra a vida, integridade física ou de cunho sexual. Nestes casos, a remição ficta somente será possível após a realização de prévio exame criminológico.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 A partir dos estudos realizados se infere que a remição ficta apresenta duas hipóteses de regulamentação. A primeira hipótese está prevista na LEP e ocorre quando o preso se encontra trabalhando ou estudando e se envolve em acidente, caso em que, em decorrência do seu quadro de saúde, se torna impossibilidade de continuar suas atividades, podendo neste caso ser beneficiado com a remição ficta. A outra hipótese regulamentada está prevista na Resolução nª 391/2021 do CNJ que alarga a possibilidade de remição ficta nos casos de práticas sociais educativas, abarcando a hipótese de concessão do benefício quando diante de caso furtuito, força maior ou em decorrência de ato injustificado da administração prisional.

Ainda que existam estas previsões legais, a jurisprudência nacional não reconhece a remição ficta fora das hipóteses legais, em especial nos casos em que o Estado não detém condições de oferecer trabalho ou estudo ao preso.

Todavia, essa jurisprudência está sendo revisada de forma paulatina, se reconhecendo hipóteses excepcionais em que a remição ficta será aplicada. São os casos de remição ficta diante da pandemia de COVID-19 e nos casos decorrentes de determinação da Corte Interamericana quando da verificação de penas ilícitas.


2MARCÃO, Renato; Curso de Execução Penal, Saraiva, 13º Edição, 2014, página 215.
3HC 202710 AgR, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 30/08/2021; HC 124520, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 15/05/2018
4AgRg no REsp n. 1.640. 145/RO, Ministro JORGE MUSSI, Quinta Turma, DJe 26/5/2017; AgRg no REsp 1.720.628/RO, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Sexta Turma, julgado em 18/9/2018, DJe 15/10/2018; EDcl no AgRg nos EDcl no AREsp n. 1.697.170/SP, relator Ministro João Otávio de Noronha, Quinta Turma, julgado em 23/3/2021, DJe de 29/3/2021
5RECURSO ESPECIAL Nº 1.953.607 – SC (2021/0257918-4), voto Ministro Ribeiro Dantas (relator).
6Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho. Medidas Provisórias a respeito do Brasil. Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 31 de agosto de 2017
7AgRg no RHC n. 136.961/RJ, Ministro Relator Reynaldo Soares Da Fonseca, data de julgamento: 21/6/2021

4. REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 7.240, de 11 de Julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 25 outubro 2023.

MARCÃO, R; Curso de Execução Penal; 12º Edição; São Paulo; Saraiva; 2013.

NEVES, D. A. A.; Manual de Direito Processual Civil Volume Único; 8º Edição; São Paulo; Juspodivm; 2016;

NUCCI, G. S.; Curso de Execução Penal. 5ª edição; Rio de Janeiro; Forense, 2022.

ROIG R. D. E.; Execução penal – teoria crítica; 6º edição; São Paulo; Revista dos Tribunais; 2022

ZAFFARONI, E. R.; Penas Ilícitas: un desafío a la dogmática penal. Buenos Aires: Editores del Sur, 2020.


1Advogado; Pós Graduado em Processo Civil pela Universidade Anhanguera – Possui graduação em Direito pela Associação Educacional do Vale da Jurumirim – Faculdade Eduvale de Avaré/SP