REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11357198
Maria Lucia Alves Da Silva1
Orientador: Profº M.e Alexandre de Paula e Silva 2
Orientadora: Profª M.e Meg Gomes Martins de Ávila3
RESUMO
A religião faz parte do contexto das crenças do ser humano e, como tal, atravessa os contextos da saúde no seu termo cientifico, influenciando, diretamente ou não, na saúde mental. O psicanalista Sigmund Freud traz em suas pesquisas um olhar crítico para a transcendência. A presente pesquisa visa compreender a religião na perspectiva psicanalítica. É uma pesquisa do tipo de revisão de literatura sistemática, com os seguintes descritores: religião, Freud e psicanálise. A busca foi realizada nas bases de dados eletrônicas – Biblioteca Virtual de Saúde (BVS) e Google Scholar com o levantamento de publicações cientificas sobre a temática no intervalo temporal de 2010 até 2024. A partir das principais descobertas, pode-se afirmar que a contribuição da psicanálise é de grande relevância para a crítica ao fenômeno religioso e a transcendência, pois, ocupa-se da análise da expressividade do fundamentalismo religioso na sociedade pós-moderna, ancoradas nas linhas de pensamentos freudiana e atualizações contemporâneas. Pode-se concluir que a análise da crítica freudiana, revela-se relevante no campo da psicologia contemporânea, oferecendo uma compreensão mais profunda das influências religiosas na saúde mental e no bem-estar psicológico das pessoas. Essa perspectiva crítica permite uma reflexão aprofundada sobre os efeitos da religião na formação da personalidade, destacando a importância de uma abordagem equilibrada e saudável da religiosidade.
Palavras-chave: Religião. Freud. Psicanálise.
ABSTRACT
Religion is part of the context of human beliefs and, as such, it crosses over into the contexts of health in its scientific term, influencing, directly or not, mental health. Psychoanalyst Sigmund Freud took a critical look at transcendence in his research. This research aims to understand religion from a psychoanalytic perspective. It is a systematic literature review using the following descriptors: religion, Freud and psychoanalysis. The search was carried out in the electronic databases – Virtual Health Library (VHL) and Google Scholar – with a survey of scientific publications on the subject from 2010 to 2024. Based on the main findings, it can be affirmed that the contribution of psychoanalysis is of great relevance to the critique of the religious phenomenon and transcendence, since it deals with the analysis of the expressiveness of religious fundamentalism in postmodern society, anchored in Freudian lines of thought and contemporary updates. It can be concluded that the analysis of Freudian criticism is relevant in the field of contemporary psychology, offering a deeper understanding of religious influences on people’s mental health and psychological well-being. This critical perspective allows for an in-depth reflection on the effects of religion on personality formation, highlighting the importance of a balanced and healthy approach to religiosity.
Keywords: Religion. Freud. Psychoanalysis.
INTRODUÇÃO
A relação entre psicologia e religião é um tema de grande interesse e debate no meio profissional e acadêmico. A psicologia conhecida como ciência do comportamento, busca compreender e esclarecer o processo mental e emocional do ser humano, explorando as mais diversas formas de comportamento e modos de interpretar o mundo ao seu redor. Assim, a religião é um fenômeno cultural complexo que engloba: crenças, práticas, rituais e valores morais.
Este trabalho trata da crítica da psicanálise à religião, especificamente ao fundamentalismo religioso, discutindo sobre os elementos históricos e epistêmicos em torno dos debates e embates entre ciência e cristianismo. Ressalta-se que um dos fatos mais apavorantes do século XX, foi o erguimento de uma religiosidade militante conhecida como fundamentalismo. Nascido entre as grandes tradições religiosas, esse acontecimento se apresenta como uma reação contra o meio da cultura secular e científica, surgida no Ocidente e, depois, difundida para outras partes do mundo.
Nesse contexto, Oliveira (2019) explica que o termo fundamentalista foi empregado, primeiramente, por protestantes norte-americanos que, no início do século XX, destacaram-se identificando-se dessa forma para se distinguir dos outros cristãos liberais, que segundo eles, distorcia a doutrina cristã ao absorver os valores da modernidade. Desta forma, os fundamentalistas esquematizaram o objetivo de retornar aos alicerces da religião, através da explicação da Bíblia e da conservação de doutrinas avaliadas imutáveis. Atualmente, o termo fundamentalista é aplicado a movimentos radicais em outras religiões, além do cristianismo.
A religião e a espiritualidade trazem como estruturas vários significados que conferem sentido à existência humana, e, por conseguinte, às experiências de sofrimento, caracterizando-as como parte da realidade e cultura humana, constituindo-se assim, um dos aspectos da subjetividade do homem.
Nesse contexto, Domingues et al (2020) apontam que no Brasil, existe um grande interesse científico por temas religiosos e espirituais, especialmente na área de psicologia e religião, pontuando que os especialistas nesta temática tendem a considerar o religioso em diversas situações: na ciência, na política, nas mídias e tecnologias de comunicação.
No que tange ao debate entre psicologia e religião, cabe trazer à discussão as importantes contribuições da crítica freudiana, que são base de averiguação científica para a psicologia. Para Freud, os atos obsessivos presentes nas práticas religiosas, apontavam para uma analogia bastante profunda entre neurose e religião, em outras palavras, de certa forma esses atos obsessivos oferecia à neurose um caráter religioso e à religião um caráter neurótico (Staudt; Santos e Bitarello, 2016).
Em sua obra “O Futuro de uma Ilusão” (1927), Freud apresenta uma crítica significativa à religião e argumenta que ela é uma expressão da necessidade humana de segurança e proteção em um mundo incerto e ameaçador. Fundamentado em sua teoria psicanalítica, ele sugere que a religião é uma ilusão originada da projeção inconsciente de desejos e medos humanos em uma figura divina. Segundo o teórico, a religião é uma expressão do desejo pela presença de um pai protetor, já que as figuras religiosas, como Deus, geralmente são representadas como pais amorosos e benevolentes. Ainda, argumentou que a religião é uma forma de repressão psicológica e uma fonte de conflitos internos, uma vez que, apresenta-se como uma força repressora que impõe uma moral rígida e restringe o prazer (o que pode levar a sentimento de culpa e frustração), levando a uma forma de submissão à autoridade, que embora, ajude a lidar com a ansiedade, suprime o desejo e a individualidade.
No entanto, é importante ressaltar que a visão de Freud sobre a religião foi objeto de críticas e discussões dentro da própria psicologia e entre estudiosos das religiões. Muitos argumentaram que a visão de Freud foi simplista e não levou em consideração o aspecto cultural, social e espiritual da religião.
Portanto, embora a obra de Freud tenha contribuído para a compreensão das influências religiosas na formação da personalidade e nos processos psicológicos, é necessário considerar uma variedade de perspectivas e abordagens teóricas para uma compreensão mais abrangente desse tema.
Trazendo para esta reflexão uma perspectiva contemporânea, Silva (2018) explicita que a psicologia da religião, ocupa-se das expressões e suas manifestações de realidades religiosas e verdades ontológicas que se definem sobre a prática da relação homem/mundo. Desse modo, tal estudo contemporâneo, enfatiza que a subjetividade humana se constitui de crenças e práticas religiosas, ou seja, os sujeitos tendem a elaborar internamente suas vivências e experiências pautadas em crenças religiosas socialmente compartilhadas e esse é um fenômeno que não escapa à análise científica, dada sua relevância cultural.
É nesse prisma que se torna relevante ampliar essa pesquisa, a qual certamente contribuirá para a abrangência dos conhecimentos nessa área, bem como, beneficiará a ampliação das percepções no âmbito de entender a visão da psicanálise sobre os fenômenos religiosos, contribuindo para a atuação crítica e ética do psicólogo nestas questões que compõem a subjetividade humana. Do ponto de vista da relevância acadêmica, tal pesquisa é próspera para instigar, desenvolver o senso crítico e a capacidade analítica.
No que se refere a relevância deste estudo, considera-se que essa busca poderá estimular não só o aprofundamento teórico nesta temática, como também desmistificar tabus e preconceitos em relação a atuação do psicólogo nas questões subjetivas do sujeito envolvendo a religião, tornando-se possível a aplicabilidade de tais conhecimentos no que tange ao progresso da qualidade de vida dos diversos sujeitos que buscam ajuda psicológica. Tendo em vista os benefícios que essa pesquisa poderá trazer para os profissionais psicólogos, acadêmicos e a sociedade em geral, fica explícita a importância de sua execução.
Assim, esse trabalho tem como objetivo: compreender a religião na perspectiva psicanalítica. E quanto aos objetivos específicos: investigar as bases teóricas da crítica de Freud à religião, compreender como as influências religiosas podem afetar a saúde mental e o bem-estar psicológico das pessoas e conceituar a religião na perspectiva freudiana.
É nesse contexto que esta pesquisa se justifica, tornando-se relevante questionar: qual é a importância de pensar a crítica freudiana à religião no debate da psicologia e psicanálise contemporânea?
Por fim, essa pesquisa deseja contribuir com as informações e os conhecimentos de cunho científico sobre a temática, visto que, esse material poderá servir de apoio para futuros estudos de caráter acadêmico, profissional e áreas afins.
METODOLOGIA
A presente pesquisa trata-se de um estudo de natureza básica, com abordagem qualitativa e descritiva, tratou-se de uma revisão de literatura sistemática, o qual sumariza artigos científicos nacionais e internacionais, permitindo sintetizar as pesquisas já finalizadas e realizar inferências a partir de um tema de interesse. Nesse prisma, abordou a seguinte problemática: a religião na perspectiva psicanalítica. Desse modo, este método viabiliza a busca de evidências científicas de forma organizada e com credibilidade acadêmica.
Ainda nesse contexto, Galvão, Pansani e Harrad (2015) ilustram que esse estudo foi elaborado com base nos itens sugeridos pelo Checklist Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analysis (PRISMA), que defende a construção de pesquisas qualificadas com revisões fundamentadas em análise crítica. Esse estudo segue a partir dos seguintes passos: (1) preparo da investigação da pesquisa; (2) definição dos descritores em português e inglês; (3) seleção das bases de dados; (4) critérios de inclusão e exclusão; (5) busca dos armazenamentos dos resultados; (6) escolha dos artigos através da leitura dos resumos; (7) leitura integral dos artigos selecionados; (8) seleção dos artigos a serem fichados; e (9) resumo dos achados e interpretação dos resultados.
Para tal Pedro e Ribeiro (2021) mencionam que os artigos examinados em revistas científicas são documentos relevantes, por expressarem de maneira objetiva e clara os resultados que passam por uma revisão paritária concretizada por diversos especialistas e pelos editores dos periódicos, atestando assim, a qualidade e a credibilidade dos achados que servirão de base para a construção do esqueleto teórico sobre a temática da escolha.
Assim, foram empregados os seguintes descritores: “Religião”, “Freud” e “Psicanálise”. Essa estratégia contou também com uso do operador booleano “AND”. Essa investigação foi realizada nas bases dos dados da: Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e Google Scholar, acessadas nos períodos de 2010 a 2024. A escolha dessas bases de dados eletrônicas, devem-se ao fato de serem multidisciplinares, com várias áreas interdisciplinares na área da psicologia e psicanálise na indexação de periódicos, disponibilizando artigos completos e com acesso livre.
Os critérios de inclusão dessa investigação foram: buscar os descritores no título do artigo, artigos publicados no período abrangido entre os anos de 2010 a 2024, em língua portuguesa ou inglesa, com foco na: religião, Freud e psicanálise. Prontamente, todos os artigos que não se apropriarem a esses critérios de inclusão foram desconsiderados.
E como critérios de exclusão, optou-se por descartar artigos que: fossem escritos em outras línguas que não fosse português e inglês; apresentassem foco em outras linhas fora do tema proposto; trabalhos de conclusão de curso, manuais, dissertações, teses, boletins, livros e resumos de anais de congressos etc., foram rejeitados.
Após há essas verificações, foram denominados quatro tipos de instrumentos de coleta de dados, preenchidos para cada artigo da amostra final, tendo as seguintes variáveis: título dos artigos, objetivos, autores e ano de publicação. Os artigos selecionados foram avaliados a partir da leitura integral e interpretativa.
Em suma, de posse desses dados, construiu-se os resultados, os quais foram explanados e ponderados com base na sumarização obtida, sendo por fim, exposta uma síntese do conhecimento produzido com base nos aspectos enfocados pela essa pesquisa. A presente revisão foi construída a partir da leitura integral de 17 artigos científicos, cujos detalhes das triagens, encontram-se no fluxograma (figura 1).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Diante das buscas realizadas, acharam-se 59 artigos na BVS e 150 no Google Scholar, totalizando 209 artigos. Após a aplicação do refinamento tendo por base os critérios de inclusão e exclusão deste estudo, abreviaram para 17 documentos, os quais foram utilizados para a confecção da presente revisão, sendo eles: 07 retirados da BVS e 10 do Google Scholar. Para melhor elucidação de todo método de investigação e escolha dos artigos aproveitados, optou-se pelo uso de um fluxograma, ilustrado na Figura 1.
Fonte: Protocolo PRISMA adaptado.
Desse modo, após a leitura dos artigos, temos uma breve exposição dos achados conforme observados no Quadro 1 abaixo. Esses dados foram fichados dos artigos selecionados no que tange à temática em estudo e contêm informações como autores e ano, título e objetivo a fim de organizar e demonstrar os dados coletados.
Quadro 1 – Categorização dos artigos selecionados para revisão.
Autores e ano | Título | Objetivo |
Dias e Safra, 2019 | A vocação mística da psicanálise | Esse estudo pretende pensar na psicanálise enquanto uma prática clínica essencialmente compatível com certas características dos fenômenos místicos, o que lhe permite abordá-los clinicamente. |
Binkowski; Rosa e Baubet, 2020 | A discursividade evangélica e alguns de seus efeitos: laço social, psicopatologia e impasses teóricos e transferenciais | Trata-se de uma modalidade de monoteísmo cristão que se decalca entre grupos e correntes evangélicas hoje |
Goldenberg, 2022 | Reflexões sobre o sofrimento | Discutir as incidências sobre a aplicação do método psicanalítico e como afeta a reivindicação de uma ética que seja inerente à psicanálise. |
Klein; Ferreira e Verztman, 2023 | “O animista é sempre o outro”: o encantamento dos objetos e a experiência analítica | Revisitar a noção de animismo em psicanálise a partir das provocações do perspectivismo ameríndio. |
Klein, 2022 | Exu e a psicanálise: da culpa à ilusão | Consiste em abrir os caminhos para uma discussão ainda incipiente entre a psicanálise e o candomblé e, para tal, parte da figura de Exu, mais especificamente assinalando o lugar plural da corporeidade e das fronteiras com o mundo. |
Machado e Neto, 2022 | Ama teu próximo como a ti mesmo: intolerância religiosa sob uma perspectiva psicanalítica | Aborda a problemática da intolerância religiosa sob a concepção de sujeito da psicanálise. |
Marques e Fulgencio, 2023 | O desenvolvimento dos objetos transcendentes e da religião fundamentado na teoria freudiana | Analisar estes objetos a partir do ponto de vista de Sigmund Freud almejando e, com isto, analisar sua origem nos processos de sublimação da sexualidade e nos processos projetivos e identificatórios que caracterizam o desenvolvimento emocional do ser humano. |
Neto e Drawin, 2019 | Crença religiosa e final de análise: o sujeito frente à elaboração de saber | Investigar as possibilidades de crença religiosa para um sujeito em final de análise. |
Neto e Machado, 2022 | Religiosidade e Política na Sociedade Brasileira Secularizada: Uma Leitura Psicanalítica | Investigar, através de uma pesquisa teórica, como as novas formas de envolvimento religioso, em suas configurações seculares, podem ter derivado, também, novos caminhos na relação entre religião e política. |
Oliveira e Moreira, 2023 | A Liderança Fundamentalista: Uma Abordagem a partir de Freud | Visa a uma abordagem do fundamentalismo religioso sob a perspectiva da teoria freudiana. |
Oliveira, 2019 | Uma reflexão sobre o atual fundamentalismo religioso a partir de Freud | Refletir sobre esse fenômeno religioso, expressivo na atualidade, por meio do aporte teórico da psicanálise. |
Oliveira e Kupermann, 2022 | Amizade e alteridade – reflexões sobre psicanálise e religião a partir da relação entre Freud e Pfister | Reflexão sobre o lugar da alteridade e da dimensão do laço social articulados à expressão da subjetividade. |
Rabêlo; Martins e Danziato, 2022 | O sujeito na ciência, na literatura fantástica e na psicanálise | Discute a relação entre ciência moderna, literatura fantástica e psicanálise, tomando a primeira como pré-condição para a existência das duas últimas |
Silva e Castro, 2021 | O gozo feminino e a nominação deus na psicanálise de orientação lacaniana | O artigo surge de uma pesquisa, de viés psicanalítico, desenvolvida no programa de pós-graduação em Psicologia, que investiga a indagação formulada por Lacan, ao abordar em O Seminário XX, Mais, Ainda, o gozo feminino e a nominação Deus. |
Staudt; Santos e Bitarello, 2016 | Um olhar da psicologia sobre a religião: uma revisão integrativa | Identificar o interesse científico do fenômeno religião no imaginário e na cultura humana. |
Pereira e Holanda, 2019 | Religião e Espiritualidade no curso de Psicologia: revisão sistemática de estudos empíricos | Delinear e analisar pesquisas empíricas sobre a relação entre estudantes, espiritualidade, religião e formação nos cursos de psicologia do país. |
Domingues et al, 2020 | Religião, religiosidade e espiritualidade e sua relação com a saúde mental em contexto de adoecimento: uma revisão integrativa de 2010 a 2020 | Visa identificar as relações entre religião/religiosidade/espiritualidade e saúde mental num contexto de adoecimento físico ou psíquico a partir de uma revisão integrativa da produção científica em língua portuguesa dos últimos 10 anos. |
Fonte: dados coletados nas bases de dados BVS e Google Scholar.
Em referência as informações do Quadro 1, observa-se que em relação ao período de publicação, o maior número de trabalhos publicados na temática investigada, concentrou-se nos anos 2019 e 2022, configurando um interesse crescente na atualidade sobre o tema proposto. No que diz respeito aos títulos dos trabalhos, notou-se uma diversidade na proposição da temática, evidenciando uma variedade de questões-problemas relacionadas ao estudo sobre religião, psicanálise e subjetividade. Quanto aos objetivos, fica evidente a necessidade de uma abordagem crítica sobre o tema indicado, destacando a importância de uma perspectiva de análise científica sobre os fenômenos místicos e religiosos.
Importante contribuição foi dada por Binkowski, Rosa e Baubet (2020) ao descreverem que o fato religioso pode ser compreendido a partir de três pontos de vista: primeiro, perspectiva simbólica e imaginária oferecidas pelo sistema religioso; segundo, as configurações grupais e culturais que abordam sobre uma corrente religiosa e os tipos de relações entre o sagrado e os aspectos da cultura; por fim, a simbólico-imaginária que trata do sujeito e suas singularidades.
Considerando que essa é uma análise complexa, que envolve aspectos diversos das experiências humanas, as quais podem ser compreendidas sobre prismas diferentes, Dias e Safra (2019) clarificam que a psicanálise, utiliza-se de dos seus conceitos de transferência, inconsciente e interpretação para entender e criticar a experiência religiosa humana, argumentando que o sujeito tende a ajustar suas vivências e experiências em consonância com suas crenças e estrutura de personalidade. Logo os fenômenos místicos podem ser abordados do ponto de vista da clínica psicanalítica.
Na busca de trazer à reflexão a importância de se manter a ética profissional na aplicação dos métodos psicanalíticos aos sujeitos que trazem questões de sofrimento associadas a conteúdo religioso para a clínica psicoterapêutica, Goldenberg (2022) reitera as contribuições dadas por Freud em 1927, ao escrever seu livro-manifesto denominado: O Futuro de uma Ilusão”. Explicita que nesta obra, Freud aponta de modo ríspido a psicanálise da religião, caracterizando-a como uma ilusão. Assim, pondera sobre o que chamou de um vínculo entre a psicanálise e a ilusão, em seguida, faz críticas as relações perigosas entre psicanálise, medicina, religião, trazendo sobretudo, a necessidade de que seja preservada a ética na aplicação dos métodos da psicanálise no que tange a análise dos fenômenos místicos trazidos pelos sujeitos que buscam ajuda da psicoterapia.
Ampliando essa discussão e buscando revisitar a noção de animismo em psicanálise a partir do estudo da cultura ameríndia, Klein, Ferreira e Verztman (2023), apontam lacunas da psicanálise freudiana no que tange a essa relação entre psicanálise e religião. De acordo com tais autores, a psicanálise mostra-se ausente na abordagem das questões existenciais humanas, tais como: onde todos nós passamos nossas vidas do dia a dia? Onde estamos, se é que estamos em algum lugar? Onde estamos quando perpetramos o que, na realidade, ocupa a maior parte de nosso tempo? Enfim, esses autores trazem à discussão o papel da religião no que tange a oferecer respostas para estas questões existenciais, como a origem e sentido da vida, o propósito da existência humana, significado da morte, enfim, questões comuns às especulações humanas e para as quais, muitos apelam à religião na busca de satisfazer de respostas. Nesse sentido, reitera que a psicanálise poderia ter contribuído de um modo mais pleno, caso tivesse abordado na sua crítica à religião, sobre as questões essenciais pelas quais os humanos buscam relacionar-se transcendentalmente.
Neste panorama, Klein (2022) corrobora abrindo caminhos para uma discussão, ainda que inicial, sobre a psicanálise e o candomblé, trazendo para a análise a figura de Exu, numa ênfase sobre o lugar plural da corporeidade e as questões místicas. A autora ressalta que Freud não era um homem de aspecto religioso, muito embora, toda a sua obra seja perpassada por discussões voltadas para a religião. Enfatiza que mesmo sendo ateu declarado, possuía em sua história de vida familiar uma tradição judaica de pensamento cristão, em outros termos, suas discussões teóricas e a própria psicanálise, apontam para sua trajetória pessoal. Por outro lado, dada essa trajetória pessoal, existe um desconforto e um alerta permanente entre os teóricos psicanalistas, na busca de impedir que a psicanálise seja avaliada como uma ciência judaica ou um manifesto contra ela.
A religião é considerada um conjunto de crenças, práticas, rituais, moralidades e valores que formam uma relação com o divino ou o transcendente, configurando um sistema organizado de crenças e práticas de uma determinada comunidade ou cultura. Sob esse aspecto, Machado e Neto (2022) abordam a questão da intolerância religiosa analisada do ponto de vista da psicanálise, explicitando que o posicionamento de intolerância religiosa por parte do sujeito está intrinsicamente ligado às condições sócio históricas que abrangem o seu referencial simbólico e as motivações subjetivas. Logo, através da leitura psicanalítica, os conflitos sociais envolvendo o aspecto religioso possui relação intrínseca com as concepções ou cosmovisão do sujeito ancoradas na sua condição estrutural e misticismo.
Na busca de uma análise mais aprofundada dos processos de sublimação, projetivos e identificatórios que caracterizam o desenvolvimento emocional humano e sua relação com a transcendência, Marques e Fulgencio (2023) explanam que Freud sugeriu que as representações do transcendente, tais como “espíritos”, “deuses” e “demônios” seriam provenientes da imago paterna e do processo psicodinâmico individual ou coletivo pelos quais a imago passou até alcançar uma forma de representação. Por imago, Freud denominava como sendo uma imagem inconsciente de um objeto construída em idades precoces. Logo as experiências místicas individuais ou coletivas de representações de espíritos maus e deuses, seria a manifestação de mecanismos de defesa como sublimação, identificação ou projeção provindas de imagens inconscientes de experiências da tenra infância.
Ao analisar como as crenças religiosas influenciam no processo de análise de um sujeito, Neto e Drawin (2019), indicando que as crenças religiosas impactam nos processos de mudanças pessoais, ainda que, no final de análise, uma vez que, essas crenças influenciam o processo de construção de saber e a análise configura como um processo de construção de saber ou de autoconsciência. Além disso, esclarece que apesar do avanço da secularização na sociedade moderna, em sua estrutura, ainda existe forte influência religiosa, é visível um grande número de indivíduos religiosos que manifestam suas convicções e crenças religiosas em suas atividades sociais e políticas; esse fenômeno religioso é perceptível de uma grande disparidade de manifestações como: fundamentalismos, esoterismos, orientalismos, novas seitas, movimentos carismáticos e comunitários, com crescente interesse pelas experiências místicas e reflexões teológicas.
Nessa perspectiva, Neto e Machado (2022) contribuem para a continuidade desta discussão, trazendo para a reflexão à luz da análise psicanalítica, como as formas de envolvimento religioso, em suas configurações mais diversas, apontam para uma relação entre religião e política, evidenciando o impacto e presença do fenômeno religioso na vida e cultura humana. De acordo com os autores, a religião exerce um papel de articulação com as estruturas sociais, que norteia a civilização, na construção da formação dos sujeitos, constituindo o que é aceitável e o que não é. Logo, tendo em vista uma análise psicanalítica, a religião serve como instrumento de manutenção do status quo, uma vez que, é construída através da exposição da culpa, da imposição moral (determinando as práticas permitidas ou proibidas, cumprindo o papel de fornecer o sentido das regras que são estabelecidas pela sociedade) e do recalcamento dos desejos.
Os estudos freudianos visaram elucidar as motivações psíquicas por meio da experiência religiosa. Freud buscou considerar os ritos dos comportamentos religiosos, além de formar uma explicação psicanalítica da psicogênese e da natureza do fenômeno religioso apresentado. Contudo, através de sua obra, Freud traz certos interesses pelo estudo da religião e pela pesquisa das motivações psíquicas que estão embasadas nas religiões. Dessa forma, ele comprovou que a teoria psicanalítica pode proporcionar subsídios úteis para decifrar o sentido inconsciente dos rituais de cunho religiosos, para aclarar a natureza das crenças e da origem do fenômeno de suas variadas formas religiosas (Oliveira e Moreira, 2023).
Ao buscar refletir sobre o fenômeno religioso na atualidade à luz da psicanálise freudiana, Oliveira (2019) ressalta que em suas obras, Freud descreve dois fatos importantes que culminam no sentimento de impotência por parte do ser humano diante da vida: a natureza e o destino. O autor, descreve a natureza como uma força implacável, que por mais que o ser humano tente dominar com suas técnicas e conhecimentos, jamais apresentará competência suficiente para se resguardar de todas as calamidades naturais ou evitar os efeitos prejudiciais que podem provocar na vida humana. Quanto ao destino, descreve-o como a incapacidade do ser humano de obter total controle sobre o curso de sua existência. Em síntese, à incerteza da vida e o confrontar-se com constantes frustrações e sofrimentos impostos pela realidade existencial, impulsiona o ser humano à busca por amparo na religião.
Ao problematizar a relação entre ciência moderna, literatura fantástica e psicanálise, Rabêlo, Martins e Danziato (2022) pontuam que a maior preocupação da ciência não é com repostas prontas e fechadas, mas, com busca pela credibilidade do conhecimento por meio da problematização dos saberes. Nisto, inclui-se a busca pela compreensão do desejo, do fantástico e da subjetividade, na qual grande contribuição pode ser dada pela psicanálise, ao tratar de forma crítica e ética essas questões do psiquismo humano.
Nesta perspectiva, Oliveira e Kupermann (2022) destacam que Freud se interessou pela compreensão aprofundada da subjetividade humana, considerando criticamente um aspecto muito comum entre as mais diversas culturas, que é o da religiosidade, suas construções teóricas tinham como contexto as críticas que explorava em torno da religião. Embora tivesse pouco afeto pela prática religiosa, a religião foi um tema que o incitou a publicar várias de suas reflexões.
Todavia, Marques e Fulgencio (2023) citam que na obra de Freud, podemos notar alguns eventos de alterações a respeito da religião, pois nos primeiros trabalhos publicados, destaca-se o caráter psicopatológico conferido pela religião, especialmente, quando composta por atitudes ritualísticas individuais e não conectados à vida social, com destaque à análise das pulsões sexuais nas neuroses obsessivas. Assim, segundo Freud, estes costumes se originavam através de tentativas de lidar com a libido proibida pela censura de uma sociedade.
Nesta perspectiva, mediante as observações alcançadas nos artigos revisados, foi preparada uma figura que represente a evolução da visão da psicanalítica de Freud em face da religião, conforme figura 2 abaixo:
Fonte: dados elaborados pelo autor.
Diante da figura 2 acima, fica evidente que Freud acreditava que a religião era uma forma de negar a realidade e buscar refúgio em uma autoridade transcendental. Para ele, a crença em um Deus todo-poderoso era uma forma de regressão psicológica, ou seja, uma tentativa de recuperar a sensação de proteção e cuidado, que só poderia ser experimentada nas relações parentais. Além disso, ele enxergava a religião como uma fonte de repressão e controle social, enfraquecendo a liberdade e a autonomia individual.
A busca pelo conhecimento por parte de Freud pode ser interpretada pelo elemento transmitido pelo seu meio familiar e educacional. Silva e Castro (2021) elucidam que o pai de Freud conhecido como Kallamon Jacob Freud e seu avô materno Abrahan Siskind Hofmann, diante de suas viagens à Morávia, traziam peculiaridades para a vida de Freud e o incitavam a busca pelo saber. Outro fato interessante diz respeito a vida estudantil de Freud, ele estudou em Viena em uma escola privada, cujo programa curricular era constituído de 5 horas semanais de ensino religioso, cujas aulas eram ministradas por Leopold Breuer, pai de Joseph Breuer e por Samuel Hammerschlag, que era um tutor de religião judaica para quem Freud era como se fosse um filho. Nesse contexto, Freud estudava: história da Bíblia, história dos Judeus, judaísmo e as interpretações talmúdicas.
Atualmente, autores psicanalistas, continuam a demonstrar interesse científico pelo fenômeno da religião no imaginário e na cultura humana. Contudo, tais pesquisadores advertem sobre a dificuldade em se compreender a espiritualidade de maneira ampla e de como saber utilizá-la de forma ética e responsável na clínica com o cliente. Desse modo, vale ressaltar que demandas como: conflitos, angústias, dúvidas, questões existenciais, comumente farão parte do cotidiano do profissional psicólogo e/ou psicanalista, sendo, portanto, necessário que tais profissionais, primem pelo compromisso ético da profissão, levando um tipo de serviço em seus valores pessoais não interfiram no processo terapêutico do cliente. Logo, esses problemas e atitudes vão incluir: medo da influência que pode ter ao cliente; tendência de esquivar-se do assunto na hora do atendimento; opção neutra na qual se transformará em fuga; e a dificuldade da discordância com a identificação de questões relacionadas ao sagrado (Pereira e Holanda, 2019).
Neste sentido, numa perspectiva psicanalítica contemporânea, Staudt, Santos e Bitarello (2016) destacam que o pragmatismo vale especialmente para proteger a ideia de que a verdade deve ter como discernimento sua eficácia ou utilidade. Por outro lado, o conhecimento só se torna verdadeiro quando se torna aplicável à realidade ou colabora para sua melhoria de alguma forma. Desse modo, o pragmatismo é representado pelo empirismo, sendo uma corrente conhecida na filosofia e nessa perspectiva, o estudo da religião não é algo de investigação e nem indagação para com Deus, mas voltado para a pesquisa sobre o homem e suas questões de vida prática. Pois, todas as visões religiosas da vida são de cunho antropocêntrico, em outros termos, a religião se torna a atividade do impulso do ser humano com vistas à sua autopreservação diante de suas limitações.
Ao traçar um contraponto, buscando analisar religião, religiosidade e espiritualidade e sua relação com saúde mental, Domingues et al (2020) explicam que à religião e à espiritualidade são atribuídas o sentido da existência, e, por conseguinte, da vivência de sofrimento e angustia, bem como, das condições humanas, que são constitutivas da subjetividade humana. Por meio da psicanálise encontramos teorias sobre o aparelho psíquico e seu funcionamento em que são citadas as raízes para os conflitos internos que são: dor, sonho, superação e motivações provocadas pela angústia. Logo, uma experiência subjetiva, delineada em uma trajetória, por meio da qual o sujeito consiga vivenciar seus sentidos existenciais a partir de uma narrativa que relata os seus significados e os sentidos às suas experiências, usufruindo de saúde mental e bem-estar, pode trazer uma outra perspectiva de analisar essa subjetividade descrita pela psicanálise de Sigmund Freud e nos permitir realizar a destreza de alargar a compreensão da religião à luz da psicanálise.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Legitimando com os autores, a teoria psicanalítica de Freud enxerga a relação entre a religião e o inconsciente, esquadrinhando a expressão das fantasias e dos desejos ocultos dos sujeitos, ainda que, a incerteza e a angústia da vida humana se mostrem através da busca pelo transcendente nas incertezas pessoais da vida. Embora, seu olhar em relação a religião tenha sido criticado ao longo dos anos, sua abordagem continua sendo uma das grandes contribuições para a compreensão dessa relação de complexidade.
A presente pesquisa trouxe como objetivo a compreensão da crítica à religião na perspectiva psicanalítica, especialmente no que se refere às várias reflexões freudianas sobre o fenômeno religioso, demonstrando a importância de analisar psicologicamente sua manifestação.
Desta maneira, uma das principais contribuições de Freud foi: a compreensão de que a religião aparece como uma forma de proteção contra os sentimentos de impotência e abandono enfrentados pelo ser humano, com destaque para a projeção da figura paterna, que é colocada como uma resposta para as questões existenciais, proporcionando uma sensação de segurança e bem-estar emocional. No entanto, é importante considerar os possíveis efeitos negativos da religião na saúde mental, como a perpetuação de crenças irracionais ou dogmas que podem levar à culpa excessiva, intolerância ou sentimentos de exclusão.
Além disso, Freud, destaca que a religião, desempenha um papel na vida das pessoas e na manutenção das estruturas sociais, fornecendo orientações morais, respostas para questões existenciais, um senso de propósito e significado.
Compreender essas questões é fundamental para promover uma prática psicológica ética e responsável, não permitindo que questões pessoais do psicólogo ou psicanalista interfiram no processo terapêutico.
Logo, a presente pesquisa expressa um debate contemporâneo sobre a psicologia e a religião, fornecendo insights importantes sobre a crítica freudiana à religião e sua relevância na sociedade atual, bem como, a compreensão das complexas relações entre religião e psicologia, trazendo à tona reflexões sobre a liberdade individual, a relação entre o individual e o coletivo, os efeitos da religiosidade na formação da personalidade e nos processos psicológicos.
Em conclusão, a análise da crítica freudiana, revela-se relevante no campo da psicologia contemporânea, oferecendo uma compreensão mais profunda das influências religiosas na saúde mental e no bem-estar psicológico das pessoas. Essa perspectiva crítica permite uma reflexão aprofundada sobre os efeitos da religião na formação da personalidade, destacando a importância de uma abordagem equilibrada e saudável da religiosidade.
A partir das reflexões construídas, fica explícita a relevância do estudo desta temática – psicanálise e religião, no que tange a saúde mental do sujeito. Dessa maneira, tal questão, pode apresentar influências positivas e negativas durante o decorrer da vida do sujeito. Assim, a relação entre religiosidade e espiritualidade com foco na saúde mental é de certa maneira ainda pouco estudada; o que torna relevante aprofundar essa questão e também, analisar contrapontos ou possíveis constatações de que, se em certos níveis de religiosidade e espiritualidade existem ou não relações com o bem-estar e saúde mental.
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Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) elaborado como requisito parcial para obtenção do Título de Bacharel em Psicologia