REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202505251416
Fagner Ferreira Gonçalves1
Acsa Liliane Carvalho Brito2
RESUMO
Este trabalho analisa os limites estabelecidos em lei para a intervenção estatal no setor da saúde suplementar no Brasil, a partir da atuação regulatória da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, ponderando os reflexos da judicialização em Rondônia. A pesquisa aborda o contexto histórico em que se deu a regulação estatal no país e parte da compreensão econômica da regulação como mecanismo estatal para corrigir falhas de mercado, especialmente em razão da assimetria de informações. Avaliam-se também as dificuldades institucionais enfrentadas pela ANS, tais como a influência política e a morosidade nas respostas às demandas sociais e a alta judicialização no setor. Discute-se a evolução enquanto agência reguladora e ainda na sua busca pela promoção da qualidade assistencial, bem como os impactos da judicialização da saúde sobre a eficácia regulatória. Por fim, são analisados os impactos recentes nas alterações legislativas e regulamentares no setor e os desafios para fortalecer a confiança social na regulação.
Palavras chaves: saúde suplementar; regulação; ANS; judicialização; intervenção estatal.
ABSTRACT
This paper analyzes the limits established by law for state intervention in the supplementary health sector in Brazil, based on the regulatory actions of the National Supplementary Health Agency (ANS), considering the repercussions of judicialization in Rondônia. The research addresses the historical context in which state regulation took place in the country and begins with the economic understanding of regulation as a state mechanism to correct market failures, especially due to information asymmetry. The institutional difficulties faced by ANS are also assessed, such as political influence and slowness in responding to social demands and the high level of judicialization in the sector. The evolution as a regulatory agency and its quest to promote quality of care are discussed, as well as the impacts of the judicialization of health on regulatory effectiveness. Finally, the research analyzes the recent impacts of legislative and regulatory changes in the sector and the challenges to strengthen social trust in regulation.
Keywords: supplementary health; regulation; ANS; litigation; state intervention.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo analisar a regulação da saúde suplementar e os limites da intervenção estatal nesse setor. A regulação da saúde suplementar constitui um complexo processo normativo, técnico e político, que visa garantir o equilíbrio entre os interesses das operadoras de planos de saúde, dos consumidores e do próprio Estado.
Para a OCDE(2012), que consolidou diretrizes aos seus membros, embora o Brasil ainda não seja um deles, a regulação é definida como um conjunto diversificado de instrumentos pelos quais as autoridades públicas estabelecem requisitos para empresas e cidadãos. Regulações incluem leis, normas formais e informais e regras subordinadas emitidas em todos os níveis de governo, além de normas expedidas por órgãos não governamentais ou autorregulados aos quais os governos tenham delegado poderes regulatórios, objetivando a prosperidade econômica, melhoria do bem-estar e valorização do interesse público. As regulamentações devem ainda proporcionar benefícios sociais e econômicos que superem seus custos, tendo como fator inicial de comparação a inércia da atuação.
A saúde suplementar no Brasil tem origem anterior ao marco legal da década de 1990, com a difusão dos planos de saúde coletivos empresariais ainda nas décadas de 1960 e 1970, como forma de complementação ao sistema público e de benefício trabalhista oferecido pelas empresas a seus empregados. Durante anos, esses planos operaram sem uma legislação específica, o que acabava resultando em práticas heterogêneas, cláusulas abusivas e ausência de garantias mínimas ao consumidor. Com o crescimento expressivo do setor e o aumento da complexidade contratual, tornou-se necessária uma normatização que garantisse segurança jurídica e proteção aos usuários.
A regulação da saúde suplementar no Brasil se consolidou com publicação da Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, que passou a disciplinar os contratos firmados entre os beneficiários e as operadoras de planos privados de assistência à saúde. Esse marco normativo foi uma resposta à atuação desordenada e à falta de padronização dos serviços prestados, que geravam conflitos constantes e insegurança para os beneficiários. Posteriormente, deu-se a criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar por meio da Lei nº 9.961/2000, que consolidou o modelo regulatório estatal na saúde suplementar, conferindo à agência competências técnicas e normativas para regular o setor com foco na defesa do interesse público e na estabilidade das relações contratuais.
A ANS, como autarquia sob regime especial vinculada ao Ministério da Saúde, exerce papel fundamental na regulação, normatização, controle e fiscalização do setor de saúde suplementar. Sua atuação busca assegurar a qualidade dos serviços, a sustentabilidade do mercado e a proteção do consumidor, estabelecendo limites para as ações dos agentes privados e promovendo a intervenção estatal sempre que necessário para o equilíbrio do sistema.
A regulação da saúde suplementar no Brasil é marcada por uma abordagem normativa que combina regulação econômica e regulação social. A regulação econômica envolve aspectos como reajustes de mensalidades, garantias financeiras e equilíbrio atuarial das operadoras. Já a regulação social visa assegurar o acesso, a qualidade e a continuidade da assistência à saúde aos beneficiários de planos privados, por meio da definição de coberturas mínimas obrigatórias (Rol de Procedimentos), regras de contratação e mecanismos de fiscalização.
A intervenção estatal por meio da ANS se justifica diante da assimetria de informações entre operadoras e consumidores, da tendência à seleção adversa e dos riscos de práticas abusivas. No entanto, essa intervenção deve respeitar os limites constitucionais e legais, preservando a livre iniciativa e o funcionamento do mercado, sem comprometer a função social das operadoras e os direitos dos consumidores.
A Resolução Regimental nº 21/2022, que estabelece a estrutura organizacional da ANS, é um instrumento normativo fundamental para a delimitação de competências, organização interna e mecanismos de governança da agência. A norma reforça a atuação técnica, transparente e participativa da ANS, ao prever instâncias colegiadas de decisão, como a Diretoria Colegiada, e canais de interlocução com a sociedade, como as consultas e audiências públicas.
A relevância do tema decorre do crescente processo de judicialização da saúde, do aumento na demanda por transparência regulatória e do papel central da ANS na mediação dos interesses públicos e privados no setor, visto que o mercado de saúde suplementar hoje no Brasil contempla um universo de mais de 52 milhões de beneficiários, o que corresponde a taxa de cobertura de 25,69% da população brasileira(ANS/2025).
Ao longo dos anos, mesmo com todo o esforço da ANS, houve crescimento da judicialização da saúde suplementar. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, em 2024, o Brasil registrou 303.546 novas ações judiciais na saúde suplementar, mais que o dobro do realizado 2021 (149.156).
As principais causas dessas ações estão relacionadas à negativa de cobertura, reajustes abusivos e cancelamentos unilaterais. Além do impacto social, os custos gerados por essas demandas judiciais às operadoras ultrapassaram R$ 17 bilhões entre 2019 e 2023, conforme dados da ANS, o que, em razão do princípio do mutualismo, impactam financeiramente todos os beneficiários. Esse volume de ações judiciais evidencia a necessidade de uma atuação mais eficiente por parte do Estado regulador, de tal forma que seja capaz de garantir a efetividade da proteção ao consumidor, resguardando a segurança jurídica das relações contratuais.
Nesse contexto, a atuação da ANS busca mitigar essas desigualdades informacionais, promover a concorrência justa e assegurar o acesso à assistência à saúde, delimitando o grau de liberdade dos agentes econômicos.
Contudo, a intervenção estatal não está isenta de falhas. A influência política sobre as agências reguladoras e a morosidade no atendimento às demandas sociais impactam negativamente a eficácia regulatória. A pesquisa se justifica pela necessidade de compreender os limites dessa intervenção estatal, bem como os mecanismos para seu aperfeiçoamento.
2 MATERIAL E MÉTODOS
A pesquisa tem natureza qualitativa e exploratória, com objetivo descritivo. A abordagem metodológica adotada foi teórico-documental, com revisão bibliográfica de autores nacionais e internacionais especializados em economia da saúde, regulação estatal e direito brasileiro, com especial foco na legislação da saúde suplementar.
Foram analisados documentos e dados oficiais de governos, entidades governamentais e não governamentais, bem como a legislação pertinente, além de jurisprudências e decisões relevantes sobre a judicialização do setor.
A coleta de dados ocorreu entre fevereiro e maio de 2025, com levantamento sistemático de obras e normas atualizadas sobre o tema.
3 RESULTADOS
A análise demonstrou que a ANS tem evoluído no sentido de modernizar suas práticas regulatórias, com destaque para a atualização contínua do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde que, a partir de 2021, deixou de ter sua atualização somente a cada dois anos para uma atualização ininterrupta, de acordo com a necessidade apresentada pelo mercado. Também se observou a transição de um modelo regulatório fortemente punitivo para uma atuação mais orientativa e indutora de boas práticas. Entretanto, persistem críticas quanto à demora na incorporação de tecnologias, bem como à percepção de ineficiência da agência frente às demandas da sociedade.
Verificou-se que, apesar de a ANS ter evoluído na sistematização de sua agenda regulatória a partir da vigência da Resolução Normativa nº 548/2022 estabelecida pela agência reguladora, ainda há lacunas quanto à aplicação plena dos princípios de governança estabelecidos pela Lei nº 13.848/2019, especialmente quanto a publicidade ampla e de forma facilitada das análises de impacto regulatório (AIR) e de consultas públicas com ampla participação representativa da sociedade as quais, inclusive, estavam inacessíveis durante o levantamento dos dados dessa pesquisa.
A judicialização da saúde suplementar segue crescendo, em parte pela falta de celeridade da ANS em responder às demandas sociais, o que compromete a confiança do beneficiário na agência reguladora e que acaba por estimular a busca pelo Poder Judiciário. A recente alteração legislativa da Lei 9.656/98 (Lei 14.454/2022), que tratou da natureza do Rol, ilustra esse cenário, uma vez que observa-se que a alteração ocorreu após intensa pressão popular, do Judiciário e, por fim, do Legislativo, mesmo sabido pela Agência que, anteriormente, para ter um procedimento aprovado para inclusão no Rol e sua efetiva disponibilização na rede de serviços aos beneficiários, levava-se cerca de 4 anos entre a recepção dos pedidos, consulta pública, análise tecnica, aprovação de inclusão no Rol e entrada em vigor da obrigatoriedade de atendimento, principalmente em razão da análise de incorporação que era feita a cada dois anos.
4 DISCUSSÃO
4.1 Do modelo de saúde pública e privada do Brasil
Segundo Costa Júnior(2023), o Brasil possui três tipos de sistemas de saúde:
a) inteiramente ou majoritariamente público;
b) seguro social obrigatório;
c) sistema de caráter privado.
Assim, Costa Júnior afirma ainda que o sistema brasileiro não integra os gastos públicos e privados, não possui cadastro único do cidadão para rede pública e privada, não regula o atendimento de forma conjunta e distribuída entre os setores público e privado e ainda não institucionaliza, de forma eficiente, o reembolso das despesas públicas no atendimento de beneficiários de seguros e planos de saúde.
Isso aponta para uma lacuna de atuação estatal que esteja efetivamente atuante na qualidade assistencial da saúde dos beneficiários, sejam eles pertencentes ao sistema público ou privado.
4.1.1 Dos perfis dos sistemas de saúde público e privado dos países
O sistema definido pela Constituição Federal de 1988, em que ficou estabelecido o dever do Estado em prover o acesso universal à saúde, deu ainda mais complexidade à gestão de saúde no Brasil, com reflexos na regulação da saúde suplementar no estabelecimento de procedimentos obrigatórios para as Operadoras de saúde.
Quando comparamos o sistema de saúde brasileiro ao de outros países, fica ainda mais evidente, conforme a tabela:
Tabela 1 – Perfis do sistema de saúde público e privado dos países

Algo que também podemos extrair desses dados, é que diferentemente de outros países, temos uma Agência Reguladora com uma estrutura bem mais robusta e que atua exclusivamente no segmento de planos de saúde privados, o que poderia significar maior especialidade, e, por consequência, maior eficiência do órgão regulador.
4.2 Da Análise de Controle Regulatório
A regulação estatal visa corrigir falhas de mercado, sendo a assimetria de informações um dos principais obstáculos identificados na saúde suplementar, especialmente compreendendo-se que o consumidor não detém o conhecimento das especificidades do setor para avaliar a qualidade, cobertura ou a abrangência dos planos contratados, o que torna necessária a intervenção da ANS como mediadora dessa relação.
4.2.1 As inovações implantadas pela Lei nº 13.848/2019
A Lei nº 13.848, de 25 de junho de 2019, estabelece o marco legal da governança das agências reguladoras no Brasil, normatizando sua gestão, organização, processo decisório e mecanismos de controle social.
A norma reforça a autonomia administrativa, funcional e financeira dessas entidades, definindo critérios rigorosos para nomeação e mandato de seus dirigentes e impondo regras de transparência, accountability e participação social.
Entre seus principais dispositivos, destaca-se a obrigatoriedade da Análise de Impacto Regulatório (AIR) para edição ou alteração de atos normativos de interesse geral, com base em evidências e alternativas regulatórias.
A lei também institui mecanismos de consulta e audiência pública, criação de agendas regulatórias e de planos estratégicos e de gestão anual, buscando garantir decisões mais técnicas, previsíveis e alinhadas ao interesse público.
A ANS, enquanto agência reguladora do setor da saúde suplementar, está sujeita integralmente aos dispositivos desta lei.
4.2.2 Da regulamentação definida pelo Decreto nº 10.411/2020
O Decreto nº 10.411, de 30 de junho de 2020, regulamenta a Análise de Impacto Regulatório (AIR) no âmbito da administração pública federal, nos termos da Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019) e da Lei das Agências Reguladoras (Lei nº 13.848/2019). O decreto determina que toda proposição normativa de interesse geral por órgãos da administração pública federal deve ser precedida de uma AIR, exceto em hipóteses legalmente dispensadas, como urgência ou atos de baixo impacto.
A AIR, segundo o decreto, deve conter a identificação do problema regulatório, alternativas possíveis, estimativas de custos regulatórios, impactos sobre micro e pequenas empresas, mapeamento de experiências internacionais, riscos envolvidos e estratégias de implementação e monitoramento. Também reforça a obrigatoriedade da consulta pública em processos decisórios relevantes, exceto em casos específicos.
O decreto objetiva ampliar a qualidade regulatória, a eficiência administrativa e a previsibilidade das decisões estatais, assegurando maior participação social, transparência e base técnica nas decisões regulatórias.
4.2.3 Da Resolução Normativa nº 548/2022 da ANS
A Resolução Normativa nº 548, de 10 de outubro de 2022, da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), disciplina o processo de Análise de Impacto Regulatório (AIR) e o processo de Participação Social (PS) no âmbito da regulação da saúde suplementar. A norma substitui a RN nº 242/2010 e atualiza os procedimentos regulatórios da ANS em consonância com a Lei nº 13.848/2019 e o Decreto nº 10.411/2020.
A AIR é definida como um processo técnico e sistemático baseado em evidências, destinado a orientar a tomada de decisões normativas a partir da análise de um problema regulatório e de suas alternativas. A resolução detalha as etapas obrigatórias para a AIR, incluindo a identificação do problema, análise de alternativas, avaliação de impactos (inclusive custos regulatórios), estratégias de implementação e mecanismos de monitoramento e revisão normativa.
A norma estrutura ainda os canais de participação social, divididos em Participação Social Ampla (como consulta pública e audiência pública) e Participação Social Dirigida (como câmaras técnicas), estabelecendo prazos, critérios e procedimentos mínimos para assegurar transparência, inclusão e legitimidade no processo regulatório.
Além disso, a resolução institui o Comitê de Qualidade Regulatória da ANS, com a missão de apoiar tecnicamente os processos de AIR e avaliação de resultado regulatório (ARR). Por fim, garante que relatórios e documentos sejam amplamente divulgados, fortalecendo a governança regulatória e a previsibilidade das decisões da agência.
A ANS disponibiliza seu Estoque Regulatório em formato B.I. (Business Intelligence), ferramenta que consolida as informações em formato de dashboard. Segundo consta no portal do Estoque Regulatório da ANS, após o início da vigência do Decreto 10.411/2020, foram publicados 217 atos normativos, sendo que 199 estão em vigor na data de elaboração deste artigo e 18 atos foram revogados.
Figura 1 – Layout do Sistema de Estoque Regulatório ANS

Embora o sistema tenha interface intuitiva, o acesso à plataforma não é fácil para a grande maioria da população brasileira que não tem conhecimento tecnológico para acesso a esse tipo de ferramenta. Assim, torna-se mais um dos desafios em estabelecer a confiança dos beneficiários na atuação da agência reguladora.
4.3 Da análise de estoque regulatório da ANS
A ANS possui hoje 339 normas vigentes. Observa-se que a ANS tem buscado, a partir de 2020, com a edição do Decreto 10.411/2020, condensar seu estoque regulatório, conforme demonstrado no gráfico:
Figura 2 – Estoque Regulatório ANS – 1998 a 2025

Isso demonstra a importância da implantação de regras claras para a edição de normas regulamentadoras por parte das agências reguladoras, resultando em maior eficiência regulatória.
Apesar de seu papel central e do esforço para as adequações legais exigidas, a ANS em razão de morosidade na análise de incorporação de novos procedimentos que ocorriam no passado, ainda não conseguiu estabelecer uma comunicação claro, acessível e transparente com os beneficiários, o que torna mais estimulante para que o beneficiário busque por resoluções de conflitos junto ao judiciário.
4.3 Judicialização e os limites da regulação
A judicialização surge como resposta à ineficiência regulatória. O Judiciário, por vezes, assume papel de regulador substituto, decidindo sobre tratamentos e tecnologias ainda não incorporadas. Isso desafia os limites institucionais da regulação e gera insegurança jurídica.
No Brasil, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, o Brasil registrou 303.546 novas ações judiciais na saúde suplementar em 2024, mais que o dobro do realizado 2021 (149.156).
Quando analisada a judicialização em Rondônia, segundo o Painel de Estatísticas Processuais de Direito à Saúde do CNJ, em 2024 foram ajuizadas 1.513 novas ações judiciais relacionadas à saúde suplementar. Ao comparar a evolução de judicialização em Rondônia, houve um crescimento de 688% quando comparado ao apurado em 2021(192).
Tabela 2 – Taxa de judicialização da saúde suplementar – Por mil beneficiários

Ao analisar a taxa de judicialização, que levou em consideração o número de novos processos judiciais a cada ano, segundo dados do Painel de Estatísticas Processuais de Direito à Saúde do CNJ, comparado a quantidade de beneficiários apresentados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar no mês de Dezembro de cada ano analisado, de acordo com a região, observou-se que Rondônia tinha uma taxa inferior a metade da percebida nacionalmente, no entanto, a partir de 2022 esse número vem crescendo exponencialmente, chegando a ser mais que o dobro da média nacional. Assim, em 2024, a cada mil beneficiários dos planos de saúde residentes em Rondônia, iniciaram-se 9 processos judiciais relacionados a saúde suplementar no Estado.
Para entendermos melhor sobre como a judicialização na saúde suplementar é proporcionalmente maior que na saúde pública, apuramos também a mesma métrica para os dados da judicialização na saúde pública do Brasil e no Estado de Rondônia em particular.
Tabela 3 – Taxa de judicialização da saúde pública – Por mil beneficiários

Com base nos dados levantados, identificou-se que, enquanto na saúde suplementar tem-se 9 processos judiciais a cada mil beneficiários do público abrangido, na saúde público esse número cai para 3 processos judiciais a cada mil pessoas em Rondônia.
Observa-se também que no mesmo período, a partir de 2022, houve também na saúde pública um aumento exponencial no número de novas demandas judiciais na saúde pública, tal como ocorreu na saúde suplementar.
A ANS também registra e disponibiliza o Índice Geral de Reclamações – IGR, em seu portal, e neste trabalho apresentamos o comparativo de evolução anual para compor a análise:
Tabela 4 – Índice de reclamações/100 mil beneficiários de planos de saúde

Semelhante ao observado nos dados apresentados pelo CNJ, houve aumento significativo de 2022 para 2023 no número de reclamações reportados para a ANS e Rondônia também passou a apresentar média superior à nacional.
Comparando os dados apresentados pelo judiciário e o índice de reclamações ANS, coloca-se a hipótese, principalmente a partir de 2022, de que houve uma queda na qualidade da prestação de serviços das operadoras de saúde ou maior insegurança jurídica, especialmente no que está sendo observado em Rondônia e, a queda de reclamações em 2024 e aumento da interferência judicial no mesmo ano, pode indicar que as pessoas deixaram de procurar a ANS para solucionar suas demandas e passaram a buscar apoio do judiciário para solução de seus conflitos.
Segundo o diretor do Transnational Law Institute do King’s College London e professor da Escola de Direito da FGV, Octavio Ferraz, em entrevista concedida ao UM BRASIL(2019) – uma iniciativa da FecomercioSP, a mudança de jurisprudência no Brasil ocorreu no início dos anos 2000 com uma decisão do Supremo Tribunal Federal em que fundamentou a decisão de ação ligada à saúde suplementar no direito à saúde que está na Constituição Federal. O especialista no tema também credita o aumento da judicialização ao crescimento da indústria tecnológica farmacêutica que cada vez mais traz ao mercado novas tecnologias que as pessoas querem. Ferraz disse também que na Inglaterra existem ações judiciais contra o National Health Service (NHS), mas que, no entanto, os juízes quase sempre dizem que essa é uma decisão do sistema de saúde e não deles.
4.4 Avanços e desafios da regulação contemporânea
Com base no que foi apresentado, é fundamental que a ANS proceda com sua contínua modernização, principalmente sobre:
– Implementar mecanismos mais robustos de consulta pública, com maior participação de operadoras, consumidores, profissionais de saúde e órgãos de defesa do consumidor;
– Consolidar e ampliar uma instância permanente, dentro da ANS, com representantes da sociedade civil, defensoria pública, operadoras e usuários, para mediação de conflitos antes da interferência judicial;
– Tornar o processo de atualização do Rol mais ágil, pois grande parte da judicialização envolve pedidos de procedimentos não incluídos no Rol;
– Realizar processo contínuo de revisão das normas da ANS, mantendoas sempre em consonância com as necessidades do mercado;
– Desenvolver parcerias institucionais com o CNJ, tribunais e escolas da magistratura para oferecer capacitações regulares a juízes e promotores sobre os fundamentos técnicos, legais e econômicos da regulação da ANS;
– Atuar de forma sistemática nos tribunais superiores e nas ações de grande impacto regulatório como “amicus curiae”, defendendo a política pública regulatória;
– Expandir o uso de plataformas digitais que facilitem o acesso a dados de beneficiários, cobertura de procedimentos e canais de denúncia e reclamação.
A atualização contínua do Rol e a busca por uma regulação mais responsiva são importante avanços e que devem ser aprimorados consistentemente.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A regulação da saúde suplementar no Brasil tem se mostrado um campo desafiador, onde o Estado busca equilibrar interesses públicos e privados em um setor cada vez mais complexo. Como demonstrado ao longo deste trabalho, a atuação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) tem sido fundamental nesse processo, especialmente ao tentar proteger os beneficiários sem sufocar a sustentabilidade das operadoras.
Contudo, os dados analisados indicam que ainda há um descompasso entre o ritmo da regulação e as expectativas da sociedade. A judicialização crescente — especialmente em estados como Rondônia — reflete não apenas falhas na mediação administrativa, mas também um sentimento de desconfiança em relação à capacidade da agência reguladora de responder de forma célere e eficaz às necessidades dos usuários.
A OCDE(2012) já apontava a importância de políticas regulatórias baseadas em evidências, com foco na transparência e participação social. No caso brasileiro, apesar dos avanços como a adoção da Análise de Impacto Regulatório (AIR) e a ampliação dos mecanismos de escuta pública, ainda existe um caminho significativo a ser percorrido para que essas ferramentas sejam efetivamente acessíveis, compreendidas e valorizadas pela população.
Mais do que uma questão técnica, a regulação da saúde suplementar envolve escolhas políticas e éticas. Ao passo que se exige das operadoras responsabilidade econômica, é igualmente necessário que o Estado garanta previsibilidade e clareza normativa. O número crescente de decisões judiciais substituindo o papel regulatório da ANS evidencia a urgência de um fortalecimento institucional que recoloque a agência no centro das decisões de política pública em saúde suplementar.
Além disso, é preciso reconhecer que o problema da judicialização não será resolvido apenas com normas mais rígidas ou com a simples ampliação do rol de procedimentos. É necessário construir pontes entre os poderes. A ausência de uma base legislativa clara e o distanciamento entre os atores do sistema — regulador, Judiciário, operadoras e consumidores — contribuem para a fragmentação do setor e a insegurança jurídica que dele decorre.
Portanto, mais do que buscar uma regulação perfeita, talvez seja o momento de focar em uma regulação mais dialogada, transparente e comprometida com os reais desafios da população brasileira. A confiança social na ANS será construída não apenas com boas práticas técnicas, mas também com escuta ativa, respeito às diferenças regionais e decisões que reflitam a complexidade da vida dos cidadãos que dependem, todos os dias, de um sistema de saúde justo, acessível e eficiente.
REFERÊNCIAS
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1Acadêmico de Direito. E-mail: fagner.ferreira89@gmail.com. Artigo apresentado a Faculdade Unisapiens, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito, Porto Velho/RO.
2Professora Orientadora. Professora do curso de Direito. E-mail: acsa.souza@gruposapiens.com.br