A REDEMOCRATIZAÇÃO E O DEBATE DA LDB: TRANSFORMAÇÃO DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA NA DÉCADA DE 1980

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202507311022


Adriely Figueiredo Cordeiro
Orientadora: Isabel Ibarra Cabrera


Resumo 

Este artigo analisa o processo de redemocratização no Brasil, entre 1974 e 1988, e seus desdobramentos no campo educacional. Serão discutidos o papel dos movimentos sociais, a participação popular, a atuação dos intelectuais, entidades e dos educadores na consolidação do direito à educação como dever do Estado, assim como as contribuições de pensadores no debate educacional do período para a formulação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996. A pesquisa busca compreender as transformações políticas e sociais que fundamentaram a concepção democrática da educação no Brasil contemporâneo. Por fim, este trabalho se baseia na análise de caráter histórico-documental, com foco em fontes oficiais e produções bibliográficas relacionadas ao debate educacional durante a redemocratização. 

Palavras-chave: Redemocratização. Constituição de 1988. Educação. Estado. LDB de 1996. Intelectuais. Movimentos Sociais. Diretas Já. 

Abstract  

This article analyzes the process of redemocratization in Brazil, between 1974 and 1988, and its developments in the educational sector. The role of social movements, popular participation, the performance of intellectuals, entities  and educators in consolidating the right to education as a state duty will be discussed, as well as the contributions of thinkers in the educational debate of the period to the formulation of the Law of Guidelines and Bases of National Education of 1996. The research seeks to understand the political and social transformations that underpinned the democratic conception of education in contemporary Brazil. Finally, this work is based on historical-documentary analysis, focusing on official sources and bibliographic productions related to the educational debate during redemocratization. 

Keywords: Redemocratization, 1988 Constitution, Education, State, LDB 1996, Intellectuals, Social movements, Direct Elections Now. 

INTRODUÇÃO 

A ditadura civil-militar que perdurou de 1964 a 1985, foi marcada por graves violações de direitos humanos impactando significativamente nas esferas política, social e, em especial, na estrutura educacional do país. Neste período, docentes e estudantes foram perseguidos, presos, torturados e, em alguns casos, assassinados. Além disso, o sucateamento das instituições de ensino, os cortes de verbas e o elevado índice de analfabetismo que atingia cerca de 30 milhões de brasileiros  revelavam o descaso com a educação. A cientista política Maria D’Alva Kinzo descreve que a partir de 197  no governo de Ernesto Geisel, se iniciou o longo processo de abertura política, que marcou o início da transição democrática após anos de repressão. Essa trajetória de redemocratização se estendeu até 1988 (Kinzo, 2001) 

Ainda que a Constituição Federal de 1988 tenha abordado a educação de maneira mais consistente que os textos constitucionais anteriores, foi resultado da pressão exercida por movimentos sociais, educadores e intelectuais, ela estabeleceu apenas diretrizes gerais. As legislações específicas, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), promulgada em 1996, foi responsável por regulamentar, preencher lacunas normativas e estabelecer princípios para a organização da educação básica, superior e profissional. 

Este artigo justifica-se pela relevância de compreender as transformações educacionais ocorridas na década de 1980, período fortemente influenciado pelo processo de redemocratização. Nesse contexto, intensificaram-se os debates em torno ao direito à educação, a democratização do acesso ao ensino no país. A análise desse processo é fundamental para compreender de que modo tais discussões contribuíram para a formulação da LDB de 1996, que consolidou diretrizes como a descentralização, a ampliação do acesso à educação e a autonomia das instituições de ensino. 

Dessa forma, o presente trabalho busca responder à seguinte questão: Quais foram os principais processos, mudanças e desafios enfrentados pela educação brasileira durante a redemocratização nos anos 1980, e como esses fatores influenciaram os debates e a formulação das políticas educacionais que culminaram na LDB de 1996?  

Ao analisar esse período, observa-se que o fervor político e social impulsionou movimentos sociais, entidades civis e educadores a exigirem reformas estruturais no sistema educacional, denunciando desigualdades históricas. A Constituição de 1988, ao reconhecer a educação como dever do Estado e direito fundamental de todos, consolidou avanços que serviram de base para a LDB, mostrando que esta não foi fruto de um ato isolado, mas resultado de um acúmulo histórico de propostas, lutas e participação popular iniciadas ainda na década de 1980. 

Este trabalho adota uma abordagem qualitativa de natureza descritiva, articulando dois caminhos metodológicos principais. O primeiro é de caráter histórico-documental, com a análise de fontes como: a Constituição de 1988, atas de reuniões e congressos, discursos presidenciais e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996. O segundo eixo contempla a revisão bibliográfica, envolvendo livros, artigos acadêmicos, reportagens e, com destaque especial, a edição nº 5 da revista Universidade e Sociedade. Essa combinação visa compreender os processos históricos e políticos que moldaram o debate educacional ao longo da década de 1980, especialmente no contexto da redemocratização. A investigação se apoia na leitura crítica e na análise de conteúdo, com ênfase na participação popular, nas políticas públicas e nas propostas de reorganização da educação brasileira. 

Contexto político e social  da redemocratização 

Os militares tomaram o poder no dia 31 de março de 1964, quando o então presidente João Goulart, o Jango, que governou de 1961 a 1964 foi deposto. Tudo começa  no dia 13 de março de 1964, quando as reformas de bases (agrária, urbana, eleitoral, tributária e educacional) são anunciadas por Jango. O debate das reformas coloca os militares em alerta, já que eram vistas eram vistas  como ideais ligadas ao comunismo em decorrência da conjuntura política ligada a Guerra Fria (1947-1991), conflito ideológico entre dois grandes blocos EUA (capitalismo) e URSS (comunismo) que rivalizavam por influência mundial. Alinhados com os interesses capitalistas, os militares arquitetaram o golpe de Estado, contou com o apoio de parte da população principalmente após a Marcha da família com Deus pela liberdade e dos Estados Unidos que temiam  a expansão do comunismo na América Latina.  

Com isso em 1 de abril de 1964 sobe ao poder o primeiro presidente desse período sombrio vivido no Brasil, Humberto de Alencar Castelo Branco que esteve no mando de 1964 a 1967, sucedido por Arthur da Costa e Silva de 1967 a 1969, o terceiro foi Emílio Garrastazu Médici 1969 a 1974 conhecido como anos de chumbo, em seguida veio Ernesto Geisel de (1974-1979) e por último temos João Batista Figueiredo 1979 a 1985  

O processo de redemocratização iniciou-se ainda no regime autoritário, com o penúltimo presidente Ernesto Geisel a assumir o cargo  com um discurso que prometia uma “distensão lenta, gradual e segura”, ou seja, o fim do regime militar. No entanto, é importante destacar que esse discurso marca não apenas a continuidade do regime autoritário, mas também o início de um processo controlado de abertura política. 

Essa fase da história política brasileira revela como a transição democrática foi conduzida de forma pactuada, com forte influência das elites civis e militares, que buscavam garantir que a mudança ocorresse sem rupturas bruscas. A retórica de confiança e colaboração entre Estado e sociedade, embora presente no discurso oficial, não se sustentava plenamente diante das limitações impostas à participação popular e ao debate político livre. Como aparece no livro Democratizando o Brasil no capítulo intitulado A lenta via brasileira para a democratização: 1974-1985 escrito por  Thomas Skidmore historiador norte-americano que possui grande destaque em sua especialização em história política e social do Brasil. “Havia rumores de que o novo governo planejava acabar com as injustiças sociais do passado” (SKIDMORE, 1988, p. 31).  

Essas injustiças começaram a ser “reparadas” em 1 de janeiro de 1979, quando ocorreu a revogação de um dos maiores símbolos do autoritarismo militar, o AI-5, que entre muitas violações estava a retirada do direito a habeas corpus. Nenhum dos outros Atos Institucionais anteriores havia sido tão subversivo à democracia quanto este. Sua anulação não apenas reduziu formalmente os mecanismos de exceção, como também criou um espaço para o fortalecimento das mobilizações sociais, da reorganização partidária e da rearticulação das oposições políticas. Apesar disso, sua revogação não implicou a imediata superação das práticas repressivas do regime. Como aponta Thomas Skidmore. 

Ficava claro, desde o início, que qualquer movimento em direção a redemocratização e a um retorno ao estado de direito dependia da habilidade do presidente de mobilizar apoios dentro das corporações dos oficiais das três armas, especialmente do Exército. Os “linha-dura” poderiam se opor e talvez mesmo sabotar qualquer liberação. (SKIDMORE, 1988, p. 32). 

Durante o governo de João Figueiredo,  1979-1985, o último presidente deste regime que perdurou por mais de duas décadas, em 28 de agosto de 1979, a promulgação da Lei de Anistia (Lei nº 6.683). Esta norma concede perdão a dois grandes grupos, primeiro aos que teriam “cometido crimes políticos” e conexos, ou seja, qualquer um que fosse contra o regime e o segundo aos agentes de estado, ou seja, aos responsáveis pelas torturas, prisões, atos terroristas etc. todos os atos foram enquadrados a crimes conexos a atos políticos, pois tudo que foi feito era conexo ao seu objetivo político. Sendo assim, a lei da anistia não detalhou que crimes foram esses evidenciando o caráter controlado da abertura política conduzida pelos militares, como demonstra Thomas Skidmore. 

De fato, esse assunto havia sido censurado pela inclusão na lei de anistia de uma definição que incluía tanto os que haviam perpetrado “crimes políticos” como “crimes conexos”. Esse último eufemismo era encarado como cobertura para os torturadores. Era uma barganha política: os líderes oposicionistas sabiam que eles somente poderiam avançar no sentido de um regime aberto com a cooperação dos militares (SKIDMORE, 1988, p. 52) 

A partir de 1979 uma  nova lei permitia criação de novos partidos políticos, ocorre a fundação do PDT (Partido Democratico Trabalhista) por Leonel Brizola, o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) que passou para Ivete Vargas, o MDB se transformou em PMDB (Partido do Movimento Democratico Brasileiro), o ARENA (Aliança Renovadora) passou a ser PDS (Partido Democratico Social), e liderado por Luiz Inácio da Silva, surge o PT (Partido dos Trabalhadores). Recuperando seus direitos políticos, mas  ainda assim os militares assombravam o poder. 

No dia 2 de março de 1983, o então deputado Dante de Oliveira do PMDB, apresentou ao congresso uma proposta de emenda à constituição, solicitando o restabelecimento das eleições diretas para presidência da república, para que dessa forma expulsasse de vez os militares do planalto. O professor e pesquisador em história do Brasil republicano Jorge 

Ferreira  destaca que “A estratégia das oposições era concorrer às eleições presidenciais no Colégio Eleitoral utilizando as próprias regras da ditadura para derrotá-la (FERREIRA, 0000, p.n). E com esse grande passo surgem as Diretas Já, com um grito que enchia as ruas, “1, 2, 3, 4, 5000 queremos eleger o presidente do Brasil”, um movimento suprapartidário clamava e lutava pela volta dos direitos políticos básicos.  

O movimento pelas eleições DIRETAS JÁ não é responsabilidade exclusiva de nenhum partido, agrupamento, entidade ou setor da sociedade civil. É de toda a população brasileira, cabendo a sua coordenação ao Comitê Suprapartidário Nacional, que tem sido capaz de abrigar todas as opiniões e conduzir a luta de modo unificador, democrático e profícuo. (COMITÊ NACIONAL SUPRAPARTIDÁRIO PRÓ‑DIRETAS, 1984, on-line). 

Após anos de repressão, a sociedade civil ressurgiu com vigor, sendo assim possível enxergar um “amanhã” (Reis, 2004). Movimentos organizados, vozes até então foram silenciadas e uma população cobiçosa por participação protagonizaram uma nova dinâmica social e política. Era o renascimento de uma cidadania que exigia reformas concretas. Como afirma a renomada filósofa brasileira Marilena Chauí em seu prefácio contido na obra Quando novos personagens entraram em cena  do sociólogo, cientista político e militante político brasileiro, Éder Sader. 

O novo sujeito é social; são os movimentos sociais populares em cujo interior indivíduos, até então dispersos e privatizados, passam a definir-se, a reconhecer-se mutuamente, a decidir e agir em conjunto e a redefinir-se a cada efeito resultante das decisões e atividades realizadas (CHAUÍ, 1988, p. 10) 

No comando dos comícios das Diretas Já, estava o Ulysses Guimarães, Leonel Brizolae o Lula, políticos responsáveis por manter viva a luta, contavam com a participação de estudantes, professores, artistas, jogadores de futebol, músicos, jornalistas, chegando a ter cerca de 400 mil pessoas que não se calaram mesmo após a derrota da emenda que ocorreu no dia 25 de abril de 1984 na Câmara dos Deputados, mas a maior mobilização social do século XX não foi em vão e representou um momento positivo da nossa história. Como descreve os deputados e participantes ativos das mobilizações Domingues Leonelli e Dante Oliveira na  obra, 15 meses que abalaram a ditadura

Para alguns, ditos mais radicais, o processo, o movimento, a mobilização eram mais importantes que o resultado. E o defeito dessa postura não era o simples oportunismo de aproveitar-se politicamente de uma grande motivação popular, mas, sim, o de não levar em conta as consequências da frustração do país com a derrota da Emenda Dante de Oliveira (LEONELLI; OLIVEIRA, 2004, p. 456) 

O povo chorou, mas não desistiu, ainda havia uma pequena esperança, a eleição de um presidente civil, necessitava de uma figura que apesar do contraditório, tivesse uma boa relação com os militares, para então ser aprovado, o mais cotado para suceder a João Figueiredo era Tancredo Neves, que formou a chapa Aliança Democrática, tendo José Sarney como vice, ao final no dia 15 de janeiro de 1985 saíram vitoriosos com 480 votos, conforme descreveu Jorge Ferreira. 

Tancredo Neves utilizou toda a sua experiência de articulador político para viabilizar a vitória no Colégio Eleitoral […] escolheu um militar de prestígio para o Ministério do Exército: o general Leônidas Pires Gonçalves e buscou o  apoio do general  Ernesto Geisel. (FERREIRA, 2018, p.n) 

É importante salientar que as campanhas das Diretas foram fundamentais para essa vitória, mesmo ocorrendo de forma indireta, foi um grande alívio o resultado das eleições. “Chovia em Brasília e centenas de pessoas abrigavam-se debaixo de uma bandeira brasileira de 250 metros quadrados” (Gaspari, 2016, pp. 290-291). A população respirou, comemorou que mais um passo rumo à democracia  foi dado.  

O dia 21 de abril de 1985, começa com a narração da morte de Tancredo Neves e assim seu vice José Sarney assume de forma efetiva o cargo e governa de 1985 a 1990. O novo dirigente não agradou somente os militares como também a população, causando espanto e frustração. O  fato de que alguém com histórico de apoio à ditadura ser designado para liderar o processo de redemocratização soava como retorno do autoritarismo na política  brasileira. Sarney agora precisava cumprir com os acordos feitos por Tancredo Neves, com a população, como eleições diretas, votos aos analfabetos e etc. No que se refere aos militares, defendia-se que sua integridade fosse resguardada de quaisquer sanções, sob o argumento da necessidade de preservar a estabilidade nacional e garantir uma transição pacífica (Ferreira, 2018).  

Entre os compromissos estavam: o restabelecimento das eleições diretas para vários cargos e o fortalecimento das instituições democráticas, a criação de uma nova moeda para neutralizar a grande crise econômica e conter as tensões sociais. Entretanto, o principal foi a elaboração de uma nova Constituição para assegurar direitos historicamente negados durante o regime autoritário e dessa forma afirmar de vez o processo de redemocratização, como descreveu a mestre em história social Cássia Regina dos Santos Santos no seu livro História da educação 

O auge da redemocratização no Brasil foi a promulgação da constituição de 1988, que ficou conhecida como constituição cidadã. Ela não é considerada apenas um marco, mas também o resultado de intensa mobilização da sociedade. (SANTOS, 2021, p. n). 

Entre os setores mais fragilizados ao longo da ditadura civil-militar, a educação destacou-se pelo desmonte de políticas públicas, pela desvalorização do magistério e pela limitação do pensamento crítico nas escolas. Esta realidade foi amplamente denunciada e debatida nos encontros das Diretas Já, onde emergiu a necessidade de um projeto educacional comprometido com a democracia, a cidadania. Assim, a nova Carta Magna foi concebida também como instrumento de reparação histórica e reestruturação do sistema educacional brasileiro. O movimento trouxe a redemocratização como um momento de retomada da liberdade de expressão e discussão sobre o papel da educação na sociedade, que foi sendo sufocada até os últimos momentos do regime, já que aprender sobre seus direitos, o pensar e criticar não estava nos planos dos linha-dura. Os encontros serviam também para engajar temas pertinentes à época, grandes salas de aulas ao ar livre, onde era ensinado na prática a lutar por uma educação crítica, diferentemente da educação proposta pelo regime (Saviani, 2008). 

O regime não precisava de seres pensantes, mas sim de pessoas que tivessem um treinamento para ingressar no mercado de trabalho com sua mão de obra, destacando mais os distanciamentos entre as classes sociais.  O papel dos educadores nestes encontros servia para reverter o cenário político e demonstrar que a educação provida nessas duas últimas décadas não era voltada para cidadania, mas sim para o trabalho, promovendo a exclusão de camadas mais baixas. Como descreve   Cássia Santos “Foi uma luta de educadores para a construção de uma escola para todos, cuja característica primordial seria a não perpetuação dos mecanismos que geram a desigualdade” (SANTOS, 2021, p. n). 

Nesse modelo proposto pelo regime, as camadas dominantes ficavam com as vagas nas universidades e consequentemente ocupando grandes cargos e deixando para as classes mais baixas, que se profissionalizaram no ensino tecnicista, o cumprimento de tarefas específicas dentro do sistema produtivo sem questionar a estrutura social em que estavam inseridos. Como apontam Bittar e Ferreira.  

Para justificar o processo político autoritário que subordinou a educação à lógica econômica de modernização acelerada da sociedade brasileira, a tecnoburocracia lançou mão da “teoria do capital humano”, ou seja, impôs o discurso unilateral de que o único papel a ser desempenhado pela educação era o de maximizar a produtividade do PIB, independentemente da distribuição da renda nacional. Assim, na mesma proporção em que os golpistas de 1964 iam suprimindo as liberdades políticas, os tecnocratas propagavam a ideologia tecnicista como um sistema de ideias dogmaticamente organizado, que servia para legitimar a unidade orgânica entre economia e educação durante o regime militar (BITTAR; FERREIRA, 2008, p. n). 

Após duas décadas de intensas lutas por justiça, o fim da censura possibilitou ao povo brasileiro a retomada de mobilizações sem o receio da repressão estatal. Esse período não representou apenas a reconquista das liberdades civis e políticas, mas também a abertura para a reconstrução de um país profundamente marcado por perseguições, silenciamento e sistemáticas violações de direitos humanos. 

A CF de 1988 contemplaria uma ampla gama de temas, além de abordar a educação, estabelecendo os fundamentos das diretrizes que passariam a nortear a política educacional, trouxeram também êxito a várias lutas dos trabalhadores, garantia de direitos dos povos indígenas e quilombolas, na saúde ocorreu a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e para os direitos humanos também como a prática de racismo como crime inafiançável. No dia 5 de outubro de 1988, temos a sétima constituição do Brasil, que foi elaborada pela Assembleia Nacional Constituinte presidida por Ulysses Guimarães. Fruto da perseverança dos movimentos sociais da época, a nova Constituição refletiu o desejo coletivo por mudanças concretas, capazes de preencher o vazio deixado por anos de autoritarismo e violações de direitos. Com isso, a Carta Magna de 1988 carrega uma forte marca democrática, buscando reparar as restrições impostas no período anterior, especialmente no campo educacional, que havia sido amplamente negligenciado.  

Diante desse cenário, surge uma questão central: como a redemocratização influenciou a consagração da educação como um dever do Estado na nova Constituição? 

A Educação como Direito: Constituição de 1988  

Com a chegada da democracia, a nova Constituição de 1988 trouxe mudanças importantes para a vida dos brasileiros. Uma das principais foi garantir que a educação é um direito de todos e uma obrigação do Estado. Isso aconteceu porque, durante os movimentos pela democracia, como as Diretas Já, os setores sociais perceberam que sem educação não há cidadania de verdade. Por isso, a nova lei deixou claro que o governo deve garantir escola para todos, como parte da construção de um país mais justo e igual. como é descrito no artigo 205 da constituição de 1988 “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade […]”. (BRASIL, 1988, art. 205) 

A conduta do Estado brasileiro na esfera educacional possui raízes históricas profundas, que remontam ao período imperial, quando a instrução pública era restrita às elites letradas, sob forte domínio da Igreja Católica. Com o passar do século XIX, com o fortalecimento do Império e a concentração do poder político, surgiram os primeiros esforços institucionais para a organização de um sistema nacional de ensino, embora de forma ainda fragmentada, elitista e excludente (Carvalho, 2022). Já no contexto republicano, especialmente a partir da Revolução de 1930, o Estado passou a desempenhar papel mais ativo na formulação de políticas educacionais, impulsionado por projetos de modernização e desenvolvimento econômico (Brasil, 1996). No entanto, somente com a promulgação da Constituição Federal de 1988 a educação foi consagrada como um direito de todos, e sendo dever da família e prioritariamente do Estado, conforme os princípios impostos no documento.  

A construção da Constituição que contou com grande participação popular, onde os direitos exigidos lá nos comícios de Diretas Já foram ouvidos e incluídos, havia a existência de um formulário que era preenchido e enviado pelos correios com sugestões de temas para serem trabalhados no documento. Sendo  possível observar que um governo democrático não impõe o documento como os anteriores. A partir dessa base constitucional, instrumentos legais como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996) passaram a operar como mecanismos reguladores desse dever estatal. 

Uma das principais garantias estabelecidas neste documento é  o dever estatal com a educação,  não somente com o ingresso da criança e do adolecente na escola, mas sim como a garantia digna de sua permanência nesse ambiente. Este papel é discutido principalmente nos artigos 205 sendo fundamental para compreender esse papel e o artigo 208 como essencial e complementar, ambos encontrados na seção I do capítulo III. O art. 205 traz as finalidades da educação, primeiro o pleno desenvolvimento, segundo o exercício da cidadania e terceiro a qualificação para o trabalho. 

É estabelecido nesse artigo constitucional, que a educação é um direito de todos e um dever tanto do Estado quanto da família. Ao afirmar essa responsabilidade estatal, o texto constitucional insere a educação no campo das políticas públicas, vinculando-a diretamente ao Estado como garantidor intransferível desses direitos fundamentais. Essa projeção constitucional reconhece a educação não apenas como um bem individual, mas como um instrumento coletivo essencial ao desenvolvimento humano, social e econômico do país. Ao assumir a obrigação de promover e incentivar a educação, o Estado torna-se o principal agente de viabilização do acesso equitativo ao ensino de qualidade, especialmente para as populações mais vulneráveis, a fim de superar a marginalização (Saviani, 2008). Além disso, ao estabelecer que a promoção da educação deve ocorrer com a colaboração da sociedade, o artigo constitucional reafirma a natureza pública e coletiva do processo educacional.  

Sendo assim, podemos dividir a educação em três dimensões. A primeira é a educação formal, desenvolvida no ambiente escolar, com profissionais capacitados e fundamentada nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Essa diretriz busca garantir não apenas o acesso à escola, mas também a oferta de um ensino de qualidade. Em seguida, temos a educação informal, que envolve a atuação da família na formação do indivíduo fora das instituições escolares, promovendo valores como o respeito ao próximo e proporcionando experiências diversas, como cursos e participação em associações comunitárias, que contribuem para o desenvolvimento de habilidades cidadãs. Por fim, destaca-se a educação não formal, assumida pela sociedade, onde se aprende pela convivência cotidiana, pela troca de valores, atitudes e saberes. É nesse espaço que o conhecimento popular se manifesta e deve ser articulado ao saber científico, conforme defende Paulo Freire (1971), valorizando o processo contínuo de aprendizado ao longo da vida. 

Contudo, o Estado é quem tem o papel principal e coordena a política, devendo garantir diretrizes nacionais, investir e fiscalizar. A inclusão da família e da sociedade como corresponsáveis não reduz desta forma a obrigação estatal, mas amplia a rede em torno da educação como bem comum.  

No Artigo 208 da Constituição Federal de 1988 especialmente após as Emendas Constitucionais nº 14/1996, nº 53/2006 e nº 59/2009, estabelece a educação como um direito público subjetivo e impõe ao Estado a obrigação de garantir de forma universal e gratuita, o acesso à educação básica dos 4 aos 17 anos, bem como instrumento de equidade como a garantia de um ensino noturno para os indivíduos que de alguma forma foram impedidos de concluir ou iniciar a escola durante sua juventude. A educação infantil, programas suplementares e atendimento especializado. Tal dispositivo reflete uma inflexão histórica importante, pois consolida juridicamente, o que autores como Saviani (2008) defendem como a “função pública e política da escola” dentro de um projeto de sociedade democrática e inclusiva.  

A responsabilização direta do Estado pela ausência ou irregularidade da oferta educacional (§2º), por sua vez, converge com o pensamento de Paulo Freire, que compreende a educação como um ato político, e não técnico, sendo a garantia de acesso à escola uma condição para o exercício pleno da cidadania (Freire, 1996). Neste mesmo  sentido, o filósofo  Jamil Cury observa que o dever do Estado em relação à educação não é apenas normativo, mas constitui-se como prática concreta de justiça social e realização dos direitos humanos fundamentais (Cury, 2002). O artigo, portanto, não apenas atribui ao Estado um papel garantidor, mas o obriga a agir ativamente como agente de compensação das desigualdades sociais históricas, que exige não apenas políticas públicas mas uma concepção ética e democrática de educação como direito universal e instrumento de transformação social. 

Podemos observar que a educação foi altamente abordada se comparada a outras Constituições, resultado das reivindicações sociais, entretanto deve-se lembrar que ela traz apenas os aspectos gerais da organização da educação brasileira e, seguinte dela, teremos as legislações específicas que tratam das particularidades educacionais, como a LDB, que surge trazendo de forma mais clara e particular as pontuações dadas na Lei Maior. Mas, de que maneira os debates e a atuação dos intelectuais influenciaram a construção da LDB, aprofundando os princípios gerais estabelecidos na Constituição de 1988? 

Caminhos até a LDB de 1996 

O reconhecimento da educação como direito fundamental do cidadão e dever do Estado, garantido pela Constituição de 1988, foi o ponto de partida para um amplo debate sobre os rumos da política educacional brasileira. Este cenário proporcionou um espaço político e social para que intelectuais dos movimentos educacionais atuassem na construção de diretrizes capazes de transformar a realidade do ensino no país. Assim, a elaboração da LDB de 1996 contou com a contribuição decisiva desses atores, através de análises críticas, propostas inovadoras, com visão fundamentada na democracia e na justiça social para a formulação da nova legislação. 

Neste ponto do trabalho, propõe-se analisar o papel dos intelectuais na formulação das críticas e alternativas à LDB de 1996, com base nas reflexões presentes na revista Universidade e Sociedade, número 5, publicada em 1993 e organizada pelo ANDES (Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior). A partir dos artigos e ensaios reunidos nesta edição, evidencia-se como docentes, pesquisadores e militantes da educação atuaram como vozes fundamentais na defesa da escola pública e na construção de um projeto educacional comprometido com a justiça social. Essas contribuições mostram o engajamento político e teórico dos intelectuais diante dos desafios da redemocratização e das ameaças de retrocessos promovidas por setores conservadores no processo de revisão constitucional. 

O foco central da revista está voltado para as disputas políticas em torno da revisão da Constituição de 1988, abordando como setores conservadores pretendem desmontar conquistas sociais, e como setores progressistas, incluindo o movimento docente, buscavam defender e ampliar direitos sociais, especialmente na educação. Assim fazia-se necessário a criação de uma nova LDB, já que a de 1961 não atendia mais às necessidades da população. 

A promulgação da Constituição Federal de 1988 representou um marco histórico na consolidação da educação como direito social fundamental, vinculando o Estado ao dever de garantir o acesso universal, equitativo e de qualidade à educação básica (Saviani, 2008). A partir desse referencial constitucional, foram desenvolvidas legislações infraconstitucionais destinadas a regulamentar e operacionalizar tais princípios. E entre elas, destaca-se a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996), que redefiniu a estrutura e a organização do sistema educacional brasileiro. 

Como aponta a historiadora brasileira especializada em História do Brasil República, com destaque para estudos sobre memória, política e cultura  Zilda Iokoi, os debates travados no início da década de 1990 já alertavam para a importância da regulamentação do capítulo da educação da Constituição de 1988, o que se concretiza, anos depois, na promulgação da LDB de 1996. A autora destaca a atuação do movimento docente e sua colaboração com setores populares. “O movimento docente articulou-se com os demais setores da educação e está participando do Fórum Nacional em Defesa da Educação Pública e Gratuita” (LOKOI, 1993, p. 7). 

É importante destacar a IV Conferência Brasileira de Educação, organizada conjuntamente por ANDE, ANDES, ANPED e CEDES. Realizada em 1986, na cidade de Goiânia, essa conferência teve como objetivo discutir o lugar da educação na nova Constituição Federal de 1988. Na ocasião, os participantes do campo educacional avaliaram que, após os anos de regime ditatorial, a educação brasileira enfrentava sérias fragilidades e, por isso, propuseram mudanças estruturais como contribuição ao processo constituinte a organização dos grupos para adentrar mais profundamente nas discussões das mudanças  foi por  meio do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública (FNDEP). 

Com isso pode-se perceber o engajamento dos autores da revista articula-se diretamente às diretrizes do FNDEP, cujo Carta de Goiânia (1986) defendia que a nova LDB reafirma se o direito à educação pública, laica, gratuita e de qualidade socialmente referenciada. Zilda Iokoi (1993) reforça essa articulação ao afirmar que um primeiro projeto de LDB foi formulado amplamente negociado com os setores progressistas do movimento educacional, mostrando que os intelectuais ali presentes não apenas produziam diagnósticos, mas atuavam diretamente na elaboração de políticas públicas. 

Alguns projetos foram apresentados à Câmara dos Deputados, entre eles estava o do  deputado Octávio Elísio do PSDB-MG   (Lei  nº 1.258/1988), no dia 28 de novembro de 1988, foi considerado um trabalho muito amplo e técnico, pois buscava atualizar toda a legislação educacional, contou com ampla articulação entre educadores e entidades organizadas no Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública. Anos se passaram e o projeto passou por muitas discussões e revisões o que acabou alterando e emendado por diversas vezes, no final de tudo o texto já era considerado extenso e confuso o que levou a sua não aprovação no Senado. Como aponta a Doutora em Educação Andrea Cecilia Ramal em seu artigo de periódico intitulado A nova Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional. 

Em 1988 já corria no Congresso Nacional o processo de tramitação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Tratava-se então do projeto apresentado pelo Deputado Federal Octávio Elísio (PSDB/MG); o relator era Jorge Hage (PDT/BA).  O texto seria aprovado na Câmara dos Deputados em 13 de setembro de 1993, depois de receber 1.263 emendas. O projeto original, modificado em longas negociações na correlação das forças políticas e populares, ia para a avaliação do Senado reduzido, contendo 298 artigos. […] Um dado novo atropela o processo: o senador Darcy Ribeiro apresenta um substitutivo do projeto, alegando inconstitucionalidade de vários artigos […] Contando com uma espécie de consenso entre os senadores, o substitutivo Darcy Ribeiro, que contém apenas 91 artigos, é colocado em evidência, considerado mais enxuto e não detalhista. (RAMAL, 1997, p.n). 

Mas o projeto ainda serve de base para um projeto que foi oficialmente aprovado em 1996, este foi apresentado pelo senador Darcy Ribeiro do PDT-RJ em 1992, que apresentou um substitutivo mais curto, mais pragmático e com menos detalhes. 

Li milhares de páginas, procurando as melhores inspirações. E tinha condição para fazer isso, porque estou ligado à Lei de Diretrizes e Bases da Educação há trinta anos. Fui eu, como Ministro da Educação, a lei que trazia grandes inovações e grandes atrasos para o Brasil, por exemplo, a loucura de fechar os institutos estaduais de educação, para dar liberdade de criar escola normal para quem quisesse. A qualidade do ensino normal caiu incrivelmente. Em nome da liberdade de deixar todos formarem normalistas, fez-se um atraso terrível na educação. (RIBEIRO, 1996, p. 1582). 

Darcy Ribeiro conta que dedicou-se intensamente ao estudo de propostas e documentos, reforçando o esforço intelectual que empreendeu para escrever a nova LDB, mas o projeto que foi muito criticado e especial por Zilda Lokoi que afirma “[…] o Projeto Darcy Ribeiro, que fere inúmeros princípios do texto constitucional, especialmente o direito a oito anos de escolaridade para toda criança brasileira a partir de 7 anos” (Lokoi, 1993, p. 7), ou seja, o projeto não garante com clareza o direito das crianças a cursarem o ensino fundamental, como manda a Constituição. Isso preocupa a autora, porque pode abrir espaço para retrocessos. 

A LDB estabeleceu os fundamentos legais para a gestão democrática do ensino, a valorização dos profissionais da educação, a garantia de financiamento e o respeito à diversidade. Entretanto, sua implementação tem enfrentado desafios persistentes, especialmente diante das tensões entre os ideais constitucionais e os limites impostos por políticas de corte neoliberal que influenciam as ações do Estado desde a década de 1990. 

A tramitação da nova LDB de 1996, como vimos anteriormente ocorreu em meio a intensos embates políticos e ideológicos no Congresso Nacional. Intelectuais, docentes universitários e movimentos sociais organizados viam na nova legislação educacional uma oportunidade de regulamentar os avanços conquistados pela Constituição de 1988. Como afirma no estudo da Pós-Doutora em Educação Maria da Graça Nóbrega Bollmann e  Doutora em Educação Letícia Carneiro Aguiar (2016), é citado o entendimento do sociólogo José Batista.  

A promulgação de uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação a exemplo do que ocorreu durante o processo Constituinte para a elaboração da nova Constituição Federal, não se deu sem embates e divergências entre, de um lado parlamentares que juntamente com algumas entidades educacionais privadas defendiam um projeto de LDB voltado para o privatismo e, de outro, associações da sociedade civil, com representantes no parlamento, reunidas em um movimento educacional que, ainda inspiradas nos ideais dos pioneiros, representavam um projeto de LDB que priorizasse definitivamente a escola pública. (BATISTA apud AGUIAR; BOLLMANN, 2016, p. 410). 

Contudo, enfrentavam a resistência de setores conservadores que, influenciados por agendas neoliberais, buscavam restringir direitos educacionais, enfraquecer o caráter público e político da educação. Para entender  essa atuação e sua importância para toda a sociedade é importante  compreender a concepção de intelectual orgânico, desenvolvida por um  filósofo, jornalista e político marxista italiano, Antônio Gramsci, segundo a qual os intelectuais não apenas produzem ideias, mas exercem uma função ativa na construção de projetos sociais ligados às classes subalternas. Como afirma o autor na obra Os intelectuais e a organização da cultura, “todos os homens são intelectuais, mas nem todos desempenham na sociedade a função de intelectuais” (GRAMSCI, 1978, p. 12). Com isso podemos identificar que uma pessoa que mesmo sendo  analfabeta e que é líder de sua comunidade pode ser colocada como intelectual, pois a sua busca incessante por melhorias estruturais, culturais, políticas o coloca nesse exercício. 

Esta perspectiva é visível nos textos da revista, especialmente no artigo de Zilda Iokoi  destaca o envolvimento dos docentes no Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública e a formulação do Projeto Otávio Elísio, proposta de LDB construída coletivamente e apresentada ao Congresso Nacional como alternativa às iniciativas conservadoras. A autora afirma que “o movimento docente articulou-se com os demais setores da educação e está participando do Fórum Nacional em Defesa da Educação Pública e Gratuita” (LOKOI, 1993, p. 7) revelando a vinculação dos intelectuais às lutas sociais por uma educação pública, gratuita e de qualidade. 

A crítica dos intelectuais ultrapassa o campo técnico ou acadêmico, inserindo-se nas disputas políticas mais amplas. A esse respeito, Pierre Bourdieu  foi um sociólogo e filósofo francês que se destacou por analisar as relações de poder na sociedade, chama atenção para o fato de que todo ponto de vista intelectual é socialmente situado, como o autor  afirma na obra O poder simbólico, “O poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.” (BOURDIEU, 1989, p. 7-8). A análise de Bourdieu ajuda a compreender como os projetos educacionais na transição democrática não são apenas técnicos, mas arenas políticas onde se disputam visões de mundo e hegemonias culturais 

Maria Ciavatta uma historiadora e socióloga, referência na análise das relações entre trabalho, memória e educação no contexto brasileiro, em seu artigo na revista, reforça essa ideia ao afirmar que as leis educacionais não traduzem a realidade social da escola e do trabalho e não tocam as condições objetivas de existência de milhões de brasileiros. Ao propor uma leitura crítica da relação entre trabalho e educação na LDB, Ciavatta rompe com a neutralidade institucionalizada e posiciona-se em defesa dos interesses da classe trabalhadora. Ela problematiza também a relação entre formação geral e profissional, identificando os desafios que a nova LDB enfrentaria. 

A nova LDB não tem o caráter autoritário da Reforma. Mas ela salvaguarda exemplarmente os direitos dos setores empresariais técnico-burocráticos hegemônicos, ligados a todas as formas de “preparação para o mercado de trabalho”.  (CIAVATTA, 1993, p. 51). 

Ou seja, protege os interesses de setores empresariais ligados à preparação para o mercado de trabalho, perpetuando algo propagado pela ditadura civil-militar. 

A tensão entre diferentes projetos educacionais é evidenciada por Saviani (2007), para quem a LDB de 1996 resulta do confronto entre um projeto democrático popular, de inspiração social e um projeto neoliberal voltado à flexibilização e à privatização do ensino. Esta disputa aparece claramente no editorial da revista escrito por Lúcia Helena Lodi, uma especialista em políticas educacionais no Brasil, que denuncia: “a ação  conservadora na revisão constitucional serve-se da crise do Leste Europeu para tolher as conquistas de inspiração socialista” (LODI, 1993, p. 5). A crítica não se limita a questões educacionais, mas envolve uma visão mais ampla de sociedade, em que a escola é vista como instrumento de emancipação. Esse embate se intensifica no artigo do filósofo Roberto Romano (1993), ao denunciar a centralização da proposta de LDB nas mãos de Darcy Ribeiro, no seu afastamento das diretrizes construídas coletivamente pelo Fórum. 

O caso da LDB é eloquente: para satisfazer a vontade de potência de um agrupamento autoritário como é o caso do grupo reunido sob o nome de Darcy Ribeiro, se prolongou a decisão – vital para o ensino público – ignorando todo o trabalho dos educadores e cidadãos que se reuniram no Fórum Nacional pela Educação. (ROMANO, 1993, p. 10). 

Dessa forma, todas as vozes que gritavam e protestavam por uma educação melhor em partes foram ignoradas, ressaltando uma ruptura com os princípios democráticos e participativos defendidos na redemocratização. Ao mesmo tempo, os textos da revista evidenciam uma crítica consistente à lógica tecnicista herdada das reformas educacionais implementadas durante a ditadura civil-militar. Newton Bryan (1993) referência em educação do trabalho e planejamento educacional, com ênfase na articulação entre processos educacionais, tecnologia e desenvolvimento social, centra-se em esclarecer à relação entre o modelo de ensino tecnicista e a estrutura de organização do trabalho herdada do taylorismo e fordismo, mostrando que algumas pessoas apenas  seguem ordens e fazem tarefas práticas, enquanto outras ficam com a parte de pensar, planejar e tomar decisões, ou seja, o trabalhador era treinado para repetir tarefas, sem questionar ou participar de decisões, dessa forma a educação técnica ajudava a manter esse tipo de organização, que não formava pessoas críticas, capazes de pensar e agir, para que assim não conheçam e nem cobre os seus direitos (Bryan, 1993), mostrando que os intelectuais ali presentes não apenas produziam diagnósticos, mas atuavam diretamente na elaboração de políticas públicas. 

Dessa forma, a Revista Universidade e Sociedade nº 5 não apenas expressa um momento de intensa produção crítica, mas materializa a atuação de um intelectual coletivo (nos termos gramscianos), engajado na defesa de uma concepção de educação voltada para a transformação social. A atuação desses intelectuais foi decisiva para tensionar o processo de elaboração da LDB, denunciando retrocessos, propondo alternativas e mobilizando a sociedade civil organizada em torno de um projeto educacional comprometido com os princípios democráticos da Constituição de 1988. A revista mostra-se como representante do pensamento do movimento docente universitário da época, defendendo ativamente um projeto de educação, típico de uma publicação sindical, política e militante. Neste contexto, defendendo uma LDB comprometida com a justiça social e com a ampliação do acesso à educação significava, para esses autores, a lutar contra a lógica do desmonte das políticas públicas e afirmação da educação como um direito e não como mercadoria. 

Considerações finais 

Durante o processo de redemocratização, a população brasileira não apenas conquistou seus direitos civis e políticos, mas também passou a ocupar espaços de participação social, mobilizando-se por melhorias em áreas essenciais, como a educação.  

Esse contexto permitiu que diferentes setores da sociedade se organizaram para exigir que o direito à educação deixasse de ser apenas uma promessa e passasse a ser garantido por lei, de forma clara e sem brechas que possibilitasse retrocessos.  

As discussões desse período foram fundamentais para a formulação de políticas e legislações mais sólidas, construídas a partir de uma experiência histórica marcada pela negação de direitos básicos.  

Este estudo buscou compreender de que forma os debates educacionais da década de 1980, no contexto da redemocratização, influenciaram a construção da LDB e a consolidação e a garantia de direitos educacionais. Ao analisar essa caminhada histórica, foi possível perceber que muitas das conquistas concedidas naquele período seguem sendo pilares fundamentais da educação brasileira, mas ainda enfrentam constantes ameaças. Apesar da educação contemporânea, ainda se sustentam sobre essas conquistas, como é o caso da Lei de Cotas, que apesar de constantemente atacada, tem como objetivo reduzir desigualdades estruturais e combater a exclusão social. Essa reflexão também nos leva a questionar até que ponto os movimentos negros e outros grupos historicamente marginalizados foram efetivamente ouvidos durante a elaboração da nova LDB. Assim, ao longo do trabalho, foi possível refletir sobre o cenário político e social que marcou a redemocratização no Brasil e como ele influenciou os rumos da educação. Destacou-se a importância da Constituição de 1988 na consolidação da educação como direito de todos e dever do Estado. Por fim, discutiram-se os caminhos percorridos até a aprovação da LDB de 1996, resultado de longos debates e disputas. A trajetória abordada revela que a educação, nesta conjuntura, não é apartidária, mas sim  marcada por escolhas políticas. Portanto, compreender esse processo é primordial para pensar os desafios educacionais no tempo presente, e lutas da década de 1980  nos ajudam a compreender a importância de proteger esses avanços e continuar defendendo uma educação pública, democrática e socialmente comprometida com a equidade. 

Tais análises reafirmam que a legislação educacional brasileira é fruto de disputas históricas e ideológicas, não sendo neutra nem universalmente aceita. Os debates da década de 1980 revelam-se, assim, fundamentais para compreender os limites e possibilidades da política educacional brasileira contemporânea. Estudar as origens e os efeitos da LDB de 1996, dentro do contexto da redemocratização,  

Contudo é importante pensar com mais consciência sobre os rumos da educação no Brasil que reconhecem os conflitos, ajuda a reafirmar a educação como um direito de todos e a valorizar a participação da sociedade na construção das políticas públicas.  

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