A QUESTÃO DA INCLUSÃO DE PESSOAS TRANS EM PRESÍDIOS FEMININOS: DESAFIOS E DEBATES

THE ISSUE OF THE INCLUSION OF TRANS INDIVIDUALS IN FEMALE PRISONS: CHALLENGES AND DEBATES

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7932867


Ian Fellipe de Morais
Pedro Henrique Dutra


RESUMO

A inclusão de pessoas trans em presídios femininos é um tema que gera muitos debates e desafios. Muitas questões surgem em relação à segurança, privacidade e direitos humanos tanto das pessoas trans quanto das mulheres cisgênero que já estão detidas nesses presídios. Enquanto alguns argumentam que as pessoas trans têm o direito de serem acomodadas de acordo com sua identidade de gênero, outros argumentam que isso pode representar uma ameaça às mulheres cisgênero. Além disso, algumas pessoas questionam se os presídios femininos são realmente equipados para atender às necessidades de saúde e segurança das pessoas trans. A abordagem correta para lidar com essa questão ainda é objeto de reflexão e discussão, com diversos especialistas e organizações defendendo abordagens diferentes. Por fim, é importante lembrar que as pessoas trans enfrentam uma série de desafios em relação à discriminação e exclusão em vários aspectos da sociedade, incluindo o sistema prisional, e é fundamental garantir seus direitos humanos e proteção adequada em todas as circunstâncias.

Palavras-chave: mulheres trans; presídios femininos;

ABSTRACT

The inclusion of transgender individuals in women’s prisons is a topic that generates much debate and challenges. Many issues arise regarding the safety, privacy, and human rights of both transgender individuals and cisgender women who are already detained in these prisons. While some argue that transgender individuals have the right to be accommodated according to their gender identity, others argue that this may pose a threat to cisgender women. Additionally, some people question whether women’s prisons are truly equipped to meet the health and safety needs of transgender individuals. The correct approach to dealing with this issue is still the subject of reflection and discussion, with various experts and organizations advocating for different approaches. Finally, it is important to remember that transgender individuals face a range of challenges in terms of discrimination and exclusion in various aspects of society, including the prison system, and it is essential to ensure their human rights and adequate protection in all circumstances.

Keywords: trans women; female prisons.

INTRODUÇÃO

As questões de gêneros são assuntos discutidos ao longo da História, mas as questões de identidade de gênero talvez tem sido motivos de mais amplos debates, sobretudo nas últimas décadas, fugindo do binarismo (homem e mulher) que já incide posicionamentos, críticas e reflexões, arcabouço de entre outros debates, o machismo, o feminismo e até o feminicídio. O fato é que, diante da pluralização dos conceitos identitários das minorias de gênero, a sigla LGBTQIA+, surgem para referenciar essas minorias e fortalecer esse movimento, que ganha cada vez mais adeptos ou simpatizantes, mas que também incide discussões e posicionamentos individuais, sociais e mesmo jurídicos.    

Se as questões relacionadas a identidade de gênero causam dúvidas, preconceitos e discriminação na sociedade de modo geral, resta apontar como se dá essas questões frente a situação de cárceres das apenadas desse segmento e suas apreciações jurídicas. Logo, nas unidades prisionais, assistem certas problemáticas quanto a aceitação e permanência das detentas transexuais e travestis, além da preservação dos seus direitos, sobretudo na escolha das mesmas em estar dividindo celas junto com mulheres e/ou homens. O supremo Tribunal Federal STF (ADPF 527) posicionou quanto ao Direito de mulheres trans e travestis em relação a poder escolher entre presídios masculinos ou femininos, para o cumprimento de suas penas visto que, uma das preocupações é zelar pela diminuição da violência sofrida por essas pessoas, mas, contudo, sem se esquecer de zelar para a não gravidez da população encarcerada feminina, ao dividir celas com detentas trans ou travestis.

A questão, não pode somente residir no fato que a travesti possuem seus órgãos sexuais, e que, portanto, pode exercer atividade sexual masculina em potencial, e por isso, não poderiam conviver em celas femininas, devido a possibilidade de gerar gravidez em outras detentas, no mesmo sentido, não se pode apenas convencer-se do fato, de que uma mulher trans que já tenha passado pela cirurgia de redesignação sexual para se tornar uma mulher, podendo permanecer em celas femininas por não ser capaz de engravidar outra mulher cisgênero, já que executou o procedimento de retirada dos testículos.

A questão envolve bem mais que isso, está em jogo o direito de identidade de gênero do indivíduo, suas escolhas para prática do sexo, fora e dentro da prisão e ainda as condições estruturais das prisões para receber essas minorias com respeito e sensibilidade à diversidade sexual. As trans, travestis e as mulheres devem ter seus direitos humanos garantidos pelo Estado, mas a análise aqui, a ser feita é como pode ser dado a possibilidade do cumprimento de pena às transexuais e travesti de forma segura para todas, prezando pela garantia da segurança e o bom convívio com toda população carcerária. Dado esse impasse, questiona-se, as mulheres trans e travestis devem ter a mesma opção de poderem ir para presídios femininos?

Não há critério específico para que uma travesti possa optar por cumprir uma pena em presídio feminino, apenas o fato de se reconhece como mulher, mas tal fato não significa que a mesma não tenha atração ou desejo por mulheres, além de que as travestis, mesmo com a aplicação de hormônios, ainda são capazes de engravidar outras mulheres.

Sabe-se que uma unidade prisional é um lugar extremamente hostil, sofre de condições insalubres e em algumas regiões chega a sofrer até mesmo por superlotação, vale ressaltar que no Brasil há apenas cerca de 103 unidades prisionais exclusivamente femininas e aproximadamente 238 unidades mistas, isto para uma população encarcerada feminina de cerca de 49 mil mulheres. Tal fato torna praticamente inviável a ideia de que poderiam ser implementadas celas separadas para as travestis.

O objetivo é entender ambos os lados, pois tanto um quanto o outro possuem situações de fragilidade, nos presídios masculinos as trans e travestis sofrem com o preconceito exercido pelos outros encarcerados, em alguns casos chegando até a sofrerem estupro, enquanto que, nos presídios femininos pode ocorrer das encarceradas virem a ficar grávidas, de forma consensual ou não.

O presente artigo utilizaremos o método dedutivo, de onde podemos chegar a uma proposição específica e exclusiva por meio de proposições gerais, quanto ao procedimento utilizamos a coleta de dados através de pesquisas bibliográficas, pois trabalha-se com literaturas, dados jurídicos e estrutural do Sistema prisional brasileiro, e classificamos tais pesquisas como exploratórias, pois confere variadas concepções de estudos e levantados sobre a temática. A abordagem é qualitativa por assim conceber que o fenômeno estudado ainda é pouco explorado, tornando difícil chegar a um veredito final, contudo, é passível de conhecimento das realidades e experiências para que se chegue a uma explicação mais convincente da problemática.

  • ASPECTOS HISTÓRICOS GERAIS DO SISTEMA PENAL PRISIONAL E O CÁRCERE FEMININO

Um olhar atento nas culturas da Antiguidade, Egito, Grécia, Babilônia e Pérsia, ilustra como era organizado o sistema de prisional, o qual não cumpria o caráter de pena como conhecido na atualidade, isso pois o preso, geralmente escravos e prisioneiros de guerra sofriam maus tratos e torturas até que fosse dado o julgamento, o qual na maioria das vezes era a amputação de parte do corpo, presa de espetáculos com feras e a morte. Dessa maneira, ficava evidente que o cárcere era um caminho, o qual conduzia a punição final, e durante o processo de cárcere o preso estava entregue a condições desumanas de sobrevivências. Entende pois;

o método do encarceramento não se caracteriza como fim da punição e sim como meio, não havendo qualquer vestígio de preocupação com a qualidade do local, nem com a saúde do então prisioneiro, muitas vezes sendo recintos inescrupulosos, sem a mínima condição de habitação, sendo estes calabouços, aposentados em ruínas ou insalubres de castelos, torres, conventos abandonados, palácios e outros edifícios (DAVID JUNIOR, 2001).

Não obstante, nota-se que, no que condiz aos aspectos humanistas dos prisioneiros, os encarcerados da antiguidade não são vistos como possuidores de tais, nem tão pouco se comparam aos aspectos humanitárias da atualidade, haja vista que, naquelas sociedades o preso ao ser detido perdia sua condição de cidadania, ou já nem a possuía, no caso de estrangeiros e escravos. Doravante, ao não gozar de sua plena condição de cidadão, seja porque não possui nacionalidade, seja porque cometeu e transgrediu as leis locais, esses indivíduos estão sujeitos a receber tratamentos assemelhados a animais e punições duras e vergonhosas. E embora, ocorresse o julgamento, os réus não eram condenados a perda da liberdade, após o final deste, mas era marcado com estigma de quem cometeu um desvio de conduta ou infringiu as Leis, também passavam às condições de subalternos, na maioria das vezes escravos, o que o colocaria em condições sociais em desvantagem aos demais, impossibilitando a ter acesso a outros status sociais.

Ao adentrar ao período Medieval, as condições de cárceres não se alteram tanto, a lei penal tinha como verdadeiro objetivo provocar o medo coletivo, a privatização da liberdade continuava tendo a finalidade de custódia, e as mutilações e as mortes das mais variadas formas continuavam nesse período. O caráter do poder fragmentado e privado, centrado na organização feudal contribuiu para que durante um longo período vigorava as especificidades nas formas de punições, as quais, ficavam restritas e a carga de cada Feudo, diante da composição da cavalaria ou exército particular (WELTER, 2013).

Mas, ainda nessa fase histórica, assistiu ao aparecimento de novas formas de organização de punições por crimes cometidos, a prisão de Estado e a prisão Eclesiástica. No tocante a primeira, a prisão do Estado, essa era destinada sobretudo, aos traidores ou adversários políticos dos governantes dominantes, aqueles que assumissem ações subversivas contra o poder ou que mesmo só representassem ameaça a esses, podiam ser postos contra inimigo e por ora, fossem presos e julgados.

Na prisão de Estado, na Idade Média, somente podiam ser recolhidos os inimigos do poder, real ou senhorial, que tivessem cometido delitos de traição, e os adversários políticos dos governantes. A prisão apresentava duas modalidades: a prisão-custódia, onde o réu esperava a execução da verdadeira pena aplicada (morte, açoite, mutilações etc.), ou como detenção temporal perpétua, ou ainda até receber o perdão real (Valdés apud BITENCOURT, 2011, p. 26).

No caso da prisão eclesiástica, a igreja católica com todo seu domínio religioso e sua ampla organização no período, também se estruturou para combater os desvios de condutas religiosas de clérigos. Essas prisões se caracterizavam como internamento para prática de penitência e meditação, objetivava através do enclausuramento do religioso houvesse o arrependimento das suas práticas pecaminosa e a volta ao caminho de conversão e prática do bem, servindo de exemplo para quem pudesse seguir o caminho do transgressor.

[…] a pena possuía uma dupla finalidade: (a) eliminar aquele que se tornara um inimigo da comunidade e dos seus deuses e forças mágicas, (b) evitar o contágio pela mácula de que se contaminaram o agente e as reações vingadoras dos seres sobrenaturais. Neste sentido, a pena já começa a ganhar os contornos de retribuição, uma vez que, após a expulsão do indivíduo do corpo social, ele perdia a proteção do grupo ao qual pertencia, podendo ser agredido por qualquer pessoa. Aplicava-se a sanção como fruto da liberação do grupo social da ira dos deuses em face da infração cometida, quando a reprimenda consistia, como regra, na expulsão do agente da comunidade, expondo-o à própria sorte. Acreditava-se nas forças sobrenaturais – que, por vezes, não passavam de fenômenos da natureza – razão pela qual, quando a punição era concretizada, imaginava o povo primitivo que poderia acalmar os deuses. Por outro lado, caso não houvesse sanção, acreditava-se que a ira dos deuses atingiria a todo o grupo (CALDEIRA, 2009, p. 260).

As concepções medievais de prisões têm semelhanças com as atuais, pois ambas demonstram o poder e a supremacia do Estado e sua imposição sobre outros grupos. A criação de penas e punições visa a afastar os indivíduos da tentativa de impor novas ideias e ações. Hoje em dia, a tentativa é de pressionar os criminosos para que sintam receio de avançar em seus projetos ilícitos, de forma a impedir que destruam a dinâmica estrutural do governo.

Enquanto as prisões eclesiásticas, podem ser tomadas como semelhantes a dinâmica da punição psicológica e emocional. Ainda há, uma mentalidade que o detido nas unidades prisionais atuais, precisa arrepender da sua prática errada ou crime cometido enquanto encontra-se retido de sua liberdade. Espera-se que o mesmo realize um auto exame pessoal e social e se arrependa de sua conduta, para que ao retornar a liberdade possa voltar-se como cidadão de bem. Também, a ideia da prisão como exemplo para a não continuação das práticas errôneas e criminosas, dados as observações de Cesare Beccaria, “Um delito já cometido, para qual não há mais remédio, apenas pode ser punido pela sociedade política para obstar que os outros homens incidam em outros idênticos pela esperança de ficarem impunes.” (2002, p. 38).

Essas, ponderações, tecidas e levantadas entre o início da prática de prisão e as dos dias atuais, servem para ilustrar certas similitudes que o presente carrega do passado e como ainda prevalecem concepções arraigadas na ideia de prisões e cárceres na atualidade. No que se refere ao Direito Canônico, esse pois, foi o alicerce para a ideia de pena e sua aplicação durante a prisão, contribuiu para o seu surgimento nos moldes em que é entendida atualmente, visto que trouxe a ideia de “recuperação” do ser humano por meio da privação da liberdade, quando, então afastado de toda tentação, podia refletir e assim arrepender-se do mal que causou, podendo, dessa forma, alcançar a salvação (BITENCOURT, 2011, p. 27).

No que se refere a efetivação das Leis, nas contribuições trazidas por Wolkmer (2010), apontam para a prática de Leis orais, nas sociedades da antiguidade, onde a concepção e aplicabilidade da pena advinda da vontade divina, as sanções eram aplicadas de acordo com rituais passados através de várias gerações, originando regras de comportamento. Assim, ao analisar as concepções da Lei, durante o período estavam presentes o aspecto religioso e o consuetudinário e, baseado nesse temor sacro, tornou-se favorável o surgimento de um poder central. A busca pela autoafirmação tanto dos governantes como da própria igreja leva a quase na totalidade dos casos a interpretação da lei feita por sacerdotes ou suseranos, pois eram considerados pessoas capacitadas e eleitas pelos deuses para interpretar suas vontades. Logo, eram eles os detentores do poder de punir (WOLKMER, 2010).

Na obra “Dos Delitos e das Penas”, Cesare Beccaria discute e introduz conceitos sobre o sistema penal conhecido na atualidade; “O fim, pois, é apenas impedir que o réu cause novos danos e delitos aos seus concidadãos e dissuadir os outros a fazer o mesmo. É necessário escolher penas e modos de infringi-las, que, guardadas as proporções, causem a impressão mais eficaz e duradoura nos espíritos dos homens”. (BECCARIA, 2002, p. 62).

Um grande salto para se chegar ao Direito Penal Comum, veio já nos fins da Idade Média, quando se assiste um estudo mais detalhada frente as contribuições do Direito Romano, o Direito Germânico, o Direito Canônico e dos direitos locais, uma nova interpretação passa a ser tecida e nela;

[…] uma das principais peculiaridades do desenvolvimento do Ocidente foi que somente nos finais da Idade Média européia verificou-se o surgimento de uma administração da justiça autêntica e burocrática. A já mencionada recepção do direito do Direito Romano e a eliminação contemporânea de influências pessoais locais e comunitárias foram possíveis graças à aparição de um novo direito. Este já não estaria à disposição das partes que utilizavam, mas sim corresponderia a uma técnica conhecida e dominada pelo grupo de juristas ou “profissionais” (ANITUA, 2008, p.72-73).

As mudanças no período, provenientes do florescimento do capitalismo e o reaparecimento das cidades com a intensificação comercial, também levaram a centralização política e reorganização social. As estruturas sociais colidem com as grandes transformações políticas econômicas, nesse ponto incertezas, pobreza e fome também dividem espaço com muitos outros problemas, entre eles a questão penal.

Essas novas cidades teriam suas próprias leis, apropriadas ao avanço econômico da burguesia. Essas leis também seriam apropriadas devido às novas necessidades de controle urbano em um meio caracterizado pela extrema aglomeração e pela especulação imobiliária. Esse controle, no que se refere à questão criminal, começaria a ser segregativo e excludente [continua o autor], mas também mais disciplinar e inclusivo (ANITUA, 2008, p. 65-66).

Se por um lado, no final da Idade Média, as transformações socioeconômicas e sociais fizeram surgir motivos que incidam a rebeliões e motins, também houve a necessidade de efetuar um maior número de prisões que concomitassem novos formatos na Legislação penal. Em resposta às rebeliões, foram criadas leis penais mais severas, que tinham como alvo os causadores dos conflitos, isto é, a classe desfavorecida. A pena era utilizada como meio de manter o controle social, visando espalhar o medo (BITENCOURT, 2011, p. 30). Completa esse pensamento, quando encontra no período, o Direito Penal como, “um instrumento de preservação e de reprodução da ordem política e social, o sistema penal absolutista reprimia as forças sociais garantindo a expansão da política mercantilista” (CHIAVERINI, 2009, p. 70).

Para Chiaverini (2009), ao adentrar a Idade Moderna configura-se uma vista antropocêntrica da burguesia, essa proveniente das já iniciadas mudanças socioeconômicas e políticas dos fins da Idade Média e o crescente e consciente pensamento humanista que colocava o ser humano como centro de todas as vontades. Essa concepção era passível de observação nas artes, literaturas, novas técnicas e tecnologias, mais ainda em textos e discursos sobre a prática penal das prisões. Autores se destacaram nesse período, dentre os que tinham como foco as questões penais e a filosofia do direito: More, Campannella, Maquiavel e Hobbes (CHIAVERINI, 2009, p. 45).

A postura absolutista de rei, que simpatizou com líderes políticos e déspotas nacionais, chegando até mesmo fazer parte da formação e organização ideológica de muitas nações no período, também contribuem para impregnar as penalidades e caracteriza as prisões no período. Sobre aquela mentalidade, Foucault salienta para a prática da pena de morte, o que fora bastante adotado no período.

A pena de morte natural compreende todos os tipos de morte: uns podem ser condenados à forca, outros a ter a mão ou a língua cortada ou furada e ser enforcados em seguida; outros por crimes mais graves, a ser arrebentados vivos e expirar na roda depois de ter os membros arrebentados; outros a ser estrangulados e em seguida arrebentados, outros a ser queimados vivos, outros a ser queimado depois de estrangulados; outros a ter a língua cortada ou furada, e em seguida queimados vivos; outros a ser puxados por quatro cavalos, outros a ter a cabeça cortada, outros enfim a ter a cabeça quebrada [continua o autor] satisfação à pessoa ofendida, admoestação, repreensão, prisão temporária, abstenção de um lugar, e enfim as penas pecuniárias – muitas ou confiscação (FOUCAULT, 1987, p. 30).

Interessa salientar que, frente a organização e efetivação penal em volta das prisões, a História, até o momento analisado, mostra uma tentativa de punir o sujeito pelos seus atos errôneos ou não consentidos socialmente, conquanto, os atos punitivos são embebidos de um viés de segregação e exclusão; dos grupos considerados “bons”, ordeiros  ao sistema político vigente, em relação aqueles transgressores, os quais, deixaram de ser bons em algum momento ou que, não possuem institutos de bondade, de obediência às regras e ordens estabelecidas. Essa segregação e exclusão político social tende a permanecer ao longo do tempo, até mesmo frente a prática do Direito, e mediante as atuais concepções modernas de prisões e penalidades.

  • O Surgimento da prisão moderna e seus limites

Contraditoriamente, a prática absolutista do Direito Penal, exercido nos Estados autoritários da Idade Moderna são postos em xeque, com a intensa prática da pena de morte, essa, porém não era capaz de pôr fim a delinquência, dado que, continuaria existindo devido a exploração e as péssimas condições que a população mais pobre vivia, escolhendo muitas vezes a prática do crime como alternativa de sobrevivência, por outro lado, a prática da pena de morte, poderia diminuir o número de mão-de-obra em potencial.

Por ora, era preciso articular modelos de prisão que retirava a liberdade, desocupados e “vagabundos” que perambulavam nos centros urbanos, sobretudo os comerciais, sujeitos que muitas vezes praticam crimes, e assim passando desenvolver a ideia da ética ao trabalho;

Foi assim que o modelo de presídio se converteu no lugar de expulsão dentro do próprio meio, ou “expulsão para dentro”. Porém, de uma forma geral, estes expulsos eram enviados aos cárceres para morrer, para não fazer nada. Essa situação permaneceu inalterada até que necessidades estruturais levaram a que se buscasse aproveitar esta mão-de-obra e criar, também no interior dos lugares de detenção, mecanismos de disciplina (ANITUA, 2008, p. 116).

Observou que, a recusa ao trabalho tornava uma intenção criminosa, a qual precisa ser punida, sendo que, dentro da mentalidade do capitalismo, essa prática toma proporções ainda maiores. Cresce a necessidade de um adestramento do trabalhador para o serviço, pois muitos não adequaram aos formatos comerciais e industriais que estavam surgindo, e a essa não adequação ou não prática para o trabalho, destacavam os delinquentes que precisavam de punição. “o trabalhador integrado no mercado de trabalho é controlado pela disciplina do capital, enquanto o trabalhador fora do mercado de trabalho é controlado pela disciplina da prisão” (SANTOS, 2010, p. 438).

As instituições conhecidas como prisões naquele período, se caracterizavam como houses of correction, denominadas de bridewells, espécie de casa de correção, nelas;

[…] O objetivo da instituição, que era dirigida com mãos de ferro, era reformar os internos através do trabalho obrigatório e da disciplina. Além disso, ela deveria desencorajar outras pessoas a seguirem o caminho da vagabundagem e do ócio, e assegurar o próprio auto-sustento através do trabalho, a sua principal meta. O trabalho que ali se fazia era, em grande parte, no ramo têxtil, como o exigia a época (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 50).

Foucault, (1987), salienta para a tentativa de disciplinar o trabalhador para o trabalho, tornando dócil para prática do labor, colaborando assim para a expansão do capitalismo;

A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”, uma “capacidade” que ele procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada (FOUCAULT, 1987, p. 119).

O formato de prisão, a que se institui por meio do trabalho na fábrica, levava o sujeito a criar superação dos seus limites de forças físicas e psíquicas diárias para suportar jornadas escaldantes de ofício, acreditando que assim, estaria livre da “prisão, ao qual era destinado àqueles tido como desocupados; de qualquer forma, o sujeito já estava dentro de uma constante prisão, a qual, não dava tempo nem espaço para quaisquer práticas de ócio. “Podemos perceber que o suposto cerne da pena não era mais o castigo, de agora em diante propagandeava-se a suposta regeneração do indivíduo através do trabalho, para que “recuperado” pudesse ser reinserido na sociedade” (CHIAVERINI, 2009, p. 80).

Foi assim que o modelo de presídio se converteu no lugar de expulsão dentro do próprio meio, ou “expulsão para dentro”. Porém, de uma forma geral, estes expulsos eram enviados aos cárceres para morrer, para não fazer nada. Essa situação permaneceu inalterada até que necessidades estruturais levaram a que se buscasse aproveitar esta mão-de-obra e criar, também no interior dos lugares de detenção, mecanismos de disciplina (ANITUA, 2008, p. 116).

Será, pois, com a vinda e desenvolvimento do pensamento Iluminista, defendido em fins do século XVIII, que surge novas configuração do Direito Penal, passa a questionar as características das penas dadas para os crimes cometidos, também expandem críticas quanto às interferências do Estado e ainda da igreja sob as concepções de penas criminal. As correntes iluministas e humanitárias, das quais Voltaire, Montesquieu, Rousseau foram representantes, desse pensamento, fazendo reflexões acerca da legislação penal, propondo que o fim do estabelecimento das penas não deve consistir em atormentar um ser sensível. A proporcionalidade desta em relação ao crime cometido, também a observância das circunstâncias pessoais do delinquente, seu grau de malícia e, de forma pontual, a pena precisa trazer eficácia sobre o espírito dos homens, sendo, ao mesmo tempo, a menos cruel para o corpo do delinquente (BITENCOURT, 2011).

Esse entendimento, começa a dar novos limites às intensas torturas e castigos que os detentos vinham sofrendo nas mais variadas concepções de prisões, com as quais historicamente havia presenciado. Doravante propunha um sistema penal mais humano, e nesse sentido, Howard trouxe algumas observações sobre a estrutura das prisões, as quais são bastantes semelhantes aos dos dias atuais, defendia-se a construção de estabelecimentos apropriados para o cumprimento da pena privativa de liberdade, assegurando ao apenado um ambiente higiênico, com alimentação adequada e assistência médica. (BITENCOURT, 2011, p. 47-48). Essa constatação, das condições higiênicas, já presenciada na época, acaba forçando de alguma maneira governos para realizassem reformas nas prisões. Não obstante, embora se tratasse de ações paliativas e emergenciais, mais nunca estruturais, e por ora, as prisões seguiram existindo de maneira a manter o poderio da burguesia, para manter seus domínios permitindo um suposto controle social. Dessa forma, há que observar os limites que despontam com o sistema penal prisional: “o sistema progressivo encontra-se em crise, a sua efetividade não é alcançada, diante do controle do recluso, especialmente no regime fechado, o qual admite de forma voluntária a disciplina imposta pela instituição penitenciária, através da aniquilação da sua personalidade e humanidade”. (WELTER, 2013, p.14).

  • A mulher em cárcere, algumas considerações

A cada dia a mulher vem conquistando a sua independência e tem usado de variadas formas econômicas e de sobrevivência para tal. Com as novas modalidades de trabalho, os avanços tecnológicos, o problema do desemprego que gera a exclusão social e pobreza e com fortalecimento do mercado informal de trabalho, a classe feminina vem buscando diante dos obstáculos e suas dificuldades a solução para suas demandas. Essas condicionantes modernas estabelecem uma alteração no perfil da criminalidade feminina. (WELTER, 2011, p.22).

Historicamente, a criminalidade feminina já era observada dentro de outras óticas, sobretudo na visão religiosa cristã. Acusações relacionadas a bruxaria e com a prostituição, eram acusações mais pontuais ao logo dos tempos, recaindo um peso e menosprezo frente ao papel esperado pela mulher. A igreja, sentindo-se ameaçada frente ao crescimento de novas concepções que contestavam os dogmas, a riqueza, a castidade, resolve tomar atitudes mais severas se inicia a tão romântica “caça às bruxas” (CAMPOS, 2008).

Nesse cenário, a mulher muitas vezes volta se para o crime a fim de garantir o seu sustento financeiro e o dos filhos, muitas vezes encontra-se sozinha na criação deles, porque viu seus companheiros os abandonando ou porque esses já estão presos no cumprimento de penas e ainda, porque foram vítimas do crime e morreram. De alguma forma, essas mulheres tiveram conhecimento com a prática do crime, direto ou indiretamente, e por tanto se mantiveram nesse rumo por acreditar que assim se fazia melhor para sua sobrevivência.

Conforme dados Jurídicos, as disparidades entre gêneros são factuais sendo entrave para ascensão e igualdade entre homem e mulher, mesmo porque, as desigualdades vividas no cotidiano da sociedade, no que se refere às relações de gênero, não se definiram a partir do viés econômico, mas, especialmente a partir do viés cultural e social, formando a partir daí as “representações sociais”, sobre as funções da mulher dentro dos variados espaços de convivência, ou seja: a: na família, na escola, na igreja, na prática desportiva, nos movimentos sociais, enfim, na vida em sociedade, o que também passa a ser observado em situação de cárcere (ÂMBITO JURÍDICO, 2023).

No Brasil a visita íntima às mulheres é vista como benefício e não como direito, poucas são as penitenciárias femininas que garantem esse cumprimento. Incorre, certas dificuldades no cumprimento na existência nas casas penais de creches para os filhos das denteadas com idade inferior a seis anos que não tenham com quem ficar (MISCIASCI, 2023). Por isso, concorre para;

uma vez que, as necessidades das mulheres não são completadas na sua totalidade, abrangendo as duas facetas do envolvimento das mulheres com o sistema penal, as presidiárias de um lado e as companheiras e esposas do preso, filhas e mães, que também constituem a parte feminina dessa relação, que sofrem processo de estigmatização e passam por grandes dificuldades, executando uma análise limitada e por consequência estigmatizada da criminalidade feminina e da mulher em situação de violência.(WELTER, 2013, p. 26).

É sobre essa condição estigmatizada da mulher apenada, que se observa nas dinâmicas prisionais, é a continuação da discriminação e negação de Direitos à mulher e sua continuação e intensificação dentro dos cárceres, reforçando concepções preconceituosos da incapacidade feminina, agora, ainda mais crítica, associando sua incapacidade até mesmo para prática de crime, da prática de um crime perfeito, aquele que não deixa vestígio ou que não acarreta prisão. A mulher encarcerada e discriminada amplamente, primeiro por ser o “sexo frágil” depois porque é de procedência duvidosa, frente a autoria do crime, sendo assim, muitas vezes se entende que seus direitos, no tocante a retenção penal, precisam ser assegurados, assim como já se observa com os Direitos sociais e individuais.

  • Escolha ou não das mulheres transexuais e travestis em cumprir suas penas, sejam em presídios masculinos ou femininos

As mulheres transexuais e travestis são duas identidades de gênero distintas, embora frequentemente confundidas. Ambas as identidades enfrentam muitas formas de discriminação e preconceito, mas é importante reconhecer as diferenças entre elas.

Uma mulher transexual é uma pessoa que nasceu com um corpo biológico masculino, mas que se identifica como uma mulher. Elas podem optar por fazer uma transição de gênero para viver como uma mulher, o que pode incluir tratamentos hormonais e cirurgias de redesignação sexual. As mulheres transexuais lutam por reconhecimento legal e social de sua identidade de gênero e muitas vezes enfrentam dificuldades no acesso a cuidados de saúde adequados, emprego e moradia.

Já as travestis são pessoas que se vestem e se apresentam como mulheres, mas geralmente não desejam fazer uma transição completa de gênero. Elas podem se identificar como homens, mulheres ou não se identificar com nenhum dos dois gêneros. As travestis frequentemente enfrentam estigma social e violência, especialmente no que se refere a suas atividades profissionais.

O ADPF 527-DF vem falar sobre o direito da opção de escolha das mulheres transexuais e travestis sobre onde poderão cumprir sua pena, seja em presídio masculino ou feminino. Tendo em vista a opção de escolha dada, ocorrerá de mulheres trans que não tenham feito o procedimento cirúrgico de mudança de sexo, haja vista a falta de um critério específico. Deve-se observar que uma mulher trans que ainda possua um corpo e órgão genital masculino não está isenta de sentir desejo sexual por um corpo feminino.

Demi Minor era um homem que se identificava como mulher e que não havia feito nenhum procedimento de mudança de sexo, a mesma foi responsável por engravidar duas detentas no estado de Nova Jersey (EUA). Após o fato, Demi foi transferida de um presídio feminino para um masculino.

A título de comparação, o ano de 2023 foi marcado pela decisão da Associação Mundial de Atletismo em proibir mulheres trans de competir em eventos internacionais, haja vista a completa disparidade entre o potencial do corpo biológico masculino sobre o feminino. Trazendo tal questão para o âmbito de uma unidade prisional, deve ser sempre ressaltado a tamanha hostilidade presente neste ambiente. Exposto como exemplo se ocorresse uma briga entre uma mulher cis e uma mulher trans, a vantagem seria sempre daquele que possui a força de um corpo biológico feminino, além da possibilidade da ocorrência de violência sexual, ou mesmo que havendo relações sexuais consensuais, ainda existe a possibilidade de gravidez de uma criança que cresceria traumatizada.

CONCLUSÃO

Ante o exposto, a questão da prisão de mulheres trans em presídios femininos é complexa e controversa. Atualmente, muitos países permitem que mulheres trans sejam mantidas em prisões femininas, desde que elas se identifiquem como mulheres e tenham passado por uma cirurgia de redesignação sexual ou tratamento hormonal.

No entanto, essa prática tem sido criticada por alguns grupos de defesa dos direitos das mulheres, que afirmam que mulheres trans ainda possuem vantagens biológicas em relação às mulheres cisgêneras, o que pode representar um risco para a segurança das outras detentas.

Por outro lado, mulheres trans que são mantidas em presídios masculinos enfrentam riscos ainda maiores, incluindo a violência sexual e física, além de terem seus direitos humanos violados. O uso de celas de isolamento para protegê-las também pode ser prejudicial à saúde mental e emocional da pessoa.

Portanto, a solução ideal para essa questão ainda não foi encontrada. É importante que haja um equilíbrio entre a segurança das detentas e os direitos das mulheres trans, garantindo o acesso adequado aos cuidados médicos, à saúde mental e às condições humanas de vida no ambiente prisional. Além disso, é fundamental que haja políticas públicas efetivas para reduzir a violência e a criminalidade, oferecendo alternativas à prisão para pessoas que cometeram crimes não violentos e promovendo a ressocialização das pessoas que cumprem pena.

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