A PROTEÇÃO FAMILIAR NO PROCESSO SOCIOEDUCATIVO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.6726666


Autora:
Ingrid Ribeiro Rodrigues


RESUMO

O presente trabalho tem por escopo analisar a tutela jurídico-normativa destinada às crianças e aos adolescentes em situação de risco e examinar a participação das famílias no processo socioeducativo. O desenvolvimento do estudo se dá através da análise evolutiva da regulação normativa a respeito das famílias, da filiação, dos deveres parentais e da proteção à criança e ao adolescente. Analisa-se a estruturação legislativa e principiológica da organização e estruturação familiar e dos direitos assegurados às crianças e aos adolescentes, a fim de vislumbrar o rumo interpretativo adequado para alcançar a ponderação dos princípios imbuídos na Constituição Federal e na Lei nº 8.069/90. Com o auxílio dos fundamentos teóricos da doutrina jurídica, consultada através de pesquisa documental indireta, o trabalho pretende dissecar a influência que as situações de instabilidade e crise exercem sobre as relações familiares e examinar as possibilidades fáticas de colaboração das famílias no processo socioeducativo. Os desdobramentos da pesquisa se debruçam sobre a complexidade do impacto das interpretações interdisciplinares e contextualizada a respeito dos deveres parentais exercidos em meio ao cenário de crise, bem como dos fatores de proteção disponíveis às famílias na superação da situação de instabilidade, com vistas a viabilizar a efetivação dos objetivos do processo socioeducativo, em prol da proteção integral e absoluta dos direitos assegurados por lei aos infantes.

Palavras-chave: Pluralismo Familiar. Proteção Integral. Responsabilidade Familiar. Processo Socioeducativo. Situação de Risco.

ABSTRACT

This study aims to analyze the legal and normative protection aimed at children and adolescents at risk and examine the participation of families in the socio-educational process. The development of the study takes place through the evolutionary analysis of the normative regulation regarding families, parentage, parental duties and the protection of children and adolescents. The legislative and principled structure of the family organization and the rights guaranteed to children and adolescents are analyzed in order to understand the proper interpretative course to reach the consideration of the principles described in the Federal Constitution and in Law nº 8.069/90. With the help of the theoretical foundations of the legal doctrine, consulted through indirect documentary research, the work intends to dissect the influence that situations of instability and crisis exert on family relationships and examine the factual possibilities of families’ collaboration in the socio-educational process. Therefore, the study makes use of studies in different areas of law, such as psychology, psychiatry and nursing, to understand the context experienced by contemporary families and adolescents at risk, in their various forms of organization and structuring, in a contextualized and non-limiting way, as well as examining the interaction between families and other social systems. The results of the research focus on the complexity of the impact of external and internal crises on the interpersonal relationships established in the family. In conclusion, the study proposes an interdisciplinary and contextualized interpretation of the parental duties exercised in the midst of a crisis scenario, as well as the protective factors available to families in overcoming the instability situation, with a view to enabling the realization of the objectives of the process. socio-educational, in favor of the full and absolute protection of the rights guaranteed by law to infants.

Keywords: Family Pluralism. Full Protection. Family Responsibility. Risk Situation.

1. INTRODUÇÃO

O advento da Constituição Federal de 1988 lançou novas bases ao ordenamento jurídico pátrio, mediante a instauração de fundamentos, objetivos e princípios que alçam a pessoa humana ao centro da proteção jurídico-normativa, em um movimento que visa a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem de todos, sem discriminações.

O princípio da solidariedade familiar e da afetividade alteraram a função social desempenhada pela família, uma vez que as relações interpessoais no seio familiar receberam caracteres de isonomia e liberdade, de forma que a família se tornou espaço democrático para busca do bem-estar e realização pessoal dos membros.

O advento da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente anunciou que as crianças e os adolescentes são sujeitos de direitos fundamentais, e não mais objetos da tutela estatal. A proteção jurídico-normativa em relação aos infantes estabelece que as situações fáticas e as decisões administrativo-normativas deverão ter como objetivo o superior interesse da criança e do adolescente, com prioridade absoluta.

Em meio ao cenário de risco instalado, a Lei nº 8.069/90 estabelece a inclusão da família nas medidas de proteção definidas em favor do adolescente, de forma que os pais e os responsáveis sejam atendidos e acompanhados por profissionais especializados.

O presente trabalho lida com a problemática relativa à imposição legal de participação dos membros da família no processo socioeducativo do adolescente, levando em consideração os princípios que regem as relações familiares e o contexto de instabilidade vivenciado pelo adolescente e pela sua família no período que precede o estopim da situação de risco, qual seja o cometimento de ato infracional, causado por fatores externos ou internos.

A pesquisa visa a desvendar até que ponto é factível a pretensão jurídico-normativa de responsabilizar os pais ou responsável do adolescente pelo cumprimento dos deveres parentais e pela colaboração no processo socioeducativo, considerando o contexto de instabilidade experimentado pelas famílias dos adolescentes em situação de risco.

Com vistas a esclarecer a problemática levantada pela pesquisa, faz-se uso de elementos construtores do raciocínio jurídico, como o histórico evolutivo da normatização das famílias, os princípios que regem as relações familiares, as normas principiológicas que orientam a proteção jurídico-normativa destinada às crianças e aos adolescentes, o exame da lei ao estabelecer a inclusão das famílias no processo protetivo e socioeducativo e os estudos das ciências humanas e das ciências da saúde a respeito das famílias dos adolescentes em situação de risco e o contexto de instabilidade vivenciado.

2. O PLURALISMO FAMILIAR

A família, antes de ser um objeto regulado pelo direito, é uma realidade social, uma vez que o ser humano nasce já inserido em uma estrutura familiar.

Se examinada segundo o viés sociológico, a família, enquanto primeiro centro de interações sociais do indivíduo, é responsável pelo desenvolvimento da personalidade, das potencialidades e das relações interpessoais que marcam a vida do ser humano.

Esse centro de relações interpessoais experimentou profundas transformações desde os primórdios da humanidade, considerando que as necessidades e aspirações dos indivíduos são modificadas de acordo com o espaço-tempo em que estão introduzidos.

A estrutura familiar, inegavelmente, vê-se influenciada pelos movimentos históricos e culturais vislumbrados na sociedade em que se insere, tendo em vista que os arranjos interpessoais – que, em geral, perduram por toda a vida dos membros da família – não existem de forma apartada. Ao contrário, a realidade familiar apresenta, “desde a família patriarcal romana até a família nuclear da sociedade industrial contemporânea, íntima ligação com as transformações operadas nos fenômenos sociais” (FACHIN, 1999, p. 11).

A regulação estatal sobre a família, através do direito, também experimentou modificações de acordo com as metamorfoses percebidas na organização da sociedade, que passaram a exigir do direito uma repaginação capaz de abarcar as complexidades das múltiplas estruturas familiares contemporâneas.

O direito visa a regular a realidade social. No âmbito do direito da família, por muito tempo, esteve presente a intenção de estabelecer, de maneira genérica e abstrata, por meio da norma posta, um modelo padrão de família que o Estado pretendia ver obedecido pelos múltiplos arranjos familiares existentes na sociedade.

A característica da indissolubilidade do casamento era descrita expressamente nos textos constitucionais anteriormente em vigor, consolidando no ordenamento jurídico o entendimento arraigado no imaginário social, com forte influência religiosa, de que o casamento deveria subsistir durante toda a vida terrena dos consortes.

O avanço social, além de promover a inserção de novos valores e novas formas organizacionais no núcleo familiar, trouxe a concepção da família formada por laços afetivos (DIAS, 2021, p. 44), uma vez que a organização funcional da família estabelecida legalmente não fornecia as condições necessárias ao desenvolvimento das potencialidades dos indivíduos.

A Constituição Federal promulgada em 05 de outubro de 1988 revolucionou a matéria normativa até então posta, à medida que estabeleceu, em seu artigo 226, caput, que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (BRASIL, 1988) e, ao contrário das normas constitucionais até então promulgadas (ou outorgadas), deixou de impor o casamento como fator de legitimação da unidade familiar.

A norma constitucional trouxe inequívoca pluralização do direito das famílias ao reconhecer como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (BRASIL, 1988), tutelando o formato familiar monoparental, próprio das famílias desfeitas e refeitas diante das complexidades das relações interpessoais.  

A família contemporânea – mais aberta e plural do que o modelo tradicional anterior –apresenta necessidades fundamentais calcadas em aspectos mais íntimos da experiência humana, os quais não se limitam aos requisitos formais e funcionais pré-estabelecidos.

A igualdade material passa a reger o ordenamento jurídico brasileiro de tal forma que os demais dispositivos do texto constitucional prescrevem, em mais de uma oportunidade, a igualdade entre homem e mulher especialmente em sede das relações familiares, colocando as mulheres em patamar de igualdade nos direitos e deveres referentes à sociedade conjugal, na direção da vida familiar e na tomada de decisões relativas ao planejamento familiar.

A solidariedade social, por sua vez, influencia o direito das famílias à medida que retira dos arranjos formais consolidados através do casamento a exclusividade da proteção estatal, outorgando à união estável estatura de entidade familiar e aos filhos, gerados dentro ou fora do vínculo de casamento, tutela jurídica semelhante.

A lógica constitucional que dá fundamento às normas fundamentais do Estado Democrático irradia para as demais áreas do direito. O texto constitucional, além de servir como fundamento de validade das normas infraconstitucionais em razão da superioridade hierárquica, desempenha papel de critério de interpretação, em um exercício que se denominou filtragem constitucional (SCHIER, 1999). 

A flexibilização das formalidades que outrora regeram o modelo de família, para, então, abarcar múltiplas estruturas familiares, pode ser destacada como elemento caracterizador da nova ordenação jurídico-constitucional na seara do direito de família, a qual se propõe a tutelar a pessoa humana enquanto fim em si mesma.

 Nesse rastro, o ordenamento jurídico passa a fornecer o espaço de liberdade primordial ao desenvolvimento das potencialidades e à busca da felicidade pelos integrantes da unidade familiar.

3. A REGULAÇÃO NORMATIVA DAS RELAÇÕES FAMILIARES

As diretivas estipuladas pela Constituição Federal de 1988 irradiaram no âmbito das relações parentais – relações estas que, historicamente, estiveram marcadas pela hierarquização, subjugação e inferioridade entre os membros.

A mudança de paradigma constitucional influenciou a tutela dos filhos. Estes, na qualidade de pessoas humanas, passaram a ser compreendidos como sujeitos de direitos (DIAS, 2021, p. 360), merecendo semelhante proteção jurídico-normativa, independentemente da fonte que originou a relação parental entre o filho ou a filha e o seu genitor ou a sua genitora.

A igualdade na filiação, prescrita de forma inédita na Constituição Federal, foi reafirmada pelo Código Civil de 2002, que absorveu o reconhecimento isonômico previsto na Constituição Federal e deu cumprimento à ordem constitucional de proibição da perpetuação de discriminações entre os filhos, por meio de designações ou de diferenciações de direitos.

No que diz respeito aos deveres parentais, a autonomia da família não é absoluta. Ao contrário, é salutar que o Estado assuma o papel de interventor subsidiário (DIAS, 2021, p. 77). Não se ignora que o cumprimento dos deveres parentais, descritos por lei, depende de que os genitores sejam dotados de condições físicas, psíquicas e patrimoniais, tendo em vista que a reciprocidade das relações interpessoais no âmbito familiar não poderá ser alcançada em um ambiente de degradação e desequilíbrio.

No Brasil, o tratamento jurídico-normativo dispensado às crianças e aos adolescentes pode ser dividido em três fases (LIMA et. al., 2017, p. 315). A primeira delas é entendida como a fase de irrelevância jurídica, vivenciada entre os séculos XVI e XIX. A segunda fase retrata a tutela das crianças e dos adolescentes enquanto objetos da tutela do Estado, a qual vigorou a partir da primeira metade do século XX. A terceira fase, iniciada a partir da segunda metade do século XX, representa a modificação na tutela estatal voltada aos adolescentes e às crianças, agora tidos como sujeitos de direitos, merecedores de proteção integral e prioritária.

A Constituição Federal de 1988 impôs o dever de proteção das crianças e dos adolescentes contra toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988). Há, inclusive, mandado expresso de criminalização e de punição severa ao abuso, violência e exploração sexual da criança e do adolescente.

A ampla proteção dedicada às crianças e aos adolescentes pelo Estatuto da Criança e do Adolescente corrobora o intento constitucional de outorgar àquelas pessoas os direitos e as garantias necessários à vivência da etapa peculiar de desenvolvimento, sem discriminações por motivos relacionados à pessoa da criança e do adolescente ou à sua família.

A situação de risco restará configurada quando houver violação ou ameaça de violação dos direitos assegurados pelo Estatuto às crianças e aos adolescentes. O contexto violador poderá ser causado por ação ou omissão do Estado ou da sociedade, por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis ou em razão da conduta do próprio infante (BRASIL, 1990).

Muito embora o Estatuto da Criança e do Adolescente enumere hipóteses distintas de causação da situação de risco, é certo que a responsabilidade estatal engloba todas elas. Em todo caso de violação de direitos, seja em razão da conduta abusiva ou faltosa dos pais ou pela ação lesiva do próprio menor de dezoito anos, o Estado possui o dever de agir de maneira a encarar a situação danosa e efetivar os direitos lá violados ou ameaçados.

A situação de risco deriva da não realização do encargo pelo Poder Público e indica, inequivocamente, a omissão estatal no cumprimento da responsabilidade primária e solidária, imposta expressamente pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

A atuação do Poder Público deve ser iniciada logo que seja identificada ameaça aos direitos da pessoa menor de dezoito anos, visando a evitar maiores prejuízos ao desenvolvimento da criança ou do adolescente. O princípio da intervenção precoce configura um mandamento de eficiência da atividade estatal, haja vista a atuação tardia ser considerada tão danosa quanto a situação de risco que deu início ao processo de intervenção.

A prevalência da família é princípio expresso orientador da aplicação das medidas protetivas. O Estatuto da Criança e do Adolescente ordena que, na promoção e proteção dos direitos da criança e do adolescente, devem ser privilegiadas as intervenções que mantenham ou, posteriormente, reintegrem o infante em sua família natural ou extensa.

A medida socioeducativa possui função pedagógica, à medida que visa a concretizar o dever de intervenção precoce e atual em relação à situação de risco em que se encontra o adolescente. Não se pode olvidar a função repressiva da medida socioeducativa, uma vez que o adolescente experimenta nítida limitação ou supressão da liberdade de forma retributiva ao mal causado, em consonância com a função clássica da pena no direito penal.

O cumprimento do dever estatal de garantia dos direitos da criança e do adolescente perpassa pela atuação em conformidade com as regras e princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente. A responsabilidade primária somente será devidamente cumprida na medida em que o Poder Público intervir de maneira proporcional, atual, adequada e precoce, a fim de que o melhor interesse da criança – assimilado de maneira dialógica – seja alcançado integralmente.

4. A RESPONSABILIDADE FAMILIAR NA REINTEGRAÇÃO SOCIAL DO ADOLESCENTE EM SITUAÇÃO DE RISCO

A atuação do Poder Público, representado pelas três esferas da Federação, pressupõe uma divisão de competências, para que se alcance integralidade da proteção, coordenação da atividade e economia de recursos.

A Lei nº 12.594/2012, conhecida como Lei do SINASE, organiza todos os planos, políticas e programas específicos de atendimento ao adolescente a quem foi imputada a prática de ato infracional, bem como fixa a competência de cada um dos entes federados em relação à execução das medidas socioeducativas.

O sistema, coordenado pela União e integrado pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, firma a responsabilidade de cada ente na implementação dos seus respectivos programas de atendimento. Faculta-se liberdade de organização e funcionamento nos âmbitos de atuação correspondentes, desde que em observância aos termos fixados na Lei Federal.

O fortalecimento dos vínculos familiares é descrito como princípio não só da execução, mas também da imposição da medida socioeducativa, no âmbito do Estatuto da Criança e do Adolescente. O Estatuto impõe que a manutenção e reintegração na família natural ou extensa do infante deve ser perseguida na atividade de promoção e proteção dos direitos.

Embora o Estatuto da Criança e do Adolescente firme a responsabilidade precípua do Poder Público e a solidariedade entre os entes federados para a proteção e promoção dos direitos, a norma fixa a responsabilidade parental como sendo princípio orientador da intervenção estatal perante a situação de risco que acomete os adolescentes e as crianças.

Compulsando a Lei nº 12.594/2012, percebe-se que, no decorrer do seu texto, existe menção às famílias dos socioeducandos dez vezes e aos pais ou responsáveis dos adolescentes também dez vezes. Em tais oportunidades, a Lei do SINASE inclui as famílias e os pais ou responsáveis do adolescente no processo de reintegração social, orientando-os a respeito do funcionamento do sistema e facultando-se a participação das famílias nos procedimentos de execução das medidas socioeducativas.

O Plano Individual de Atendimento, notoriamente conhecido pela sigla PIA, é o instrumento de previsão, registro e gestão das atividades a serem desenvolvidas com o adolescente pelas entidades de atendimento. A elaboração do PIA, segundo a lei, é de responsabilidade da equipe técnica do programa de atendimento, com a participação efetiva do adolescente e de sua família, representada por seus pais ou responsável.

No Plano Individual de Atendimento deverão constar os objetivos do processo socioeducativo imposto ao adolescente, os quais serão obtidos através da previsão coordenada de atividades de integração social, capacitação profissional e atenção à saúde. Para tanto, o PIA deverá prever atividades de integração e apoio à família e as formas de participação da família para efetivo cumprimento do plano individual.

O intento de reconstrução e reestabelecimento dos vínculos familiares é concebido como etapa essencial do processo de execução da medida socioeducativa. Pode-se dizer que o fortalecimento dos vínculos familiares exerce função híbrida no processo socioeducativo, pois, de um lado, funciona como meio para o efetivo cumprimento do plano individual de atendimento, através da responsabilização e ressocialização do adolescente, e, de outro, funciona como objetivo final do processo de integração social, por meio da superação da situação de risco e da promoção dos direitos assegurados por lei.

Em caso de os pais ou responsáveis do adolescente não colaborarem com o processo ressocializador, a Lei do SINASE prevê a possibilidade de aplicação do artigo 249 do Estatuto da Criança e do Adolescente, com imposição de multa de três a vinte salários de referência às pessoas que descumprirem, a título de dolo ou de culpa, os deveres inerentes ao poder familiar, tutela ou guarda ou a determinação da autoridade judiciária (BRASIL, 1990).

O Estatuto da Criança e do Adolescente também prevê a aplicação de medidas aos pais ou responsáveis, tais como encaminhamento a serviços e programas oficiais ou comunitários de proteção, apoio e promoção da família, encaminhamento para tratamento psicológico ou psiquiátrico, inclusão em programa de orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos, suspensão ou destituição do poder familiar, perda da guarda ou destituição da tutela.

No Direito Civil, a responsabilização decorre da culpa lato sensu, que abrange o dolo e a culpa stricto sensu. No caso do descumprimento da obrigação de forma dolosa, o agente tem vontade dirigida à finalidade de violar o dever, enquanto no descumprimento culposo o indivíduo viola o dever devido à sua atuação imprudente, negligente ou imperita, quando poderia prever a situação violadora, segundo os padrões de comportamento esperados de um indivíduo com grau de diligência considerado normal (GONÇALVES, 2017, p. 63).

A responsabilização descrita no Estatuto da Criança e do Adolescente induz à conclusão de que os pais ou responsáveis dos adolescentes, quando experimentam os efeitos do descumprimento dos deveres parentais, em última análise, estão recebendo o atestado de culpa concorrente pela situação de risco em que o adolescente se encontra.

No entanto, a análise da culpa e da responsabilidade no âmbito das relações familiares resguarda maior complexidade do que a mera análise da previsibilidade da consequência lesiva e do grau de diligência do homem médio.

A família é o primeiro e o mais íntimo espaço de interações interpessoais, no qual as pessoas – adultas ou crianças – desenvolvem suas potencialidades, capacidades e habilidades.

A afetividade que fundamenta as relações não exclui a complexidade inerente às pessoas humanas, tendo em vista que os laços biológicos ou socioafetivos que tornam os membros de uma mesma unidade familiar mais próximos não apagam as diferenças entre os seres humanos, ou mesmo os traumas pretéritos e limitações pré-existentes.

Considerando a mutabilidade das estruturas familiares, influenciada por transformações externas ao seu núcleo, a autora Nadir de Souza (2005, p. 131) destaca que o padrão de organização familiar não é estático. Ao contrário, a família consiste em uma unidade flexível, que se molda de acordo com as influências sociais e econômicas vivenciadas no mundo (SOUZA, 2005, p. 130).

A tendência de enfraquecimento da figura paterna se cristaliza, especialmente, nas famílias firmadas em contexto de pobreza e exclusão social, em razão da total ausência do reconhecimento por parte do genitor ou da falta de uma presença estável, permanente e comprometida com as interações interpessoais (DIAS et. al., 2010, p. 527).

Nesse contexto, a mulher acaba acumulando a responsabilidade com o cumprimento de todos os deveres parentais, o posto de chefe de família, a função de provedora das necessidades materiais e administradora dos interesses da família, além de exercer o papel de arrimo, cuidado e proteção de toda a estrutura familiar.

A cumulações de funções e responsabilidades na figura materna impõe o cumprimento de jornada dupla, ou até tripla, às mulheres mães, que precisam trabalhar fora de casa para auferir remuneração e, assim, prover as necessidades básicas suas e de seus filhos, bem como trabalhar dentro de casa com a manutenção, limpeza e gestão da unidade familiar e exercer os cuidados com guarda, educação e assistência aos filhos. O excesso de atribuições centralizadas nas mulheres mães, especialmente em sede de famílias monoparentais, enseja a impossibilidade de fiel cumprimento de todas as incumbências impostas a uma só pessoa, tendo em vista a ocorrência de sobrecarga desumana.

As autoras Dias et. al. (2010, p. 533) destacam que a configuração das famílias menos abastadas não costuma refletir o modelo de organização familiar tradicional. Ao contrário, é comum a divisão dos membros da unidade familiar em casas apartadas.

Em meio ao cenário de desenvolvimento de personalidade, experiências e habilidades por parte dos adolescentes, a fragilidade da figura paterna e/ou materna gera consequências que impactam diretamente no comportamento dos adolescentes (DIAS et. al., 2010, p. 527), em virtude da falta de referência no enfrentamento dos desafios trazidos pelo desenvolvimento dos infantes e no ingresso em um mundo diverso daquele experimentado durante a infância.

Com fundamento em raciocínio semelhante, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou diretrizes para prevenção da delinquência juvenil, conhecida como Diretrizes de Riad, que fixam a importância da aplicação de políticas e medidas progressistas de prevenção da delinquência que evitem criminalizar e penalizar o infante por meios formais de controle social.

Em seu bojo, a norma internacional reconhece o fato de que o comportamento dos jovens que não se ajustam aos valores e normas gerais da sociedade são, com frequência, parte do processo de amadurecimento e tendem a desaparecer espontaneamente, na maioria das pessoas, quando alcançam à maturidade (ONU, 1990).

Por certo, definir a causa ou a origem da situação de risco vivenciada pelo adolescente não é tarefa fácil, pois o apego a um fator psicológico, social, econômico ou cultural raramente será suficiente para explicar as complexidades que envolvem a lida do adolescente e o contexto fático que envolve o ato infracional.

Conforme o estudo desenvolvido por Amparo et. al. (2008), a família é considerada um dos principais fatores de proteção para o desenvolvimento sadio dos adolescentes, de forma inclusiva e integrada com outros fatores, como uma boa relação com amigos, a consolidação da autoestima e a espiritualidade.

A autora Fabíolla Vilar (2015, p. 75) adverte que a utilização dos postulados das vertentes teóricas tradicional e moderna acaba por perpetuar a adoção, na contemporaneidade, do termo “desestruturada” para adjetivar aquelas famílias que não seguem o modelo singular considerado, socialmente, como saudável e hegemônico.

De acordo com Abreu (2002), a denominada situação de risco corta os direitos e as potencialidades dos adolescentes, mas mantém intacto o círculo vicioso da miséria e da marginalização. A autora destaca que os adolescentes representam uma parcela significativa da população mais pobre do mundo e experimentam o agravante de serem acometidos pela pobreza em um período crítico de desenvolvimento físico e psicossocial (ABREU, 2002).

A pobreza e a marginalização podem ser citadas como fatores que potencializam a situação de risco vivenciada pelos adolescentes, uma vez que a falta de recursos materiais impacta diretamente no acesso a direitos básicos considerados essenciais para o desenvolvimento biopsicossocial, tais como educação, saúde, alimentação, moradia digna, lazer, capacitação profissional, entre outros.

À carência de recursos materiais podem ser somados fatores socioculturais que incrementam a situação de risco, como a falta de informação a respeito dos direitos e deveres dos adolescentes e dos responsáveis, bem como o frágil entendimento acerca da vedação ao abuso moral, físico, psicológico e sexual em detrimento dos adolescentes.

A existência de disfunções no âmbito familiar é considerada natural, haja vista se tratar de um espaço-tempo marcado por íntimas relações entre pessoas física, psicológica e emocionalmente distintas, que partilham alguns interesses semelhantes e outros díspares.

De acordo com Amparo et. al. (2008), as experiências negativas de vida são inevitáveis para qualquer pessoa, porém o impacto causado por tais experiências danosas no desenvolvimento biopsicossocial do indivíduo oscila de acordo com o nível de exposição e os limites individuais de cada ser humano.

O adolescente, por sua vez, pode ser mais ou menos resistente às intempéries da fase peculiar de desenvolvimento a depender dos fatores de proteção que lhe acobertam, tais como o apoio familiar, a identificação no âmbito familiar, o apoio de amigos, o reconhecimento de uma autoridade parental saudável, o sentimento de confiança, entre outros.

Os fatores de proteção destinados aos adolescentes podem servir como sustentação para a superação de situações de risco às quais encontram-se submetidos, contribuindo para o incremento da resiliência, a estruturação de recursos individuais para resolução dos problemas e enfrentamento das adversidades e a construção do desenvolvimento de dimensões positivas da personalidade (AMPARO et. al., 2008).

A conjugação entre o apoio recebido pelos familiares, o apoio compartilhado com os amigos e o aprimoramento de relações sociais auxilia no desenvolvimento de uma imagem positiva por parte do adolescente sobre si mesmo.

O florescimento de sentimentos de autoestima e autoconfiança no íntimo do adolescente é tido como um elemento interno de proteção (AMPARO et. al., 2008), pois auxiliam na tomada de decisões, na escolha de caminhos diversos ou na expansão de relações interpessoais mais saudáveis, capazes de amenizar os fatores de risco experimentados pelo adolescente ou mesmo de remover a situação de risco já instalada.

No dizer de Dias et. al. (2010, p. 533), a fragilidade de reconhecimento e resolução perante a situação de risco não pode ser considerada um problema individual de um modelo de família específico, pois a problemática guarda relação com uma ordem social debilitada.

Por isso, as famílias não devem ser tachadas como causadoras das situações de risco em que os adolescentes se encontram inseridos, tampouco devem ser culpabilizadas pelo ato infracional, tendo em vista que o contexto de risco não se limita às relações interpessoais no núcleo da família, mas, ao contrário, dialoga com fatores socioeconômicos que impactam e desorientam a organização familiar em suas interações básicas.

As normas infantojuvenistas insistem na inclusão da família no processo ressocializador, pois adotam o entendimento de que o ambiente familiar em muito influencia a etapa de desenvolvimento e de incongruências vivenciada na adolescência.

Partindo do pressuposto de que a situação de risco a que está submetido o adolescente é sugestionada por uma conjunção de fatores sociais, econômicos e culturais, percebe-se que a responsabilidade imposta aos pais e responsáveis dos adolescentes no que diz respeito à superação do risco pode apresentar dificuldades de realização.

De acordo com Horta e Fernandes (2018), as famílias, independentemente das configurações que assumam, podem enfrentar situações de crise que acabam por afetar a entidade familiar e os indivíduos que a compõem. As situações de crise exigem esforço complementar dos indivíduos que integram o núcleo familiar a fim de que se alcance a manutenção do equilíbrio (HORTA, FERNANDES, 2018).

A crise pela qual passa a unidade familiar não deriva necessariamente de questões de cunho privado, moral ou psicológico. Afinal, a família é tida como um sistema reciprocamente influenciado e impactado pelos demais sistemas sociais.

A situação de crise, mirada de um ponto de vista coletivista, pode apresentar viés social, cultural ou econômico, bem como pode carregar uma causa interna ou externa.

A desigualdade social, o contexto de desemprego, a inflação nos preços de produtos de subsistência, a redução do poder de compra da classe trabalhadora ou mesmo o advento de uma epidemia ou pandemia são fatores de erupção de crises que afetam diretamente o contexto privado, notadamente no seio das relações familiares.

O encolhimento das perspectivas e oportunidades gera impacto no modo de viver dos indivíduos, que se veem tolhidos da possibilidade de buscar novas experiências de vida, melhores condições de subsistência, capacitação e progresso profissional, ou mesmo estabilidade econômica no meio social em que está inserido.

O contexto de instabilidade propiciado pela crise provoca desconforto nos indivíduos, que sentem os problemas em intensidades diferentes e reagem às dificuldades de formas distintas (HORTA, FERNANDES, 2018), o que pode gerar desarmonia e conflitos na família.

Por isso, a situação de risco originada por um fato externo – seja ele social, econômico ou cultural – implica no bem-estar da unidade familiar, à medida que cada membro da família recebe, sente e reage de maneira diversa à situação de instabilidade. O comportamento reativo de um dos membros emana seus efeitos para os demais membros do grupo familiar, sendo também reciprocamente influenciado.

Nesse círculo de interações, o resultado positivo ou negativo varia de acordo com a disponibilidade de fatores de proteção em favor dos indivíduos. Decerto, a pessoa humana demanda habilidades emocionais, potencialidades psicológicas e capacidades materiais para suportar o contexto de crise, enfrentar as adversidades dele decorrentes e contribuir com suporte, assistência e apoio mútuo perante os integrantes da unidade familiar. 

Nessa conjunção, Horta e Fernandes (2018) suscitam que o termo disfuncional pode não ser o mais adequado para caracterizar as famílias que enfrentam contexto de instabilidade ocasionado por crises. Por mais que as crises afetem as famílias de maneiras diferentes, elas detêm potencialidade para manejar a situação de crise, desde que sejam assegurados desenvolvimento e incremento dos fatores de proteção.

Em conformidade com a lição de Amparo et. al. (2008), os processos de proteção têm a função de interagir com o impacto causado por fatores de risco – tais como baixa renda familiar, dificuldade de acesso à educação e saúde – e empreender alternativas para resolver as dificuldades vivenciadas no contexto de risco psicossocial.

É necessária uma abordagem ampliada capaz de identificar em que medida os problemas sociais agem diretamente na fragilização das famílias (DIAS et. al., 2010, p. 533) e de que forma pode ser prestada assistência inclusiva e integral para compreender e sanar as consequências lesivas do contexto de risco compreendido de maneira contextualizada.

5. CONCLUSÃO

A promoção dos direitos assegurados por lei às crianças e aos adolescentes e a proteção integral dos infantes, com a absoluta prioridade que prevê a Constituição Federal de 1988, é dever da família, da sociedade e do Estado.

Os deveres inerentes ao poder familiar são enumerados pelo Código Civil de 2002, que determina que ambos os genitores devem exercer, isonômica e conjuntamente, a direção da criação dos filhos menores de dezoito anos, a educação, os deveres de guarda, a assistência de que necessitem, bem como exigir que lhes prestem obediência e respeito.

O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê infração administrativa dos pais ou responsáveis do adolescente, punível com multa, quando se abstêm de colaborar com o processo socioeducativo fixado pela autoridade judiciária e executado pela entidade de atendimento.

A participação das famílias nos procedimentos de proteção ou ressocialização dos adolescentes possui substancial relevância em razão do contexto de íntima interação, tendo em vista que a família é o primeiro e o principal núcleo de interação social da pessoa humana.

A organização familiar contemporânea, marcada por dispersão da autoridade parental, ausência da figura simbólica do pai, jornada de trabalho excessiva imposta ao provedor e falta de recursos materiais e emocionais, impede que os pais e responsáveis dos adolescentes exerçam o amparo e assistência necessários durante o período peculiar de desenvolvimento.

A dificuldade de reconhecimento, manejo e resolução perante a situação de risco não é uma particularidade de um modelo de família específico. A fragilidade está interligada com a ausência de recursos de proteção para lidar com o contexto de risco, tendo em vista que o risco não deriva exclusivamente das relações familiares, mas, de outro lado, dialoga com fatores socioeconômicos que impactam a unidade familiar em suas interações básicas.

Na contemporaneidade, o diálogo entre as famílias e os sistemas sociais é percebido a partir da análise do impacto das crises socioeconômicas nas relações interpessoais. O contexto de instabilidade econômico é capaz de afetar a relação entre os pares, uma vez que cada integrante da família percebe e reage à situação de crise de maneira diferente, influenciando reciprocamente uns aos outros.

Na relação de circularidade, a prestação de assistência e proteção aos adolescentes, de forma a colaborar com o processo socioeducativo, exige que os pais ou responsáveis detenham habilidades psicológicas, emocionais e materiais que nem sempre são capazes de oferecer, em razão de obstáculos que se sobrepõem às relações privadas.

O contexto de crise potencializa a instabilidade e as inconsistências vislumbradas nas relações familiares, já fragilizadas pelo cenário de insuficiência de recursos, perspectivas sociais reduzidas, parcas oportunidades profissionais e insatisfação pessoal.

Os processos socioeducativos devem ser planejados e executados mediante abordagem contextual e ampliada, a fim de que as complexidades sociais, econômicas, culturais e psicoemocionais impostas à família do adolescente em situação de risco sejam compreendidas em sua completude.

O objetivo precípuo do processo de ressocialização do adolescente perpassa, necessariamente, pelo exame da situação de crise em que está inserida a família do infante com a busca por alternativas de enfrentamento e resolução das dificuldades vivenciadas no contexto de risco psicossocial.

A assistência às famílias é uma das atribuições do Poder Público, haja vista a disposição do Estatuto da Criança e do Adolescente que estabelece a responsabilidade primária e solidária de todos os entes federados, em prol da garantia dos direitos dos infantes.

A inclusão social por meio da assistência às famílias visa a abandonar o molde de tratamento que acaba por reproduzir a ideia de que os modelos de família não hegemônicos são desestruturados ou disfuncionais, pelo fato de não reproduzirem a organização familiar tida como saudável, e que eles são os causadores do risco cometido aos adolescentes.

A partir da garantia dos direitos fundamentais aos adolescentes e às suas famílias, assegura-se que os indivíduos em situação peculiar de desenvolvimento possam gozar das condições psicológicas, emocionais e materiais para a potencialização das suas habilidades, capacidades e perspectivas, de maneira consentânea com a ordem constitucional vigente.

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