A PROTEÇÃO DA BIODIVERSIDADE E O ACESSO E REPARTIÇÃO DE BENEFÍCIOS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202503062216


Yure Mamede de Oliveira¹
Heverton Eustáquio Pinto²


RESUMO

O artigo analisa, através de uma perspectiva histórica, os marcos normativos internacionais e nacionais de proteção à biodiversidade, com ênfase na Convenção da ONU sobre a Diversidade Biológica (CDB) e no Protocolo de Nagoia. Além disso, examina a evolução da proteção jurídica internacional, citando os eventos-chave que influenciaram na criação da CDB. No contexto brasileiro, o artigo aborda a MP n.º 2.186/2001 e a Lei n.º 13.123/2015. A nova lei é descrita como mais próxima da realidade, incentivando a bioprospecção e estabelecendo um regime de repartição de benefícios. Contudo, apesar das melhorias, os dados apresentados mostram uma aplicação limitada dos institutos estudados. Por fim, conclui que, embora o Brasil tenha avançado na regulamentação, ainda enfrenta desafios significativos na implementação eficaz do acesso e repartição de benefícios.

Palavras-chave: biodiversidade; acesso e repartição de benefícios; Lei n.13.123/15.

Introdução

O presente artigo propõe-se a analisar, com base em uma perspectiva histórica, os marcos normativos internacionais e nacionais de proteção à biodiversidade, com especial atenção à Convenção da ONU sobre a Diversidade Biológica. A partir disto, como se observa no texto deste importante tratado internacional, um dos seus objetivos fundamentais foi a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos.

Logo após, especialmente por conta do aspecto geral da CDB, surge o Protocolo de Nagoia sobre o Acesso a Recursos Genéticos e Repartição Justa e Equitativa dos Benefícios Derivados de sua Utilização à Convenção sobre a Diversidade Biológica..

A ideia proposta e que será analisada, de forma superficial por conta da extensão e complexidade do tema, é a de garantir que países que conservam a biodiversidade poderiam ser remunerados pela utilização dos seus recursos genéticos e dos conhecimentos tradicionais a eles associados, por eventuais interessados.

Especificamente em relação aos instrumentos normativos discutidos, além da análise dos principais tratados internacionais, com ênfase para CDB e o Protocolo de Nagoia, será apresentado como o Brasil tratou internamente este assunto.

Em tese, um país com uma natureza tão exuberante, como o Brasil, deveria tratar este tema com enorme atenção e cuidado, especialmente para proteger o seu próprio patrimônio, a sua identidade e o interesse do seu povo.

No mais, deixa-se claro que o acesso e a repartição justa de benefícios são ferramentas importantes para a conservação e uso sustentável da megadiversidade brasileira, e que merecem um olhar atento e cuidadoso por parte de toda a sociedade.

A necessidade de proteger a biodiversidade

O termo biodiversidade foi popularizado pelo biólogo americano Edward O. Wilson. Ele usou a expressão em um fórum realizado em 1986, e mais notavelmente, o termo foi destacado no título do livro “Biodiversity”, publicado em 1988, que continha os trabalhos apresentados neste fórum. O livro¹, no qual Wilson foi um dos editores, ajudou a colocar a biodiversidade na agenda científica e política global.

Esta expressão foi utilizada também como sinônimo do conceito de diversidade biológica. Para Nurit Bensusan², o termo biodiversidade, cunhado a partir da expressão diversidade biológica, transcendeu o seu significado original. Isto porque, no começo da década de 1980, diversidade biológica era sinônimo de riqueza de espécies; em 1982, o termo adquiriu o sentido de diversidade genética e riqueza de espécies e, por fim, em 1986, com a contração da expressão, expandiu-se para abrigar além da diversidade genética e da diversidade de espécies, a diversidade ecológica.

Neste período, percebeu-se uma grande dificuldade em proteger a biodiversidade no mundo, especialmente, devido a uma predominante visão econômica restritiva, que priorizava o desenvolvimento econômico sobre a conservação ambiental.

Como ensina Varela (2004), o princípio do desenvolvimento surgiu do direito internacional econômico, mais especificamente do direito ao desenvolvimento, um ramo do direito originário dos movimentos de independência após a Segunda Guerra Mundial.

Conforme lecionou Freitas³, foi crucial superar esta visão para garantir a sustentabilidade dos ecossistemas, sendo necessário, ainda, a proteção da biodiversidade com base em valores éticos, reconhecendo o seu valor intrínseco, levando em consideração os benefícios antropocêntricos (estéticos, culturais e econômicos) que ela proporciona para a vida humana.

A biodiversidade possui um valor inerente, independentemente de sua utilidade para os seres humanos. Todas as formas de vida têm o direito de existir e a biodiversidade contribui para a complexidade e resiliência dos ecossistemas da Terra, que são fundamentais para a sobrevivência de todas as espécies, incluindo a humana.

A Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB) reconheceu, em seu preâmbulo, a proteção da biodiversidade baseada nos fundamentos antropocêntrico e intrínseco. A título de esclarecimento, a Política Nacional de Biodiversidade, prevista no Decreto 4339/2002, cita como primeiro princípio que a diversidade biológica tem valor intrínseco, merecendo respeito independentemente de seu valor para o homem ou potencial para uso humano.

No mais, considerando a sociedade capitalista ocidental, mostrou-se inerente a conclusão de que apenas com a identificação do valor da biodiversidade para os seres humanos é que seria possível a transformação do discurso para uma prática concreta de proteção.

Neste ponto, nada obstante o grande valor científico, espiritual e cultural da biodiversidade, no campo econômico é que encontramos o maior desafio em justificar a proteção da biodiversidade. O princípio do desenvolvimento sustentável vem da fusão de dois grandes grandes princípios jurídicos: o do direito ao desenvolvimento e o da preservação do meio ambiente.

Evolução da proteção jurídica internacional

Com base na evolução da discussão internacional sobre a proteção jurídica do meio ambiente, foi possível identificar eventos-chave que marcaram e serviram de fundamento para o referido avanço.

Em primeiro lugar, deve ser mencionada a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, Suécia, no ano de 19724. Tal conferência é frequentemente citada como o início do moderno direito ambiental internacional, e chamou a atenção para questões ambientais, que resultaram na Declaração de Estocolmo. O evento foi um marco e a sua Declaração Final contém 19 princípios que representaram um manifesto ambiental.

A seguir, houve a criação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), em 19725. Ele foi criado para monitorar o estado do meio ambiente, subsidiar a formulação de políticas baseadas na ciência e coordenar as respostas aos desafios ambientais do mundo.

O Relatório Brundtland6, da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, elaborado em 1987, formalmente conhecido como “Nosso Futuro Comum”, introduziu o conceito de desenvolvimento sustentável e enfatizou a necessidade de integração entre as políticas ambientais e de desenvolvimento.

Este relatório fez parte de uma série de iniciativas que afirmaram uma visão crítica do modelo de desenvolvimento utilizado pelos países industrializados, que ressalta o uso excessivo de recursos naturais. Um dos marcos foi o de apontar a incompatibilidade entre o desenvolvimento sustentável e os níveis de produção e consumo existentes na época.

As recomendações indicadas pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, colocaram o assunto na agenda pública. Com isso, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Cúpula da Terra), realizada no Rio de Janeiro, em 1992, adotou a Agenda 21, um diagrama para a proteção do planeta e seu desenvolvimento sustentável.

Durante esta Conferência, foram adotados documentos fundamentais, incluindo a Convenção da ONU sobre a Diversidade Biológica (CDB), base normativa que tratou inicialmente sobre os institutos do acesso e repartição de benefícios.

A Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), que conta atualmente com 196 Estados-Partes, é um dos principais resultados da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD), também conhecida por Rio-92 ou Eco-92, realizada no Rio de Janeiro, em junho de 1992.

A CDB foi aprovada em 1992 e entrou em vigor em 1993, sendo um importante instrumento internacional vinculante no âmbito do direito internacional, ambiental e econômico. Esta Convenção, além de estabelecer a ligação entre a conservação da biodiversidade e o desenvolvimento de biotecnologias, apresentou três objetivos principais: a conservação biológica, a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos.

Analisando a CDB, verificou-se que, apesar de fixar obrigações gerais de proteção, houve uma carência no detalhamento da forma de promoção destes objetivos. De acordo com Cordeiro Lima, em relação à obrigatoriedade de suas normas, a CDB vem sendo tratada como um instrumento de obrigações com baixa densidade normativa.

Por exemplo, a importância do acesso e da repartição de benefícios foi mencionada no preâmbulo da CDB7:

Conscientes de que a conservação e a utilização sustentável da diversidade biológica é de importância absoluta para atender as necessidades de alimentação, de saúde e de outra natureza da crescente população mundial, para o que são essenciais o acesso e a repartição de recursos genéticos e tecnologia.

Como forma de suprir tal deficiência, a Conferência de Partes, órgão máximo da referida Convenção, passou a adotar protocolos específicos.

O Protocolo de Nagoia sobre o Acesso a Recursos Genéticos e Repartição Justa e Equitativa dos Benefícios Derivados de sua Utilização à Convenção sobre Diversidade Biológica (Protocolo de Nagoia) surgiu especificamente para promover um dos objetivos previstos na CDB, qual seja, a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos

A análise deste protocolo é fundamental, pois insere novos mecanismos de proteção à biodiversidade. A ideia proposta seria assegurar que países que conservam a biodiversidade em seu território possam ser ressarcidos pela utilização dos recursos genéticos e dos conhecimentos tradicionais a eles associados por eventuais interessados.

Desta forma, houve o reconhecimento da contribuição de povos e comunidades tradicionais para a conservação e o manejo ambiental sustentável dos recursos biológicos, por meio de seus conhecimentos tradicionais. Além disso, reconheceu-se os direitos desses grupos sobre os próprios conhecimentos tradicionais ligados à biodiversidade, encorajando a repartição equitativa dos benefícios oriundos de sua utilização.

Logo, o Protocolo de Nagoia buscou fomentar o alcance do acesso e da repartição justa e equitativa dos benefícios, a fim de superar alguns obstáculos identificados inicialmente para a sua implementação, desde a ideia original apresentada pela CDB.

Apenas no dia 4 de março de 2021, o Brasil ratificou esse tratado internacional, tornando-se parte em 2 de junho do mesmo ano, nonagésimo dia após a data de depósito do seu instrumento de ratificação, conforme disposto no artigo 33,2 do Protocolo8.

Os marcos legais sobre o acesso e a repartição de benefícios

Antes da assinatura da CDB, em 1992, o acesso aos recursos genéticos era livre, visto que a biodiversidade seria considerada um patrimônio comum da humanidade. Com o referido tratado, os países signatários se tornaram portadores de direitos sobre os próprios recursos biológicos e com o dever de proteger através da conservação e o uso sustentável.

Além disso, surge a obrigação de regulamentar o acesso à biodiversidade, buscando garantir a repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes do uso desses recursos e dos produtos derivados destes.

O processo de internalização da CDB, no Brasil, ocorreu em 1998, por meio do Decreto n.º 2.519/1998. Com isso em mente, é importante lembrar um episódio sobre o tema discutido no presente trabalho.

Em 29 de maio de 2000, foi celebrado acordo entre a Bioamazônia (Associação Brasileira para Uso Sustentável da Biodiversidade da Amazônia) e Novartis, que previa o envio de cepas de microrganismos brasileiros para estudo, sendo previsto, como contrapartida, que a empresa se comprometia a pagar um valor fixo, aproximadamente, U$ 3 milhões de dólares, em três anos, e 1% dos eventuais royalties alcançados com os desenvolvimentos alcançados(SACCARO JR, 2011).

Na época, diversas foram as críticas feitas por conta da ausência de uma legislação nacional para resguardar este tipo de operação. Este contrato foi bastante controverso e gerou debates sobre a soberania brasileira sobre seus recursos genéticos, o uso sustentável da biodiversidade e a repartição justa dos benefícios derivados de tais acordos.

A questão central envolvia preocupações sobre a biopirataria e a necessidade de assegurar que as comunidades locais e indígenas recebessem uma parte justa dos benefícios resultantes da exploração de seus conhecimentos tradicionais e recursos naturais.

A Medida Provisória n.º 2.052/2000 surgiu, em especial, porque o governo brasileiro percebeu a urgente necessidade de contar com um instrumento legal  para tratar sobre o acesso e repartição de benefícios de recursos genéticos no Brasil. Conforme previsto no ato normativo acima, o governo brasileiro proibiu, até a sua regulamentação, ocorrida em 30/12/2000, a saída de material genético do Brasil para outros Estados do Brasil e exterior9.

Em uma análise geral e ligada ao tema do presente trabalho, a Medida Provisória n.º 2.186/2001 implementou significativas disposições sobre o acesso ao patrimônio genético, ao conhecimento tradicional associado e a repartição de benefícios. Contudo, foi considerada muito rígida.

Durante o período de vigência dela, somente 110 contratos de repartição de benefícios foram assinados, sendo que apenas um deles previa a repartição de benefícios para as populações indígenas (TÁVORA, et al., 2015)

Ela foi reeditada sucessivas vezes, até se converter em Medida Provisória 2.186/2001, que vigorou até o ano de 2015, sendo substituída pela Lei n.º 13.123/2015, tema a ser tratado em tópico subsequente.

A Lei 13.123/2015

De início, convém ressaltar que o intuito não é o de esgotar todos os temas tratados pela Lei 13.123/2015, que revogou a Medida Provisória n.º 2.186/01, mas apenas analisar, em aspectos gerais, como o acesso e a repartição de benefícios se foram retratados pela lei atual.

O novo marco legal a respeito do acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado e sobre a repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade trouxe a regulamentação do artigo 225, parágrafo 1º, inciso II, da Constituição Federal.

Nesta disposição contida no texto constitucional, fica determinado que incumbe ao Poder Público o dever de preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético.

Comparando com a regulamentação anterior, a nova lei possui como características, maior proximidade à realidade, incentivo à bioprospecção, não tributação da pesquisa e desenvolvimento tecnológico e criação de um regime de repartição de benefícios mais adequado.

A referida lei, dispõe em seu artigo 1º sobre bens, direitos e obrigações relativos ao acesso ao patrimônio genético do País, ao conhecimento tradicional associado, ao acesso à tecnologia e à transferência de tecnologia, à exploração econômica do produto, à repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da exploração econômica, à remessa para o exterior de parte ou de todo e à implementação de tratados internacionais aprovados pelo Congresso Nacional e promulgados.

Seguindo esta ideia, no artigo 2.º da Lei 13.123/2015, são apresentados alguns conceitos e definições importantes. Por exemplo, patrimônio genético (PG) é a informação de origem genética de espécies vegetais, animais, microbianas ou espécies de outra natureza, incluindo substâncias oriundas do metabolismo destes seres vivos.

O conhecimento tradicional associado (CTA) é a informação ou prática de população indígena, comunidade tradicional ou agricultor tradicional sobre as propriedades ou usos diretos ou indiretos associada ao patrimônio genético. O conhecimento tradicional associado de origem não identificável é o CTA em que não há possibilidade de vincular a sua origem a, pelo menos, uma população indígena, comunidade tradicional ou agricultor tradicional.

Neste ponto Moreira et al (2017)10 afirma:

“Sabe-se que o conhecimento tradicional é a forma mais antiga de produção de teorias, experiências, regras e conceitos. Envolve saberes empíricos, práticas, crenças e costumes passados de pais para filhos nas comunidades indígenas ou, mesmo, em comunidade tradicionais, que, embora sejam saberes empíricos, são considerados a mais ancestral forma de produzir ciência”

Importante mencionar que, conforme prevê a lei, o acesso a conhecimento tradicional associado de origem não identificável independe de consentimento prévio informado, conforme previsto no parágrafo 2º, do artigo 9º da lei.

Já o termo comunidade tradicional seria o grupo culturalmente diferenciado que se reconhece como tal, possui forma própria de organização social e ocupa e usa territórios e recursos naturais como condição para a sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas geradas e transmitidas pela tradição.

Consentimento prévio informado é o consentimento formal, previamente concedido por população indígena ou comunidade tradicional segundo os seus usos, costumes e tradições ou protocolos comunitários.

Além disso, exige-se o consentimento prévio informado por parte da população indígena, comunidade tradicional, ou agricultor tradicional fornecedor do conhecimento para o acesso ao conhecimento tradicional associado (CTA), contido no artigo 9º da Lei n.º 13.123/2015, além dos artigos 12 a 18 do Decreto 8.772/16, que condicionam o acesso ao CTA associado processo de consentimento livre, prévio e informado.

De acordo com a lei, o consentimento prévio informado poderá ocorrer, a critério da população indígena, da comunidade tradicional ou do agricultor tradicional, pelos seguintes instrumentos: assinatura de termo de consentimento prévio, registro audiovisual do consentimento, parecer do órgão oficial competente ou adesão na forma prevista em protocolo comunitário.

Além disso, as populações indígenas, comunidades tradicionais e os agricultores tradicionais que criam, desenvolvem, detêm ou conservam conhecimento tradicional associado serão garantidos os direitos de ter reconhecida sua contribuição para o desenvolvimento e conservação de patrimônio genético, ter indicada a origem do acesso, perceber benefícios pela exploração econômica e participar do processo de tomada de decisão sobre assuntos relacionados ao acesso e à repartição de benefícios, usar ou vender livremente os produtos que contenham patrimônio genético ou CTA e conservar, manejar, guardar, produzir, trocar, desenvolver, melhorar material reprodutivo que contenha PG ou CTA.

O acordo de repartição de benefícios é um instrumento jurídico que qualifica as partes, o objeto e as condições para repartição de benefícios. Distintamente do modelo apresentado pela Medida Provisória, que seria um controle prévio das atividades através de autorização estatal, a forma utilizada pela recente Lei federal seria a de livre utilização dos recursos genéticos, sendo exigido o consentimento prévio estatal apenas em situações excepcionais.

A Lei 13.123/15 prevê a repartição de benefícios como modelo de partilha de recursos derivados da exploração econômica de produto acabado ou de material reprodutivo oriundo do acesso do patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado.

Conforme prevê a lei, a repartição de benefícios pode assumir duas formas: monetária ou não monetária (artigo 19). A repartição monetária poderá ser facultativa (§1º, artigo 19), na hipótese de exploração econômica decorrente de acesso ao patrimônio genético ou, obrigatória (artigo 23 e §2º do artigo 24), para o caso de exploração econômica originada de acesso ao conhecimento tradicional associado não identificável e identificável.

Segundo a lei, os valores a serem recolhidos no Fundo são os decorrentes da repartição de benefícios. Além deles, o FNRB pode ter como fonte de receitas dotação da Lei Orçamentária Anual, seus créditos adicionais, doações, multas impostas em consequência do descumprimento da Lei n.º 13.123/15, entre outros¹¹.

De acordo com o artigo 30 da Lei n.13.123/15, fica instituído o Fundo Nacional para a Repartição de Benefícios – FNRB, de natureza financeira, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, com o objetivo de valorizar o patrimônio genético e os conhecimentos tradicionais associados e promover o seu uso de forma sustentável.

A fim de exemplificar, em abril de 2024, o Comitê Gestor do Fundo Nacional de Repartição de Benefícios (CG-FNRB) realizou um evento com representantes do governo e da sociedade civil, a fim de discutir questões importantes relacionadas à repartição de benefícios decorrentes de acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional no Brasil¹².

Conforme noticiado, o valor corresponde, atualmente, às arrecadações até o ano fiscal de 2022, ou seja, dos valores depositados até 2023 com rendimentos, seria de R$7.438.596,49. Desse total, aproximadamente 1,2 mi (21% do total) decorrem dos rendimentos do Fundo, que é remunerado na taxa SELIC, assim como o Fundo do Clima.

Além disso, foi destacado que apenas 65 empresas fizeram depósitos no fundo desde 2020, quando ele foi operacionalizado. Desses depósitos, aproximadamente 60% são decorrentes de RB por acesso ao PG, e 30% decorrentes de acesso ao CTA de origem identificável Os outros 10% são divididos entre RB por acesso ao PG ex situ e CTA de origem não identificável.

Logo, vê-se que o acesso e a repartição de benefícios não engrenou. Os valores são pequenos, comparados apenas com os valores apresentados pela indústria farmacêutica, um dos atores com maior interesse nesta questão e que apresentou faturamento em 2022, apenas no Brasil, de R$ 131,2 bilhões¹³.

Conclusão

O presente artigo buscou fornecer um panorama histórico detalhado sobre os marcos normativos internacionais, como a Convenção da ONU sobre a Diversidade Biológica e o Protocolo de Nagoya, buscando explicar o contexto global de proteção à biodiversidade.

Destacou-se a importância da biodiversidade e necessidade de protegê-la, não apenas por conta de seu valor intrínseco, mas também pelos benefícios antropocêntricos, no caso, estéticos, culturais e econômicos, proporcionados por ela.

Durante o artigo, foi questionado se o Brasil, um país megadiverso, tratou o tema com a devida atenção e cuidado. Além disso, foi mencionado os problemas decorrentes da Medida Provisória n.º 2.052/2000, especialmente a rigidez e dificuldade impostas pelo texto normativo para a pesquisa.

No mais, com a Lei 13.123/2015, apesar de ser proposta com o intuito de maior proximidade à realidade, incentivo à bioprospecção, não tributação da pesquisa e desenvolvimento tecnológico e criação de um regime de repartição de benefícios mais adequado, os números apresentados mostraram uma aplicação muito pequena dos institutos do acesso e da repartição de benefícios, ainda com baixos valores envolvidos.

O que se conclui, com as ressalvas de uma análise superficial sobre o tema, é que os institutos do acesso e repartição de benefícios não estão sendo aproveitados com todo o potencial envolvido, especialmente o potencial econômico, isto quando observamos as perspectivas geradas pela existência de uma megadiversidade ambiental e cultural, como existente no Brasil.


¹(Wilson, E.O. (Ed.). (1988). Biodiversity. Washington, D.C.: National Academy Press.)
²BENSUSAN, N. 2008. Introdução. A impossibilidade de ganhar a aposta e a destruição da natureza. In: Bensusan, N. (org.) Seria melhor mandar ladrilhar? Biodiversidade: como, para que e por que. 2ª ed (revisada e ampliada), Brasília; Ed. Unb, 2008. p. 18
³FREITAS, Márcio Luiz Coelho de. O valor da biodiversidade. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, v. 17, n. 68, p. 277-303, out./dez. 2012. Disponível em http://www.trf1.jus.br/dspace/handle/123/151804. Acesso em julho/2024.
4Disponível em https://brasil.un.org/pt-br/91223-onu-e-o-meio-ambiente. Acesso em abril/2024.
5Disponível em: https://www.unep.org/pt-br. Acesso em maio de 2024.
6A primeira-ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland, foi indicada pela ONU  e chefiou a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, apresentando o documento final denominado Nosso Futuro Comum, também conhecido como Relatório Brundtland. Disponível em https://brasil.un.org/pt-br/91223-onu-e-o-meio-ambiente. Acesso em maio de 2024.
7Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/resources/publications. Acesso em junho 2024.
8Decreto Legislativo 136/2020. Disponível em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decleg/2020/decretolegislativo-136-11-agosto-2020-790527-protocolo-161281-pl.html. Acesso em 30 de junho. 2023.
9http://www.comciencia.br/reportagens/amazonia/box/gama.htm. Acesso em junho de 2024.
10Moreira, Eliane Cristina Pinto (Org.). A nova lei n.º 13.123/2015 no velho marco legal da biodiversidade: entre retrocessos e violações de direitos socioambientais. São Paulo : Inst. O direito por um planeta verde, 2017. pág. 126.
¹¹Parágrafo 1º do art. 96 do Decreto n.º 8.772/2016.
¹²Disponível em: https://pt.linkedin.com/pulse/destaques-da-12%C2%AAreuni%C3%A3o-do-comit%C3%AA-gestor-fundo-ct5sf. Acesso em julho de 2024.
¹³Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2023/anvisa-divulga-dados-do-anuario-sobre-a-industria-farmaceutica-no-brasil. Acesso em julho de 2024.

REFERÊNCIAS

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¹Mestrando em Desenvolvimento Regional – Unialfa. Pós-graduado em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Goiás. Oficial de Justiça Avaliador do TJGO. Email de contato: ymamede@gmail.com
²Doutor em Agronegócios pelo programa de pós-graduação em agronegócios pela Universidade Federal de Goiás (PPGAGRO). Mestre em Agronegócio pela Universidade Federal de Goiás com pesquisa sobre adoção de tecnologias agrícolas através de modelagem matemática-estatística-econométrica. Atualmente é assessor executivo na Federação das Indústrias do Estado de Goiás (FIEG) no Conselho Temático da Agroindústria (CTA) e Câmara Setorial das Indústrias de Alimentos e Bebidas (CASA).