REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cs10202411301012
Caio Freitas Nascimento1
Orientador: Antonio Carlos de Sousa Gomes Junior2
RESUMO
O presente trabalho focará na produção da prova testemunhal, em especial, na possibilidade da criação de falsas memórias, aferindo se é possível que tal fato, seja tão crucial, que impacte o âmbito do processo penal, prejudicando a credibilidade dos depoimentos colhidos, bem como, os textos aduzidos a termo após a colheita da prova oral, na instrução processual penal. O presente trabalho pretende realizar um estudo sobre o paradigma de DRM aplicado em relação ao caso Washington x Steve Gary Titus (1980) e a influências das lembranças “criadas” pela memória, na produção da prova testemunhal e no processo penal. A pergunta que se pretende responder é: aspectos cognitivos do processamento da memória, pelo cérebro, podem influenciar a produção da prova testemunhal, no processo penal? A hipótese traçada é de que sim, a forma como a memória é produzida e armazenada pode influenciar a produção da prova testemunhal afastando-a da “verdade real”. O objetivo geral da pesquisa é identificar como esses aspectos cognitivos do processamento da memória, podem influenciar a percepção dos eventos pela testemunha, no que tange a sua contribuição no processo; enquanto que os específicos são compreender o Paradigma de DRM, conhecer o caso State of Washington x Steve Gary Titus (1980) e avaliar a prova testemunhal no processo penal brasileiro. Sobre a metodologia eleita, tem-se que após a escolha dos textos em repositórios públicos sobre o tema, foram realizadas resenhas das doutrinas das áreas técnicas de conhecimento do direito e do estudo da memória, utilizou-se o Paradigma de DRM, aplicado ao caso Washington x Steve Gary Titus (1980), numa perspectiva lógica decrescente, partindo dos conceitos abstratos da teoria, aos elementos concretos do caso, para em seguida promover as conclusões sobre a efetividade e legitimidade dos resultados obtidos no caso do estudo sobre os testemunhos produzidos.
PALAVRAS-CHAVE: Prova Testemunhal, Paradigma de DRM, falsa memória, processo penal.
ABSTRACT
This work will focus on the production of testimonial evidence, in particular, on the possibility of creating false memories, assessing whether it is possible that this fact is so crucial that it impacts the scope of the criminal process, damaging the credibility of the statements collected, as well as , the texts submitted after the collection of oral evidence, in the criminal procedural investigation. The present work intends to carry out a study on the DRM paradigm applied in relation to the case of Washington x Steve Gary Titus (1980) and the influence of memories “created” by memory, in the production of testimonial evidence, in the criminal process. The question we intend to answer is: can cognitive aspects of memory processing, by the brain, influence the production of testimonial evidence in criminal proceedings? The hypothesis outlined is that yes, the way memory is produced and stored can influence the production of testimonial evidence, moving it away from the “real truth”. The general objective of the research is to identify how these cognitive aspects of memory processing can influence the perception of events by the witness, in terms of their contribution to the process; while the specific ones are understanding the DRM Paradigm, knowing the case State of Washington x Steve Gary Titus (1980) and evaluating the testimonial evidence in the Brazilian criminal process. Regarding the chosen methodology, after choosing the texts in public repositories on the topic, reviews of the doctrines of the technical areas of knowledge of law and the study of memory were carried out, using the DRM Paradigm, applied to the case Washington x Steve Gary Titus (1980), in a decreasing logical perspective, starting from the abstract concepts of the theory, to the concrete elements of the case, to then promote conclusions about the effectiveness and legitimacy of the results obtained in the case of the study on the testimonies produced.
KEYWORDS: Testimonial Evidence, DRM Paradigm, false memory, criminal proceedings.
1. INTRODUÇÃO
A fase probatória do processo, é o momento em que as partes realizam os atos processuais referente a produção de provas, dentre os tipos de provas existentes em Direito, existem as provas documental, pericial e testemunhal.
O presente trabalho focará na produção da prova testemunhal, em especial, na possibilidade da criação de falsas memórias, aferindo se é possível que tal fato, seja tão crucial, que impacte o âmbito do processo penal, prejudicando a credibilidade dos depoimentos colhidos, bem como, os textos aduzidos a termo após a colheita da prova oral, na instrução processual penal.
Neste contexto, o Paradigma DRM3, foi a teoria eleita para servir de parâmetro à presente pesquisa é compreender como a mente pode criar falsas memórias a partir de associações semânticas. Do mesmo modo foi posta em pauta o conceito da “verdade real”, destacando a busca por uma compreensão completa dos eventos no processo penal.
Na mesma toada também se utilizou o “princípio do devido processo legal”, guia normativo, equilibrando a busca pela verdade com a proteção dos direitos individuais. Explora-se também a interação entre a falsa memória e o “estresse pós-traumático”, considerando como traumas intensos podem influenciar a formação de memórias distorcidas em contextos legais. Esses elementos fundamentais compõem um mosaico teórico crucial para a compreensão da complexidade da falsa memória no processo penal.
O presente trabalho pretende realizar um estudo sobre o paradigma de DRM aplicado em relação ao caso Washington x Steve Gary Titus (1980) e a influências das lembranças “criadas” pela memória, na produção da prova testemunhal e no processo penal.
A pergunta que se pretende responder é: aspectos cognitivos do processamento da memória, pelo cérebro, podem influenciar a produção da prova testemunhal, no processo penal? A hipótese traçada é de que sim, a forma como a memória é produzida e armazenada pode influenciar a produção da prova testemunhal afastando-a da “verdade real”.
O objetivo geral da pesquisa é identificar como esses aspectos cognitivos do processamento da memória, podem influenciar a percepção dos eventos pela testemunha, no que tange a sua contribuição no processo; enquanto que os específicos são compreender o Paradigma de DRM, conhecer o caso State of Washington x Steve Gary Titus (1980) e avaliar a prova testemunhal no processo penal brasileiro.
Sobre a metodologia eleita, tem-se que após a escolha dos textos em repositórios públicos sobre o tema, foram realizadas resenhas das doutrinas das áreas técnicas de conhecimento do direito e do estudo da memória, utilizou-se o Paradigma de DRM, aplicado ao caso Washington x Steve Gary Titus (1980), numa perspectiva lógica decrescente, partindo dos conceitos abstratos da teoria, aos elementos concretos do caso, para em seguida promover as conclusões sobre a efetividade e legitimidade dos resultados obtidos no caso do estudo sobre os testemunhos produzidos.
2. A INFLUÊNCIA DOS ASPECTOS COGNITIVOS DO PROCESSAMENTO DA MEMÓRIA, PELO CÉREBRO, NA PRODUÇÃO DA PROVA TESTEMUNHAL, NO PROCESSO PENAL
A prova testemunhal, conforme estabelecido nos artigos 202 a 225 do Código de Processo Penal (CPP) brasileiro, é um elemento crucial no processo penal. Ela se baseia na percepção de que qualquer indivíduo que tenha presenciado os fatos apurados poderá ser uma prova testemunhal (BRASIL, 1941).
O CPP garante o princípio do contraditório e da ampla defesa, permitindo que o réu e seu advogado tenham o direito de interrogar as testemunhas. Este interrogatório é uma ferramenta essencial para trazer à luz a verdade dos fatos (BRASIL, 1941).
A memória desempenha um papel crucial na retenção e recuperação de informações (CHAVES,2023). Esses processos de apuração das memórias são essenciais para a eficácia da prova testemunhal, pois a credibilidade das testemunhas é um aspecto fundamental neste processo. Neste contexto, o artigo 213 do CPP enfatiza a importância da memória e da imparcialidade na prova testemunhal. Desse modo, a falta desses elementos pode levar à acusação de falso testemunho (BRASIL, 1941).
Portanto, a prova testemunhal, apoiada pela memória, conjuntamente com a imparcialidade da testemunha, mostram-se componentes vitais no processo penal brasileiro.
O ato de testemunhar pode parecer, mas não é tão simples quanto aparenta, uma vez que o processo de formação de memória é complexo, envolvendo uma intensa interação de neurônios e redes neurais. Quando somos expostos a novos acontecimentos, esses neurônios se comunicam entre si criando novas sinapses, o que conhecemos como memória, estas por sua vez são plásticas, ou seja, com o passar do tempo essas conexões sinápticas podem enfraquecer ou se fortalecer, processo esse muito importante para a criação da memória (ENGLISH, SWEATT. 1997).
Caso lhe fosse indagado o que você comeu a exatos 20 dias atrás no fim da tarde, você provavelmente não saberia com exatidão, isso ocorre porque o cérebro filtra somente o que nós ou o que o nosso subconsciente julga como importante (LOMBROSO, 2004).
Quando existe a necessidade de relembrar informações, fatos ou experiências previamente armazenadas na memória, surge o fenômeno da evocação, que pode ser desencadeada por estímulos externos, sugestões ou até mesmo por interações internas, como pensamentos ou emoções. (LOMBROSO, 2004).
Isso trouxe à luz a lógica de que o processo de evocação é mais complexo do que se pensava anteriormente e envolve várias partes do cérebro trabalhando em conjunto para recuperar informações armazenadas.
Além disso, ao se tratar sobre memória não está apenas se falando sobre lembrar, mas também sobre esquecer. Pesquisadores estão começando a perceber que a capacidade de esquecer é crucial para o funcionamento do cérebro (GRAVITZ, 2019).
Esquecer pode ser visto como um mecanismo ativo que está constantemente em ação no cérebro. Em alguns animais, talvez até todos, o estado padrão do cérebro não é lembrar, mas esquecer. Isso sugere que o esquecimento não é simplesmente uma falha de memória, mas uma parte essencial de como o cérebro processa e armazena informações.
Seguindo essa linha de raciocínio, a confiabilidade da prova testemunhal em certos momentos fica comprometida, como em depoimentos colhidos muito depois do acontecimento, pois a demora na colheita da prova pode prejudicar a testemunha lembrar com exatidão de evento o qual apenas presenciou, sem participação ou causa que lhe afetasse direta ou indiretamente, uma vez que, conforme citado anteriormente, essa informação não seria relevante em sua vida e acabaria sendo armazenada no subconsciente.
Nos casos em que o ocorrido impactou diretamente a vida da testemunha, o estresse gerado por esse evento poderia fazer com que o cérebro, a fim de evitar dor, armazene essa memória no subconsciente (EMYGDIO, 2019), ademais, mesmo que a testemunha não tenha sofrido forte estresse com a ocorrência do evento, a forma em que seu testemunho é colhido é de suma importância, já que o mesmo pode ser influenciado.
Em situações de estresse extremo, o cérebro pode priorizar a sobrevivência imediata sobre a precisão da memória. Isso pode levar a uma codificação deficiente dos eventos, resultando em memórias fragmentadas, incompletas ou distorcidas. O trauma também pode levar a uma fragmentação distinta da memória, onde partes do evento podem ser lembradas de forma vívida, enquanto outras partes podem ser esquecidas ou distorcidas (PAULA, SANTOS, 2022).
Essas memórias distorcidas podem se tornar especialmente problemáticas em contextos legais, onde a precisão das evidências é crucial para determinar a culpa ou a inocência de um indivíduo. Testemunhas que sofreram traumas intensos podem ser especialmente suscetíveis a memórias falsas ou distorcidas, o que pode levar a identificações errôneas, confissões falsas e relatos imprecisos dos eventos (MARDEGAN, 2023).
O fenômeno da falsa memória é ainda mais complexo quando combinado com o estresse pós-traumático. Em muitos casos, as pessoas podem acreditar sinceramente em suas memórias distorcidas, tornando difícil distinguir entre o que é verdadeiro e o que é falso.
O trauma emocional associado aos eventos pode tornar as memórias ainda mais vívidas e convincentes, aumentando a probabilidade de que sejam aceitas como verdadeiras (PAULA, SANTOS, 2022).
O Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), conforme citado anteriormente, é uma condição de saúde mental que pode ocorrer após uma pessoa ter vivenciado ou testemunhado um evento traumático.
Este transtorno pode ter um impacto significativo na memória de curto prazo de um indivíduo (MOTA, 2000). A memória de curto prazo, também conhecida como memória de trabalho, é a capacidade de manter e manipular informações por curtos períodos de tempo, geralmente de alguns segundos a um minuto.
Essa interação entre a falsa memória e o estresse pós-traumático é um desafio significativo para o sistema judicial, que deve garantir que as evidências apresentadas sejam confiáveis e precisas. É fundamental que os profissionais jurídicos estejam cientes desses fenômenos.
A prova testemunhal vem sendo discutida entre alguns doutrinadores, pois, apesar de ser o meio de prova mais utilizado no processo penal, é um dos meios menos confiáveis, podendo ser manipulado e se tornar um objeto perigoso. A memória humana é permeada de falhas, distorções, e a mentira ou omissão de algum fato, é um traço da natureza humana (MELCOP, 2020).
Portanto, é crucial que os operadores da lei entendam a natureza complexa e às vezes falível da memória ao avaliar um testemunho.
Treinamentos adequados para entrevistar testemunhas, técnicas de interrogatório que minimizam a sugestibilidade e a consideração de fatores como o estresse e o tempo decorrido desde o evento podem ajudar a maximizar a precisão das provas testemunhais. A compreensão dos aspectos cognitivos do processamento da memória pelo cérebro é, portanto, fundamental para a busca da justiça no processo penal. Oportuno ainda conhecer o paradigma de DRM.
3. O PARADIGMA DE DRM (DEESE – 1959, ROEDIGER E MCDERMOTT – 1995)
O paradigma DRM consiste de uma lista de palavras associadas, apresentadas em tarefas de estudo e teste.
As palavras de uma lista se relacionam sempre a um mesmo tema, representado por um “distrator crítico”, o qual consiste em uma palavra semanticamente associada às demais e que traduz a temática da lista.
Por exemplo, o conjunto “sono”, “cama”, “travesseiro” e “noite” pode compor uma lista semanticamente associada ao distrator “dormir”.
Embora essa palavra não seja apresentada aos participantes na fase de estudo, sua ocorrência nas respostas na fase de teste é altamente provável, tanto em testes que envolvem tarefas de recordação quanto de reconhecimento, representando um índice de falsas memórias.
A falsa lembrança dos distratores críticos, por parte dos avaliados no teste do Paradigma de DRM, pode ocorrer em uma proporção igual ao das palavras estudadas (STEIN & NEUFELD, 2001; STEIN & PERGHER, 2001), podendo estar acompanhada por altos índices de confiança subjetiva (Roediger & McDermott, 1995).
Desse modo, segundo a teoria, a simples associação de palavras com a semântica semelhante enseja em alto índice de confiança subjetiva de que a pessoa já teria escutado a palavra anteriormente. Ou seja, há a construção de uma linha tendenciosa através da semântica das palavras.
Quando questionados sobre sua experiência após o teste, cerca de metade de todos os participantes relatam que têm certeza de que se lembram de ouvir a isca, indicando uma falsa memória – uma memória de um evento que nunca ocorreu4. A simplicidade do paradigma e a facilidade com que os estudos DRM podem ser conduzidos ajudaram o paradigma DRM a se tornar popular entre os pesquisadores de memória humana, bem como pesquisadores de outros campos4.
A sugestibilidade refere-se à tendência de um indivíduo de aceitar e incorporar informações pós evento em sua memória de um evento. Por exemplo, se um indivíduo é informado após um evento que um objeto específico estava presente durante o evento, ele pode incorporar essa informação em sua memória do evento, mesmo que o objeto não estivesse realmente presente. Isso pode levar à formação de uma falsa memória do objeto sendo parte do evento.
O contexto em que as informações são recebidas também pode desempenhar um papel na formação de falsas memórias. Por exemplo, informações recebidas em um contexto de alta pressão ou estresse podem ser mais propensas a serem incorporadas incorretamente na memória de um indivíduo. Isso pode levar à formação de falsas memórias que são influenciadas pelo contexto em que as informações foram recebidas.
Embora o paradigma Deese-Roediger-McDermott (DRM) seja um instrumento amplamente aceito e empregado em estudos sobre falsas memórias, ele não está livre de críticas.
Outra crítica ao paradigma DRM é que ele pode não ser totalmente representativo de como as falsas memórias se formam naturalmente. O paradigma DRM envolve a apresentação de listas de palavras associadas, o que é uma situação bastante artificial, na vida real, as memórias são formadas através de experiências mais ricas e variadas.
Além disso, alguns pesquisadores questionam se o paradigma DRM é realmente capaz de criar falsas memórias ou se ele simplesmente leva as pessoas a adivinhar ou inferir astuciosamente. Tal premissa levanta questões sobre a validade do paradigma DRM como uma ferramenta de pesquisa para o estudo de falsas memórias.
Há também preocupações sobre a forma como o paradigma DRM é usado para estudar a memória. Alguns argumentam que o foco no paradigma DRM pode desviar a atenção de outros aspectos importantes da memória, como a forma como as memórias são recuperadas e a influência do contexto na formação de memórias.
Desse modo, embora o paradigma DRM tenha contribuído significativamente para a nossa compreensão das falsas memórias, é importante considerar suas limitações. A pesquisa futura deve procurar abordar essas questões e continuar a explorar a complexidade da memória humana.
Somado a isso, em detrimento desta, mostra-se oportuno apresentar o caso da condenação injusta de Steve Titus.
4. CASO STATE OF WASHINGTON X STEVE GARY TITUS (1980)
O caso de Steve Titus é um exemplo marcante de erro judicial nos Estados Unidos que ocorreu na década de 1980.
O caso começou quando Victoria, uma mulher branca, foi estuprada por um homem negro em um parque de Seattle. A polícia começou a investigar, inicialmente, a vítima descreveu o agressor de maneira vaga e estava insegura sobre a identificação de Titus. Após repetidas sugestões e exposição ao rosto de Titus, a vítima se convenceu de que ele era o perpetrador.
A polícia e os promotores, reforçaram essa falsa memória ao tratar a identificação inicial como definitiva e ao mostrar imagens de Titus diversas vezes à vítima. Este fenômeno de falsa memória se intensificou à medida que a vítima passou a reconstruir mentalmente o evento, integrando informações incorretas que recebeu durante o processo.
A repetição constante do rosto de Titus nas investigações e a confirmação por parte da polícia contribuíram para que a vítima criasse uma memória detalhada e falsa do ataque. Durante o julgamento, a confiança da vítima em sua identificação reforçou a acusação contra Titus, que apesar da falta de evidências concretas, foi preso e acusado com base na identificação da vítima.
Durante o julgamento, os promotores apresentaram a identificação de Victoria como prova principal, e Titus foi condenado pelo júri, recebendo uma sentença de prisão de 25 anos.
No entanto, a situação mudou quando um novo advogado de defesa assumiu o caso de Titus e decidiu investigar mais a fundo. Ele descobriu evidências que comprovam a inocência de Titus, incluindo o testemunho de várias testemunhas que confirmaram que Titus estava em outro local no momento do crime.
Finalmente, em 1981, após passar quase um ano na prisão, Steve Titus foi libertado da prisão. A psicóloga Elizabeth Loftus argumentou no julgamento que a vítima havia evocado uma falsa memória do agressor devido a uma linha de suspeitos tendenciosa.
Inicialmente, a vítima afirmou que Steve Titus era o homem que mais se parecia com o agressor. Mais tarde, em tribunal, a vítima disse que definitivamente sabia que era ele. Suas percepções foram alteradas ao longo do processo de ir ao tribunal através de dicas que criaram uma falsa memória.
O caso de Steve Titus destacou as falhas no sistema de justiça criminal dos Estados Unidos, incluindo a confiabilidade das identificações feitas pelas vítimas e a importância de garantir que todas as evidências sejam consideradas antes de uma condenação. Depois de sua libertação, Titus lutou para reconstruir sua vida e sua reputação, e seu caso serviu como um exemplo trágico dos perigos de um sistema de justiça que pode falhar em proteger os inocentes.
Psicologicamente, Titus foi profundamente afetado pela experiência. Ele desenvolveu uma desconfiança intensa no sistema de justiça e ficou obcecado com o que havia acontecido com ele. A sensação de injustiça e a perda de sua vida anterior o consumiram, levando-o a um estado de estresse constante. Esse estresse crônico teve um impacto significativo em sua saúde mental e física, contribuindo para um quadro de ansiedade e depressão.
Infelizmente, o estresse e a pressão resultantes da condenação injusta cobraram um preço alto. Steve Titus morreu de um ataque cardíaco relacionado ao estresse em 1985, aos 35 anos. Sua morte prematura é um lembrete trágico dos efeitos devastadores que uma condenação injusta pode ter na vida de uma pessoa.
5. A PROVA TESTEMUNHAL NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO
No processo penal, a busca pela verdade real é fundamental.
Historicamente, o conceito da verdade real foi posto em dúvida em detrimento de práticas antigas, como a tortura, onde a obtenção de confissões, muitas vezes falsas, em detrimento do abuso sofrido, era considerada suficiente para condenar um indivíduo. Essa prática distorce a busca pela verdade real, pois as confissões eram obtidas mediante coerção, não refletindo necessariamente os fatos reais do caso (RAMOS, 2022).
Com raízes na medievalidade, a tortura tem uma longa história de uso. Durante a Inquisição, a tortura desempenhou um papel crucial como meio de prova no processo penal. Por exemplo, no Manual dos Inquisidores, de Nicolau Emérico (1320-1399), no capítulo 3, intitulado “Sobre o interrogatório do Acusado”, estão presentes as convicções de prova criminal existentes para os aplicadores da justiça penal: “aplicar-se-lhe-á a tortura, a fim de lhe poder tirar da boca toda a verdade”.
A tortura também foi usada como pena entre os antigos e romanos, bem como prova propriamente dita. Posteriormente, a tortura foi utilizada como satisfação, não só do crime cometido, mas também como meio de satisfazer os instintos baixos, em atos de verdadeiro sadismo.
No entanto, é importante notar que a tortura foi oficialmente restringida e abolida em praticamente todos os Estados no século XVIII, em decorrência da propagação das ideias iluministas. Hoje, a tortura é considerada uma violação grave dos direitos humanos e é proibida em muitos sistemas legais ao redor do mundo.
Sua abolição tem impacto direto na justiça e na sociedade atual, ela reforçou o respeito aos direitos humanos, sendo proibida no direito internacional, ademais, fez com que o judiciário se concentrasse em provas mais concretas, ocasionando uma reforma significativa no sistema penal para o qual conhecemos hoje em dia.
Hodiernamente, embora a tortura não seja mais uma prática aceitável para obter confissões, ainda há desafios na busca pela verdade real, especialmente no que diz respeito à colheita de depoimentos. Os métodos modernos de interrogatório, embora não envolvam tortura física, muitas vezes pressionam os indivíduos, levando a confissões ou relatos imprecisos (CECCONELLO, MILNE e STEIN, 2022).
Por exemplo, técnicas como o interrogatório persistente, a manipulação psicológica, ou a indução de estresse emocional podem influenciar a precisão dos depoimentos.
Da mesma forma que a tortura no passado podia resultar em confissões falsas, as técnicas de interrogatório atuais podem levar a depoimentos imprecisos, comprometendo a busca pela verdade real (DE MELO, 2024).
Assim, embora o processo penal moderno tenha abandonado a tortura como método de obtenção de confissões, é crucial permanecer vigilante quanto aos métodos de colheita de depoimentos, garantindo que a busca pela verdade real seja conduzida de maneira justa, precisa e livre de coerção. Afinal, a integridade do processo judicial depende da capacidade do magistrado de confiar nas evidências apresentadas perante ele e de discernir a verdade dos fatos com base nessas evidências.
Seguindo essa linha de raciocínio, o devido processo legal desempenha um papel fundamental durante a fase probatória do processo penal. Essa fase, também conhecida como fase de instrução ou fase probatória, é o momento em que as partes apresentam suas evidências e argumentos ao tribunal para que este possa formar uma conclusão fundamentada sobre o caso. Durante esse processo, o devido processo legal postula que os direitos fundamentais dos acusados sejam protegidos e que o procedimento seja conduzido de maneira justa e imparcial (AMARAL e BRUNI, 2023).
O devido processo legal é a espinha dorsal de qualquer sistema jurídico que se preze. Ele é a garantia de que todos os cidadãos serão tratados de maneira justa pelo sistema jurídico, independentemente de sua situação ou status. No Brasil, o devido processo legal é um direito constitucional, direito fundamental, consagrado no artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Além disso, o devido processo legal na fase probatória, também visa proteger os acusados contra práticas abusivas ou coercitivas por parte das autoridades. Isso inclui garantir que as provas sejam obtidas de maneira ética e legal, sem violar os direitos individuais dos acusados. Qualquer evidência obtida de forma ilegal ou mediante coerção pode ser considerada inadmissível em tribunal, conforme os princípios do devido processo legal.
O Brasil, apesar de ainda existir elementos que dificultem a garantia do devido processo legal, dado o exposto, indubitavelmente já avançou muito no que tange a condução do processo. Prova disso é a introdução do Pacote Anticrime no Brasil que busca, entre outros objetivos, mitigar o risco de condenações injustas como a de Steve Titus. O fortalecimento do devido processo legal, por meio da figura do juiz de garantias e de novas regras para a obtenção de provas, tem como finalidade assegurar que as decisões judiciais sejam baseadas em evidências confiáveis e imparciais.
O juiz de garantias é pode ser simplesmente conceituado, como o uso de um magistrado distinto do que irá conduzir o processo, que ficaria responsável por supervisionar a fase de investigação criminal, garantindo a legalidade dos procedimentos e a proteção dos direitos individuais do acusado. Esse juiz não participa da fase de julgamento, o que assegura a imparcialidade e evita influências indevidas que possam prejudicar a defesa.
Se a figura do juiz de garantias existisse no contexto do caso de Steve Titus, várias salvaguardas poderiam ter sido implementadas para evitar a condenação injusta. O juiz de garantias teria a função de revisar a legalidade das provas e das práticas investigativas, questionando a validade das identificações baseadas em memórias potencialmente falsas e influenciadas.
O juiz de garantias também poderia garantir que a defesa de Titus tivesse acesso a todas as evidências desde o início da investigação, permitindo uma contestação eficaz das provas apresentadas pela acusação. Isso teria incluído a revisão das condições em que a vítima foi exposta repetidamente ao rosto de Titus, e a análise de como essa prática poderia ter levado à formação de uma falsa memória.
Logo, é indiscutível o papel crucial do devido processo legal frente a verdade real, uma vez que a pessoa condenada injustamente cria um evento profundamente traumático que pode deixar cicatrizes emocionais, sociais e financeiras duradouras na vida do agente (ASSMAR, 1997).
O impacto psicológico é frequentemente avassalador, sentimentos de ansiedade, depressão, raiva e confusão são comuns entre aqueles que foram erroneamente privados de sua liberdade. A perda de confiança nas instituições governamentais e no sistema judicial é uma consequência dolorosa. A sensação de ter sido traído por um sistema que deveria garantir justiça pode levar a sentimentos de alienação e desconfiança em relação à autoridade.
A ausência do devido processo legal também pode ter implicações internacionais. O Brasil é signatário de vários tratados internacionais de direitos humanos que exigem o respeito ao devido processo legal. A violação desses princípios pode levar a sanções internacionais e danos à reputação do Brasil no cenário mundial.
Além disso, o estigma social é uma realidade que muitos enfrentam após serem libertados. Mesmo que sejam provados inocentes, podem ser vistos pela sociedade como criminosos em potencial. Isso pode resultar em discriminação no local de trabalho, dificuldades para encontrar moradia e isolamento social. Os desafios financeiros também são significativos devido ao desemprego, fazendo com que essas pessoas enfrentam dificuldades para se sustentarem após a libertação.
A reintegração na sociedade é uma batalha contínua. Muitos lutam para reconstruir relacionamentos e estabelecer uma sensação de normalidade em suas vidas. A falta de apoio adequado durante esse processo pode levar a uma espiral descendente de dificuldades emocionais e financeiras. Apesar da compensação financeira nesses casos ser comum, devido ao erro judiciário, o indivíduo certamente nunca mais volta a ser o mesmo, seja emocionalmente ou socialmente.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por intermédio da análise do Paradigma DRM, concluímos que a memória humana é complexa e sujeita a distorções. As falsas memórias, embora possam parecer reais para quem as tem, podem ser implantadas e podem influenciar significativamente o testemunho de uma pessoa.
O estudo do caso State of Washington x Steve Gary Titus (1980) nos permitiu entender as consequências devastadoras que as falsas memórias podem ter em um processo penal. Este caso ilustra a necessidade de um sistema judicial que seja cauteloso ao aceitar memórias como evidências sem a devida verificação.
Além disso, a noção da “verdade real” foi profundamente discutida ao longo do trabalho, destacando a busca incessante por uma compreensão completa e precisa dos eventos.
No contexto do processo penal, essa busca deve ser equilibrada com o princípio do devido processo legal, que visa proteger os direitos individuais dos envolvidos. A conjunção desses conceitos destaca a complexidade de assegurar uma justiça que seja ao mesmo tempo eficiente e justa.
O estudo também explorou a interação entre a falsa memória e o estresse pós-traumático, revelando como eventos traumáticos podem distorcer a percepção e a lembrança dos acontecimentos.
Traumas intensos podem criar um ambiente propício para a formação de memórias falsas, o que levanta preocupações sobre a confiabilidade dos testemunhos em casos criminais onde as vítimas passaram por experiências extremamente estressantes. No entanto, a implementação prática dessas teorias no sistema jurídico exige uma abordagem multidisciplinar, envolvendo psicólogos, advogados e juízes.
Somente através da colaboração entre essas áreas do conhecimento será possível mitigar os efeitos negativos das falsas memórias na justiça penal.
Neste contexto, a hipótese abraçada no início da presente pesquisa se confirmou, ficando claro que aspectos cognitivos do processamento da memória, pelo cérebro, possam influenciar a produção da prova testemunhal, no processo penal, de maneira a produzir falsas memórias sobre o ocorrido, havendo necessidade de aplicação de técnicas de reconhecimento que não ignorem a perspectiva do reconhecimento mediante iguais, tal qual a métrica seguida no 226, do CPP, sob pena de praticar injustiça.
No artigo 226, incisos I e II, do CPP, inicialmente a testemunha é convidada a descrever a pessoa que pretende reconhecer, para somente em seguida, promover um reconhecimento visual, apontando o suspeito dentre outras pessoas de fisionomia, ou estrutura corporal semelhantes. Esta regra existe, pois há possibilidade do surgimento de falsas memórias ao longo do processo, em face de fatores psicológicos e externos da prova testemunhal.
Dessa forma, a métrica estabelecida na lei processual penal, não visa descredibilizar a prova testemunhal, mas sim demonstrar sua suscetibilidade a falhas e propor estratégias para minimizá-las, aumentando assim, a qualidade dos elementos de prova.
3O referido Paradigma DRM leva este nome em face de seus três autores: Deese (1959), Roediger e Mcdermott (1995).
REFERÊNCIAS
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1Orientando, Discente do curso de Direito. caiofreitas071@gmail.com.
2Orientador, Docente do curso de Direito. adv.gomes.jr@gmail.com.