A POSSIBILIDADE JURÍDICA DA ADOÇÃO AVOENGA NO BRASIL À LUZ DOS PRINCÍPIOS DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA E ADOLESCENTE E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

THE LEGAL CAPACITY OF AVOENGA ADOPTION IN BRAZIL IN THE LIGHT OF THE PRINCIPLES OF THE BEST INTEREST OF THE CHILD AND ADOLESCENT AND THE DIGNITY OF THE HUMAN PERSON

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8077619


Guilherme Martins Ferreira Rodrigues1
Gemima Sobral de Oliveira2
Profª Ma Francisca Juliana Castelo3
Branco Evaristo de Paiva4


RESUMO

A adoção começa a produzir efeitos a partir do trânsito em julgado da sentença e a desde já começa a produzir efeitos para o adotado e para o adotante que passa a exercer o poder parental sobre o adotado. Para o adotando os principais efeitos inerentes à adoção são os de ordem pessoal e os de ordem patrimonial. O presente trabalho utiliza como metodologia a pesquisa qualitativa através de uma revisão bibliográfica. O estudo tem como objetivo geral analisar a possibilidade jurídica da adoção avoenga no Brasil à luz dos dogmas constitucionais, bem como em análise ao que preceitua o Estatuto da Criança e do Adolescente. Conclui-se, então, de maneira favorável à flexibilização da norma, possibilitando a adoção avoenga à luz do melhor interesse da criança e do adolescente, tendo em vista as alterações familiares e a modificação da figura do idoso com os passar dos anos, o qual possui renda e é ativo socialmente.

Palavras-chave: Adoção avoenga, Criança e Adolescente, Dignidade da Pessoa humana. 

1 INTRODUÇÃO

A adoção constitui-se em um ato jurídico e tem o objetivo de garantir o direito fundamental de crianças e adolescentes à convivência familiar, salientando a posição de filho ao adotado sem distinções de qualquer natureza.

Com a Constituição Federal de 1988, as relações familiares passaram a ser estruturadas com base em princípios e garantias fundamentais, como a dignidade da pessoa humana e a afetividade. Assim, o instituto da adoção enfatiza o melhor interesse da criança e do adolescente em detrimento das relações familiares desgastadas.

Cumpre ressaltar que o Estatuto da Criança e do Adolescente é instrumento legislativo essencial para a proteção dos direitos da criança e do adolescente, de modo que priorizou a Doutrina da Proteção Integral a fim de resguardar prioritariamente garantias constitucionais destinadas aos mais frágeis, levando em conta que as crianças e adolescentes passaram a ser consideradas como sujeitos de direitos, a fim de proporcionar o pleno desenvolvimento da personalidade mediante assistência material, moral e jurídica.

Diante disso, questiona-se a possibilidade da adoção por ascendentes, neste caso, a adoção avoenga. Todavia há proibição constante do Art. 42, §1º do Estatuto da Criança e do Adolescente, de forma que caracteriza impedimento à adoção de netos pelos avós. Entretanto, compreende-se que a jurisprudência pátria entende, na excepcionalidade, que há a possibilidade da adoção avoenga.

Destaca-se que é imperioso perquirir o princípio da afetividade e sua interpelação com o princípio da dignidade da pessoa humana, enfatizando a importância da observação da discricionariedade e do decisionismo judicial. Isso posto, deve-se evidenciar a imprescindibilidade de percepção do melhor interesse da criança e do adolescente, uma vez que são sujeitos de direitos e à família, à sociedade e ao Estado cabe a proteção integral de direitos e garantias fundamentais.

Para tanto, esta pesquisa tem como objetivo principal analisar a possibilidade jurídica da adoção avoenga no Brasil e aprofundar as esferas que permeiam o fenômeno da adoção avoenga, uma vez que este, apesar de expressamente vedado pelo Art. 42, §1º, ECA, devido às decisões do Superior Tribunal de Justiça, encontra-se constantemente em pauta.

2 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL: O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O DIREITO DE FAMÍLIA

Inicialmente, é preciso lembrar que as mudanças ocorridas com o advento da Constituição Federal de 1988, representaram o surgimento de um novo paradigma, um novo marco na incessante luta para assegurar a dignidade humana das pessoas em formação. 

A Constituição Federal de 1988, baseada no princípio da dignidade humana, trouxe um novo conceito de família, ao celebrar a igualdade entre os filhos, proibindo qualquer designação discriminatória e a igualdade entre o homem e a mulher em direitos e deveres na sociedade conjugal (MORAIS, 2017). O Estatuto da Criança e do Adolescente reiterou a Constituição e ressaltou a igualdade entre pai e mãe no exercício do Pátrio Poder.

2.1 PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DO MENOR

O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente colocou o menor no centro da discussão jurídica em se tratando de guarda, analisando-se antes do interesse dos pais o interesse maior do menor. Assim, existe a prioridade dos direitos dos filhos no âmbito judicial, administrativo, social, familiar e extrajudicial (AKEL, 2018).

Os direitos da proteção integral estão expressos tanto na Constituição Federal quanto no Estatuto da Criança e Adolescente, haja vista tamanha importância desta teoria, a qual desempenha um papel estruturante na sociedade na medida em que reconhece todos os direitos inerentes à pessoa humana, bem como os direitos decorrentes da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (MARQUES, 2017).

Na Constituição Federal, tal princípio está previsto no art. 227: 

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

É necessário analisar com quem estará preservado o melhor interesse do menor, quem poderá oferecer melhores condições de ensino, e educação, bem como lhe ensinar os valores necessários para o correto desenvolvimento, noções de higiene e hábitos diários, alimentação correta, e todo afeto para que o menor possa ter a correta compreensão da vida que o circunda inclusive da solidariedade, apoio, direitos e obrigações que constituem a vida em família.

2.2 PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE

A afetividade é um princípio que parte da análise das relações familiares, nas quais é importante haver o vínculo afetivo, o que inclusive contribui para o bem-estar e o desenvolvimento saudável da criança e do adolescente. Para Tartuce (2017) esse princípio é um dos fundamentos das relações familiares, e apesar do forte debate doutrinário acerca da existência ou não desse princípio, pode-se atestar que esse é de fato um princípio do sistema jurídico.

Atualmente, as relações socioemocionais ocupam lugar importante no Direito das famílias, por vezes com predomínio das relações afetivas, em detrimento das relações biológicas. A evolução da sociedade levou juristas a reverem o conceito de família, buscando uma definição conforme a evolução crescente das relações familiares (BORGES, 2016). 

Assim, levando em consideração que a principal mudança tem sido a assimilação da afetividade como fator preponderante na formação das relações, conclui-se que isso ocasionou uma revisão do conceito que tínhamos. Dada a relevância da sócio afetividade no ambiente familiar, passamos a abordar aspectos das relações afetivas. Como bem ressalta Dias (2022, p. 41):

“O Código Civil diz que o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem. E a última expressão “outra origem” é que permitiu a construção do conceito de filiação socioafetiva como geradora de um vínculo de parentesco”. 

No entanto, cabe observar que os termos citados não se excluem. Qualquer filiação é, ou deveria ser, também filiação afetiva. Nos primórdios, os laços matrimoniais eram considerados sagrados e, por isso, a única família reconhecida era a composta por um casamento entre um homem e uma mulher e seus filhos (MAZZILLI, 2016). Essa era a única espécie de filiação existente. Qualquer outra estrutura de convívio não “merecia” ao menos o nome de família. Ao contrário, era alvo de palavras, por vezes, pejorativas. 

O tema “afeto” visa responder aos reais interesses das crianças e adolescentes, em relação à sua colocação em acolhimento familiar, através do instituto da adoção. Podemos ver como contemporâneas as menções ao afeto, no sistema jurídico. Até porque, nem mesmo o casamento era atrelado ao afeto. A família possuía apenas uma perspectiva biológica e matrimoniada (CARVALHO, 2017). 

Na estrutura do Código Civil de 1916, por exemplo, o filho adotivo não possuía direito à herança; os filhos tidos fora do casamento tinham menos direitos do que os filhos chamados de legítimos, o casamento era indissolúvel, mesmo que a base afetiva da convivência fosse cessada. Os vínculos de afeto fora do casamento não possuíam proteção alguma. Qualquer influência afetiva era desconsiderada (LUZ, 2019). 

Pode-se dizer, portanto, que os debates sobre o afeto no campo jurídico são bem contemporâneos e nascem das necessidades sociais. Foi a partir da atual Constituição Federal que o afeto passou a frequentar o vocabulário dos juristas e a ser utilizado como argumento para sustentar diferentes teses e para motivar decisões judiciais. 

Na contemporaneidade, existe uma aparente harmonia doutrinária e jurisprudencial a respeito da relevância do afeto na estrutura das relações familiares. Dias (2021, p. 74) versa sobre o afeto enquanto base fundante da relação familiar, em sua obra “Manual de Direito das Famílias”: 

A afetividade é o princípio que fundamenta o Direito das Famílias na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia em face de considerações de caráter patrimonial ou biológico. Ganhou status de valor jurídico a partir do momento em que as ciências psicossociais coloriram o direito.
O termo affectio societatis, muito utilizado no âmbito do direito empresarial, foi contrabandeado para as relações familiares. Põe em evidência que a afeição entre as pessoas é o elemento estruturante de uma nova sociedade: a família. O afeto não é somente um laço que envolve os integrantes de uma família. Também tem um viés externo, entre as famílias, pondo humanidade em cada família. Como diz Ricardo Calderón, a socioafetividade é o reconhecimento no meio social de uma dada manifestação de afetividade, percepção por uma dada coletividade de uma relação afetiva. 

Pode-se dizer que a realidade afetiva prevalece sobre a biológica e que a paternidade socioafetiva é um gênero, que tem as paternidades biológica e não biológica como espécies. Cabe citar mais uma vez Dias (2022, p. 37-38):

“A afetividade, como princípio jurídico, não se confunde com a existência real do afeto, como fato psicológico ou anímico, porquanto pode ser presumida quando este faltar na realidade das relações: assim, a afetividade é dever imposto aos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles, ainda que haja desamor ou desafeição entre eles. O princípio jurídico da afetividade entre pais e filhos apenas deixa de incidir com o falecimento de um dos sujeitos ou se houver a perda do poder familiar. Não impera necessariamente a preexistência de afeto, posto que a parentalidade sociológica resulta do estado de filho, e não na questão do afeto.”

O afeto mostra-se bem presente na adoção, já que essa relação familiar decorre de uma opção. À vista da legislação brasileira, a adoção é irrevogável. Isso significa que, além de embasar o enaltecimento da afetividade, recolher do campo da liberdade individual a chance de futuro arrependimento.

Isso é significativo para validar a tese de que a legislação não possui nenhum parâmetro de discriminação. Ou seja, qualquer adoção, inclusive a adoção à brasileira, deve conter os requisitos que demonstrarão o estado de filiação. O relevante, seja na adoção legal, seja na ilegal, é a comprobação da afetividade. 

3 A ADOÇÃO AVOENGA E ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Há um conflito, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, acerca das implicações da adoção avoenga, já que esta é proibida pelo artigo 42, §1º do Estatuto da Criança e do Adolescente No entanto, a jurisprudência brasileira, inclusive emanada do Superior Tribunal de Justiça flexibiliza essa vedação, se posicionando no sentido de permitir, em situações excepcionais, a adoção avoenga.

É necessário, no entanto, fazer uma análise minuciosa das fontes do direito e como elas embasam o debate sobre o assunto, pois as três principais fontes (legislação, jurisprudência e doutrina) possuem posicionamentos diferentes quanto à questão, que alimentam o debate e influenciam na concretização dos direitos positivados, mesmo que de formas diferentes. Os conflitos e contradições próprios do ordenamento jurídico dentro do debate da adoção avoenga, portanto devem ser analisados para que se posicione os fundamentos para a possibilidade de que ela aconteça de forma legitimada pelo Direito.

3.1 ADOÇÃO AVOENGA À LUZ DA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL

A adoção avoenga é expressamente proibida no Estatuto da Criança e do Adolescente, assim como a adoção entre irmãos, conforme seu artigo 42, §1º. Esse posicionamento foi adotado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente visando a proteção do menor, da sua estabilidade psicológica e emocional, vez que se considera que a adoção do infante pelos avós pode criar uma confusão na instituição do poder familiar, inclusive podendo ser usada para fins patrimoniais (MADALENO, 2022).

Frisa-se, porém, que os alimentos avoengos previstos no artigo 1.698 do Código Civil demonstram que o ordenamento jurídico brasileiro já conhece a força da relação familiar entre avós e netos, que inclusive já é capaz de ensejar obrigação de prestar alimentos por parte dos avós.

Deve-se considerar, no entanto, que a legislação de proteção à população infanto-juvenil tem como um dos eixos os princípios de proteção ao menor e a preservação da família como unidade estabelecida pelas relações de afeto e cuidado. Sendo assim, nota-se uma forte contradição entre essa vedação e o próprio propósito do Estatuto, vez que ele solidifica a defesa aos interesses do infante, mas, ao mesmo tempo, obstaculiza o exercício pleno das relações familiares (TEPEDINO, 2016).

A adoção de crianças pelos avós, por ser matéria ainda não pacificada e por essa vedação constante na legislação, é algo que ainda sofre dificuldades em se concretizar, e os processos acabam se tornando mais morosos, já que é necessário a comprovação de certos requisitos estabelecidos pela jurisprudência, e não em lei, para que ela se efetive, por se tratar de uma situação apenas aceita excepcionalmente, e que pode variar de acordo com o entendimento de cada Tribunal.

Muito embora pareça objetiva a propositura determinada pelo ECA, não se pode desvinculá-la da realidade vivenciada pelas famílias brasileiras, as quais modificam seus núcleos e necessidades diariamente devido a constante modernização e transformação da formação do lar. Assim, a criança que não está sob a autoridade parental de seus pais biológicos, poderá ser adotada, exceto por seus ascendentes e irmãos (LOBO, 2021).

Essa contradição entre os espíritos das leis brasileiras, de buscar proteger o melhor interesse do menor, mas acabar por algumas vezes obstaculizar sua efetivação, demonstra a urgência da ampliação do debate acerca da adoção avoenga e a capacidade jurídica de sua aplicação, em uma perspectiva que leve em conta os princípios próprios do Direito de Família que buscam resguardar o bem-estar da criança e a coesão do núcleo familiar.

3.2 ADOÇÃO AVOENGA À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA PÁTRIA

Em casos excepcionais a jurisprudência brasileira permite que seja realizada a adoção avoenga, levando em conta o melhor interesse do menor, e a relação de afetividade existente com os avós. Tartuce (2017) reconhece que a tendência dos tribunais pátrios de não reverter decisões que levam em conta o respeito à dignidade humana e o melhor interesse do menor é benéfica.

Por fim, demonstrando a amplitude de aplicação do princípio de melhor interesse da criança e do adolescente, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que não cabe qualquer alegação de nulidade processual, mesmo pelo Ministério Público, nos casos em que o processo de adoção for realizado de acordo com os ditames que protegem o menor. (TARTUCE, 2017).

Sendo assim, apesar de se tratar de interpretações contra legem, tais decisões priorizam questões que possuem elevado valor social: a qualidade de vida do menor, a manutenção dos vínculos familiares e a proteção à saúde mental da criança ou adolescente. Nesse sentido, cita-se julgados que confirmam esse viés: (REsp 1448969/SC, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/10/2014, DJe 03/11/2014), (REsp 1587477/SC, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 10/03/2020, DJe 27/08/2020), (STJ, REsp 1.587.477/SC, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 10.03.2020).

Ressalta-se que tais decisões são devidamente fundamentadas nas condições do caso concreto, e seguem critérios similares tais quais: a visão da criança quanto aos avós, o reconhecimento da parentalidade pelo adotando, o vínculo afetivo entre ambos, e a impossibilidade dos pais originais exercerem a guarda do menor sem lhe causar ônus, impactar negativamente sua subsistência e desenvolvimento psicológico.

Sendo assim, apesar de demonstrarem contrariedade à legislação, apresentam um forte exemplo de sopesamento de normas, entre princípios e lei, tendendo para aquele posicionamento que melhor favorece o incapaz que está envolvido. Não deve ser lido, no entanto, como mero ativismo judicial, mas como priorização dos valores que são mais importantes, colocando como centro das decisões a lei mais importante do conjunto normativo brasileiro; a Constituição Federal de 1988. Ademais, é importante destacar que existe também ampla aceitação da jurisprudência quanto à regulamentação de visitas e do direito de convivência familiar.

3.2.1 Adoção avoenga à luz da doutrina pátria

É necessário ressaltar, a priori, que há posicionamentos doutrinários críticos quanto ao posicionamento dos Tribunais ao permitirem a adoção avoenga, apesar das razões já citadas que fundamentam a aplicação dessa interpretação normativa. Um exemplo disso é De Carvalho Botega (2018), que em sua obra intitulada “Avós podem adotar netos? Ativismo judicial e limites da legalidade: análise crítica do julgamento do REsp 1.448.969/SC pelo Superior Tribunal de Justiça” faz uma análise crítica a esse posicionamento.

No entanto, pode-se citar como exemplos Dias (2021) e Gonçalves (2019) como dois fortes expoentes da doutrina civilista brasileira que embasam a regularização da adoção avoenga, tendo em vista o respeito aos princípios do Direito de Família e aos direitos constitucionais. Não se trata, portanto da mera defesa de um ativismo judicial, mas o entendimento de que o âmbito jurídico, bem como a própria sociedade está cada vez mais se aproximando da ideia de que em qualquer situação deve ser priorizado o que é melhor para o infante, e muitas vezes o reconhecimento da paternidade afetiva por parte dos avós é a melhor resolução, mesmo que contra legem.

Ademais, a própria corrente que defende a constitucionalização do Direito Civil é um forte embasamento para a adoção avoenga como medida de proteção aos direitos fundamentais do menor, pois uma vez que todo o ordenamento jurídico deve possuir raízes na defesa aos princípios constitucionais, a proteção dos princípios de direito de família que deles decorrem devem ser priorizados.

4 PATERNIDADE SÓCIO-AFETIVA

A ideia de paternidade sócio afetiva se desenvolve a partir da base de princípios que envolvem o princípio da afetividade, da preservação do núcleo familiar e da proteção do melhor interesse do menor. Para Dias (2021), “a filiação sócia afetiva corresponde à verdade construída e assegura o direito à filiação”.

A possibilidade de reconhecimento da paternidade sócio afetiva, portanto, parte da ideia de que mesmo não havendo vínculo sanguíneo, a filiação construída com base nos laços afetivos merece ser reconhecida, pois constitui o reconhecimento do exercício do poder familiar, e dos deveres que advém dele.

Há, portanto, uma primazia da realidade, já que o registro civil e mesmo a relação de parentesco sanguíneo são preteridas em prol da ideia de que deve ser reconhecido pai ou mãe aquele que efetivamente exerce o convívio e o papel familiar intrínsecos a esse título, que produz deveres (MOREIRA, 2020).

Sendo assim, é possível reconhecer que o padrasto, por exemplo, exerce papel de pai, e que o pai reconhecido por registro civil não exerce esse encargo. Esse instituto, dentro do Direito de Família é essencial para o respeito ao direito à nome e à filiação, portanto deve ser equiparado ao reconhecimento de paternidade biológica, vez que os valores instituídos tanto pela Constituição Federal de 1988, tanto pelo Código Civil de 2015, prezam pela não diferenciação entre filiação por adoção e filiação biológica.

A visão pluralista de família e a centralidade do afeto são essenciais à concretização dos direitos da criança e do adolescente, que devem ser prioridade nas ações que tratem de guarda de menores e de adoção. A flexibilização da ideia de família possibilitou a solidificação da cláusula geral da tutela da personalidade humana, pois desvinculou o reconhecimento das relações familiares da necessidade de vínculo biológico.

Três grandes marcos no reconhecimento da paternidade socioafetiva foi a aprovação do Enunciado n. 339 do CJF/STJ e o Enunciado n. 519 do CJF/STJ, e a decisão Recurso Extraordinário 898.060/SC, com repercussão geral, Rel. Min. Luiz Fux, j. 21.09.2016, publicado no seu Informativo n. 840, que também impactou na questão da multiparentalidade.

Tartuce (2017), ao discorrer sobre o assunto afirma que “além de reconhecer a possibilidade de vínculos múltiplos parentais, uma das grandes contribuições do aresto foi consolidar a posição de que a socioafetividade é forma de parentesco civil, em posição igualitária diante do parentesco consanguíneo”.

Deve-se observar, naturalmente, as questões éticas e a boa-fé envolvida em processos que versam sobre a matéria, já que essa questão, por mais que tenha como eixo a solidariedade família e o afeto, também impacta nas questões patrimoniais, o que acaba gerando discussões no âmbito jurídico.

No caso da adoção avoenga, a paternidade socioafetiva pode se dar pela ausência dos pais biológicos, que pode acarretar em um reconhecimento recíproco da relação de paternidade entre avós e netos. O abandono paterno dos pais originais pode ser suprido pelo afeto oferecido pelos avós, o que deve se refletir na realidade jurídica, pois o exercício do poder parental gera direitos e deveres tanto para os filhos quanto para os pais. Nesse caso, deve ser preconizada a realidade fática, e levado em conta que a relação de ascendência biológica não pode ser um obstáculo à efetivação da proteção do menor e de seus interesses.

Ressalta-se que a paternidade socioafetiva demonstra uma tendência da sociedade e do âmbito jurídico de que o texto legislado acompanhe as mudanças sociais, pois no contexto brasileiro a ideia de família é muito plural, mas isso nem sempre é representado pelo conjunto normativo.

No entanto, a defesa da paternidade socioafetiva e da adoção avoenga não pode ser confundida com a defesa da chamada “adoção à brasileira”, pois o processo de adoção deve seguir as regras do devido processo legal e respeitar a intervenção dos agentes estatais e das instituições, tais como o Ministério Público, para que sejam analisadas in casu quais as possibilidades e qual via é a melhor de fato para a criança.

O Registrar filho alheio em nome próprio é crime contra o estado de filiação, disciplinado no artigo 242 do Código Penal, e também fere os princípios de Direito de Família e da própria Constituição, pois põe em risco a estabilidade das relações familiares e flexibiliza a própria adoção como processo complexo de aquisição de direitos e deveres, podendo ser prejudicial à criança e ao adolescente.

Sendo assim, cada vez mais o ordenamento jurídico busca aproximar a paternidade socioafetiva da paternidade biológica, conferindo direitos e deveres para aquele que é considerado pai ou mãe afetivos. Um exemplo disso é que, mesmo nos casos em que a pessoa que é apontada como ascendente afetivo escolhe não reconhecer essa relação, ela pode ser reconhecida por outros meios de prova, já que prepondera a primazia da realidade.

4.1 PATERNIDADE SOCIO AFETIVA À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA DO STJ

A paternidade socioafetiva tem sido objeto de análise e reconhecimento pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Diversos autores ressaltam a importância desse reconhecimento, que vai além dos laços biológicos e valoriza os vínculos construídos com base no afeto e no cuidado.

De acordo com Pereira (2015) a expressão “paternidade socioafetiva” tem sua origem no contexto jurídico brasileiro e busca abranger de forma abrangente a realidade vivenciada por inúmeros indivíduos. Essa concepção, que anteriormente era designada como “posse de estado de filho” e se fundamentava nos elementos de “tractus, fama e nomem”, já encontrou respaldo em diversas decisões proferidas pelos tribunais brasileiros, inclusive no Superior Tribunal de Justiça, onde é adotada sob a denominação de “socioafetividade”.

No entanto, em 2016, o Supremo Tribunal Federal agendou o julgamento da Ação RE 898060-SC, tendo como relator o ministro Luiz Fux, que trata especificamente da temática da paternidade/maternidade socioafetiva. Esse julgamento possui uma relevância significativa, uma vez que marcará a primeira vez em que o STF se posicionará sobre esse assunto tão relevante para a sociedade. A decisão proferida nesse caso terá impacto não apenas no campo jurídico, mas também na construção de uma visão mais inclusiva e respeitosa das relações familiares, reconhecendo a importância do vínculo afetivo para além dos laços biológicos (PEREIRA, 2015).

Nesse sentido, o julgamento da Ação RE 898060-SC pelo STF representa um marco importante no desenvolvimento do direito da família no Brasil, podendo trazer avanços significativos na proteção dos direitos das crianças e na consolidação da paternidade socioafetiva como um elemento central na formação das relações familiares. Essa discussão também reflete a sensibilidade do Poder Judiciário em adaptar-se às transformações sociais e valorizar a importância dos vínculos afetivos na promoção do bem-estar das famílias e no melhor interesse das crianças.

Um caso emblemático que ilustra a relevância da paternidade socioafetiva e a necessidade de seu reconhecimento é o da família de Nazaré, cuja história foi amplamente discutida no âmbito jurídico. Trata-se de uma situação em que um pai registrou como sua filha uma criança que não possuía vínculo biológico com ele, mas com a qual mantinha um profundo laço afetivo.

Nesse caso, o pai exerceu todas as funções parentais, oferecendo amor, cuidado, educação e proteção à criança desde seu nascimento. No entanto, quando o pai biológico da criança decidiu reivindicar seus direitos de paternidade, iniciou-se uma batalha judicial complexa e delicada.

O Superior Tribunal de Justiça, sensível à importância da afetividade na formação dos laços familiares, reconheceu a paternidade socioafetiva como um fator determinante na definição da filiação. A decisão do tribunal considerou que a filiação não pode ser restrita apenas ao vínculo biológico, pois a paternidade socioafetiva tem o poder de estabelecer uma verdadeira relação familiar, pautada pelo afeto e pela convivência.

Esse caso emblemático demonstra o papel fundamental da jurisprudência do STJ na proteção dos direitos das crianças e na promoção de relações familiares saudáveis. O reconhecimento da paternidade socioafetiva, respaldado em critérios jurídicos sólidos, contribui para a construção de uma sociedade mais inclusiva, que valoriza a importância do afeto e da dedicação no estabelecimento dos vínculos familiares.

É fundamental destacar que cada caso deve ser analisado individualmente, considerando-se as particularidades e as provas apresentadas. O reconhecimento da paternidade socioafetiva pelo STJ tem como objetivo principal proteger o melhor interesse da criança e a estabilidade das relações familiares, levando em conta não apenas o aspecto biológico, mas também o emocional e afetivo.

Assim, a jurisprudência do STJ tem desempenhado um papel essencial ao reconhecer e valorizar a paternidade socioafetiva, ampliando a compreensão do que significa ser pai ou mãe. Essa abordagem jurisprudencial reflete a evolução do Direito brasileiro, que busca acompanhar as transformações nas estruturas familiares e priorizar o bem-estar das crianças, reconhecendo a importância do afeto e do cuidado como elementos essenciais na formação de uma verdadeira relação familiar. 

Em conclusão, a compreensão da parentalidade socioafetiva revolucionou o sistema jurídico, trazendo consigo importantes mudanças. Não se limitando ao vínculo biológico, essa concepção reconhece que o investigado pode não ser necessariamente o pai ou a mãe. Além disso, a declaração judicial da parentalidade socioafetiva pode impactar a partilha de bens e possibilitar a existência de múltiplos pais ou mães. Essa transformação reflete a necessidade de adaptar as normas legais às novas configurações familiares, valorizando o afeto, o cuidado e os laços de convivência na formação dos vínculos parentais (PEREIRA, 2015).

CONCLUSÃO

A flexibilização da norma referente à adoção dos netos pelos seus avós demonstra-se necessária, sendo a mitigação da aplicação do art. 42 do ECA, em especial o parágrafo primeiro,  uma forma de possibilitar a garantia de direitos fundamentais do adotando. A lei proibitiva infere, muitas vezes, em consequências não favoráveis ao desenvolvimento da criança, como quando a mantém sob o registro de pais biológicos ausentes e com históricos familiares.

Cabe ressaltar que o Direito de Família tem conteúdo diretamente relacionado à adoção e seus aspectos quanto aos direitos das crianças e adolescentes e das famílias adotivas. Em vista disso, é imprescindível considerar a importância do instituto para a constituição familiar, de maneira que o Estado e a sociedade devem atuar conjuntamente para a proteção da instituição, haja vista os aspectos sociais, jurídicos e emocionais que estão presentes na adoção.

Conclui-se, então, de maneira favorável à flexibilização da norma, possibilitando a adoção avoenga à luz do melhor interesse da criança e do adolescente, tendo em vista as alterações familiares e a modificação da figura do idoso com os passar dos anos, o qual possui renda e é ativo socialmente.

REFERÊNCIAS

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1Acadêmico do Curso de Bacharelado em Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA.
Email: g.m.f.r@hotmail.com

2Acadêmica do Curso de Bacharelado em Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA
E-mail: gemima.sobral@gmail.com

3Professora do Curso de Bacharelado em Direito do Centro Universitário Agostinho –UNIFSA.

4Especializado em Direito Penal e Processual Penal pela ESAPI – Escola Superior de Advocacia do Piauí. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Ambiental, Direito Civil (Parte Geral, Responsabilidade Civil, Coisas, Família e Sucessões), Direito do Trabalho e Medicina e Segurança do Trabalho, Teoria Geral da Constituição, Direito Constitucional e Licitações e Contratos e Direito Eleitoral Autor de artigos e obras jurídicas. Advogado e consultor jurídico. E-mail: evaristojuliana40@gmail.com